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DEMOCRACIA Charles Tilly & EDITORA VOZES BTM, Charles Tilly # Si % ze é ° de Janeiro = Democracia Traducao de Raquel Weiss RIA AudPADS 2515, 04, 04, 0} eo EDITORA VOZES Petropolis 12-14658 tancialmente novos. Contention and Democracy utilizou historias comparativas de regimes democraticos para demonstrar a interdependéncia entre democra- tizacao e lutas populares, enquanto Trust and Rule analisou a mudanca e a variagao nas conexées entre as redes de confianga [trust networks] e os regimes politicos, Ambos os temas aparecem no presente livro, agora subordinados a uma questao mais ampla: Como, em geral, ocorre a democratizagao e a desde- mocratizacao? Este livro esclarece ¢ revisa alguns argumentos de minhas publicacoes an- teriores, especialmente no que se refere a questo dos centros autonomos de poder coercitivo e do controle dos processos politicos publicos sobre o Estado como fatores na democratizagao e na desdemocratizacao, Embora mantenha uma perspectiva historica, o livro concentra-se mais sobre 0 passado recente e sobre o mundo contemporanco do que em minhas andlises anteriores sobre a democracia. Eu espero que isso ajude aqueles que estudam as lutas contem- poraneas pela demoeracia a perceber o valor da analise historico-comparativa nesse complicado campo. De todo modo, eu considero este livro, Democracia, como 0 dpice ea sintese de todo 0 meu trabalho sobre o assunto Permitam-me agradecer a cinco pessoas pela ajuda com este livro. Ha dée- cadas que nao encontro meu colega de pos-graduacao Raymond Gastil, mas foi ele quem coordenou os levantamentos dos indices da Freedom House sobre os quais se baseia cada capitulo deste livro, tomados como os indicadores que possibilitam a mensuragao mais direta da democratizagao e da desdemocra- tizacao implicados em meu argumento. Meu frequente colaborador, Sidney Tarrow, nao leu o manuscrito, mas seu constante questionamento sobre ideias relacionadas a isso em nossas publicacdes conjuntas ou separadas manteve-me alerta aos perigos de se perder em conceitos tais como os de regime, capacida- de do Estado, e mesmo de democracia. Viviana Zelizer mais uma vez ofereceu sew afiado olhar de nao especialista sobre todo 0 texto, chamando minha aten- cdo para os elementos obscuros ou pouco felizes nele presentes. Finalmente, dois leitores anénimos da Cambridge University Press, com boa vontade, mas muito exigentes, peciram-me que esclarecesse e/ou defendesse um bom nu- mero de conceitos ¢ argumentos do livro para o vosso beneficio e para o meu. 1 O que € democracia? Em 1996, cinco anos depois do Cazaquistao separar-se da ja decadente Unido Sovietica, o presidente daquele pais, Nursultan Nazarbaye ), fez com que seus conselheiros redigissem uma nova constituicao. Foi feito um referendo nacional que revelou tm macigo apoio a esse nove modelo. O primeiro artigo nova constituicade declara que: 1) A Republica do Cazaquistao [sic] proclama-se um Estado demo- critico, secular, legal e social, cujos valores mais elevados sao 0 indi- viduo, sua vida, seus direitos e suas liberdades. 2) Os principios fundamentais da atividade da Republica sao acon- iblica ¢ a estabilidade economica, o desenvolyimento eco- nomico para o beneficio de toda a nagao; o patriotismo ea resolugao dos assuntos mais importantes do Estado se dara por meios democra- ticos, que incluem a votagao em um referendo nacional ou no Parla- mento (Constituicdo do Cazaq 2006). A proeminente mencao a “concérdia publica e a estabilidade politica” evo- caa imagem de um governante vigilante, mais do que a de um Estado distan- te. Entretanto, a constituicao oficialmente proclama o Cazaquistao como uma democracia. etgnes 1.1 Checklist da Freedom House para os direitos politicos ¢ liberdades civis Direitos politicos 1) O chele de Estado e/ou chefe de governo ou autoridade eleito através de eleigdes livres e justas? tivo eleitos através de eleigdes livres ¢ justa 2) Sao os representantes do poder legi 3) Ha leis eleitorais justas, oportunidades de campanhas iguais, eleigdes justas e comtagens de votos honestas? resentantes livremente eleitos com ores so capazes de investir 0: s pessoas tem o direito de se organizar em diferentes partidos po »s agrupamentos politicos competitivos a sua escolha, ¢ o sistema € to para a ascensao € queda desses partidos ou agrupamentos concorrentes? 6) Existe voto significative na oposicao, ha poder da oposigao de fato, ¢ ha uma pos- sibilidade realista para a oposicao a aumentar 0 seu apoio ou ganhar poder de eleicoes? 7) As pessoas livres da dominacao pelos militares, pe partidos (otalitdrios, hicrarquias religiosas, oligarquias outro grupo poderoso? Dp ncias estrangeitas, por condmicas, ou qualquer 8) As minorias culturais, étnicas, religiosas, dentre outras, tm razodvel autode- terminacdo, autogoverno, autonomia, ou a participacao através de um consenso informal no processo de tomada de decisio? 9) (Condicional) Nas monarquias tradicionais que nao tém partidos ou processo eleitoral, o sistema prevé a consulta com as pessoas, encoraja a discussao da politi- ca, € permite o direito a fazer peticdes ao governante? 10) (Condicional) O governo ou o ocupante do poder esta deliberadamente alteran- do a composicao étnica de um pais ou territorio, de modo a destruir a cultura ou 0 brio politico em favor de outro grupo? erdades civis 1) Existe liberdade de reuniao, de demonstracao e de discussao publica? 2) Existe liberdade de organizacao politica ou quase politica, incluindo P quase | yi politicos, organizacoes civicas, grupos tematicos ad hoc ¢ assim por diante? 3) Ha sindicatos livres e organizagdes camponesas ou equivalentes € existe negocia- ao coletiva eficaz? Ha organizagoes de profissionais liberais e outras organizacoes privadas? 4) Existe um poder judicidrio independente? 5) Sera que o Estado de Direito prevalece em materia civil ¢ criminal? As pessoas siio tratadas igualmente perante a lei? Estao sob controle da po 6) Existe protecao contra o terror politico, a prisdo injust seja por grupos que apotam ou se opdem ao sistema? Existe liberdade em relagao a guerra ¢ insurreigoes? 7) Existe liberdade em relagao a indiferenca do governo e corrupgao e: pessoal? Ha controle estatal sobre viagens, escolha de residén- cia, ou escolha de emprego? Existe liberdade de doutrinagao € excessiva dependén- ia do Estado? rantidos? Os cidadaos tém o direito de esta- mpresas privadas? A de empresarial privada € indevidamente in- a por funcionirios do governo, pelas forcas de , ou pelo crime belecer fluenci organizad 11) Ha liberdades sociais pe parceiros conjugais e do tam: 12) Ha igualdade de oportunidades, incluindo a liberdade cao por parte de ou dependéncia de latilundiarios, empresa a igualdade de genero, a escolha de m1 relacdo & explora- lideres sind burocratas, ow outros tipos de obsticulos para um compai econdmicos legitimos? je: Adaptado de Karathycky, 2000: 583-585, wtmento de ganhos Observadores externos contestam essa afirmacao do Cazaquistao. A Free- om House, uma instituicao sediada em Nova York que monitora a democra- cia, divulga anualmente um indice que classifica todos os paises reconhecidos segundo taxas de direitos politicos e liberdade civis que variam de 1 (alto) a7 (baixo) (GATIL, 1991), O quadro 1.1 resume os critérios da Freedom House. -s contemplam uma ampla gama de direitos e liberdades dos cidadaos, des- de a oposic¢ao institucionalizada até a liberdade pessoal. Em 2005 a Freedom louse indicou 6 Cazaquistao como recebendo 6 (muito baixo) em relacdo aos ireitos politicos ¢ 5 (quase tao baixo) em relacao as liberdades civis. O relato- rio designou esse pais como “nao livre”. Aqui esta o trecho inicial: Os partidos politicos leais ao Presidente Nursultan Nazarbayev conti- nuam adominar o parlamento desde as eleicoes legislativas de setem- ro de 200+, que foram criticadas pelos monitores internacionais por atenderem a alguns padres demoeraticos basicos. Somente um deputado da oposi¢ao foi eleito, embora tenha se recusado a assumir sua cadeira como forma de protesto contra a natureza duvidosa do pleito. Enquanto isso, as cartas de demissdo de importantes oficiais seniores levantam questoes em relacao as lutas internas pelo pod: situacoes de dissenso em relacao ao governo de Nazarbayev (FREE- DOM HOUSE, 2005). Embora o envolvimento do Cazaquistao na economia e na politica inter- nacionais tenham mantido Nazarbayev mais distante do autoritarismo publico descarado adotado por seus vizinhos da Asia Central (SCHATZ, 2006), nada disso impediu as brutais manipulagdes do aparato governamental em seu pré- prio proveito. Em dezembro de 2005, Nazarbayey venceu uma terceira eleicao presidencial para um pertodo de seis anos, com uma fantastica porcentagem de 91% dos votos. Sempre que vemos um candidato presidencial vencer uma elei- Ao —e em especial uma reeleicao — por uma maioria superior a 75%, devemos levantar a hipotese de que o regime esta conduzindo eleigdes fraudulentas. Primeiro secretario do Partido Comunista do Cazaquistao durante o regi- me soviético, Nazarbayey tornou-se o presidente cazaque quando 0 pais con- quistow a independéncia em 1991. Daquele ponto em diante ele consolidou seu poder autocratico ¢ o controle de sua familia sobre as crescentes receitas do pais, oriundas das vastas reservas de gas e petroleo, Na medida em que o grupo mais proximo a ele enriqueceu muito, o resto do pais empobreceu (OLCOTT, 2002, cap. 6). Nazarbayev nao tolerou qualquer oposicao séria por parte da imprensa, de associagoes civis ou de partidos politicos. Ele aprisionou regu- mente 0s potenciais rivais sob a acusacao de corrupeao, abuso de poder ou moralidade, inclusive seus colaboradores politicos e econdmicos. Assassinos que afirmaram trabalhar para o Estado frequentemente agrediram ou mesmo assassinaram dissidentes politicos e jornalistas. (Comecamos a perceber por que 0 referendo feito por Nazarbayev em 1996 correu tao bem.) a Todas essas situagdes continuaram em 2006, Em fevereiro daquele ano, um esquadrao assassino muito bem-organizado matou o lider da oposigao caza- que, Altynbeck Sarsenbaev, ¢ seu motorista/guarda-costas. Logo se soube que uma unidade de elite do servico de inteligencia, KNB (sucessor da KGB sovie- tica) havia sequestrado Sarsenbaev e que um antigo oficial da mesma unidade o havia assassinado, Um alto oficial administrativo admitiu ter organizado o sequestro € 0 assassinato, mas os grupos de oposicao o consideraram um bode expiatério de membros de nfveis mais elevados do governo, Oraz Jandosovy, co- laborador de Sarsenbaev na frente de oposicao intitulada For a Just Kazakhstan (EJK) declarou ser “impossivel” que o oficial do senado tenha agido por sua propria iniciativa. De acordo com a revista de noticias Economist, Ao contrario, a FJK afirma que acredita que o assassinato foi orde- ado por oficiais seniores do governo, e recorreu ao Ministério do Interior para ampliar sua investigacao. O grupo pretende investigar outras figuras puiblicas, inclusive a filha mais velha do presidente. Dariga Nazarbaeva, que é membro do parlamento e teve uma disp' com 0 Sr. Sasrsenbaen, bem como seu marido, Rakhat Alieve, que € 0 vice do ministro das relagoes exteriores. O Sr. Al alegacoes de “mentiras vis” (Feonomist, 2006: 40) Muitos cazaques veem seu genro ¢ magnata da midia, Alieve, como sen- do aquele que Nazarbayev teria escolhido para ser seu sucessor na presidén- cia. (Afinal, em 2006 Nazarbayev agendou o encerramento de seu meato para 2012, quando teria a idade de 71 anos.) Depois da FJK ter realizado uma gran- de ¢ ilegal demonstracao na capital cazaque em 26 de fevereiro, para protestar contra a inagdo do governo em relagao ao caso, a corte sentenciou a prisao 11 membros da FJK. A despeito de sua sonora autodescrigao, 0 Cazaquistao nao se qualifica como uma democracia em qualquer uma das acepgoes atribuidas ao termo. Para um notavel contraste com 0 Cazaquistao, podemos olhar para a Jamai- ca. O legislativo da Jamaica adotou uma constituicao, aprovada pelo governo do Reino Unido, pouco antes de tornar-se independente, em 1962. Ao contririo do retumbante inicio da constituigao do Cazaquistao, 0 documento jamaicano comeca com numerosas definices legais, além de detalhes sobre a transigao da colonia para o Estado independente. E somente no capitulo I — Direitos e Liber- dades Fundamentais— que a constituicao comeca a falar de democracia. Naquele momento ela estipula: os direitos maica sao garantidos lamentais ¢ lades do individuo, isto €, toda pessoa tem direitos, a despei- lugar de origem, opinides politicas, cor ou sexo, mas também deve se sujeitar ao respeito pelos direitos ¢ liberdades dos outros ¢ do interesse publico, ea todos ¢ a cada um sao assegurados especificamente os direitos: a) a vi ber seguranga pesso- al, & manutencao de sua propriedade e a protecao da lei; b) a liber- dade de consciéncia, de expresso ¢ reunido ¢ associacao pacificas; ©) ao respeito as privada e familiar (Constituicao da Jamaica, 2006). As secoes seguintes descrevem caracteristicas que sao familiares a muitos outros regimes democraticos: um parlamento poderoso, um ramo do execu- ) tesponsavel pelo parlamento, eleicdes competitivas e um judiciario for- malmente independente. Mesmo enquanto ainda era uma colonia britanica a Jamaica ja era tida como um exemplo de uma democracia de pequena escala (SHELLER, 2000). A Jamaica ainda esta excluida do conjunto das democra- cias parlamentares (assim como muitas outras antigas coldnias britanicas) em virtude de ter © lider do executivo representado pela figura de um governador geral indicado pela coroa britanica e que opera como um representante dela. Ao menos no papel a Jamaica parece ser mais ou menos democratica, A Freedom House novamente levanta algumas diividas. De fato, 0 relatério de 2005 sobre aquele pais (baseado no desempenho durante 0 ano anterior) observou que “os cidadaos da Jamaica sao capazes de mudar 0 seu governo democraticamente” (FREEDOM HOUSE JAMAICA, 2005). Isso deu a Jamaica um 2 (quase alto) em relacao aos direitos politicos e um 3 (bastante alto) para as liberdades civis, 0 que fez com que o pais fosse chamado de “livre”. Mas 0 relatorio relativizou esses indices, comecando do seguinte modo as descricdes dos registros do ano anterior: mes rampantes, com altos indices de desemprego ¢ com a falta de investimento em desenvolvimento social em 2004. O fracasso do governo em estender o Estado de D ito a forca de policia foi evidenciado por um registro que abrange cinco anos € que mostra a incapacidade de processar qualquer oficial encarregado de mortes extrajudiciais, mesmo que la exista uma das mais elevadas taxas mundiais de assassinatos cometidos por pol nto isso, a litigiosa luta pela sucesso destruitt o principal par- tido de oposicao do pais (FREEDOM HOUSE JAMAICA, 2005) O relatorio segue com a descricdo de fraude nos votos, da disseminagdo da violencia contra a mulher, da perseguicao de homossexuais por parte da policia, de gangs com, conexdes politicas ¢ da criminalidade provocada pelo fato de a Jamaica ser um importante ponto na rota da cocaina para os Estados Unidos (cf. th. Amnesty International, 2001; Human Rights Watch, 2004). Os negocios na Jamaica sofrem com os abusos da mafia e com os crimes contra a propriedade, Uma pesquisa feita pelas Nagdes Unidas em 2002 em quatrocen- empresas jamaicanas descobriu que dois tercos de todas elas telataram ter sido vitimas de pelo menos um crime contra a propriedade em 2001, As peque- s empresas sofrem ainda mais com as extorsdes, roubos, fraudes, arromba- mentos ¢ incéndios criminosos do que as grandes empresas (WORLD BANK, 2004: 89-90). Se a Jamaica qualifica-se como uma democracia, ela certamente € considerada como uma bastante problematica. Como deveriamos decidir se 0 Cazaquistao, a Jamaica ou qualquer outro pais qualifica-se como uma democracia? Essa pergumta parece inocente, mas ela possui sérias consequéncias. O que esta em questao aqui € a situacdo poli- tica dos regimes por todo o mundo, a qualidade de vida das pessoas que vivem hesses regimes e a explicacao da democratizacao. 1) Situacao politica: Muito além da Freedom House, os detentores de po- der de todo tipo precisam saber se eles estao lidando com democracias ou com outros tipos de regimes. Eles precisam saber por que dois séculos de experiéncia de politica internacional ensinaram que as democracias se comportam de um modo diferente dos demais paises. Eles mantém ou quebram suas palavras de forma diversa, fazem guerra de outro jeito, res- pondem de modos distintos as intervengoes externas, ¢ assim por diante. Essas diferengas devem afetar e de [ato afetam as relacoes internacionais: como as aliancas sao formadas, quem guerreia contra quem, que paises recehem investimentos ou empréstimos estrangeiros, ¢ assim por diante. 2) Qualidade de vida. A democracia é um bem em si mesmo, na medida em que em alguma extensao cla oferece a populacao de determinado re- gime o poder coletivo de determinar seu proprio destino. De modo geral, ela salva as pessoas comuns da tirania ¢ da desordem que prevaleceram na maioria dos outros regimes. Além disso, em boa parte dos casos, ela ofere- ce melhores condicdes de vida, ao menos no que se relere a questdes como acesso & educagao, satide e protecao legal. 3) Explicacao. A democratizagdo ocorre somente sob certas condicdes so- ciais raras, mas possui profundos efeitos sobre a vida dos cidadaos. Como podemos identificar e explicar 0 desenvolvimento da democracia ¢ seus impactos sobre a vida coletiva? Se as pessoas definem a democracia e a democratizagao de forma errénea, entao elas irao prejudicar as relagoes internacionais, bagungar as explicagGes e, portanto, reduzir as chances das pessoas de ter uma vida melhor. O livro que vocé esta comegando a ler devota muito mais atencao ao ter- ceiro problema do que aos dois primeiros, Embora conceda alguma atencéo as relages internacionais e trate de passagem dos efeitos substantivos da de- mocracia, ele se concentra sobre a descricao e a explicacao: Como e por que se formam as democracias? Por que algumas vezes elas desaparecem? EF, de forma mais geral, o que faz com que paises inteiros passem por um processo de democratizacao ou desdemocratizacao? Abrangendo o mundo inteiro ¢ boa parte da histéria da humanidade, este livro apresenta uma andlise sistemati dos processos que geram regimes democraticos. Ele procura explicar a variagao 20 © a mudanea na extensao e no carater da democracia no decorrer de grandes periodos da experiéncia humana. Ele pergunta que diferenca a extensao € 0 ca- rater da democracia fazem na qualidade da vida publica. Ele leva a democracia a serio. Definigdes de democracia Para levar a democracia a sério precisamos saber do que estamos falando. Desenvolver uma definicao precisa de democracia € particularmente impor- nte quando se tenta — como € 0 caso aqui — descrever e explicar variagSes € is ha Extensao € no cai i iter da democracia. Os observadores da democracia e da democratizacao geralmente escolhem, nplicita ou explicitamente, dentre quatro principais tipos de definigses: cons- tucional, substantiva, procedimental e orientada pelo processo (ANDREWS & CHAPMAN, 1995; COLIER & LEVITSKY, 1997; HELD, 1996; INKELES, 1991; O'DONNELL, 1999; ORTEGA ORTIZ, 2001; SCHMITTER & KARL, 1991). Uma abordagem constitucional concentra-se sobre as leis que um regi- me sanciona no que se refere a atividade politica. Portanto, podemos olhar ao go da historia e reconhecer diferencas entre oligarquias, monarquias, repu- cas, dentre muitos outros tipos, a partir de uma comparacdo dos arranjos legais. No caso das democracias, ainda é possivel fazer uma distincao entre as jonarquias Constitucionais, sistemas presidenciais ¢ arranjos parlamentares, sem mencionar outras diferenciagdes como estrutura federativa versus estrutu- { wnitaria. Para comparacoes histéricas de larga escala, © critério constitucio- al possui muitas vantagens, especialmente a relativa visibilidade das formas constitucionais. No entanto, tal como demonstram os casos do Cazaquistao € a Jamaica, ha grandes discrepancias entre os principios afirmados e as praticas cotidianas, 0 que faz com que as constituigdes sejam uma evidéncia enganosa. Abordagens substantivas focam nas condicoes de vida ¢ de politica que um determinado regime promove: Esse regime promove o bem-estar do ser huma- », a liberdade individual, seguranga, equidade, igualdade social, deliberacao publica e resolucao pacifica dos conflitos? Em caso afirmativo, podemos estar clinados a chama-lo de democracia, a despeito daquilo que esta escrito em sua constituicao. Entretanto, ha dois problemas que se seguem imediatamente qualquer estratégia de definicao desse tipo. Primeiro, como podemos esta- belecer critérios de comparacao entre esses principios desejaveis? Se um dado sgime é muito pobre, mas seus cidadaos gozam de grande igualdade, devemos considerd-lo mais democratico do que um outro que é muito mais préspero, s mais desigual? Segundo, focar nos possiveis resultados da politica mina qualquer esforco de descobrir se alguns arranjos politicos — inclusive a democracia — promo- vem resultados substantivos mais desejaveis do que outros. E se quisermos a saber sob quais condicdes e como os regimes promovem 0 bem-esiar humano, a liberdade individual, a seguranca, a equidade, a igualdade social, a delibe- ragéo publica e a resolucao pacifica dos conflitos? Mais adiante discutiremos com profundidade se o fato de um regime ser democratico afeta a qualidade da vida publica e privada Os que defendem definicdes procedimentais isclam um determinado con- junto de praticas governamentais para determinar se um regime qualifica-se como democratico. A maior parte dos observadores que adotam essa definicao foca sua atengao sobre o processo eleitoral, indagou se eleigdes genuinamente competitivas envolvendo regularmente um amplo numero de cidadaos produz mudanea de pessoal e de politicas governamentais, Se as eleicoes permanecem tum processo nao competitivo e constituem uma ocasiao para massacrar 0s oponentes do governo, como no caso do Cazaquistao, o analista procedimental as rejeita como evidéncia de democracia. Mas se elas realmente promovem mu- dancas governamennais significativas, elas indicam a presenca procedimental da democracia. (Em principio alguém poderia acrescentar ou substituir outros procedimentos de consulta tais como relerendos, recalls, petigdes e até mesmo pesquisas de opinido, mas na pratica o analista procedimental foca particular- mente sobre as eleicdes.) As avaliagdes da Freedom House incorporam alguns juizos substantivos sobre a extensdo na qual determinados cidadaos de um pais gozam de direitos politicos ¢ liberdades civis. Mas quando se trata de ayaliar se um pais € uma “democracia eleitoral”, A Freedom House busca yerificar a presenca de ele- mentos procedimentais: 1) Um sistema politico mu partidario comp 2) Sufragio universal para todos os cidadios adultos (com excecao das restricées impostas pelo Estado aos cidadaos por transgressoes criminais). 3) Eleigoes competitivas regulares que garantam o voto secreto, segu- roe sem qualquer tipo de fraude macica que tone os resultadcs nao representativos da yontade publica. 4) Acesso publico significativo dos principais partidos politicos a0 eleitorado a partir dos meios de comunicacto e mediante campanhas politicas abertas (PIANO & PUDDINGTON, 2004: 716) De acordo com esses critérios, as eleigoes de 2004 no Cazaquistao nao seriam qualificadas procedimentais como uma democracia eleitoral, mas a Ja- maica, a despeito dos documentados desrespeitos as liberdades democraticas, poderia receber o titulo, Portanto, aqui reside o problema das definicdes proce- dimentais de democracia, democratizacao e desdemocratizacao: a despeito de sua grande conveniéncia, elas operam com uma concep¢ao demasiado estreita do processo politico. 99 As abontagens voltadas para o processo diferem significativamente dos enlo- ques constitucional, substantivo e procedimental. Elas identificam um conjun- to minimo de processos que precisam estar continuamente presentes para que uma situacdo possa ser considerada democratica. Fm um argumento classico, Robert Dahl estipulou cinco critérios relativos ao processo que caracterizariam uma democracia. Falando inicialmente sobre como eles poderiam operar em uma associacio yoluntaria, ele propoe: Participacao efetiya. Antes de uma politica ser adotada pela associa co, todos os membros precisam ter oportunidades iguais e efetivas para tornar conhecidas para os outros suas visoes sobre como dever ser tal ps ‘ica, Igualdade de voto, Quando chega o momento de decidir qual politi- ca deve ser [eita, todo membro deve ter uma oportunidade igual e efe- tiva de vouar, ¢ todas os votos devem ser contabilizados eomo iguais. Entendimento esclarecida, Dentro de limites razoaveis de tempo, cada membro deve ter oportunidades iguais e efetivas de aprender sobre as alternativas de politicas mais relevantes ¢ stias provaveis consequent Controle da agenda. Os membros devem ter a oportunidade exclu- siva de decidir come e, se eles escolherem, quais assuntos devem ser colocados na agenda. Portanto, o processo democratico exigido pelos trés critérios precedentes nunca é fechado. As politicas da associagao sempre sao sujeitas a mudancas por parte de seus membros, se eles assim escolherem, Inclusao dos adultos. Todos 03 adultos que sao residentes permanen- tes, ow ao menos a maioria, devem ter os plenos direitos dos cidadaos que estdo implicados nos quatro critérios anteriores. Antes do século XX esse critério era inaceitavel pela maior parte dos defensores da democracia (DAHL, 1998; 37-38). O ultimo critério — a inclusao dos adultos — ironicamente exclui muitos casos que os filésofes politicos regularmente consideraram como grandes modelos historicos de democracia: as cidades gregas e romanas, os poyoados vikings, as assembleias de cidades e algumas cidades-estado. Todos eles cons- truiram as deliberagGes politicas mediante exclusdes massivas, especialmente de mulheres, escravos e pobres. A inclusio de todos (ou quase todos) os adul- tos basicamente restringe a democracia politica aos tiltimos séculos. Note-se © quanto os critérios de Dahl diferem daqueles propostos pelos modelos constitucional, substantivo e procedimental. Ainda que aqueles que ja frequentaram aquelas infindaveis reunides das associagdes voluntirias pos- sam facilmente imaginar os estatutos de tais associagdes, 0 proprio Dahl nao especifica nenhuma forma ou arranjo constitucional. Ele evita cuidadosamente indicar pré-requisitos ou consequéncias sociais em sua definigao; até mesmo o 4 critério de “entendimento esclarecido” refere-se apenas 4 experiéncia no inte- rior da organizagao, e nao a pré-requisitos ou consequéncias. Finalmente, seus critérios incluem o procedimento da contabilizacao igual de votos iguais, mas a lista como um todo indica como a associacao funciona, e nao quais técnicas ela adota para realizar seus objetivos. Ela descreve um conjunto interligado de processos politicos Quando Dahl passa das associagdes locais para os regimes nacionais, ele interrompe suas ideias relativas ao processo e comeca a falar de instiuigdes. Para Dahl, instituicdes consistem em praticas que perduram. O tipo de regi- me a que Dahl chama de “democracia poliatquica” implica seis instituicoes caracteristicas: oficiais cleitos; eleicdes livres, justas e frequentes; liberdade de expresso; fontes de informacao alternativas, autonomia associativ: cidadania inclusiva (DAHL, 1998: 85; 2005: 188-189). Novamente o procedimento de votacdo aparece na lista, Mas, tomados em conjunto, os critérios de demo- cracia polidrquica descrevem um processo em curso, uma série de interacdes regularizadas entre cidadaos ¢ oficiais. Isso vai muito além dos critérios proce- dimentais comuns. Mesmo assim, ha um problema. Basicamente, Dahl oferece-nos uma lista estatica a qual apenas se deve indicar “sim” ou “nao”: se um regime oferece todas as seis instituicdes, ele é considerado uma democracia. Se algumas delas nao est presente, ou se algumas nao estao operando devidamente, o regime nao é considerado uma democracia. Para uma contabilizacdo anual de quais regimes sao ou nao sao democracias, essa abordagem funciona, mesmo que alguns criticos possam questionar se as eleigdes em paises como a Jamaica sao livres e justas. Entretanto, suponhamos que queiramos usar esses critérios de forma mais ambiciosa, Nao queremos apenas verificar a existéncia de democra- cia em um momento temporal espectfico, Em vez disso, queremos fazer coisas mais complexas: primeiro, comparar regimes para verificar 0 quao democra- ticos eles sao; segundo, acompanhar regimes individuais ao longo do tempo, observando quando e como eles se tornam mais ou menos democraticos. Assim como a Freedom House classifica os direitos politicos as liberda- is, podemos perleitamente perguntar se os diferentes niveis de classifi- 0 podem ser correlacionados a classificacaes de outros fatores, tais como a riqueza nacional, o tamanho da populagao, o quao recentemente ele se tornow independente ou mesmo sua localizacdo geografica. Se queremos ter infor- macoes sobre as causas ¢ os efeitos da democratizacao ou desdemocratizacao, nao temos outra escolha senao reconhecé-los como processos continuos, e nao apenas como simples passos em um caminho que leva numa ou noutra dire~ ¢4o, Em suma, para propositos comparatiyos ¢ explicativos, nao podemos ficar apenas com uma checklist de variaveis cruciais A maior parte das instituicoes que operam como padroes de democracia, segundo Dahl — oficiais eleitos; eleigdes livres, justas e frequentes; liberdade de des expressio; lontes alternativas de informacdo; autonomia associativa e cidada- nia inclusiva—, ndo se prestam muito facilmente & comparacao e a explicacao. Podemes, é claro, perguntar 0 quao livres, justas ¢ frequentes sao as eleicoes, e assim por diante. Mas quanto mais fizermos isso, mais perceberemos dois inconvenientes dos critérios de Dahl quando se esta diante desse tipo de tarefa: 1) Juntos, eles descrevem um conjunto minimo de instituicoes democra- cas, € nao uma série de variaveis continuas; eles nao ajudam muito se o que queremos saber ¢ se 0 Canada é mais democratico do que os Estados Unidos, ou se os Estados Unidos se tornaram menos democraticos no wl- timo ano. 2) Cada um deles opera dentro de limites significativos, além dos quais al- guns deles podem conilitar com os outros; democracias em funcionamento frequentemente precisam adjudicar profundos conilitos, por exemplo, en- tre liberdade de expressao e autonomia associativa. Uma democracia deve coibir organizagoes que defendem os direitos dos animais porque elas de- fendem ataques a associacoes que fazem exposicdes de animais ou defen- dem que animais sejam usados em experimentos? Além disso, a autonomia de poderosas associacées elitistas, racistas, sexis- As ou que Jomentam o ddio minam regularmente o cardter inclusivo da ci- dadania, Uma democracia deve permitir grupos de pressao que tém grande porte financeiro fazer lobby por leis anti-imigrantes no legislativo? Para poder profundar a tarefa de comparacao ¢ de explicagao teremos que melhorar os itérios de Dahl, ao mesmo tempo nos mantendo fiéis ao que caracteriza seu spirito enquanto uma definicdo orientada pelo processo. Elementos de democracia, democratizacao ¢ desdemocratizacao, Como podemos avangar? Antes de identificar os critérios de democracia, democratizacao e desdemocratizacao orientados pelo processo, vamos escla- recer 0 que temos que explicar. Para tanto, sera wil simplificar radicalmente a questao. Mais a [rente podemos retornar as complicagGes que sao ignoradas essa primeira formulacao do problema. Vamos adotar tres ideias simples. Primeiro, comecamos com um Estado, uma organizagao que controla a naior concentracao dos meios coercitivos no interior de um territério substan- cial, que em algumas questdes possui prioridade em relacdo a todas as demais rganizacdes que operam no mesmo tertit6rio, e cuja prioridade ¢ reconhecida por outras organizacées, incluindo outros estados, fora de seu territorio, Assim € possivel comegar a ver as complicagdes: Como tratar de sistemas federati- vos, de guerras civis, de enclaves dominados por um governante militar, ¢ de ccdes rivais no interior de um Estado? Por ora, contudo, podemos colocar 0 roblema da demoeracia de forma mais clara, assumindo a ideia de um Estado ‘0 ¢ razoavelmente unificado. Segundo, reunimos todos aqueles que vivem sob a jurisdigao do Estado em uma categoria abrangente: os cidadaos. Novamente, algumas complicacdes mente yém a mente: E como considerar os turistas, as corporagoes transnacionais, os que fazem parte da economia informal e os expat Logo mais eu irei destacar que a maior parte dos regimes historicos falhou em ter uma plena cidadania, e isso é algo que desempenha um papel central em uma democracia, Mas, para comecar, chamar de cidadaos daquele Estado a todos os que vivem sob a sua jurisdicao ira clarificar © que queremos explicar. A democracia entao passa a ser vista como uma certa classe de relacdes entre estados ¢ cidadaos, e a democratizacao e a desdemocratizacao consistirao em mudangas naqueles tipos de relagoes. Os principios de Dahl ja implicam esse passo; até mesmo a autonomia associativa, por exemplo, depende de o Estado garantir o direito de existencia dessas associacées, mais do que simplesmente a presenca absoluta de muitas associacées. Por ora, vamos chamar 0 conjunto de relacdes entre estados e cidadaos de regimes, ja adiantando que mais tarde iremos tornar essa ideia mais complicada mediante a introducao das relagdes entre os principais atores politicos (partidos, corporacées, sindlicatos, grupos étnicos organizados, redes de patroes e clientes, militares, dentre outros). Por enquanto é importante notar que 0 segundo passo rompe duramente com uma nogao bastante comum (e, num primeiro olhar, bastante atraente). Com isso se rejeita a ideia bastante difundida de que se ao menos pudessem chegar a um acordo acerca do modo como querem que o regime funcione, os detentores do poder escolheriam a democracia como a alternativa mais atraen- te — ou menos desagradavel — dentre os arranjos politicos existentes. Segundo essa visao, trabalhadores, camponeses, minorias ¢ outros cidadaos poderiam causar tantos problemas, que € menos custoso para as elites fazer algumas concessdes as demandas de representacao e inclusao do que exercer uma re- pressio continua, de modo que a cidadania em sentido amplo desempenharia um papel bastante marginal do formato real das politicas democraticas. E essa visao subjacente a politica de exportacao da democracia feita pelos Estados Unidos ou pela Unido Europeia, ao fazer acordos com lideres nacionais — ou até mesmo coagindo Lideres a adotar instituigdes demoeraticas. As explicacdes da democratizagao (e tambem da desdemocratizacao) realizadas neste liyro afirmam o contrario disso, na medida em que sao centradas sobre a luta entre Estado e cidadaos. Até mesmo uma conquista militar como as aliancas ociden- tais no Japao e na Alemanha apos a Segunda Guerra tiveram que negociar ex- tensivamente com os cidadaos para poder criar um novo regime democratico onde antes o poder era exercido de forma autoritdria. Terceiro, vamos reduzir nosso escopo em relacdo aos processos politicos publicos, nao incluindo todas as transagoes, pessoais ou impessoais, entre est dos e cidadaos, mas considerando apenas que visivelmente mobilizam 0 poder » do Estado. Os processos politicos publicos incluem eleigées, cadastro de eleitores, atividade legislativa, patenteamento, cobranga de impostos, alis- aumento militar, concessao de aposentadorias e muitas outras operagdes nas quais o Estado participa. Também incluem conten¢ées coletivas na forma de yolpes de Estado, revolugoes, movimentos sociais e guerras civis. Entretanto, excluem a maior parte das interacdes pessoais entre cidadaos, entre oliciais do Listado ou entre oficiais do Estado e cidadaos, Alguns dos processos politicos publicos consistem em consultar os cida- os sobre suas opinides, necessidades e demandas. Essas consultas abrangem aisquer meios pelos quais os cidadéos podem manifestar suas preleréncias coletivas relacionadas aos membros ¢ politicas do Estado. Em regimes relativa- mente democraticos, eleicoes competitivas certamente dao voz aos cidadaos, nas isso também € [eito por lobby, peticodes, referendos, moyimentos sociais © pesquisas de opiniao. Nesse caso as complicacoes omitidas sao bastante 6b- jas: subornas, relacdes de clientela, favores aos eleitores e correligionarios, potismo e fendmenos similares que dissolyem as barreiras entre pol ica € privada. Mais do que isso, logo descobriremos que nao podemos xplicar os processos politicos piiblicos focando apenas nas interacoes entre idadaos e Estado, mas temos também que examinar coalizdes, rivalidades e onfrontacGes entre os principais atores politicos que nao fazem parte do Es- ido. Mais adiante vou insistir que formas de poder nao estatais afetam forte- nte a possibilidade de democratizacao, Novamente, poderemos dar atencao 5 complicacées depois que tivermos 0 problema sob controle. No momento NOs apenas examinar as interacoes entre estados ¢ cidadaos para buscar si- is de democracia, democratizacao e desdemocratizacao. p O que devemos procurar nessas interacdes? Ha uma outra simplificacao pode nos guiar. Para julgar o grau de democracia, estabelecemos a exten- na qual o Estado se comporta em conformidade com as demandas expres por seus cidadaos. Para mensurar a democratizacao ¢ a desdemocratizacao, icamos em que extensao essa conformidade esta aumentando ou dim do. Ao fazer isso deixamos de lado importantes alternativas existentes na ica. Nao perguntamos se um Estado estd ou nado melhorando © bem-estar de seus cidadaos, se ele se comporta de acordo com suas proprias jeis ou mesmo se as pessoas comuns controlam as alavancas do poder politico. (Depois, certamente podemos perguntar se a democratizacao assim entendida ora o bem-estar da populacao, se promove um Estado de Direito ou se pence do aumento do poder direto dos cidadaos.) Julgar a conformidade do comportamento de um Estado em relacao as demandas expressas de seus cidadaos necessariamente envolve quatro outros 20s: qual a extensao da manifestacao desses conjuntos de demandas; 0 quao amente diferentes grupos de cidaddos experienciam a traducao de 1s demandas em acao do Estado; em que extensao a propria extensao das ndas recebe a protecdo politica do Estado; e 0 quanto o processo de tra- ambos os lados, os cidadaos e 0 Estado. Vamos chamar a esses ” elementos de amplitude, igualdade, protegao ¢ carater mutuamente vinculante das consultas. Nessa perspectiva simplificada, um re as relacdes politicas entre o Estado e seus cidadaos engendram consultas amplas, igualitdrias, protegidas e mutuamente vinculantes. A democratizagao significa um movimento teal no sentido de promover uma consulta mais ampla, mais igualitaria, mais protegida e mais vinculante. Entao, obviamente, a desdemo- acao significa um movimento real no sentido de uma consulta mais es- njusta, menos protegida e menos vinculante. Em relacao a Alema- nha, podemos afirmar razoavelmente que a formacao da Reptiblica de Weimar no Império Alemao ruiu ap6s a Primeira Guerra, com a introducdo de medidas de democratizagao, ao passo que a ascensdo de Hitler ao poder em 1933 fez com que o pais fosse brutalmente arrastado para tras, em um processo de des- democratizagdo, No Japao podemos considerar que a construeao de um Estado militarizado durante a década de 1930 foi um periodo de desdemocratizacao, enquanto o periodo de conquista, ocupagao e reconstrucao por parte dos Alia- dos como sendo o comeco da democratizacao. me ¢ democratico na medida em que Os termos amplitude, igualdade, protecao ¢ carater mutuamente vinculan- te identificam quatro dimensdes parcialmente independentes de variagdes en- tre os regimes, A seguir apresento descricoes sumarias das quatro dimensdes: 1) Amplitude. Contempla desde um pequeno segmento da populacao go- zando de extensos direitos, enquanto ouiros sao largamente excluidos dos processos politicos, até a ampla inelusao politica de pessoas sob a jurisdi- ao do Estado (em um extremo, todo habitante do pais possui uma relacao especifica com o Estado, mas apenas alguns deles possuem plenos direitos de cidadania; no outro, todos os cidadaos adultos pertencem a mesma ca- tegoria homogénea de cidadania). 2) Igualdade. Varia desde uma grande desigualdade entre os cidadaos e dentro das categorias de cidadaos até uma extensiva igualdade em ambos os casos (em um extremo, categorias étnicas sao enquadradas em uma ordem hierarquizada bem-definida, com direitos e obrigacoes muito desi- guais; em outro, a etnia nao tem qualquer conexao relevante com obriga- GOes ou direitos politicos, e a ampla igualdade dos direitos prevalece entre os cidadaos nativos ou naturalizados). Juntos, altos niveis de amplitude e de igualdade compreendem os aspectos cruciais da cidadania: em vez de um mosaico de relagdes varidveis com o Esta- do que dependem do pertencimento a grupos particulares, todos os cidadaos sao enquadrados em um numero definido de categorias — no limite, em uma s6 — cujos membros mantém direitos e obrigagdes similares em suas interacdes com o Estado. Por si mesmos, os critérios de amplitude e de igualdade nao constituem uma democracia. Regimes autoritarios frequentemente impuseram formas nao democraticas de cidadania, impostas de cima para baixo. Mas na 28 companhia da proteg’o e da consulta mutuamente yinculante, amplitude ¢ igualdade qualificam-se como componentes essenciais da democra 3) Protecao. Varia de pouca até muita protecdo contra a acao arbitraria do Estado (em um extremo, os agentes do Estado usam constantemente seu poder para punir inimigos pessoais e para premiar seus amigos; em outro, todos os cidadaos gozam de um processo publico e correto). 4) Carater mutuamente vinculante. Varia desde uma vinculacao inexis- tente e/ou extremamente assimétrica até uma vinculacdéo mutua (em um extremo, os requerentes dos beneficios do Estado precisam subornar, per suadir, ameacar ou usar a influencia de terceiros para conseguir alguma coisa; no outro, os agentes do Estado tém obrigaces claras ¢ institufdas de conceder os beneficios devidos a cada categoria de benelicidrio). Uma movimentacao real de um regime na direcao dos polos mais elevados das quatro dimenso6es qualifica-se como democratizacao. Uma movimentacao real na direcao dos polos mais baixos qualifica-se como desdemocratizacdo. Quando a Freedom House coloea setas decrescentes ao lado das taxas de direi- tos politicos e¢ liberdades civis em 2004, estava demonstrando que a Jamaica corte o risco de entrar em um processo de desdemocratizacao. Nos termos das hossas quatro dimensoes, isso chamou especial atencdo para a ampliagao da desigualdade e diminuicao da protec na Jamaica. Em discussdes posteriores, algumas vezes focaremos separadamente s0- bre a amplitude, igualdade, protecao e consulta mutuamente vinculante, Por exemplo, as analises sobre a cidadania naturalmente focarao mais sobre a am- plitude ea igualdade. Na maior parte do tempo, no entanto, vamos considerar a posicdo média das quatro dimensdes como indicadores de uma wnica va- riayel; o grau de democracia, Do mesmo modo, trataremos a democratizacao como a media de um movimento crescente nas quatro dimensées, enquanto a desdemocratizagao é um movimento médio decrescente. Essa estratégia sim- ica muito a andlise. Ela se beneficia do fato de que 0 ponto alcancado em 1 dimensao geralmente possui uma correlacdo com os pontos em outra mensao; geralmente os regimes que oferecem extensiva protecao também suem categorias mais abrangentes de cidadania, em vez de tratar de modo ente cada pessoa ou cada pequeno grupo de cidadaos. Capacidade do Estado e variacdes no regime Até o momento eu omiti propositadamente uma importante caracteristica dos regimes: a capacidade de o Estado implementar as suas decisdes politicas. Nenhuma demoeracia pode funcionar se 0 Estado nao possui capacidade de supervisionar 0 processo de decisao democratica e de por em pratica os seus resultados. Isso fica mais ébvio no caso da protecao. Um Estado fraco pode proclamar 0 principio da protecao dos cidadaos das arbitrariedades dos agen- tes do Estado, mas nao tem muito 0 que fazer quando essas arbitrariedades ocorrem. Ja os estados muito poderosos correm o risco inverso: de que as deci- soes tomadas pelos agentes do Fstado ganhem peso suficiente para sobrepor-se As consultas mutuamente vinculantes entre 0 governo ¢ 0s cidadaos A questao sobre a capacidade do Estado ja entrou em nossa discussao in- diretamente. Alguns dos direitos politicos e das liberdades civis apresentados pela Freedom House, por exemplo, nao teriam qualquer significado se o Esta- do nao lhes conferisse efetividade. Observe o seguinte: DP # 3: Ha leis eleitorais justas, oportunidades iguais de campanha, pleito histo € contabilizacao correta dos votos? DP # 4: Os eleitores sao capazes de investir seus representantes livremente eleitos com poder real? LC # 5: O Estado de Direito preyalece em quest6es civis e criminais? A populagdo recebe um tratamento igualitario perante a lei? A policia esta sob um controle civil direto? LC # 10: Os direitos a propriedade sao assegurados? Os cidadaos tem di- reito de estabelecer negécios privados? Os negdcias privados constituem uma atividade sem influéncia dos oficiais do governo, das foreas de segu- ranca ou do crime organizado? (KARANTNYCKY, 2000: 583-585). Aqui nos vemos os avaliadores da Freedom House tentando encontrar um meio-termo entre muito pouca e demasiada capacidade do Estado, baseando- sé no pressuposto implicito de que ambos comprometem as liberdades civis € os direitos politicos. Fsse pressuposto generaliza o fato de que tanto wma ca- pacidade do Estado extremamente alta quanto uma capacidade extremamente baixa inibem a democracia. Capacidade do Estado significa a exiensao na qual as intervencoes dos agentes do Estado em recursos, atividades ¢ interconexdes pessoais nao estatais existentes alteram as distribuicdes existentes desses recursos, atividades e conexdes inter pessoais, bem como as relacoes entre aquelas distribuigdes. (A redistribuicao de riqueza dirigida pelo Estado, por exemplo, envolve quase inevitavelmente nao apenas uma redistribuicdo de recursos entre a populacdo, mas também uma mudanca na conexao entre distribuicdo geografica da riqueza e da populacao.) Em um regime com alta capacidade, no que se refere a esse critério, sempre que os agentes do Estado agem, suas acées afetam de forma significativa os recursos dos cidadaos, suas atividades e suas conexoes interpessoais. Em um Estado com baixa capacidade, os agentes do Estado exercem uma influéncia muito menor, ndo importa o quanto tentem mudar as coisas. Nos jd demos uma olhada na variabilidade da capacidade do Estado nos ca- sos do Cazaquistao ¢ da Jamaica. No Cazaquistao, assim como nos outros pai- ses da Unido Soviética, a capacidade do Estado diminui muito durante os con- ites de 1986 a 1991, Mas logo apés a independéncia do Cazaquistao (1991), Nazarbayev comecou uma campanha visando expandir 0 poder do Estado e 30 pod de seu pessoal dentro do Estado. Empresas nao estatais, a imprensa pendente ¢ as associacoes privadas logo sentiram o peso de um Estado vencionista com demandas crescentes. A Jamaica moveu-se na direcio posta. Os observadores dos direitos humanos manifestaram abertamente a ‘ocupagao de que a Jamaica teria perdido controle sobre sua policia, sem neionar as gangues armadas ¢ os taficantes de drogas Figura 1.1 Variacdo nos regimes 1 Alta capacidade Demoeracia Capacidade do Estado 0 Democrat Nenhum dos casos atinge o ponto extremo. No polo da alta capacidade, o Cazaquistao de Nazarbayey nao se compara com a capacidade de mobilizar ecursos, atividades e conexées interpessoais como aquela que hoje possui o lstado Chines. No polo da baixa capacidade, a destrocada Somiilia faz 0 Estado Jamaicano parecer um gigante. Comecamos a perceber 0 valor de distinguir capacidade ¢ democracia antes relacionar analiticamente esses dois termos. Claramente, a capacidade pode oscilar de extremamente elevada a extremamente baixa independentemente do quao democratico € um regime, e a democracia pode aparecer em regimes com erentes niveis de capacidade do Estado. A figura 1-1 esquematiza 0 campo riacao. Ela identifica algumas zonas diferentes de processos politicos pu- “os, marcados por combinacées variadas de capacidade ¢ democrac No eixo vertical, a capacidade do Estado varia de 0 (minimo) a 1 (maximo). ora possamos pensar a capacidade em termos absolutos, para propésitos comparativos € mais util fazer uma escala da historia de todos os estados que re- ente existiram em uma determinada época. No periodo que comeca em 1900, por exemplo, essa dimensao pode oscilar desde a Somalia ou o Congo-Kinshasa em 2006 (minimo) até a colossal Alemanha nazista a véspera da Segunda Guerra (maximo). No eixo horizontal encontramos o ranking mais familiar que varia de um minimo de democracia, no ponto 0 (um poste ao qual poderia ser candidato © governo autoritario de Stalin, na Russia), até o maximo de democracia, no ponto | (ponto ao qual a Noruega certamente poderia concorrer). Para diversos propositos, outra simplificagao radical ajudara em nossa ten- tativa de descrever e explicar as variacoes nos regimes. A figura 1.2 identifica quatro tipos puros de regimes implicados em nosso mapa geral dos regim Ela reduz 0 espaco a quatro tipos de regime: nado democraticos com baixa ca- pacidade, nao democraticos com alta capacidade, democraticos com alta cidade e democraticos com baixa capacidad ‘* Nao democraticos com alta capacidade: Cazaquistao, Ir + Nao democraticos com baixa capacidade: Somalia, Congo-Kinshasa * Democraticos com alta capacidade: Noruega, Japao. * Democraticos com baixa capacidade: Jamaica, Bélgica. No decorrer da historia humana os regimes se distribuiram de forma bas- tante desigual entre esses tipos. A maior parte dos regimes historicos se enqua- dra no setor nao democratico com baixa capacidade. No entanto, a maior parte dos maiores e mais poderosos regimes se enquadra no setor nao democratic com alta capacidade, Regimes democraticos com alta capacidade foram raros, © em sua maioria sao mais recentes. Os regimes democraticos com baixa capa- cidade sao poucos e isolados. Figura 1.2. Tipos puros de regimes Alta capacidade Demoeratico Capacidade do Estado Baixa capacidade Democratico Baixa capacidade Nao demoeratico 0 Democracia 1 aa Portanto, na longa jornada da historia humana a vasta maioria dos re mes tem sido nao democratica; regimes democraticos sao raros, contingentes € criagdes recentes. E verdade que houve a formacio de democtacias patciais de forma intermitente, em uma escala local, como, por exemplo, nas cidades vernadas por conselhos que incorporavam a maioria dos chefes de familia. Na escala de uma cidade-estado, de grupo de guerreiros ou de uma federacao regional, as formas de governo variaram da hegemonia dindstica a oligarq com uma cidadania estreita e desigual, ou até mesmo inexistente,; pouca ou nenhuma forma de consulta vinculante; ¢ protecao bastante incerta da arbitra- dade da acao governamet Antes do século XIX grandes estados ¢ impérios geralmente cram admi- strados por meio de um governo indireto: sistemas nos quais o poder cen- | recebia os tributos, a cooperacao ¢ as garantias de lealdade por parte da populagao que era sujeita aos detemtores de poder regionais, que gozavam de inde autonomia dentro de seus dominios. Mesmo na Franca supostamente bsolutista, por exemplo, os grandes nobres comecaram a perder seu poder so- iente no final do século XVII, quando Luis XIV empreendeu um esforco bem- sustentado (e em ultima instancia bem-sucedido) de substitui-los por adminis- \lores regionais indicados por ele, e que podiam ser facilmente destituidos. Antes disso os grandes lordes administravam seus territorios como se fossem cipes, e muitas vezes lancavam as armas contra a propria coroa francesa. Vistos a partir de sua base, tais sistemas frequentemente impunham a tira- hia sobre as pessoas comuns. Vistos a partir de cima, no entanto, faltava-lhes yacidade; os irios forneciam soldados, bens e dinheiro aos gover- juiites, mas seus privilégios autonomos também impunham limites a capaci- le do soberano de goyernar ou de transformar o mundo que estaya dentro je sua presumida jurisdi¢ao. i somente o século XIX que difundiu a adogao da administragao direta: criagdo de estruturas que expandiram de forma continua a comunicagao e 0 trole governamental sobre as instituicoes centrais até as localidades meno- mesmo sobre os habitantes. A criacao da administracao direta geral- ente inclufa medidas como cobranca de impostos segundo critérios unifor- icos postais de larga escala, servigos civis profissionais ¢ conyoc ional. Mesmo nesse contexto, a administracao direta podia variar alé a segmi ismo. Em uma larga escala, a administracao direta tornou possivel nia mais substancial e, portanto, a propria democracia, Possivel, mas. provavel, nem muito menos inevitavel: os instrumentos de administragao iret am a muitas oligarquias, algumas autocracias, a um certo numero governos controlados por um partido ou pelo exército, ¢ a algumas tiranias fuseistas. Mesmo na era da administracao diteta a maioria dos regimes perma- 1 distante da demoerac a O posicionamento em um ou outro dos quatro quadrantes faz uma grande diferenca no carater dos processes politicos publicos de um regime (TILLY, 2006). Mesmo que sejam melhor elaboradas mais a frente, apresentamos aqui algumas descricdes preliminares dos tipos de processos politicos publicos que prevalecem em cada quadrante: Nao democraticos com alta capacidade. Pouca voz do publico, a nao ser quando incitada pelo Fstado; envolvimento extensivo das forcas de se- guranca do Estado em qualquer processo politico publico; mudanga de regime em funcao de uma luta a partir de cima, ou de uma rebeliao das massas, na base. Nao democraticas com baixa capacidade. Senhores de guerra, blocos étni- cos e mobilizacao religiosa; lutas yiolentas frequentes, inclusive guerras civis; muiltiplos atores politicos, inclusive criminosos, utilizam for¢a letal. Democraticos com alta capacidade. Mobilizacoes frequentes de movimen- tos sociais, de grupos de interesse ¢ de partidos politicos; consultas formais (incluindo eleigoes competitivas) como os pontos altos da atividade polt- tica; amplo monitoramento dos processos politicos publics, combinado com niveis relativamente baixos de violencia pol Democraticos com baixa capacidade. Assim como nos regimes democra- ticos com alta capacidade, mobilizagdes frequentes de movimentos sociais, de grupos de interesse ¢ de partidos politicos, mais as consultas formai (incluindo as eleigdes competitivas) como os pentos altos da atividade politica, mas um menor monitoramento efetivo dos processos politicos publicos e um maior envolyimento de atores semilegais ou ilegais na reali- zacao dessas politicas, ¢ niveis substancialmente mais clevados de violén- cia letal nesse campo. F claro que essas sao descrigdes “da média”, Dentro do quadrante dos regi- mes nao democraticos com alta capacidade, por exemplo, encontramos alguns gimes nos quais 0 monitoramento e a intervencao do Estado se estende sobre © territério e a populacdo como um todo; o [ra se enquadra nessa descricao. Mas também vemos outros nos quais o Estado tem um controle sobre o terri- torio central muito préximo ao do Ira, mas possuem um fraco controle sobre as fronteiras ou sobre as regides de dificil acesso; 0 Marrocos pertence a esse subconjunto de regimes, com seu governo autoritario em seu territorio central, mas com uma longa guerra civil pela independencia protagonizada pela Frente Polisario, no antigo Sara espanhol Entao, onde se situam nessa distribuicao espacial dos regimes os dois casos que estamos tomando como testes, isto é, 0 Cazaquistao ¢ a Jamaica? Durante © perfodo em que existiu a Unido Soviética, 0 Cazaquistao diminuiu a sua ca- pacidade, e avancou um pouco na direcao da democracia, Ja na época em que Nazarbayev consolidgu o poder de sua familia, no final da década de 1990, 0 a4 Figura 1.3 Disposicao do regime no Cazaquistao e na Jamaica em 2006 Cazaquistao Capacidade do Estado 0 Democracia 1 Cazaquistao tornou-se um regime com alta capacidade, mas com baixo indice dle democracia, A Jamaica passou por mais flutuacoes desde sua independen- cla, em 1962, mas o Estado nunca adquiriu uma capacidade substantiva, e 0 como um todo nunca atingiu plenamente os indices de uma democra- ia, Quando consideramos © passado recente, podemos colocar a Jamaica no ante exatamente oposto ao do Cazaquistao: uma capacidade do Estado aria de baixa a média, combinada com uma democracia preciria, A figura 13 coloca 0 Cazaquistéo e a Jamaica no diagrama dos quatro tipos puros de regimes, A colocacao desses dois regimes no quadro em um tnico per © apenas 0 ponto de partida de nosso trabalho. Ainda assim, em passado recente, 0 Cazaquistao e a Jamaica nos permitem identif de questao que surgem no decorrer deste livro: »do de tempo tude de seu 0s tipos * Considerando que no antigo territério agora ocupado pelo Cazaquistao antes da formacao ¢ consolidagao do Império Russo, no século XIX, havia hordas de ndmades em competicdo, e nao um Estado centralizado, pergun- tamos, por quais vias e de que modo surgiu o atual regime, de carater nao democratico e com alta capacidade? * Sob quais condigdes e como o Cazaquistao conseguiu 1) deixar o qua- drante dos regimes nao democraticos de baixa capacidade, como o fizeram muitos de seus vizinhos da Asia Central, e 2) mover-se firmemente na diregao do terreno demoeratico? * Como a colonia democratica modelo, a Jamaica, que seguia os padroes de processos politicos publicos de Westminster que prevaleciam antes de sua independencia, tornou-se uma democracia soberana problematica, tal como € hoje? * O que seria necessario para que a Jamaica ficasse completamente de fora do ranking dos regimes considerados democraticos, abandonar a politica dos movimentos sociais e, portanto, tornarse mais vulneravel aos guer- rilheiros, aos blocos étnicos, as mobilizacoes religiosas e as frequentes violentas lutas que incluem guerras civis, ¢ ainda ao uso da for¢a letal por miltiplos atores, inclusive criminosos? + E, pelo contrario, o que seria preciso para que a Jamaica se tornasse uma democracia com grande capacidade, com movimentos sociais frequen- tes, com atividades de grupos de interesse, com mobilizacoes de partidos politicos, com consultas formais (inclusive eleicaes competitivas) como pontos altos da atividade politica e com um amplo e bem-difundido moni- toramento dos processos politicos publicos, combinado com niveis relati- vamente baixos de violéncia politica? Imagine © que significa fazer perguntas desse tipo nao apenas sobre 0 Ca- zaquisiao ¢ sobre a Jamaica, mas sobre qualquer regime que The interessar, em qualquer lugar e em qualquer momento historico. A ideia aqui é construir uma explicacao geral para a mudanga € a variacao nos regimes, de modo a descrever 0s caminhos que os levaram na direcao da democracia ou num sentido con- trario a el Quando eu me refiro a uma “explicacao geral”, é preciso que se tenha claro que eu quero e-0 que eu nao quero dizer com isso. Eu espero poder identifi- car um conjunto de explicacées para a democratizagao ¢ para a desdemocrati- zagdo que se aplique ao Cazaquistao, & Jamaica ¢ a uma ampla gama de outros regimes, passados e presentes. Contudo, eu ndo proponho estabelecer uma lei geral, uma trajet6ria Gnica ou um tinico conjunto necessario e suficiente de condicoes para a democratizacao e seu reverso. Como uma alternativa, eu afirmo que a democratizacao e a desdemocrati- zacao dependem de alguns mecanismos causais recorrentes que se combinam mum pequeno niimero de processos necessarios. Por mecanismos eu entendo eventos que produzem os mesmos efeitos imediatos sobre um vasto conjunto de circunstancias. Na medida em que nos movemos na diregao de casos mais concretos de democratizacao, encontramos frequentemente, por exemplo, o mecanismo de formagéo de coalizio; a criagdo de uma nova forma de coorde- nacao entre atores politicos previamente autOnomos. Uma nova coalizao nao produz democratizacao por si so, mas [requentemente contribui para uma mu- danca na direcao da democratizacao, na medida em que conecta atores politi- Gos que tm interesses em resutltados democraticos e que até aquele ponto nao vordenaram seus esforgos. Por processo eu entendo combinages © sequéncias de mecanismos que oduzem algum resultado especifico. A democratizacao ¢ a desdemocratiza- Gao sao em si mesmos processos bastante amplos, mas em seu interior iremos distinguir com frequéncia alguns processos menores, tais como uma mudanea na escala no sentido ascendente, que contempla o nivel de coordenagao entre diferentes setores ou atores (TARROW & McADAM, 2005) Alem dos processos principa is de democratizacao e desdemocratizacao, ro também olha com atengao para os processos mediante os quais a ca- pacidade do Estado aumenta ou diminui, generalizando 0 processo pelo quial © Cazaquistao se recuperou de seu enfraquecimento durante a desintegracao dla Unido Soviética, bem como o processo oposto no qual o Estado Jamaicano perdeu o controle sobre as muitas atividades que acontecem em seu territorio 0s a independencia, Isso mostra como a democratizacdo e a desdemocrati- 2aea0 interagem com as alteragdes na capacidade do Estado. Depois de apre- sentar mais algumas consideragdes preliminares, 0 livro organiza as principais explicagOes para a democratizacao e a desdemocratizagao em torno de trés grupos centrais de mudangas: esi 1) Aumento ou diminuigdo da integracao entre redes de confianca inter- pessoais (por exemplo, parentesco, pertencimento religioso ¢ relacdes de mercado) e processos politicos publicos, 2) Aumento ou diminuicao no insulamento dos Pprocessos politicos publi- cos em relacao as principais desigualdades categéricas (por exemplo, as de genero, raca, etnia, religido, classe, castas) em torno das quais os cidadios organizam suas vidas cotidianas. 3) Aumento ou diminuigdo na autonomia em relagdo aos processos poli- ticos publicos por parte dos principais centros de poder (especialmente aqueles que se valem de meios coercitiyos significativos), tais como as mi- licias, as redes de clientelismo, 0 exército, ¢ as inst tuicoes religiosas, O argumento que se segue € o de que os principais processos na promocao da democracia, em todos os periodos, consistem na crescente integragao das tedes de confianga aos processos politicos piblicos, no crescente insulamento los processos politicos publicos em relacao as desigualdades categoricas ¢ na sutonomia decrescente dos principais centros de poder em relacao aos proces- sos politicos publicos. Mas explicagdes mais detalhadas serao apresentadas mais adiante. Este capitulo € voltado principalmente a descricao, com apenas algumas breves tentativas de explicagao, Os ultimos capitulos introduzem os elementos expli- eatiyos: isso: as relacoes entre democracia e confianca, entre demo- cracia ¢ desigualdade, entre democracia ¢ agrupamentos de poder autonomos. E finalmente veremos 0 quanto elementos como contingencia, negociagoes, lutas e ajustes fazem parte da politica democratica, ou seja, muito mais do que sugerido por essa definicao mais essencial de democracia, que demanda a identificagao da extensao, da igualdade, da protecao e do carater mutuamente vinculante das consultas, Veremos também que a democratizacao e a desdemo- cratizagao ocorrem de forma continua, sem qualquer garantia de se alcangar um ponto final em qualquer uma das diregdes. Primeiramente precisamos esclarecer o que precisamos explicar. Nos ire- mos nos aproximar lentamente das explicacées mais detalhadas, primeiramen- te olhando para a democracia de forma mais panoramica, com a expectativa de identificar as condicdes que normalmente acompanham a sua expansao ou a sua contracao, e s6 entio perguntaremos de forma mais sistemiatica 0 que pro- duz tais condicoes, para, entao, passarmos a uma discussao sobre os processos recorrentes que incitam a democratizacao e a desdemocratizacao e, finalmente, especificaremos com maior detalhe as causas, efeitos e consequencias desses processos recorrentes com maior detalhe. © capitulo 2 esboca o lugar da de- mocracia e da democratizagao na longa historia dos regimes, em sua maioria nao democraticos. O capitulo 3 olha de maneira mais detida para os processos de democratizacao e desdemocratizacdo. Os capitulos 4, 5 ¢ 6 analisam sepa- radamente as questoes da confianga, da desigualdade e das principais configu- racdes de poder, consideradas fendmenos cujas mudangas e interseccdes com 6s processos politicos publicos moldam a possibilidade de democratizacao e desdemocratizacao. O capitulo 7 aplica as ligdes dos capitulos 4-6 a trajetorias alternativas (por exemplo, regimes nao democraticos que ndo sao nem com alta capacidade € nem com baixa capacidade) que conduzem a democracia ow a seu oposto. O capitulo 8 apresenta conclusoes extraidas a partir do livro como um todo, incluindo especulacdes sobre o futuro da democracia. E precisamente porque as democracias em funcionamento dao mostra dos melhores feitos politicos da humanidade, e porque a democracia continua a ser ameacada em boa parte do mundo contemporaneo, que a busca na qual estamos engajados ¢ da maior urgencia. 38 2 A democracia na historia Tal como Homero nos disse hé muito tempo, a violencia inundou as vidas £ % Imaginagoes dos cidadaos na Grécia Classica, Meu colaborador, o pers- fleas clentista politico Samuel Finer, elaborou essa ideia do seguinte modo: Competitivos, possessivo: vejosos, violentos, beligerantes, gananciosos, Mipiclos, inteligentes, engenhosos ~ os gregos tinham todos os defeitos de suas ‘alidades, Eles eram sujeitos encrenqueitos, cidadaos irritados ¢ lideres ar- Wypantes ¢ exigentes” (FINER, 1: 326). Dentre outras formas de violencia, as Hiluiles-estados guerreavam frequentemente umas contra as outras, © entanto, em 431 a.C., uma delegacao sain de Esparta na direcao de “Aleinas em nome da paz, Tudo o que os atenienses precisavam fazer para evitar guerra, segundo os delegados espartanos, era parar de interferir militar e Homicamente nos aliados de Esparta naquela regiao. Os cidadaos de Atenas H¥ocaram uma assembleia geral para debater sua resposta a proposta feita { | sparta, Tanto os defensores da guerra imediata quanto da oferta de paz se Hiineiaram na assembleia. Mas Pericles, filho de Xantipo, venceu a disputa, Hicles (pensando corretamente que em caso de guerra os espartanos inva- am Atenas pela terra) recomendou a preparagao de uma batalha naval eo Heo das defesas da cidade, mas ordenou que nao se tivesse nenhuma acao ilar « menos que os espartanos atacassem. Iueidides, o primeiro grande historiador grego a tratar de eventos contem- Hiieos utilizando fontes contemporaneas, transcreveu o discurso de Péri . Iicidides concluiu 0 episodio do seguinte modo: Tais foram as palavras de Pericles. Os atenienses, persuadidos pela sa- hedoria de seu conselho, votaram como ele desejava, e responderam aos lacedemonios lespartanos] tal como ele recomendou, tanto nas questoes particulares quanto no ponto geral: eles nao fariam nada se fossem obrigados, mas estayam prontos a por em pratica as resolu- Goes para a tregua que foram estabelecidas de modo justo e imparcial mediante 0 método legal. Assim 0s enviados voltaram para casa, € no mais retornaram (TUCIDIDES, 1964: 83). A alinda de Espanta, Tebas, logo atacou os territérios afluentes de Atenas, im comegou a segunda grande guerra do Peloponeso. Formalmente, ela upenas dez anos, até a Paz de Niclas (421), Mas segundo os registros

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