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OS MIDIA E O CENARIO DE REPRESENTACAO DA POLITICA* VENICIO A. DE LIMA Uma das caracterfsticas mais marcantes do final deste “breve sé- culo XX” € a centralidade dos midia na vida humana, seja como fonte de entretenimento, informagao ou instrumento de trabalho. A convergéncia tecnolégica entre telecomunicagées, mass media e informética, gestada pela “era digital”, colocou os midia como elementos fundamentais da en- grenagem da globaliza¢3o econémica e cultural e como setor mais dinamico da economia internacionalizada, para onde esto sendo canaliza- dos os grandes investimentos dos conglomerados transnacionais. Mesmo que as transformages radicais de nossa época nao atinjam toda a popu- lago mundial na mesma velocidade e nem produzam consequéncias uni- formes nas sociedades do planeta, sobretudo a centralidade dos midia que faz com que suas implicagdes possam ser sentidas no cotidiano das pessoas independentemente de classe, etnia, sexo ou idade. Nao sur- preende, portanto, que os midia tenham também se transformado em palco € objeto privilegiado das disputas pelo poder politico na contemporanei- dade e, conseqiientemente, em fonte primeira das incertezas com relagio ao futuro da democracia. Enquanto fildsofos, historiadores, economistas, sociGlogos ¢ an- tropélogos — reconhecendo a centralidade dos midia — buscam compreen- der a dinamica da nova realidade, no Brasil, as andlises oriundas da Cién- cia Politica e da Comunicagao (ou, pelo menos, a grande maioria daquelas * Este texto (© copyright 1996 Venfcio A. de Lima) constitui uma verso consolidada, revis- tae atualizada de dois outros: “Televisdo e Poder: a hipétese do Cendrio de Representagao da Polftica” e “CR-P: novos aspects te6ricos e implicag6es para a anélise politica”, ambos pu- blicados em Comunicagdo&Politica, Nova Série, v.1, n° 1 (agostolnovembro de 1994) ¢ n° 3 (abritjunho de 1995). Agradeco 0s comentarios e sugestdes de Afonso de Albuquerque, Mauro Porto, Murilo Soares e Roberto Amaral. 240 LUA NOVA N° 38-— 96 que se tornam pablicas), continuam resistindo a inscrever os midia entre as instituiges merecedoras de estudo e pesquisa na andlise da politica. Existem trabalhos publicados na drea. Todavia, desconhecem 0 papel formador dos miidia na cultura politica ou padecem de um cardter re- dutor, porque equacionam os midia apenas com 0 conceito de “informagao politica” (sobretudo na Ciéneia Politica) ou assumem 0 comodo formato ensaistico, exclusivamente critico e normativo, sem qualquer compromis- so com a verificagdo empitica (sobretudo na Comunicagio). O conceito de "Cendtio de Representagio da Politica" (CR-P) ¢ as duas hipéteses a ele relacionadas que so aqui apresentados, ambici nam constituir-se numa contribuigdo para 0 reconhecimento dos midia como objeto fundamental de andlise para a compreengao do poder politico no mundo contempordneo. UMA TRADICAO NAS CIENCIAS HUMANAS O conceito de CR-P e as duas hipéteses a ele relacionadas po- dem ser situados dentro de uma tradigéo mais ampla de estudo nas cién- cias humanas. Refiro-me a tradi¢o que Baczko (1985, 1991) reconhece como tendo se tornado moda nas ciéncias humanas européias e no discur- So politico, a partir dos anos 80 e aquela a que Almond (1990) identifica, em sua expressdio moderna, como “tendo emergido primariamente da cién- cia social americana nas primeiras décadas depois da Segunda Grande Guerra” e se consolidado em fungao do "desenvolvimento da metodologia e tecnologia da pesquisa survey". Esta ampla tradigdo tem sido identifica- da por diferentes conceitos dentro dos mais diversos contextos tedricos: vontade geral, opinido piblica, representagao coletiva, representages so- ciais, ideologia, imaginario social, mito, inconsciente politico, hegemonia, consenso, centro dindmico da cultura e hegemonia, dentre outros. Vamos nos referir apenas aos conceitos de "imagindrio social", por sua abrangén- cia, e ao de "cultura politica” por fazer parte, especificamente, do campo conceitual da ciéncia politica contempordnea. Vale dizer, nos limitaremos a considerar duas vertentes dessa tradigdo: aquela dentro da hist6ria das mentalidades identificada com a Ecole des Annales francesa e que estuda © imaginério social; e uma outra que se desenvolveu sobretudo dentro da ciéncia politica de origem norte-americana e que trata da hegemonia!. 1 Ao tomar como referencia para este texto os conceitos de imagindrio social ¢ cultura politica elaborados por Baczko ¢ Almond, respectivamente, nao desconhecemos a natureza problemitica de ambos os conceitos, nem as dificuldades de comparé-los, nem 0 fato de que OS MIDIA EOCR-P a1 E importante registrar que a preocupacao com essa problematica, em ambas as vertentes, tem sido recuperada, embora com énfases distintas, desde os cléssicos —Platio e Arist6teles — passando por Maquiavel, Rousseau (que fala na necessidade da fabricagdo de um "contra-imagindrio"), Mira- beau, chegando ao século XIX com Michelet, Tocqueville até Marx (ideolo- gia), Durkheim (representagao coletiva) e Weber (sentido daagao). Embora a problemitica seja antiga e constitua uma tradi¢ao den- tro das ciéncias humanas, na perspectiva da ciéncia positiva que estava sur- gindo em meados do século XIX — psicologia, sociologia e antropologia - predominavam tendéncias que consideravam o imagindrio como algo "ilusério" e "quimérico”. As ciéncias humanas deveriam desvendar 0 gue era “mistificado", separar o imaginério do que era “verdadeiro" e "real". Enesse espago hist6rico que surgem os autores que foram, e continuam sendo, a ma- triz fundamental para a discussdo da questo: Marx, Durkheim e Weber. & também interessante observar que nem Baczko (1985, 1991), nem Almond (1990) incluem, nessa tradigdo maior das ciéncias humanas, os autores que so identificados como constituindo o "marxis- mo ocidental", vale dizer, aqueles autores dentro do campo marxista que, sobretudo a partir da década de 20.deste século, buscaram na esfera da cultura (ou na "superestrutura"), as razdes para o fracasso das revo- lugdes socialistas na Europa Ocidental (Anderson, 1976; Merquior, 1987). Na verdade, Almond nao faz distingdes dentro da evolucdo histérica interna do “marxismo" e chega até mesmo a afirmar, generali- zando, que "para o marxismo a cultura politica ndo oferecia problema”. Dentre os autores ndo mencionados, nos interessa, em particular, a arti- culagdo tedrica do italiano Antonio Gramsci, sobretudo 0 seu conceito de hegemonia (Gramsci, 1971)°. existem outros muitos autores que trabalham esses conceitos de diferentes perspectivas teGricas € metodoldgicas. Nossa escolha, apesar de arbitréria, tem como justificativa 0 uso ccorrente desses conceitos e desses autores nas ciencias sociais. 2 Almond (1990), embora mencione os frankfurtianos Adorno ¢ Horkheimer, coloca-os como pertencendo a uma tradigao que chama de “psico-antropol6gica” e que constitui, segundo ele, ‘uma das trés correntes intelectuais que alimentaram a pesquisa em cultura politica, Registre-se ‘que em seu recente trabalho sobre cultura politica no Brasil, J. A. Moisés (1995), ao contritio de Almond, situa Gramsci como critico interno de uma das abordagens correntes na ciéncia politica da nogao de cultura politica: a tradigo marxista. Moisés todavia, apesar de considerar “a contribuigao de Gramsci (..) imecusdvel” descarta 0 conceito de hegemonia por considerd- Jo, como Laclau, padecendo de “reducionismo classista” (cf. pp. 88-91, passim). 3 Registro e reconhego 0 descrédito que hoje domina boa parte das ciencias sociais no Brasil com relago a validade e pertinéncia da utilizagao do pensamento de Antonio Gramsci na andlise politica contemporinea. Todavia, continuo convencido de que, apesar de todas as questées nio resolvidas decorrentes de sua aplicagio, 0 conceito de hegemonia permanece ‘comparativamente sendo o mais fértil para a anélise do espago da representago social, como ‘espero argumentar convincentemente neste texto. 242 LUA NOVA N°38— 96 QUAL PROBLEMATICA? Mas qual é exatamente a problematica dessa tradig&o ? Para sim- plificar o argumento ficarei, neste texto, restrito as vertentes jf menciona- das do imagindrio social e da cultura polftica antes de recorrer ao conceito gramsciano de hegemonia. Volto, portanto, novamente a Baczko e a Almond para citar algumas definigdes na tentativa de melhor situar o espaco dentro do qual, creio, possamos incluir também 0 conceito de CR-P. "Os imagindrios sociais constituem (...) pontos de referéncia no vasto sistema simbélico que qualquer coletividade produz e através do qual (...) ela se percebe, divide e elabora os seus préprios objetivos. Fi as- sim que, através dos seus imagindrios sociais, uma coletividade designa a sua identidade; elabora uma certa representagio de si; estabelece a distri- buigdo dos papéis e das posigdes sociais; exprime e impde crengas co- muns; constréi uma espécie de cédigo de ‘bom comportamento’, designa- damente através da instalagéo de modelos formadores (...). Assim € produzida, em especial, uma representagio global e totalizante da socie- dade como uma ‘ordem’ em que cada elemento encontra o seu ‘lugar’, a sua identidade e a sua razio de ser (...). "CO imaginario social € uma peca efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercicio da autoridade e do po- der. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e 0 objeto dos conflitos sociais.” “As relagdes de forga e de poder que toda a dominagio compor- ta, acrescentam-se assim as relagGes de sentido. Qualquer instituigdo so- cial, designadamente as instituigdes polfticas, participa de um universo simbélico que a envolve e constitui o seu quadro de funcionamento." "A influéncia dos imagindrios sociais sobre as mentalidades de- pende em larga medida da difusdo destes e, por conseguinte, dos meios que asseguram tal difusiio. Para garantir a dominacdo simbélica, 6 de im- porténcia capital o controle destes meios, que correspondem a outros tan- tos instrumentos de persuasdo, pressdo e inculcagdo de valores e crengas." “(...) 08 mass media fabricam e emitem, para além das infor- mag6es centradas na atualidade, (...) os imagindrios sociais: as represen- tagdes globais da vida social, dos seus agentes, instincias e autoridades (...)."(Baczko, 1985; 299-314, passim). “A teoria da cultura politica define a cultura polftica nos se- guintes quatro pontos: (1) Ela consiste em um conjunto de orientagdes subjetivas relativamente a politica numa populagdo nacional ou um sub- conjunto de uma populagdo nacional. (2) Ela tem componentes cognitivos, afetivos e avaliativos: ela inclui conhecimento e crengas a respeito da rea- lidade politica, sentimentos _relativamente a politica e adesdes a valores OS MIDIA EOCR-P 243 politicos. (3) O conteudo da cultura politica é o resultado da socializagao infantil, da educagao, da exposigao aos midia e de experiéncias adultas com a estrutura e o desempenho governamental, social e € econémico. (4) a cultura politica afeta a estrutura e o desempenho politico e governamen- tal — os constrange mas certamente néo os determina. As setas causais en- tre cultura e estrutura e desempenho vo nos dois sentidos”. (Almond, 1990; pp.143-144). Essas duas longas citagdes tornam-se necessérias para delimitar a problemdtica na qual estamos nos situando. Apesar das diferengas, os conceitos acima definidos referem-se ao espago das construgdes simbGlicas. Suas diversas dimensGes — representagdo, identidade, limites, controle, componentes cognitivos, afetivos e valorativos, etc. — irio sendo retomadas ao longo do texto e & medida que avangarmos na conceituago do CR-P. Por hora, vale registrar a semelhanca entre o “territério” dos conceitos de imaginério social ¢ cultura politica e aquele do conceito de hegemonia de Gramsci, retrabalhado e assim definido por Williams: “Hegemonia € todo um conjunto de praticas e expectativas so- bre a totalidade da vida: nosso senso € alocagdo de energia, nossa per- cepgao de nés mesmos e nosso mundo. E um sistema vivido — constitufdo € constituidor — de significados ¢ valores que, ao serem experimentados como préticas, parecem confirmar-se reciprocamente. Constitui assim um senso da realidade para a maioria das pessoas na sociedade, um senso de tealidade absoluta, porque experimentada, e além da qual é muito dificil para a maioria dos membros da sociedade movimentar-se, na maioria das reas de sua vida. Em outras palavras, hegemonia € no seu sentido mais forte uma ‘cultura’, mas uma cultura que tem também de ser considerada como o dominio e a subordinagao vividos de determinadas classes." "Uma hegemonia vivida € sempre um processo. Nao é, exceto analiticamente, um sistema ou uma estrutura. E um complexo realizado de experiéncias, relagGes ¢ atividades, com pressdes e limites especificos e mutaveis. Isto é, na prdtica a hegemonia no pode nunca ser singular. Suas estruturas internas so altamente complexas, como pode ser constatado em qualquer andlise concreta. Além disso ela ndo existe apenas passivamente como forma de dominagio. A hegemonia tem que ser continuamente reno- vada, recriada, defendida e modificada. Também é continuamente resisti- da, limitada, alterada e desafiada por pressGes que nao so as suas proprias pressées. Temos entiio de acrescentar ao conceito de hegemonia o concei- to de contra-hegemonia e de hegemonia alternativa, que sio elementos reais ¢ persistentes da pratica" (Williams, 1979; 113; 115/6; passim). Retomaremos adiante as distingSes relevantes e vantagens tedrico~ metodolégicas entre 0 conceit proposto de CR-P e os conceitos 24 LUA NOVA N°38— 96 de imaginério social, cultura politica e hegemonia._E importante assinalar, todavia, que a definicdo de Williams, ao destacar a dimensio simbélica, nao abarca caracteristicas da hegemonia como a lideranga intelectual e moral da(s) classe(s) hegem6nica(s); 0 consenso como forma de domi- nagdo politica mais eficaz do que a coergio; e a articulagdio hegemonica como resultado de aliangas entre classes e/ou fracgdes de classe. Essa Ultima caracteristica € que possibilita 8 hegemonia constituir-se naquilo que Gramsci chamou de “equilibrio instavel” e que Ihe dé uma certa esta- bilidade ou inércia relativa, diferentemente dos CR-Ps que, apesar de cons- tituirem-se como partes do hegemOnico, sendo predominantemente simbélicos so, portanto, menos duradouros (ver adiante). O CONCEITO DE CR-P Dentro da tradigo maior representada pelos conceitos de imaginério social e cultura politica e tomando 0 conceito de hegemo- nia como referéncia teérica bésicat, queremos mostrar que 0 CR-P re- fere-se a um "“cendrio de representacdio"> especffico da "politica". Ve- jamos. Se entendermos a palavra "cendrio" como significando o espaco, o lugar onde ocorre algum fato, a agdo ou parte da acio de uma prdtica qualquer, € possivel afirmar que a hegemonia, para efeito de anélise, pode ser decomposta em varios “cenérios de representagio" es- pecfficos que, naturalmente, incorporam todas as caracteristicas da hege- monia. Necessariamente integradas na articulagao hegeménica, as dife- tentes dimensdes do "conjunto de prdticas e expectativas sobre a totalidade da vida" constituem-se em cenérios/espacos proprios, com sig- nificados e valores especificos, que também interpenetram-se e su- perpdem-se. E nestes "cendrios de representagéio" que so construidas pu- blicamente as significagGes relativas aos generos (masculino/feminino), as etnias (branco/negro/amarelo), as geragGes (novo/velho), a estética (feio/ bonito) a violéncia, 4 modernidade, etc. etc. Desta forma, podemos ter 0 CR-G, Cenério de Representagiio dos Géneros, 0 CR-E, Cenério de Repre- sentagio das Etnias e assim por diante. O que nos interessa, em particular, 4 Alguns autores também se utilizam do conceito gramsciano de hegemonia para andlise dos ‘midia no mundo contempordneo. Vale registrar o trabalho de Todd Gitlin (1980 € 1994 (origi- nal 1977), nao s6 por seu caréter pioneiro mas também por ter dado origem a outros estudos. 5 Hall (1988, p. 27) utiliza a expresso “scenarios of representation” no contexto da di cussdo sobre representagio. No entanto, ele nio elabora o conceito nem o situa em relagdo & problemética gramsciana de hegemonia. OSMIDIAEOCR-P 245 a construgdo ptiblica das significagées relativas A politica, vale dizer, 0 CR-P, Cenério de Representagao da Politica. Mas qual é a caracteristica fundamental dos "cendrios" de repre- sentagiio? Como vimos, a hegemonia é "um sistema vivido de significados e valores (..), um senso da realidade”. Desta forma podemos afirmar que ela constitui-se ¢ realiza-se no espago onde o sentido da vida e das coisas 6 construido, vale dizer, no espaco das representagdes. Precisamos, entdo, entender 0 complexo conceito de representagio. De um lado, representago pode referir-se apenas a existéncia de uma realidade externa aos meios através dos quais ela (realidade) € representada (teoria mimética). De outro, representagao pode referir-se nao sé a uma realidade refletida, mi- mética, mas também & constitui¢ao desta mesma realidade. Este ultimo € 0 sentido do conceito gramsciano de hegemonia , “sistema vivido ~ cons- tituido e constituidor — de significados e valores que (...) parecem confir- mar-se reciprocamente”. Assim, em nossa articulagao conceitual, represen- tagdo significa no s6 re-presentar a realidade, mas também constituf-la. Desta forma o CR-P € 0 espago especifico de representagao da politica nas “democracias representativas” contempordneas, constituido e constituidor, lugar e objeto da articulagdo hegem@nica total, construfdo em processos de longo prazo, nos e pelos midia, sobretudo na e pela televisao. Como a hegemonia, o CR-P nao pode nunca ser singular. Temos, portanto, de acrescentar ao conceito de CR-P 0 conceito de contra-CR-P ou de CR-P alternativo. CR-P: VANTANGENS COMPARADAS, © conceito de hegemonia oferece duas vantagens comparadas basicas como referéncia e ancora tedrica do CR-P, vis-a-vis os conceitos de imagindrio social e cultura politica: (a) contem necessariamente 0 seu contrério — 0 contra-hegem6nico ou o alternativo; e (b) implica um proces- so ao mesmo tempo "constitufdo pela" e "constituinte da" realidade social. Vejamos: (a) hegeménico e contra-hegeménico O conceito gramsciano de hegemonia, além de situar-se dentro da tradigdio marxista em contraste claro com o estruturalismo ¢ com o funciona- lismo, implicitos ou explicitos como paradigmas dominantes nas aborda- gens que utilizam os conceitos de imaginério social e cultura politica, deles 246 LUA NOVA N° 38 —96 também se diferencia ao insistir em relacionar a totalidade do processo so- cial com distribuigdes especificas de poder ¢ influéncia. Isto significa o re- conhecimento necessério de que, numa sociedade de classes, h4 sobretudo desigualdades entre as classes, vale dizer, existe dominio e subordinagao dentro do processo social total. Desta forma, temos obrigatoriamente que acrescentar ao conceito de hegemonia o conceito de contra-hegemonia ou hegemonia alternativa (cf, Williams, 1979; pp.111-117, passim). Tudo isso vale também, por extensio, para 0 conceito de CR-P. Deveriamos nos referir aos CR-Ps — cendrios de representagao da politica, no plural, porque haveré necessériamente sempre um CR-P hegem@nico, dominante e CR-Ps contra-hegem6nicos, subordinados, alternativos. (b) constituido e constituinte Outro cardter diferenciador do conceito de hegemonia em relagdo aqueles de imagindrio social e cultura politica refere-se ao fato de que ele identifica um processo "constitufdo pela" e "constituinte da” reali- dade social. A questo aqui € mais complexa ¢ se situa no eixo mesmo de uma fecunda discusséo contemporanea. Vejamos: Em primeiro lugar € necessério que tenhamos claro que a hege- monia como "sistema vivido de significados e valores" 6 um espago de representagSes simbélicas, vale dizer que sua unidade bdsica é o simbolo. Podemos considerar que essa é também a unidade bdsica dos conceitos de imagindrio social e cultura politica. Baczko nos chama a atengo para o fato de que existe uma am- bigiiidade notéria no conceito de simbolo e que aquilo que se retém da dis- cusso do conceito nas ciencias humanas € que "los simbolos designam tan- to el objeto como las reacciones del sujeto hacia el objeto; que la funcién del simbolo no es sélo la de instituir distinciones, sino también la de intro- ducir valores y modelar condutas individuales y coletivas; que todo simbolo est4 inscripto en una constelacién de relaciones con otros simbolos; que las formas simbélicas que van desde lo religioso a lo magico, desde lo econémico a lo politico, etcétera, forman un campo en donde se ar- ticulan las imdgenes, las ideas y las acciones" (Baczko, 1991; p. 29). Como se vé nessa passagem, Baczko fornece indicagdes sobre 0 cardter “constituidor” dos sfmbolos, na medida em que insiste na sua fungao de introduzir valores e modelar condutas individuais e coletivas. De fato, esse cardter "constituinte", e no meramente reflexivo, aparece nas articulagées tedricas de varios outros autores. Vejamos: Os estudiosos da teoria da comunicagao familiarizados com 0 trabalho de James W. Carey certamente conhecem ha mais de 20 anos sua OS MIDIA EOC R-P 247 definigdo da comunicago como "um processo simbélico pelo qual a reali- dade € produzida, mantida, reparada e transformada” (Carey, 1988; p. 23; original de 1973). Ao explicar a produgdo simbdlica da realidade, Carey, apoiado em C. Geertz, recorre ao que chama uma qualidade particular dos simbolos, isto é, a habilidade de ser, ao mesmo tempo, representagdes "da" e "para" a realidade. As formas simbélicas teriam esta capacidade dual: como "simbolos da" elas tornam a realidade presente; e como "simbolos para" elas criam a mesma realidade que tornam presente (idem, p.29). £ exatamente este o ponto de Geertz quando trata da religido como sistema cultural, em ensaio originalmente publicado em 1966. Diz ele que “diferentemente dos genes e outras fontes de informacio nao- simbélicas, as quais so apenas modelos “para”, ndo modelos "de", os padrdes culturais tém um aspecto duplo, intrinseco — eles dao significado, isto é, uma forma conceptual objetiva, & realidade social e psicolégica, modelando-se em conformidade a ela e ao mesmo tempo modelando-a a eles mesmos." (Geertz, 1978; p. 108). E também esse cardter dual dos simbolos que € reafirmado por Stuart Hall, dentro de outra tradigio tedrica, quando, ao discutir a questéo de uma "black cultural politics" na Inglaterra, problematiza o conceito de representagio e conclui que “o modo como as coisas séo representadas e os ‘maquinismos’ e regimes de representagdo numa cul- tura desempenham um papel constituinte ¢ ndo somente reflexivo apés 0 evento” (Hall, 1988; p. 27). Acrescente-se ainda que, nesta passagem de Hall, podemos entender os "maquinismos" como sendo as tecnologias dos midia, e os "regimes" como referindo-se as préticas profissionais, as rotinas produtivas ¢ aos valores partilhados e internalizados pelos profis- sionais de comunicagao - produtores, jornalistas, publicitérios, etc. (cf. Lima, 1993). Mas foi sobretudo o préprio Raymond Williams (1979), ao elaborar uma re-leitura de Marx para a construgao de uma teoria mate- rialista da cultura, quem insistiu no caréter constitufdo e constituinte da hegemonia, superando assim a categorizagio mecfnica e "nao- marxista" de uma "superestrutura" meramente reflexiva da "estrutura”. O que Williams pretende é enfatizar o caréter material unico da pro- dug&o da realidade, superando a dicotomia entre a existencia de uma realidade e algo que a represente, externo a ela. Realidade e "represen- taco da realidade" passam a constituir, portanto, uma unidade material singular. Para desenvolver seu argumento Williams recorre inicialmente as colocagdes de V. N. Volosinov (Bakhtin) sobre a lingua/linguagem e afirma: "A criac&o social de significados por meio do uso de signos for- 248 LUA NOVAN?38—96 mais € uma atividade material prética; é, na verdade, literalmente, um meio de produgao. E uma forma especffica daquela consciéncia prética que € insepardvel de toda atividade social material (...) E um processo material caracterfstico — a criagdo de signos ~ e, na qualidade central de sua caracterizagao como consciéncia pratica, est4 envolvido desde o in{cio em todas as outras atividades humanas sociais e materiais" (Wil- liams, 1979, p.44). Dessa forma, Williams considera a linguagem e a significago como elementos indissoldveis do préprio proceso social, envolvidos permanentemente tanto na produgfo e reprodugdo da reali- dade, constituidos por e constituidores dela (idem, pp. 102-3, passim). E exatamente essa a caracteristica central que ele re-trabalha no conceito de hegemonia quando afirma que ela é "um sistema vivido de significa- dos e valores ~ constituido e constituidor. (Esses siginificados e valores) ao serem experimentados como préticas, parecem confirmar-se recipro- camente " ou "uma formagdo cultural e social inclusiva que na verdade para ser efetiva tem de ampliar-se ¢ incluir toda (...) experiéncia vivida, até mesmo para formé-la e ser formada por ela” (idem, pp. 113-114, passim). O que € valido para o conceito de hegemonia necessariamente seré também valido para 0 conceito de CR-P. Considerando que um aspec- to (ndo 0 nico) que diferencia o CR-P da hegemonia € a énfase no papel central dos midia na construgao do hegem6nico (esse ponto serd discutido a seguir), logo se manifesta uma das implicagdes de seu caréter "consti- tuinte da” e "constituido pela" realidade: as "representacdes” que os midia fazem da "realidade" ("media representations") passam a constituir a prépria realidade. Aqui est o fundamento para a hipétese de que o CR-P, construido no e pelos midia, define e delimita o préprio espago da reali- dade politica no mundo contemporaneo. Essa postura tedrica provoca também a necessidade de re- discusso da eterna polémica relativa ao poder e/ou aos “efeitos” dos midia. Se as “representagdes" dos midia so constituidoras da realidade (além de serem por ela constituidas), a verificago sobre 0 poder/efeitos dos midia teré que ser feita em torno da construcdo dos mapas cogniti- vos dos individuos, vale dizer, da maneira através da qual eles percebem ¢ organizam seu ambiente imediato, seu conhecimento sobre 0 mundo e sua orientaggo sobre determinados temas ou, em outras palavras, teré que ser feita em torno da maneira pela qual os individuos constréem sua realidade. Essa postura tedrica que, na verdade, nunca foi abandonada por intimeros estudiosos, j4 est4 provocando importantes re-orientagdes na pesquisa dos “efeitos da comunicagio" (cf. Lima, 1990; pp. 33-35, passim). OS MIDIA EOC R-P 249 PRESSUPOSTOS BASICOS Quando buscamos a identificagdo de um CR-P, necessari mente, partimos de tres pressupostos basicos: (a) 0 exercicio de uma hege- monia; (b) a existéncia de uma sociedade "media-centric"; e (c) a existén- cia da televisio como medium dominante. ‘Vamos considerar, separadamente, cada um desses pressupostos: O exercicio de uma hegemonia Falar em exercfcio de uma hegemonia: (a) implica uma sociedade “ocidentalizada", com alto grau de socializagao da politica cujo exercicio nao pode mais ser reduzido apenas a um Estado coercitivo, mas, ao contrério, o proprio Estado amplia-se, constituindo-se de uma sociedade politica (aparelho coercitivo) e de uma sociedade civil, formada pelo conjunto das organizacées que elaboram/difundem as ideologias (escolas, igrejas, partidos politicos, sindicatos, midia, etc.). Este é, sem diivida, um fenénemo recente na América Latina e reduzido ainda a um ndmero limitado de: paises (Portantiero, 1983). Na sociedade brasileira, constatada a convivéncia e complementaridade de préticas politicas radicalmente distintas em diferentes regiGes do pafs, deve-se lembrar a existéncia de estudos comparados que mostram o fortalecimento de nossa sociedade civil, e portanto de “ocidentalizago”, mesmo durante © perfodo mais duro do autoritarismo militar (Stepan, 1985). (b) implica que no se pode ser dominante antes de ser dirigente, isto é, sem que se detenha 0 consentimento da maioria da populagéo. Desta forma, a conquista do consenso hegem6nico passa a ser o problema politico central; e (implica na permanente possibilidade de que classes ou fracgdes de classe protagonizem disputas internas (in- tra-hegeménicas) e/ou externas (contra-hegemdnicas) peladiregoe peloconsenso. Uma sociedade “media-centric” Refiro-me aqui & centralidade dos midia em sociedades que pos- suem sistemas nacionais consolidados de comuriicagdes ¢ que tém neles a 6 A palavra comunicagdes é empregada aqui no sentido de incluir as telecomunicagSes, os mass ‘media e ainformatica, A convergéncia tecnolégica provocada pela digitalizagio faz.com que as distingdes anteriormente feitas entre essas trés areas se tornem, progressivamente, irrelevantes. 250 LUA NOVA N°38 — 96 fonte principal de construgio dos mapas cognitivos de seus membros. Vale dizer, 4s sociedades contemporaneas que dependem dos midia para construgdo do conhecimento ptiblico que possibilita, a cada um de nés, a tomada cotidiana de decisées. Este € um fendmeno antecipado nos Estados Unidos j4 desde o inicio da década de 20, quando nao se tinha nem o radio nem a televisdo implantados em escala nacional. Lippmann (1922), referindo-se, sobretu- do, & imprensa, falou de um "pseudo-ambiente” e afirmou que “olhando para tr4s podemos ver quo indireto ¢ nosso conhecimento do ambiente em que no entanto vivemos. Podemos ver que as noticias nos chegam ora r4pidas ora lentas; mas o que quer que creiamos ser uma imagem verdadei- Ta nos tratamos como se fosse o préprio ambiente”; e mais: “o que cada pessoa faz ndo € baseado em conhecimento direto e certo mas em imagens feitas por ela ou dadas a ela (...). O modo como se imagina o mundo deter- mina em cada momento particular o que as pessoas vao fazer”. As sociedades contemporaneas, nas quais os midia so os princi- pais "construtores da realidade social", tém sido identificadas como possui- doras de "culturas midiaticas" (Schmucler e Mata, 1992) e, embora existam diferencas significativas entre pafses, com relag&o ao consumo dos varios midia (impressos e eletrOnicos), é inegdvel que ocupam uma posicéio cen- tral entre os contempordneos “aparelhos privados de hegemonia”. Quando Gramsci, na Itélia das décadas de 1920/30, aponta os or- ganismos de participagdo politica da sociedade civil aos quais se adere vo- luntariamente — escola, igreja, partidos politicos, sindicatos, organizagdes profissionais, organizacées da cultura (jornais, cinema, radio, folhetins) - como portadores materiais da hegemonia e tendo a tarefa de conservar a unidade ideoldégica de todo o bloco social, ele nfo poderia antecipar a im- portancia central que os midia viriam a ter, meio século mais tarde, na orga- nizagéo material da cultura. O advento dos meios de comunicagdo eletrénicos, sobretudo a televisdo, transforma os midia no “aparelho priva- do de hegemonia” mais eficaz na articulacio hegeménica (e contra- hegeménica), vale dizer, na capacidade de construir/definir os limites do he- geménico (da realidade) dentro dos quais a disputa politica ocorre. Gramsci também no poderia antecipar a crise generalizada de um dos principais aparelhos privados de hegemonia: os novos partidos politicos de massa, os "principes modernos", sujeitos coletivos centrais dentro de sua articulagdo teérica, Parte das razdes dessa crise pode ser en- contrada nos préprios midia. Primeiro porque eles se tornam substitutos de algumas das fung6es tradicionais dos partidos politicos como “defining the issue agenda, oversight of government agencies, and criticism of govern- ment policies” (Dalton, Flanagan e Beck, 1984; p. 460), a tal ponto que J. OS MIDIAEOCR-P 251 D. Barber chega a afirmar, com relacao aos Estados Unidos, que "os midia so os novos partidos politicos" (citado em G. Sartori, 1992, p. 306). Se- gundo, porque os midia so também responsabilizados por mudangas pro- fundas na propria natureza do processo politico. G. Sartori (1992, p. 305) ao discutir a questo da democracia contemporanea vis-a-vis 0 globalismo € 0 localismo e no contexto de uma comparacdo entre os partidos politicos na Europa e nos Estados Unidos, argumenta que: "La televisiOn est4 cam- biando al hombre y est4 cambiando la politica. La primera transformacién engloba la segunda. Pero es la video-politica la que mejor representa, en este momento, el video poder, la fuerza que nos estd modelando. Y por ello mantedré que la video-politica transforma la politica en el més amplio contexto de un video-poder que est transformando en ‘hombre ocular’ al homo sapiens producto de la cultura escrita”. Desta forma, 0 conceito de CR-P, embora nao ignore a im- portincia de outros aparelhos privados de hegemonia, reconhece nos midia, especialmente na televisdo, um papel central na tarefa contem- pordnea de "cimentar e unificar" 0 bloco social hegem6nico (e contra- hegem6nico). Essa centralidade dos midia, naturalmente ausente nos escri- tos de Gramsci, juntamente com a particularizacao da politica e a possibili- dade de operacionalizagdo (que veremos adiante), diferenciam 0 conceito de CR-P daquele de hegemonia. Além disso, torna o CR-P mais distante dos conceitos de imagindrio social ¢ cultura politica. De fato, no imagindrio social descrito por Baczko, o controle dos "meios de difusdo (mass media)" garante a dominagao simbélica e a “fabricagdo e emissio" dos imagin4rios sociais, mas no se discute a ori- gem dos imaginérios e nem o papel dos midia na sua fabricagdio nas socie- dades contemporaneas (cf. Baczko, 1985; pp. 313-314 e 1991; pp.31-32; passim). J4 na discussdo sobre cultura politica, ou o papel dos midia é ig- norado, como em Moisés (1995), ou eles aparecem sempre vinculados a0 processo de socializagdo politica e reduzidos apenas a “instrumentos" ou "transmissores” do contetido da cultura politica (Almond, 1990; pp. 144 e 151-152; passim). No Brasil, embora a crise dos partidos ainda seja tema contro- vertido, existe razodvel consenso sobre a histérica inexisténcia de uma tra- dig&o partiddria forte e consolidada. Torna-se, assim, mais facil o exercicio pelos midia de algumas das tradicionais fungdes dos partidos, fenédmeno que embora continue nZo reconhecido por alguns cientistas polfticos (Kinzo, 1994) j4 foi identificado por outros estudiosos (cf. Matte- lart e Mattelart, 1989; p.131). Lavareda também afirma que "a estrutura dos mass media, em especial a televisdo, tem sido undnimemente apontada como causa importante da modificagdo das relagdes entre os individuos e 252 LUA NOVA N°38—96 a cena politica. A televisio é avaliada como flanqueadora vitoriosa do pa- pel de mediagdo desempenhado pelas organizagSes e atos partidérios até meados deste século. E é grande a parcela de responsabilidade que Ihe 6 debitada no processo de esmaecimento dos vinculos de identificagao par- tidéria que tem lugar em praticamente todas as principais democracias" (cf. Lavareda, 1991; pp. 126-127). Resta assinalar que, na América Latina, a consolidacao de siste- mas nacionais de comunicagdo de massa e a "media-centricity" em alguns dos paises "ocidentalizados" da regio, ocorreu durante os regimes mili- tares das décadas de 60 e 70. Esse fato, teve implicagdes particulares na formulagdo das politicas pablicas e no desenho institucional do setor de comunicagdes (ver adiante). ATV como medium dominante? Dados recentes dao conta de que a televisdio desfruta de posigiio dominante no que se refere A audiéncia e A credibilidade entre os midia. Pesquisa "Times Mirror" realizada sobre os midia nos Estados Unidos, Canad4, México, Inglaterra, Franga, Alemanha, Espanha e Itélia, revela que "nos oito pafses, a maioria da populaco acredita na TV e nos jornais até mais do que nas igrejas e nos dirigentes do pafs. A nica excegao 6 0 México, onde a Igreja e o Presidente foram declarados quase to confidveis quanto os jornais e a TV" (Meisler, 1994). © mesmo resul- tado foi obtido em pesquisa comparada realizada em cinco das principais cidades da América Latina - Santiago, Buenos Aires, Cidade do México, Lima e Sao Paulo - (Miceli in Novaes, 1991). No Brasil, a pesquisa "Cultura Politica e Consolidagao De- mocratica" realizada pelo CEDEC/Data Folha/USP, verificou que 86% (1989) e 89% (1990) dos entrevistados declaram que tomam conhecimen- to sobre os acontecimentos politicos pela televisio (Moisés, 1992). O mes- mo ocorre nos Estados Unidos, onde a televisdo - que é assistida durante duas ou mais horas por dia, por oito dentre cada dez pessoas ~ € a princi- pal e a que possui maior credibilidade dentre as fontes de informagao (Kellner, 1990). 7 Duas observagdes so necessérias aqui: (2) referimo-nos a TV como medium dominante € ‘no como nico ou exclusive: Vale dizer que a anélise teré também que levar em conta outros midia como emissoras de radio, jomais, revistas ¢ cinema; (b) cmbora estejamos nos referindo aqui basicamente & TV aberta, ndo ignoramos a entrada recente, no mercado, da TV por assinatura que tende a ampliar sua penetragio ¢ a introduzir questdes novas, sobretudo porque grande parte de sua programagio, além de proveniente de outros paises € veiculada em idioma, que nfo o portugués. OS MIDIA EOC R-P 253 No caso brasileiro, € desnecessério salientar a situagio particu- lar que vivemos na comunicagao de massa, com uma imprensa diéria que manteve, em termos proporcionais, praticamente a mesma tiragem durante 05 diltimos 20 anos e uma televistio consolidada nacionalmente (aparelhos disponiveis em 74% dos domicilios) e dominada por um virtual monopélio de audiéncia e de verbas publicitérias de uma tinica rede, que controla também, tanto horizontal quanto verticalmente, varios outros setores da industria, inclusive aqueles ligados 4s novas tecnologias de comunicacées agora em implatagdo no pafs: a TV a Cabo e a DTH (televisdo direta, via satélite) (Amaral e Guimardes, 1994; Lima e Motter, 1996). & interessante observar que a posicao da televisdio como o meio de cominicag4o dominante contemporaneo, "iguala’, para efeito da even- tual aplicagao e teste do conceito ¢ das hipdteses relacionadas ao CR-P, paises considerados como sendo de “primeiro” e “terceiro” mundos, com niveis médios de escolaridade e renda e até mesmo com sistemas par- tidério e eleitoral significativamente diferentes, como por exemplo os Es- tados Unidos e o Brasil ( Reilly, 1996). TV COMO "MAQUINARIO DE REPRESENTACAO" ‘Até aqui vimos que 0 conceito de CR-P tem como pressupostos o exercicio da hegemonia em sociedades "media-centric" nas quais a TV € o meio de comunicagao dominante. Vamos registrar agora quatro das prin- cipais consequéncias culturais de longo prazo da televisio como tecnolo- gia de comunicagoes ou "maquindrio de representago" (Hall, 1988), inde- pendentemente do contetido de sua programagao. As trés primeiras consequéncias foram identificadas a partir das pesquisas de Meyrowitz (1985, 1987) e a titima de Silverstone (in Carey, 1988). Sao elas: (1) primeiro: a televistio quebra a necessidade da conexdo entre presenga fisica e experiéncia. Nao € mais necessério "estar presente" para experimentar, "presenciar". Isso, naturalmente, d4 a televisiio um incomensurdvel poder de construir 0 real, na medida mesma em que, no mundo contemporaneo, nao é possivel estar fisicamente presente & maioria dos acontecimentos que dizem respeito & nossa vida e as decisdes que tomamos no nosso cotidiano. (2) segundo: a televisdo nos tomnou insensfveis ao texto escrito efou falado, isto 6, est4 transformando o “homo-sapiens" em “homo-ocular". Nés vemos televiso a0 invés de ouvi-la; nés 254 LUA NOVA N° 38 —96 sentimos bem ou mal ao invés de pensar sobre seus argumentos; nés respondemos a ela emocionalmente e nao racionalmente. A televisiio nos faz desenvolver um senso de intimidade com pessoas e fatos distantes. E o que se denomina "intimidade distante" e que nos leva a responder a eventos € pessoas em termos da sua aparéncia, dos seus gestos e da emocao. (3) terceiro: a televisdo tornou cada vez mais dificil a distingo entre 0 que percebemos como ficgio e como realidade. O assassinato “real” da atriz Daniela Perez é um caso paradigmético (Cf. Guilhermoprieto, 1993). Mesmo os telejomnais so ficgdes construfdas, com imagens que “acontecem” somente na televisao. replay de um gol numa partida de futebol, mostra um lance que no foi visto por ninguém no estédio. Nem jogadores, nem jufzes. um gol exclusivo da televisio; e (4) quarto: a televisdo € 0 espago, por execeléncia, de construgao da cultura mitica no mundo contemporaneo. Baczko, como vimos, afirma que os midia fabricam e emitem os imaginérios sociais. Da mesma forma que nas sociedades ditas primitivas 0 papel de manutengao e reprodugao dos mitos era dos sacerdotes, feiticeiros, magicos, hoje esse lugar privilegiado ocupado pela televisdo e nela, sobretudo, pela narrativa melodramatica. Cada um desses pontos tem consequencias importantes para 0 argumento que estamos tentando construir. Voltaremos a eles. HIPOTESES: PRATICA POLITICA E ELEICOES Junto ao conceito de CR-P estamos introduzindo duas hipéteses a ele referidas: uma relacionada ao processo polftico como um todo e outra aos processos eleitorais, preferencialmente, nacionais e majoritérios. Sio elas: (1°) 0 CR-P dominante, embora nao prescreva os contetidos da prtica politica, demarca os limites dentro dos quais as idéias e 0s conflitos politicos se desenrolam e sao resolvidos, podendo neutralizar, modificar ou incorporar iniciativas opostas ou alternativas; e (2°) um candidato em eleigdes nacionais e majoritérias, dificilmente venceré as eleigées se ndo ajustar a sua imagem publica ao CR-P dominante. A alternativa é a construgdo de um CR-P contra-hegeménico ou alternativo. Antes de discutir isoladamente cada uma das duas hip6teses cabe observar que 0 conceito de CR-P, como ja vimos, est4 vinculado nio OS MIDIA EOCR-P 255 86 a "ocidentalizacao" da sociedade, mas também a existéncia da media- centricity. No caso brasileiro, ambos sfio fendmenos extremamente re- centes da nossa hist6ria politica. Todavia, se pode ainda existir alguma eventual controvérsia sobre a consolidagdo de uma “sociedade civil” autOnoma e atuante, nao h4 diivida sobre a existéncia, no pafs, de um siste- ma nacional integrado de comunicagao de massa, com a crescente do- mindncia da televisdo, a partir da década de 70. De qualquer forma, o apa- recimento recente dessas condigdes concretas na sociedade brasileira faz com que a utilizagdo do conceito de CR-P como instrumento de andlise do processo politico, em geral, e do proceso eleitoral, em particular, nao pos- sa recuar no tempo mais do que 20/25 anos. Disso decorrem algumas pecu- liaridades. Permanente e Transit6rio Na formagio do CR-P hegemé6nico no Brasil contemporAneo, existem vérios elementos que, embora presentes nos midia, 18m sua ori- gem anterior a eles, vale dizer, elementos que existem em nosso ima- gindrio social e em nossa cultura politica muito antes da existencia de uma centralidade dos midia na sociedade brasileira. Sdo elementos estru- turais que constituem tragos persistentes (“‘permanentes”) de nossa for- magdo cultural e que tem sido identificados em estudos ligados ou ndo & interpretagaio politica, como, por exemplo o autoritarismo hierdrquico e arbitrério (Chauf, 1986), a “cultura politica da dédiva” e o “fetiche da igualdade” (Sales, 1994) ou a “desconfianga politica” e a “insatisfagéo com 0 governo” (Moisés, 1995)8 Junto a esses elementos “permanentes” surgem, outros elemen- tos, estes conjunturais e transitérios, que, todavia, evocam tragos culturais profundamente arraigados na tradico de nosso imagindrio social e de nos- 8 Maria do Carmo Campello de Souza (1988, pp. 587-8, passim), dentre outros, j& havia cha- mado a atengdo para o papel dos midia na exarcebacao de alguns desses tragos persistentes. iz ela: “deve-se assinalar 0 papel exercido pelos meios de comunicago na formagao da imagem piblica do regime (democrético), sobretudo no que se refere & acentuagdo de um as- pecto sempre presente na cultura politica do pais - a desconfianga arraigada em relagio & politica e aos politicos - que pode reforgar a descrenga sobre a estrutura de representagio par- tidéria-parlamentar (...). O teor exclusivamente denunciat6rio de grande parte das infor ‘mages acaba por estabelecer junto & sociedade (...) uma ligago direta e extremamente ne- fasta entre a desmoralizagdo da atual conjuntura e a substincia mesma dos regimes democréticos”. 9 Por constelagdes simbélicas entendemos os conjuntos de construgées simbélicas conver- gentes sob o dominio de um mesmo tema, reunidas em tomo de um nécleo central organiza- dor. Fago aqui uma adaptagio daquilo que Durand (1989, pp. 31-36) chama de “constelagdes ritol6gicas”. 256 LUA NOVA N°38—96 sa cultura polftica. Esses elementos constituem constelagées simbélicas? poderosas, as quais é extremamente dificil opér-se, e que podem, transito- riamente, provocar a desestabilizagdo ou 0 fortalecimento de um. CR-P dominante sem que, na verdade, se altere a correlagdo de forcas basica que constitui a sustentagdo material da hegemonia na sociedade civil. Desta forma, num contfnuo de tempo, o imaginério social, a cul- tura politica e a hegemonia sero sempre anteriores ao CR-P (hegem6nico ou contra-hegeménico), da mesma forma que a conjuntura estard sempre & frente dele(s), embora todos possam conter/incorporar elementos constitu- tivos (ver adiante) comuns, “permanentes” e/ou “transit6rios” (ver Figura 1). Isso significa afirmar, também, que a hegemonia é mais estavel do que © CRP, ou que a alterago de um CR-P ndo significa, necessdriamente, uma crise hegeménica.'9 Figura 1 Tempo -—> (1°) CR-P e pratica politica A identificagiio do CR-P em perfodos nao eleitorais, além de seus elementos constitutivos (EC) tradicionais (ver adiante), dependeré da correta identificagdo das constelagdes simbélicas dominantes na represet taco da politica dentro de uma determinada conjuntura nacional e/ou ternacional. Com o acelerado processo de globalizagdo econ6mica e cultu- ral, tudo indica que crescerdo de importancia os elementos presentes na conjuntura internacional. ‘Apenas com 0 objetivo de exemplificar creio ser possfvel argu- mentar que as constelagdes simbélicas em torno dos temas de (a) moder- no/modernidade (p6s-), modernizagao; (b) globalizagdo/privatizagao/ neoliberalismo/mercado e (c) novas tecnologias de comunicagées (telefo- nia celular, Internet, TV via satélite, etc.), des-regulamentacio, sinergia; tém se constituido em espagos dominantes e, portanto, definidores ¢ limi- tadores do debate politico comtemporfneo!! . 10 0 transitoriedade do fendmeno Collor de Mello € emblemitica: 0 CR-P pré-cleitoral e dos primeiros meses de sua administragdo rapidamente se rearticulou em resposta a dentincias de corrupgao de alguns de seus ministros ¢ da “CPI do PC” dando origem a um novo CR-P do ‘qual Itamar Franco emerge num clima de unio e salvagdo nacional. Cf. Mendonga, 1995. 110 GT Midia e Politica da UnB tem pesquisado essas constelagdes simbélicas como defini- doras conjunturais do CR-P hegemOnico. Cr. Silva , 1995 e Guazina, 1996 OS MIDIA EOCR-P 257 (2°) CR-P e eleigoes A aplicagdo do conceito de CR-P & compreensio e andlise dos processos eleitorais requer que se leve em conta, além dos pressupostos gerais j4 discutidos, um conjunto de condigGes. Vejamos: (1) Primeiro, trabalhamos com o parti pris de que os candidatos em disputaeleitoral representam interesses em conflito que podem ser traduzidos (a) em termos de competigao intra-hegemé6nica entre classes e/ou fracgées de classe do bloco hist6rico no poder; ou (b) emtermos de competicAo entre, de um lado, classes e/ou fragdes de classe do bloco hist6rico que defendem a manutengdo da hegemonia dominante e, de outro, classes e/ou fracgdes de classe que buscam (na luta contra-hegem@nica) uma nova articulago hegem6nica(oualternativa). (2) Segundo, hé de se considerar, também, o possfvel impacto desestabilizador ou de reférgo que a conjuntura (econémica e/ou social e/ou politica), nacional e/ou internacional’?, pode provocar na relaggéo do CR-P dominante com o proceso eleitoral, uma vez que, como vimos acima, isso pode ocorrer sempre que os elementos conjunturais forem capazes de evocar elementos “permanentes” pré-existentes no imagindrio social e na cultura politica’? (3) Terceiro, a situagdo ideal para verificacdo da hipétese teria eleiges (a) majoritérias, preferencialmente nacionais; (b) para cargo de presidente, em regime de governo presidencialista (registre-se, todavia, 0 quanto as eleigdes gerais nos regimes parlamentaristas esto cada vez mais se aproximando do estilo" presidencialista); e (c) com polarizagio de duas candidaturas em processo eleitoral "candidate-centered" e ndo "party-centered”. 12 Na eleigdo presidencial de 1989, além do eterno apelo ao anti-comunismo, a crise nos paises socialistas do Leste Europeu certamente forneceu o componente ideal para reforgar as teses da ineficiéncia do Estado ¢ da necessidade de privatizagao, defendidas por Collor. Cf. Lima, 1990, 13 Parece ter sido isto 0 que ocorreu na eleigdo presidencial de 1994 com o Plano Real ¢ a substituigdo da moeda, trés meses antes da data da realizacdo do pleito, Além de redefinir os limites e parimetros do debate politico (com inédito apoio dos midia), o Plano Real e a can- didatura de Femando Henrique Cardoso a ele associada, conseguiram, a0 evocar 0 etemo tema da estabilidade/instabilidade financeira num pafs que historiamente conviveu com uma “cultura inflacionéria” (cf. Vieira et alii, 1993), desestabilizar 0 CR-P dominante até entio fa- vordvel ao candidato de oposigao, Luis Indcio Lula da Silva. Para uma discussio das eleig6es de 1994 dentro do referencial te6rico do CR-P ver Porto, 1995. 258 LUA NOVA N° 38 —96 Vamos analisar, brevemente, cada uma destas trés ultimas con- digdes : Eleicdes Majoritdrias Nacionais As eleigées majoritérias nacionais fazem com que os partidos e ‘os candidatos tentem utilizar em seu beneficio, durante o processo eleito- ral, os sfmbolos e as tradig6es culturais nacionais, para que sejam identifi- cados como estando mais préximos do CR-P dominante. Desta forma, existe uma relago entre a aplicabilidade do conceito de CR-P como instrumento de andlise do processo eleitoral e a abrangéncia cultural da eleicao. Vale dizer: 0 conceito de CR-P crescera em importéncia analftica na medida em que se trate de eleigdo nacional vis-a-vis eleigdes regionais ‘ou locais (ver Figura 2). Deve-se lembrar, todavia, que algumas eleicées locais podem conjunturalmente “regionalizar-se” da mesma forma que eleigdes regionais e/ou locais podem “nacionalizar-se”, aumentando a im- portancia dos CR-Ps (cf. Porto, 1994). CR-P mais ! * 1 * 1 * i * 1 * i. menos |_| | _ Eleigdes locais regionals _—_nacionais Figura 2 Regime Presidencialista F. McDonald (1989) nos mostra como nos regimes presidencia- listas h4 uma convergencia em uma s6 pessoa ~ o presidente — das duas fungGes exigidas no cargo, a ritual e a executiva. Diz ele: "uma é a funcdo do rei, do chefe de eEstado, do pai do seu povo, que envolve cermonia e ri- tual, A outra é.a de principal funciondrio executivo. Uma requer presenca e compostura. A outra requer atengaio ao detalhe, sentido prdtico(...)”. As- sim, a disputa pela presidéncia~ o cargo politico mais elevado do regime sempre envolve a tentativa de manipulagdo de simbolos nacionais (matéria prima da hegemonia), 0 que no ocorre, necessdriamente, nos processos eleitorais dos regimes parlamentaristas nos quais as fungGes de represen- OS MIDIAEOCR-P 259 taco nacional e chefia executiva do governo, esto separadas em pessoas diferentes, por exemplo, o rei/rainha e o primeiro ministro/chanceler. Disputas Candidate-Centered A configurago da disputa eleitoral em termos da competicao in- tra-hegemOnica ou entre projetos hegemdnicos alternativos, torna-se mais, facilmente identificdvel se houver polarizagao de candidatos nas sociedades com sistemas partidérios historicamente frageis (como é o caso brasileiro) ou em decadéncia. Isto porque nessas sociedades tendem a prevalecer as disputas eleitorais centradas nos candidatos e ndo nos partidos (Wattenberg, 1991) e o descompromisso em relagio a programa e ideologia partidérias, deixa as candidaturas “soltas” e favorece, portanto, 0 “ajuste” ou a cons- trugdo da imagem dos canditados nos termos do CR-P dominante. QUESTOES METODOLOGICAS Uma das preocupagdes centrais na articulactio do conceito de CR-P tem sido a possibilidade de sua operacionalizagao, isto é, a possibili- dade concreta de observacdo empirica das hip6teses dele decorrentes. Sem ignorar os riscos de uma redugo positivista do conceito, temos buscado doté-lo daquilo que Sartori (1981) chama de "dimensao operativa", isto é, um conjunto de operagdes que viabilizem sua verifica¢3o empirica, ou seja, a aplicabilidade da teoria & prdtica. Desnecessério se torna ressaltar que qualquer identificagao de CR-P deverd estar apoiada na identificagdo simultinea das forgas hist6ricas concretas que a ele dao materialidade na Sociedade Civil. Nunca serd demais insistir que a hegemonia no se constitui num vacuo, mas ex- pressa a disputa do poder politico que ocorre entre os aparelhos privados de hegemonia em processo continuo e dinamico. Isso posto, trataremos, a seguir, de algumas das questées tedrico-metodolégicas ligadas & busca da operacionalizagao do conceito de CR-P. Nunca ser4 demais insistir, todavia, que continuam em aberto inimeros problemas que nao sao privilégio de nossa proposta mas que constituem dreas-problema dentro das ciéncias sociais. O hegeménico e 0 contra-hegemdnico E fundamental que se identifique sempre 0 CR-P hegeménico e 0 ou 0s CR-P (s) contra-hegeménico(s) ou alternativo(s). Williams (1979; 260 LUA NOVA N°38—96 p.117) jé nos advertira de que “o principal problema tedrico com efeito imediato nos métodos de andlise, é distinguir entre inciativas e contri- buigdes alternativas e opostas, feitas dentro ou contra uma hegemonia es- pectfica (que entiio thes fixa certos limites, ou que pode ter éxito na sua neutralizagdo, modificagio ou incorporagfo) e outros tipos de iniciativa e contribuig&io que néo so redutfveis aos termos da hegemonia original ou adptativa, e so, neste sentido, independentes". Apesar dessa dificuldade tedrico-metodolégica, a necessidade da identificagdo € maior, sobretudo, quando se analisam processos eleito- rais e se trabalha com o pressuposto de que a disputa, entre os principais candidatos, pode ser expressa em termos de competi¢do entre projetos he- geménicos alternativos. Na verdade, € a identificagiio dos CR-Ps contra-hegem6nicos que expressar4, na prética, o reconhecimento da viabilidade politica da al- temnancia do hegem@nico, vale dizer, do cardter dinamico da hegemonia e, portanto, do CR-P que tem que ser "continuamente renovado, recriado, de- fendido e modificado porque é continuamente resistido, limitado, alterado e desafiado" (Williams, 1979; p. 115). E também a identificagdo dos CR- Ps contra-hegem6nicos que vai revelar, de forma definitiva, a diferenca radical entre 0 conceito de CR-P e teorias da manipulagdo ou conspi- ratérias aplicadas & interpretacdo do campo cultural, Além da possibilidade sempre presente de neutralizagdo, modi- ficagdo ou incorporacao do contra-hegemdnico pelo hegeménico, o maior obstaculo é, nos casos de campanha eleitoral, encontrar os Joci e identifi- car os elementos constitutivos (ver adiante) dos CR-Ps contra- hegeménicos. Eles podem estar nas contradigées mesmas dos programas de maior audiéncia na televisio ou em redes/programas de menor audién- cia ou ainda na programagao de outros midia (sobretudo do radio). Os CR- Ps contra-hegeménicos podem ainda estar "latentes" em cendrios de repre- sentagdio emergentes que estdo sendo construidos fora dos midia antes de “alcangd-los". Os Elementos Constitutivos do CR-P Outra questo fundamental é a identificagiio concreta dos CR-P. Tanto no que se refere A hip6tese relativa & prética politica quanto a relati- va aos processos eleitorais, a primeira tarefa do analista é identificar os CR-Ps através de seus elementos constitutivos (EC). Onde buscar os EC e como identific4-los ? Por EC do CR-P, entendemos as representagdes expressas no contetido (nas mensagens) de longo pra7o da programagdo ou das matérias OS MIDIAEOCR-P 261 impressas. Nos interessa, sobretudo, as representagées contidas na progra- magao da televisao (cf. retro TV como medium dominante). Na televisio, 0 critério bésico para identificar-se quais os loci dos EC do CR-P dominante so 0s {ndices, a longo prazo, da audiéncia da programacao. A programagao das emissoras de TV pode ser classificada em 4 (quatro) grandes categorias: entretenimento (telenovelas, séries, filmes, shows, esportes, etc.); publicidade; telejornalismo e pseudo-jornalismo!* (talk-shows, entrevistas, variedades). Os programas de maior audiéncia, em cada categoria, devem merecer nossa atencdo. Registre-se que existe hoje amplo reconhecimento, entre os pesquisadores, sobre o fato de que o contetido politico da programagao ndo-jornalistica (new-news) — inclusive a publicidade ~ € maior do que aquele da programagao jornalistica (old- news) (cf. Paletz e Lipinski, 1994; Katz, 1992; Swanson e Nimmo, 1990, parte II). Na América Latina, o melodrama merece certamente uma atengdo especial, esteja ele no cinema, no radio, nos folhetins, nas fotono- velas, nas cangées ou na televisio, Mattelart e Mattelart (1989) analisaram a importancia, comparativamente sem paralelo, deste genero de narrativa na vida cultural de nosso continente: o drama preside, até mesmo, a estru- tura de construgdo das noticias na televisio, embora esta nao seja uma exclusividade nossa (Stam, 1985). Desta forma, os EC do CR-P dominante no Brasil, respeitadas as diferentes condigdes j4 mencionadas neste texto, sero provavelmente identificados nas telenovelas; nos telejornais; na programacio pseudo- jornalistica, incluidos aqui programas do tipo Globo Repérter e Fantéstico (Maciel e Fabricio, 1995); e nas “tele-ceriménias" (media-events) que sio os equivalentes contemporaneos das cerimonias publicas tradicionais e que tem como exemplos universais os Jogos Olimpicos, a Copa do Mundo de Futebol, os casamentos na Corte Inglésa ou as viagens-visitas do Papa Joao Paulo If (Guthrie e Grand, 1988; e Dayan e Katz in Alexander, 1988). Atengao deve ser também dada, naturalmente, a publicidade veicu- lada dentro da programacdo de maior audiéncia. Com relagao as telenovelas vale mencionar que € sobretudo através delas que se realiza uma das principais caracteristicas da televisio como tecnologia, isto é, a confusao entre ficgao e realidade (Guilhermo- prieto, 1993). Vale também registrar o carter transclassista da audiéncia (Mattelart e Mattelart, 1989), o que confirma a narrativa melodramatica 4 Valho-me aqui da terminologia empregada por Paletz e Lipinski (1994, p. 9) que chamam de pscudo-news todo 0 contedido dos midia que fica em “algum lugar entre o entretenimento eas noticias.” 262 LUA NOVA N°38—96 como permitindo, comparativamente, uma polissemia maior da mensagem (Feur, 1990) e constituindo um espago privilegiado da disputa pela cons- trugdo dos CR-Ps. Com relagdo aos telejornais cabem duas observagdes es- pecificas: (1) como € sabido, 0 maior poder dos noticiérios esté em omitir e/ou pautar informag6es. Isto obrigar4 o analista a permanente- mente comparar os telejornais veiculadas em diferentes emissoras de TV e outros midia (jornais, revistas, radio) para buscar eventuais omissGes e/ou agendas deliberadas (cf. Lima, 1987); e (2) atengdo espe- cial deve ser dada a divulgacio das pesquisas de opinido, em geral, e as pesquisas de intengdo de voto, nos perfodos eleitorais. Existe sempre a possibilidade do efeito "bandwagon" e¢ a divulgacdo de pesquisas, historicamente, tem se constitufdo num elemento de grande eficdcia na influéncia do comportamento eleitoral (Thiollent, 1989; Lima, 1990 e Leal, 1995). Com relagdo aos processos eleitorais, momentos privilegiados para a andlise, na medida em que alguns dos principais atores do processo politico se apresentam publicamente para disputa do apoio popular, dois fatores devem ser levados em conta: (1) O perfodo de andlise: considerando que a construgao das imagens piiblicas dos candidatos, € um processo cultural de longo prazo, as andlises nao podem ser reduzidas ao que normalmente se considera o perfodo das campanhas eleitorais, isto 6, espagos de tempo nunca superiores a 06 (seis) meses. As andlises terdo de ser feitas por um perfodo mfnimo de 12 (doze) meses; (2) O que analisar: deve-se buscar identificar nao sé os CR-Ps através dos elementos constitutivos mas verificar também se os candidatos/partidos procuram se ajustar a ele ou trabalham na construgao de um CR-P alternativo. Neste caso é impres- cindivel que também se analisem: (a) os programas de televisdo semestrais dos partidos, cuja divulgacio em rede nacional é garantida desde a Lei 5.682/71; (b) 0 Hordrio Eleitoral Gratuito, cujas regras de participagaio tém sido definidas pelas leis eleitorais especfficas, a cada pleito; (©) os debates televisionados entre candidatos promovidos, em geral, pelas proprias redes de televisao; e ‘d) o marketing politico de cada partido/candidato. OS MIDIA EO CR-P 263 A polissemia das mensagens A identificagéo do CR-P, dominante ou alternativo, através de seus elementos constitutivos, como descrita até agora, deve ser feita ao nivel de sua producdo, isto é, das mensagens veiculadas nos midia. Uma questo que surge com frequéncia é a seguinte: serd que 0 cidado comum — 0 eleitor — percebe a existéncia dos CR-Ps ? Se percebe, seré que os CR- Ps identificados pelo analista coincidem com aqueles identificados pelas audiéncias dos midia? Sera que o CR-P identificado na produgdo pelo analista 6 0 mesmo identificado na recepgdo pelo cidadao ? A possibilidade de construgao de significados distintos para a mesma mensagem- tanto por analistas quanto pela audiéncia — nos interes- sa na medida em que o CR-P é uma construgio simbélica e, naturalmente, € necessério que a "leitura” desta construgdo simbélica feita pelo analista, coincida com aquela feita pelo cidado comum. Essa questo tem sido le- vantada sobretudo por parte daqueles que, tanto no estudo da lingufstica quanto no estudo dos midia, se ocupam da anélise do discurso e/ou da andlise estética e enfatizam a recepgdo das mensagens. Existem varios pontos que precisam ser discutidos. Vejamos al- guns dos principais: (a) Diferentemente de outras construgdes simbélicas e por estar te6ricamente ligado ao conceito gramsciano de hegemonia, 0 CR-P nao se reduz a um significado particular mas, ao contrério, articula 0 conjunto — hegemé6nico ou contra-hegeménico — das TepresentagGes cognitivas, afetivas e valorativas, com relago politica, numa determinada circunstancia histérica. Assim, 0 CR-P é uma construgao simbélica vinculada & a¢do politica da "audiéncia” que expressa sua "leitura" da politica, seja elegendo ou derrotando candidatos através do voto nas eleig6es; seja através da filiacdo e/ou militincia partidérias; seja através da participagao em movimentos sociais; seja tornando ptiblico seu apoio a programas, candidatos, partidos, etc. Desta forma, a identificagao do CR-P hegemSnico (e/ou contra-hegeménico), vale dizer, a "Jeitura" do seu significado pelo analista, através das mensagens dos midia, estaré necessériamente balizada pelo comportamento concreto e expresso publicamente pela “audiéncia" envolvida (atores politicos). (b) Um aspecto que jé foi registrado por varios estudiosos € que, no Brasil, mais do que em qualquer outra parte do planeta, a programago de TV, em particular as telenovelas, incorpora em sua narrativa, de forma direta e explicita, fatos da vida 264 LUA NOVA N° 38 — 96 cotidiana, inclusive (ou principalmente), fatos da vida politica (cf. Mattelart e Mattelart; 1989; Ortiz; 1989). Essa fidelidade ao cotidiano faz com que intimeros eventos politicos concretos sejam tratados nas novelas de forma absolutamente explicita, expressando posigdes politicas claras e inequivocas, além de publicamente reconhecidas. Desta forma, a identificacdo dos elementos constitutivos dos CR-Ps hegem6nico e contra-hegem6nicos, torna-se, mui- tas vezes, simplificada e fica também reduzida a possibilidade de leituras diversas da mesma narrativa, pelo analista e pela audiéncia, (c) Outro ponto que deve ser aqui lembrado refere-se ao risco de, em nome da polissemia, considerar-se que cada membro da au- digncia é aut6nomo e capaz de produzir uma leitura tinica de qual- quer mensagem, além de resistir aquelas das quais discorda, como se a produgao de significados fosse um ato individual e o poder de construgdo de significados, nas sociedades contemporaneas, esti- vesse igualmente distribufdo entre os produtores (os midia) e os receptores (a audiéncia), (Schiller, 1989; esp. cap. 7; ¢ Sholle, 1990). Nossa perspectiva, ao contrério, apia-se no argumento de queaconstrugao de significados se dé sempre dentro de limites de- terminados dialeticamente no processo de construgao do sentido hegem6nico (cf. Hall, 1980). (@) Resta chamar atengdo para a presenga necessdria de temas comuns ou constelagées simbélicas como elementos constituti- vos em CR-Ps hegeménicos e contra-hegeménicos: os politicos, a politica, o Congresso Nacional, os partidos, o Estado, a mo- dernidade, a privatizagdo, as novas tecnologias, a violéncia, etc. Neste caso, esses temas comuns estarao, necessariamente, repre- sentados de formas opostas, vale dizer, estarao estruturalmente construdos dentro da significagio dominante ou da contra- hegemOnica. O tema da "violéncia/seguranca", por exemplo, pode estar presente com a mesma saliéncia em CR-Ps he- geménico e contra-hegeménico. No entanto, enquanto em um CR-P predominam representacées do tipo “olho por olho, dente por dente", no outro, a solugao para o problema é tratada dando prioridade a justiga social. DUAS ADVERTENCIAS Apresentado 0 conceito de CR-P e as duas hipéteses a ele rela- cionadas, 6 necessério que duas adverténcias sejam de pronto feitas. OSMIDIA EOCR-P 265 Em primeiro lugar, 0 CR-P ndo expressa uma visdo conspi- ratéria da polttica. A relagio do poder politico com as “representagdes" & fendmeno secular, sabido ¢ estudado, que no pode ser interpretado como incorporando necessariamente uma visdo conspiratéria da politica. O CR- P, como vimos, é derivado do conceito gramsciano de hegemonia, que por sua vez, representa uma viséo especffica, dentro do campo marxista, da dinamica do processo social em termos das relagdes de dominacdo e subordinacao de classes. Estamos, portanto, num espaco teérico distante de qualquer idéia mecanicista de manipulagdo ou conspiragdo. Varios autores tém estudado a estreita relagdo entre o poder politico e as estruturas simbélicas. Além de Baczko (1985) que, como vi- mos, afirma que "qualquer instituigdo social, designadamente as insti- tuigdes politicas, participa de um universo simbélico que a envolve e cons- titui o seu quadro de funcionamento", recorro também a C. Geertz (1985). Em magistral ensaio, publicado pela primeira vez em 1977, Geertz rediscute 0 conceito weberiano de carisma com exemplos de Java no século XIV, da Inglaterra do século XVI e de Marrocos a partir do sé- culo XVII. Apoiando-se em E. Shils, argumenta que a tendéncia de reduzir © carisma somente a caracteristicas psicolégicas do lider carismatico & equivocada. Na verdade, o carisma € também uma construgao simbélica culturalmente determinada e os lideres carisméaticos, historicamente, se ajustam a esse "centro dinamico". Afirma Geertz que “as dimensdes perdi- das do carisma foram restauradas pela énfase na conexdo entre os valores simb6licos que os individuos possuem e sua relacdo com os centros ativos da ordem social. Esses centros (...) consistem no ponto ou pontos onde suas idéias diretoras unem-se As suas instituigdes diretoras para criar uma arena na qual ocorrem os eventos que afetam mais diretamente as vidas dos seus membros. E 0 envolvimento, mesmo o envolvimento oposicionis- ta com essas arenas e com os eventos momentosos que nelas ocorrem que confere carisma. E um sinal, ndo de apelo popular ou insdnia inventiva, mas de estar préximo aao coragio das coisas.. E conclui: “Nao importa quio efémera, periférica ou flutuante seja a figura carismética com que es- tejamos preocupados (...) precisamos comegar pelo centro e pelos simbolos e concepg6es que 14 prevalecem se queremos compreendé-lo e conhecer seu significado”. (Geertz, 1985, pp. 15, 30 passim). No sentido em que Geertz o redefine, carisma se transforma em uma estrutura simbélica (conjunto de representagdes) com a qual o lider carismatico consegue identificar-se, na medida em que se aproxima simbélicamente do centro dinamico do imagindrio social, ou, em termos gramscianos, da hegemonia dominante. Essa é, no fundamental, a mesma 266 LUA NOVA N°38— 96 idéia central do CR-P. E — como se pode verificar - nao tem nada a ver com visio conspiratéria da politica. Em segundo lugar, 0 CR-P ndo ignora as outras dimensées do processo politico. Como ja vimos, 0 conceito de CR-P deu origem a duas hipéteses: uma pretende a compreensio da pratica politica; a outra con- templa a possibilidade de compreensio especifica dos processos eleitorais. Tanto num caso, como no outro, € preciso que fique claro que o privilegia- mento dos midia no significa desprezar ou ignorar os outros atores, insti- tuigdes e dimensdes do processo politico, A crise universal por que passam os partidos politicos tem ampliado a presenga dos midia no processo politico. No Brasil que, como jé vimos, possui um sistema partidério historicamente frégil (Kin- zo, 1994) ao lado de um sistema de comunicagées histdricamente con- centrado — horizontal e verticalmente — e oligopolizado (Amaral e Gui- mares, 1994), a presenga dos midia como atores da politica torna-se ainda mais acentuada. Nas pesquisas comparadas que 0 GT Midia e Politica da Uni- versidade de Brasilia tem realizado visando a consolida¢do terica do con- ceito de CR-P e das hipsteses a ele relacionadas, temos iniciado o estudo a partir da andlise da legislacao eleitoral e partidéria (cf. Lima, 1994) e da caracterizagao hist6rica do processo de mudanga social (cf. Alvarez Ara- gon, 1994), buscando identificar quais so os atores concretos do processo politico em estudo. Temos também dedicado uma atengdio crescente as questées li- gadas & recepcHo das mensagens dos midia pelas audiéncias utilizando, além de técnicas de pesquisa qualitativa, outras técnicas tradicionais da pesquisa empfrica como painéis e survey s!5, QUAL DEMOCRACIA ? Em seu longo estudo sobre cultura politica, recentemente publi- cado, J. A. Moisés observa que “entre o final da década passada e 0 inicio dos anos 90, 0 piblico de massa, no Brasil, mostrou que sua orien- taco politica caminha no sentido da adeso 4 democracia” (cf. Moisés, 1995, p. 152). Esta jé seria uma razio suficiente para considerar a demo- 15 No caso especifico da eleigao presidencial de 1994 foram realizados 6 (seis) painéis e 1 (um) survey no Distrito Federal. A discusso preliminar dos resultados de dois painéis ¢ uma critica a0 poder explicativo de algumas das abordagens tradicionais de andlise do comporta- ‘mento eleitoral dentro da Ciéncia Politica podem ser encontradas em Rua, 1995. OS MIDIA EOCR-P 267 cracia a questo central que permeia e, na verdade, conduz esta tentativa de elaboragao do conceito de CR-P ¢ das hipéteses a ele relacionadas. Trabalhamos tendo como horizonte a possibilidade de reali- zagao histérica de uma democracia pluralista de massas com hegemonia. Acreditamos que “nessa democracia de massas, a dialética do pluralismo — a autonomia dos sujeitos politicos coletivos — nao anula, antes impée, a busca constante da unidade politica, do que Gramsci chamou de "vontade coletiva", a ser construfda de baixo para cima, através da obtengdo he- geménica do consenso majoritério" (Coutinho, 1984; e 1992). Esse pressu- posto nos afasta da concepgao da democracia pluralista liberal — a poliar- quia — expressa sobretudo por R. Dahl (1993), ¢ também daqueles que consideram antidemocratica a natureza do conceito de hegemonia na tra- digdo marxista (Moisés, 1984, pp. 83-89). O conceito e as hipéteses apresentadas expressam a centrali- dade dos midia como objeto e palco privilegiados das disputas de poder no mundo contempordneo. Saber quais as condigdes necessérias para que 0 controle desse poder dos midia possa ser transferido de uns poucos para 0 conjunto da sociedade de forma a ser exercido democraticamente passa a ser, ento, uma tarefa central. Algumas questdes se colocam de imediato: (a) qual democracia € possfvel construir-se em sociedades "media-centric" em que a televisdo é © meio de comunicagao dominante ? (b) qual o papel no proceso politico daqueles que controlam a emissdo de mensagens nos midia ? (c) quais as instituig6es politicas fundamentais para consolidagdo do projeto de- mocratico ? Trabalhando dentro de perspectiva tedrica distinta, Sartori afir- ma, em livro recente, que a "videopolitica” constitu a maior razo para as, incertezas com rela¢do as possibilidades de consolidagao da democracia no futuro préximo (Sartori, 1993; pp. 117-131; passim). Tratando da mes- ma questo ele j4 havia insistido que o requisito necessério e suficiente para os fins de uma opiniao publica auténoma e, portanto, de um "governo consentido" numa democracia representativa, € a existencia de uma estru- tura policéntrica nos meios de comunicagao de massa. Os beneficios dessa policentria seriam “primeiro, (que) a multiplicidade dos que querem persu- adir reflete-se na pluralidade dos ptiblicos; 0 que produz, por sua vez, uma sociedade pluralista. Segundo, um sistema de informagdes semelhante ao sistema de mercado € um sistema autocontrolado, um sistema de controle recfproco, pois todo canal de informagao esté exposto a vigilancia dos ou- tros” (Sartori, 1994; p 140-141). Apesar de suas diferengas, a maioria dos paises “ocidentalizados" da América Latina (Brasil, Argentina, Chile, Uruguai) viu suas industrias na- 268 LUA NOVA N°38—96 cionais de comunicagao de massa, desenvolverem-se e consolidarem-se, em maior ou menor grau, durante os regimes militares. No Brasil, foram consoli- dadas politicas publicas autoritérias de comunicag6es que, ao optarem por modelos de radiodifustio predominantemente comerciaise privados, impedi- ram 0 acesso e a participagdio da grande maioria da populagdo e facilitaram a concentragdio e a oligopolizacao — vertical e horizontal — dos midia. Neste final de século, recentes decisées na formulacio das politicas ptiblicas brasileiras, como a quebra do monopélio do Estado na 4rea de telecomunicagdes e a possibilidade de participagio direta do grande capital internacional através de compras, fusdes e joint ventures — esto conduzindo & crescente oligopolizagéo do setor das comunicagies pelos grandes conglomerados mundias (Lima e Motter, 1996). Além disso, como jé observamos, vivemos um perfodo de radicais transformagées onde, diante da globalizagdo econ6mica e a “desterritorializagiio” da cultu- ra, se discute até mesmo a permanéncia do Estado-Nagdio como unidade de andlise (Ortiz, 1994), Neste quadro que se configura, haver4 ainda espaco para 0 de- senvolvimento do livre mercado, da competico e da prépria democracia liberal? Ser4 possivel conciliar oligopélios e monopélios de comunicagdes com livre debate de idéias e opinido publica auténoma? O pluralismo e a diversidade ainda serdo possiveis ou j4 seré tarde demais para se fazer frente a “nova légica” do mercado? Seré inevitavel a consolidagio de uma “democracia oligopolizada” onde as comunicagSes continuardo crescente- mente controladas por alguns poucos poderosos grupos transnacionais? Quais as consequéncias dessa nova realidade emergente para a construgio e consolidagdo democratica entre nés? Uma estrutura policéntrica dos meios de comunicagdo, como quer Sartori, ndo seria, por si s6, garantia de que existirao condigGes justas e iguais para uma verdadeira alternancia do hegeménico. Mas, com certe- za, a policentria dos midia constitui um primeiro passo, necessério ¢ fun- damental. Promover 0 debate dessas questdes e buscar formas de alcangar um policentrismo dos midia que conduza a realizagao plena da democracia representativa, hegeménica e plural, entre nés, € 0 horizonte que orienta nosso trabalho. VENICIO A. DE LIMA 6 Pesquisador Associado Senior e Coordenador do GT Midia e Politica da Universidade de Brasflia. E- -vadelima@ guarany.unb.br> OS MIDIA EOCR-P 269 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALMOND, Gabric "The Study of Political Culture” in idem, A Discipline Divided - Schools zal Science; Newbury Park, CA; Sage; 1990. “Chiapas, los medios de comunicacién y Ia encrucijada mexicana” in Comunicagdo&Politica, v.1, n.1, NS, Ago/Nov. de 1994. 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