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O SUJEITO E A NORMA Gerd Bornbeim Na medida exata em que o homem passa a organizara sua vida socialmen- te, desenvolve-se tumbém a dicotomia das relagdes entre sujeito e a norma. E, de saida, a dicotomia assume as feigdes de uma contraposicio que, pereebe-se logo, nio deixa de ser a propria razio de ser da dicotomia. De fato, 0 exame das relagdes entre o sujeito e a norma esbarra, desde os seus primeiros passos, ‘numa primeira constatagao, a de que os dois termos constituem-se, na relacio, ‘como dois polos antiteticos, ¢ que compete & tessitura das forgas sociais con- venciomar entre ambos alguma forma de equilfbrio; ou entdo, por vezes, reco nnhecer que o equilibtio se fa dificil e mesmo impossivel. Esta tltima alternativa parece impor-se principalmente em certos periodos ditos de transi¢a0, au de crise, € até de decadencia — termos estes dificeis de serem delimitados. Seja como for, a contraposi¢io entre sujeito norma esta no ponto de pat- tida includivel de nosso tema. Realmente, estabelecidos os dois termos, delineiase © contraste entre 0 universal e 0 singular. Pois toda norma pretence instituir-se fenquanto exigéncia universal — a universalidade pertence 20 prOprio estatuto originario da norma; sem a possibilidade de definir-se como universal desvane= eo préprio projeto da normatividade. Dai conseguir a norma fixar-se com cer twestabilidade, como se 0 seu reino transcendesse as limitagdes hist6rieas do es aco e do tempo. Compreende-se, por ai, que até mesmo em suas origens a ques tio do estabelecimento da norma enrede-s¢ imediatamente no apenas no pro- bblema de sua fundamentacio, mas, desde logo, também na resposta que se em> reste a tal fundamentagao — ej no ato inaugural o fundamento reside no ele- ‘mento divino. Digamos, entdo, que 0 universal abstrato que define toda formu Jago do deverser da norma encontra o seu respaldo no universal conereto que a propria realidade divin, E no espaco de uma certa distancia entre o universal eo individuo humano que, em todo 0 passado, constitu-se a vigencia e a legitimidade da norma, E é também na intimidade dessa distincia que pode surgir — pense-se aqui na rique 2a inédita do pensamento grego em relagio a normatividade e a justiga —a nor ‘ma enguanto problema a ser discutido. Esta problematizagio deve até ser consi- 247 dderada como um dos esteios da evolugio da cultura ocklental. Porquanto, j4 Grécia chissica, nem faltam a5 cabecas filos6licas que, adestradas na dialética ques tionadora, chegam a conclusio em tudo inquietante de que a norma nilo passa ria de mera convengio social. Tal ponto de vista aparece, no curso da historia, ide modo sem diivida excepeional, porque o que caracteriza a vigencia da norma nna sociedade humana esta justamente na sempre renovada crenga no Fundamen- to divino da norma: s40 0s deuses que falam ¢ tudo garantem. Jé por af pode-se aceder 3 compreensio da impressionante establlidade que oferecem, através dos, ‘tempos, as normas ¢ os valores morais de modo geral. As mudancas indubitavel- ‘mente existem, mas sempre no encalgo de reiteradas formas de consolidacao; «, contra todas as aparéncias, sto valores que terminam durando muito mals do {que a maiorla dos entes que configuram 0 mundo humano eo préprio homem, 4J4 0 sujeito pertence, evidentemente, a este mundo humano, o dos entes {que povoam 0 cosmos. O sujeito € simplesmente uma realidade singular, datada no espago € no tempo, que nao dura muito mais do que as promessas de uma manha. B se a norma, até mesmo em sua estabilidade, no consegue superar 0 seu estatuto tadicalmente hist6rico, € no plano do individuo que tal historicida- de ostenta a sua presenga avassaladora, Em verdade, de uma ou de outra forma, tudo € hist6rico, ¢ jd nem se percebem as vantagens da defesa de uma meta-his- toricidade. No que concerne ao individuo, ele se faz hist6rico de ponta a ponta, de tal modo que, em suas origens, € s6 impropriamente que se pode falar em sujelto. Demos razo a Marx: nos infcios, nem cabe pretender a existéncia da dicotomia sujeito-objeto; anteriormente a qualquer bipolaridade, tudo se deixa cexplicar no elemento andnimo e silencioso do trabalho, da prixis instauradora F ela que termina por constituir 0 objeto, é pelo trabalho origindrio que as coi- sas se fazem presentes ao homem, ¢ ele vai aos poucos construindo o seu mun- do. E bem mais tarde € que se vai constituindo também o sujeito. A filosofia gre- {1 nio poderia deixar de impor-se como um momento privilegiado da aurora dese despertar da subjetividade, logo secundado pela importancia em tudo de- Cisiva da Ienta contribuicao do cristianismo. Mas € 36 no fim da Idade Média e ‘nos primeizos tempos da modernidade que o sujeito passa a desenvolver a auto- ‘nomia que ainda hoje nos caracteriza — autonomia que levou no poucos auto: res a falar em antropocentrismo, contraposto 20 teocentrismo de toda a cultura anterior. Realmente, agora, nem basta falar em individuo: 0 que tem iaicio com 4 proposta do projeto burgues € essa aventura em tudo inédita do individualis ‘mo, através da qual um homem novo € arrancado de suas rafzes multimilendrias ‘O ttibuto a0 passado, quando presente, insere-se agora em coordenadas surpreen- dentemente revolucionsrias. Pretendo, nas paginas seguintes, tracar um mapeamento, ainda que incipien- te, dos pontos marcantes desse itineririo, através do qual se estabelece 0 referi- do projeto burgués em suas linhas bisicas de evolucao." (©) Bite trabalho constitu Ho-somente 0 esboso de uma anise mais ampla em via de ela boracdo, Ito explica a auséncia, nestas paginas, de qualquer referencia bibliogafica. 248 ‘Tratase, portanto, de demarcar as fronteiras em que se move o projeto but gués. E, num inventario inicial, passo a arrolar, A manelta de um itineritio a ser desenvolvido, algumas caracteristicas que se revelam esgenciais. Certamente hit ‘utras mais; limito-me, entretanto, as que se me impoem, visivelmente, como ‘mais importantes, A primeira e mais decisiva estd no cariter de aufonomia que passa a osten- taro individuo moderno. A construglo dessa autonomia atravessaintimeros as- pectos do processo social burgués jd em seus momentos iniciais. Baste lembrar aqui apenas dois t6picos, altamente ilustrativos. Um primeiro exemplo esta na ‘evolugao da arte do retrato; se a arte anterior praticamente se limitava a retratar ‘08 universais considerados concretos, como deuses, santos, herdis, res ¢ asse- melhados, 0 retrato passa agora a reproduzir a imagem do homem comum, des tiwido de qualquer nome ou atributo de realce, como, por exemplo, a figur do comerciante tal como pode ser vista na pintura flamenga tardia; 0 novo co: ‘metimento condena o retrato do universal concreto a um lento processo de de- terioragio. Outro exemplo esti na transformagao por que passa paulatinamente a biografia ca autobiografia. As Confissdes de um santo Agostinho est20 na exat antipoda do que se vé ocorter na literatura biogrifica moderna. Para o bispo de Hipona seria ocioso e desinteressante (ao menos) prender se as peripécias de uma vida enquanto descrigao de acontecimentos interessantes ou mais ou menos inti= sitados; 0 que Agostinho nos relata deve ser encarado em outra perspectiva: a do itinerrio de uma alma singulat em scus avangos de aproximagio da realidade divina, Mais uma vez, 0 que est em causa concentra-se integralmente na peda: gogla inerente ao universal concreto. J para os modemnos, a biografia passa a desvincular-se desse plano dos universais, prende-se a unicidade do singular, até alcangar a epidemia de biografias de que ja fala Nictasche. Mas 0 alcance maior da questio da autonomia pode sem diivida ser exami: ‘nado através do pensamento cartesiano. Pela primeira ver, a experiéncia do co» _gito, longe de restringir-se a um argumento destinado a desmontar a falacia céti- ‘ca, 20 modo de santo Agostinho, passa 2 desempenhar o papel completamente inovador de constituir o ponto dé pattida de todo 0 pensamento racional. O co: ito impoe-se como a primeira experiéncia absoluta — anterior 3 experiéncia do [Absoluto —, que faz.0 homem concentrar-se agora na propria realidade do pen samento, dicpensando, enquanto experiéncia primeira, qualquer arrimo que Ihe seja exterior. A nova verdade absoluta permite que se entenda que 0 individua lismo nao configura apenas uma conseqdéncia extrema de um processo histéri- co dentro do qual estamos ainda hoje situados; antes disso, 0 individualismo fun- ciona como uma espécie de a priori, como pressuposto maior que oxigenaria todo 0 projeto burgués. Realmente, o advento da burguesia representa uma re- volucio profunda, comparavel talvez tlo-somente a primeira grande revolugao na historia do homem, a que inaugura o perfodo neolitico, justamente quando ‘surge a doutrina dos dois mundos, o meramente humano e sensivel contraposto ‘a0 dos deuses, hierarquizados como 0 inferior ¢ o superior. O burgués aparece como 0 grande artifice do desmoronamento dessa doutrina através do denoda- 249 do estabelecimento do homem neste mundo, prestamente destituido de qual quer forma de dependéncia em relagio a um suposto mundo superior: Em segundo lugar, como nova caracteristica, inica-se 0 processo de valot ‘zagio do trabalbo. De fato, a inferiorizagio do trabalho, tanto no contexto do pensamento platOnico-aristotélico quanto na longa tradi¢o hebraico-cristl, passa ‘ser substitulda por sua crescente valorizagio, A ambigiidade de Lutero, que lgava 0 trabalho enquanto vinculado a oracio, cede 20s poucos o seu luger ‘uma concepgo que vé no labor humano um meio de desenvolvimento da pe: sonalidade. A afirmaglo filos6fica inicial desta nova postura est na dialética he- geliana do mestre e do escravo. Em verdade, os caminhos sociais revelar-se-iam. bem mais complicados ¢ mesmo probleméticos, mormente a partir da implanta- ‘glo do proletariado. Observe-se que, com a revolucao industrial, surge a figura ‘do engenheiro, esse ser duplo que associa a destreza das mios artesanais a0 apv- rado cAlculo da nova ciéncia da natureza; nfo hd exagero em afirmar que 0 ad- vento do engenheiro constitui o primeiro grande golpe que sofre a antiga e do- minadora definigao do homem, introduzida pelos gregos — o animal racional ‘e que repousa na dissociaga0, peculiar a toda a cultura ocidental, entre a teo- tia ea prixis, entre o homem de pensamento e o artesio, Reforga-se, por ai, aquela autonomia instauradora do homem burgues. ‘Um novo topico, que vem como que embasar tudo o que foi dito, encontra: se na introdugio da propriedade privada tal como foi convencionada pela bur- ‘guesia. Abrevio o tema dizendo que o sidito medieval, © homem subordlinad> 20 rel € a0 papa, empenhava-se em construir as muralhas da cidade ¢ mesmo as do império; o burgués, como que emoldurando os seus procedimentos de auto- afirmacio, despreocupa:se da cidade e limita-se 2 construgio do muro que pro- tege a sua propria casa. Em quarto lugar, lluminando por assim dizer toda a edificaglo burguesa, forma-se 0 capitatismo. J4 no século xvi, em Venera, grande centro da navegi- ‘gio comercial da época, funda-se o primeiro banco. No século xvil, um alemao de Leipzig considera-se um dos maiores criadores da humanidade: ele inventa ccontabilidade. © progresso econdmico perpetra uma das maiores “perversbes” dda hist6ria: 0 dinheiro, essencialmente um meio para favorecer as trocas, € pro- ‘movido a condigao de fim em si mesmo. Percebe-se que tudo € feito para alicer ‘car da maneira mais solida possivel a autonomia do homem burgw Sublinhe-se, em quinto lugar, a nova maneira de entender 0 funcionamento 0 sentido do conbecimento humano. Ja no século xv, Francis Bacon, sem que pudesse sequer imaginar todas as impilcagdes que sua afirmagio exibiria com (© advento da revolucao industrial, entendia 0 conhecimento como uma forma de poder. E coube a Descartes a tarefa de estruturar, em seu pomto de partic, funcionamento da mente humana de um modo profundamente inovador. Sabe- se do radicalismo com que 0 filésofo francés aplica a duvida metddica. Seu r= cionalismo atinge principalmente a propria natureza do conhecimento sensive’, jf por nao apresentar nenbum critério intrinseco de autojustficagao; ¢ a prolife- ragio das filosofias, por exemplo, poe de manifesto a necessidade de duvidar 250 também do conhecimento intelectual. A solugio encontrada por Descartes con siste em submeter todos os dados passiveis de serem conhecidos a um procedi ‘mento de andlise, de tal maneira que todo © observavel seja reduzido aos seus elementos mais simples. O duplo e suspeito pressuposto da posicio cartesiana cesta em crer nao somente que tal simplicidade existe, mas também em aceitar ‘que 0 elemento simples oferece uma evidéncia irrefutivel. ais elementos sin ples, postos a disposicao da mente, autorizam que se passe a0 processo de cons trugio do objeto. Por ai, a coisa se transforma em objeto. A transformagio im plica dois aspectos em tudo decisivos. © primeiro esté na intromissio do-sujeito na construglo do objeto — intromissao esta que seri subseqiientemente apro: fundada, em especial petas analises de Kant. E em segundo lugar est o fato fun- dador da moderna tecnologia: € que o objeto construido presta-se agora a mani- pulagio por parte do homem. No pano de fundo, a soberania do cogito assiste ‘a todo 0 espeticulo. Uma sexta caracteristica: acrescente-se a essa maneira revoluciondria de in: terpretar 0 conhecimento a concepeio cartesiana da liberdade. Realmente, n0 caso, pode-se tragar um estreito paralelo entre a andlise do conhecimento ¢ a da liberdade. Com Descartes, pelo conhecimento, © homem passa a ser senhor do objeto. Tal concepcdo é, digamos, complementada pela nova acepgao dali berdade. Superando as interpretagdes antigas da liberdade, a grega 1 medieval, Descartes comete o feito de restringir a liberdade ao livre-arbitrio. Nao se trata ‘mais de vencer 0 jugo dos tiranos e manter a plenitude da condiclo grega do cidadao, nem cle dominar essa outra tirania, a da carne na acepe2o paulina, e sim de afirmar que o homem, pelo livee-arbitrio, promove-se 2 condi¢io de senhor —senhor de sua escolha. Evidentemente, a historia da liberdade revelase muito complexa, pois ela se modifica sempre de acordo com o sentido da aventura hu- ‘mana; ¢ seria até cil tragar os antecedentes da concep¢o cartesiana da liberda- de. Mas, agora, a novidade concentra-se toda num Gnico ponto, verdadeiro pres- suposto de toda a doutrina: o individuo humano entendido como realidade au- noma. O conhecimento ea liberdade, em suas novas acepgdes, emprestam a autonomia como que 2 sua transparéncia. A liberdade interpretada como auto~ ‘nomia, ou como independéncia, leva, ainda hoje, qualquer jovem a repetir des: prevenidamente que a “minha liberdade comega onde termina a tua” — formu- lesta que nem de longe caheria dentro da cultura greg ou medieval, mas que poderia com toda tranqillidade ser abonada por Descartes. (© mapeamento feito, mesmo que seja incompleto, mostra-se certamente sue ficiente para que se aceda 20 sentido do homem novo que est na base do proje- to burgués, ou da modernidade, Claro que, sobre cada um dos t6picas aventar dos, seria possivel e mesmo necessirio escrever ensaios longos ¢ minudentes — trabalho este que, de resto, de uma ou outra forma, jf conta com uma biblio- ‘grifia considerdvel. Aqui, no entanto, interessa apenas teacar as linhas pontuals ‘de um quadro geral. E é justamente este quadro que nos leva a entender uma 251 nova problemitica, que configura uma sétima e iiltima caracteristica. De fato,

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