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INTRODUCAO Acscola ensina osalunosa lere a eserever orasées ¢periodos ¢ exige que interpretem e redijam textos. Algumas pessoas poderiam dizer que essa afirmacio nao é verdadeira, porquc hoje todos os pro- fessores dio aulas de redagio ede interpretagio de textos. Mas como € uma aula de redagao? O professor pe um cema na lousa, pede que osalunosescrevam sobreele,corrige oserroslocalizadosna fase. A aula de interpretacao de texto consiste em responder a um ques- tionério com perguntas que nao representam nenhum desafio in- telectual a0 aluno e que nao contribuem para o entenclimento glo- bal do texto. Muitas vezes,o professor nao se satsfaz com os textos «€ 05 rteitos de interpretagao dos livros didaticos, scleciona algum texto e faz uma bela interpretacio em classe. Seo aluno the pergun- {2 como ensergar numa produgio discursva as coisas geniais que clenela percebeu, costuma apresentar duas respostas: para analisar tum texto, é preciso ter sensbilidade; para descobrir os sentidos do texto, é necessirio Ié-lo uma, duas, ers, inkimeras vezes. [As duas respostas estio civadas de ingenuidade. Nao basta recomendar que 0 aluno Ieia atentamente o texto muitas vezes, € preciso mostrar o que se deve observar nele. A sensibilidade nio é tum dom inato, mas algo que se cultiva e se desenvolve Acualmente, os estudiosos da linguagem comecam a desenvolver uma série de teorias do discurso, em que se mostra que existe uma gramiética que preside 3 construsio do texto, Assim como ensinamos aos alunos, por exemplo, a coordenagio ¢ a subordinacio como processos de estruturagio do petiodo, preciso ensinar-Ihes a gramatica do discurso, para que eles possam, com mais eficécia, interpretar e redigir textos. O texto pode ser abordado de dois pontos de vista comple- mentares. De um lado, podem-se analisar os mecanismos sintéxicos © seminticos responséveis pela produsio do sentido: de outro, pode-se compreender 0 discurso como objeto cultural, produzido a partir de certas condicionantes histéricas, em tela- so dialbgica com outros textos. Neste livto, pretendemos tratar apenas de alguns elementos da gramética do discurso. As deter- ‘minagées ideoldgicas que incidem sobre a linguagem foram por ‘és analisadas em outros livros, que constam da bibliografia’ Nosso objetivo ndo é apresentar « teoria da anise do discurso, mas um dos projetos tedricos de anilise diseursiva que hoje se desenvolvem. Outros projetos com essa mesma finalidade esto Por isso, neste livro, nio esté a verdade, mas wma das muitas verdades a respeito da linguagem, fendmeno multiforme © heterddlito, que tem desafiado 0 homem de todas as épocas e de todos os hugates. A finalidade de um livro que apresenta elementos de uma gramatica do discurso & tornar explicitos mecanismos implicitos de estruturacio ¢ de interpretagao de textos. Quem escreve ou lé com eficigncia conhece esses procedimentos de maneira mais ou em andamento. Cada um deles tem vireudes e limit ‘menos sntuitiva. Explicité-los coneribui para que um maior nii- mero de pessoas possa, de maneira mais répida ¢ eficaz, transfor- rmar-se em bons ketores Observe-se que a concepgio em que se funda este livto & completamente diferente da que presidiu 4 claboragéo de antologiase florlégios. Na verdade, trata-se de dois conceitos de Cones tambinw Dion de andi do dco, desta Eira manual: um que © concede como um conjunto de exemplos 2 imitar e outro que 0 entende como explcitagio de mecanismos de engendramento de sentido, Na base dessas concepgies esto dois modos de avaliar 0 ato de escrever: 0 primeito considera a escritura como um gesto de reproduzir textos j produzidos; 0 outro, como produgio de sentidos a partir das possibilidades muito amplas que a gramética discursiva oferece. POR QUE UMA SEMANTICA DO DISCURSO? Em stuaio de pore, 3 aa equvale 3 uma paw em stuagio Goon sols, esanque no pogo del mesma porque ass estanque,exancad ema: porque ssi extancad, rid, «emud porque com nenhuma com, porque concu-se a site dese fo, (fo de ua porque ele doin Fos se cscs: Joi Cabra de Melo Neto. A Semantica define-se, normalmente, como “estudo do significado” ou “teoria da significagio”. Essa definigao é, entre- tanto, muito genérica para ser satisfatia. No explica, por exem- plo, qual é a unidade lingiistica cujo significado a Semintica cestuda. Nao se sabe, a partir desses conceitos, se ela se debruca sobre o morfema, a palavra, a frase ou 0 texto. Paraconceituara Semanticace maneirasacsft6ria,necessirio ppercorre, ao menos rapidamente, 2 hstéra de seu desenvolvimento.’ Esse termo fo tilizado, em fins do século xx, por Michel Bréal para dlesignaro etudo do sentido, Esse lingiistaestabeleceu que 0 objetivo desseramo do conhecimento erainvestigaras mudangasde sentido das palavras a fim de determinar os mecanismos que regulam essas alteragoes.Instiuiu ele os fundamentos de uma Seminticadiardnica, valendo-se dos conceitos desenvolvidos pela Retérica Clissica (especialmente pelos tratadosarespeito dos tropos) e pea Extilistica. Na primeira merade do século xx, nasce uma Semantica preocupada nao mais com uma abordagem diacrénica dos fatos de significago mas com sua descrigio sincrbnica. A parti dos trabalhos de J. Tres, surge uma corrente de semanticistas para os quais a finalidade desse dominio dos estudos lingiisticos ¢ estabelecer ¢ analisar os campos seminticos (chamados por alguns “campos conceptuais” ou “campos nocionais”). Um campo semintico ¢ um conjunto de unidades lexicais associadas por uma determinada estrutura subjacente. G, Matoré dé a ese tipo de estudo 0 nome de Lexicologia, porque sua unidade de base ¢ a palavea. Apesar das diferengasexistentesentte os tabalhosdosdiversoslexicélogos, todos parecem admitir, de maneira implicita ou explicita, a chamada hhipdtese de Sapit-Whorf, segundo a qual o léxico de eada lingua natural é uma forma diferente de categorizar o mundo, Porvolta dosanos 60, aparece a Semntica Estrutural. Seu fan- cdamento 60 postulado do paralelismo do plano de expressio edo pla- no de contetido. Iso significa que esa semintica parte da hipswese de que o plano de expresso & constituido de distingSes diferencias e de que acs dilerengas de expresso devem corresponder dining do plano decontetdo,consideradastracosdlistnt essa 270, a Semintica Estrutural uiliza-se, na andlise sémica, do ‘modelo fonolégico. Assim, analisa 2s unidades lexicais manifestadas {morfemas),decompondo-asem unidades subjacentes menores (cha- ‘madas unidades minimas), os semas ou tragos semnticos. E bastante conhecida, por exemplo, a anilise sémica (ou componencial) do campo lexical de “assento”, feta por B. Potter. Segundo ele, as unidades lexicais desse campo manifestam combinatérias distinas claboradas a partir de seis semas: Si = com encosto; S* = para uma pessoa; S* = com bragos: St = com pé(s) S = para sentarse: S° = com material rigido, Sctoméssemoscinco lexemasdesse campo (cadeira, poltrona, tamborete, canapé e pufe), terfamos as seguintes combinats gs os 8 ss S$ Ss cadeira oe potronn + FH tamborete = HO HR ‘canapé toe RR pufe + + Nao é nossa intengao discutir odos os conccitas envolvidos ‘numa analise sémica como a apresentada, mas mostrar seus limites cesuas dificuldades, Pode-sesustencar teoricamente quealgumasde- zenas de categorias semicas binsrias, cuja combinatéria produza milhes de combinagbes, possam estar na base de todo 0 universo semantico das linguas nacurais. No entanto, as dificuldades priti- «as para estabelecer esses universais semanticos e para defini as re- ‘gras de compatibilidade e de incompatibilidade entre essas unida- des sio de tal ordem que a anslise sémica s6 produ resultados satisftérios em campos léxicos bem delimitados, Por essa ra70, tiveram os linglistas de remunciar & idéia de dispor de matrzes se- ‘mancicas comparsveis is da fonologia para efetuar a andlis lexical Com isso, desfer-se a ilusdo de que seria possivel realizar uma des- crigio exaustiva do plano de contetido das linguas naturais. Com cefeico, uma andlise dessa ordem seria uma descrigo do conjunto das culeuras, que se acham cristaizadas em significado. Tendo fracassado 0 ambicioso projeto da Semantica Estru- tural, os lingilistas voltaram-se para aanalise de unidades maiores do que palavra. Ductot, por exemplo, debruga-se sobre os entun- ciados. Greimas toma 0 texto como unidade de andlise. Para este estudioso da linguagem, uma Semantica deve ser a) gerativa, ou seja, deve estabelecer modelos que apreen- dam os niveis de invariancia crescente do sentido de tal forma que se_perceba que diferentes elementos do ni vel de superficie podem signifcar a mesma coisa num nivel mais profundo (por exemplo, a aprovagio no ves- tibular ¢ a Arca da Alianga, no filme Os cacadores da arca perdida, significam a mesma coisa num nivel mais profundo, poder fizer: no primeiro caso, poder fzee tum curso superior: no segundo, poder vencer os inimigos) des lexicais que entram na feieura das frases, mas a pro- ducio e a interpretagio do discurso; ©) geral, ou seja, deve ter como postulado a unicidade do sentido, que pode ser manifestado por diferentes b) sintagmatica, isto é, deve explicar nao as uni planos de expressio (por um de cada vez ou por vie tios deles ao mesmo tempo: por exemplo, o conteii- do Inegagao! pode ser manifestado por um plano de expressio verbal “no” ou por uum gesto como “repe tidos movimentos horizontais da cabesa"; 0 conteti- do de uma telenovela é manifestado, a0 mesmo tempo, por um plano de expressio verbal, por um visual, ee) Vamos desenvolver alguns elementos dessa Semintica gerativa, sintagmaéticae geral coma finalidade de aumencar nossa capacidade de interpretar textos. Comecemos com um modelo de produgio do sentido, que constirui um percurso gerativo do sentido. NOTAS "Ch Algrdas Jen Greimas, 1979, . 325.27. PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO Le cove tate quate arro oxine talon, e questo fara he Turiverso a Dia sian Dante Agen Analisemos 0 texto “Apélogo dos dois escudos’, de José Jilio da Silva Ramos: CConhecem o apélogo do escudo de ouro e de prata? Eu Iho conte. No tempo da cavalria andante, dois cavaleiros armados de pon- to em branco (= com cuidado, com esmero, completamente), tendo vindo de partes opostas, encontraram-se numa encruzi- Tada em cujo vértice se via erecta uma estitua da Vitoria, a qual ‘empunhava nusma das mos uma Langa, enquanto a outra segura va um escudo, Como tivessem estacado, cada um de seu lado, ‘exclamaram a0 mesmo tempo: = Que fico escudo de ouro! = Que rico escude de prata = Como de prata? Nao vé que é de oura? = Como de ouro? Nio vé que € de prata? =O cavalo xo. ~O cleo € qe fo tm oes. Pala puza pla con qu rsmtem um con 6 oo, em combat singular, eaten graemerte edn, Nis pan devin que dos de ey pensar coo csi dade ingite dels tocv da contend “E quo cava sfms gue aque eco éde our E quco cain ama gue wjce cade de pa — oh mc ii eon 9 das bs nd a nenhum andes, Tada oe ng era pupa scala aS wnec thee ca endo de poset nome Indo pox. De orm dane mnca mas ene es onl sem havens condor todas acd qs, Esse cexto bastante singeo e, por iso, serve a0 nosso pro- Pésito de expor um modelo de produgio do sentido. Hi no texto uma oposigio entre a percepgio dos cavaleiros © ado detviche, Cada um dos cavaleiros, colocado num determi- nado ponto do espaco (respectivamente, na frente e aris), vé 0 escudo de uma mancira: um 0 vé como um objeto de ouro; 0 outro, como um objeto de prata. O derviche, a0 contritio, ten- do-se dado ao erabalho de observi-lo de mais de um angulo, sabe que 0 escudo é de ouro numa das faces ¢ de prata na outra. As diferengas de pontos de vista dos dois cavaleiros levam-nos a0 desentendimento, a uta. A maneira de © derviche considerar 0 objeto conduz ao entendimento, 20 acordo. Esse & 0 nivel mais concreto de percepgio do sentido. Num nivel ui pouco mais abstrato, percebemos que 0 escudo representa qualquer objeto de conhecimento. Temos aqui 4 passagem de um ngo-saber a um saber. Com efeito, cada um dos sujeitos cognoscentes no tinha conhecimento do objeto até © momento em que o analisa de um ponto de vista. O saber de cada um a respeito do mesmo objeto é diferente, porque & condicionado pelo ponto de vista em que cada um se coloca para apreendé-lo, estudi-lo, analisé-lo. Tendo adquiride um saber a partir de uma certa perspectiva, cada um dos sujitos atibui a seu conhecimento a marca da certeza ¢ confere a0 do outro a qualificagio de equivoco, ou seja, cada um dos sujeitos considera seu saber como saber ¢ 0 do outro como nao-saber. Isso leva a ‘uma polémica, a uma confrontagio, em que cada um pretende impor ao outro sew ponto de vista, em que cada um tenciona fazer 0 outro desqualificar 0 saber que havia adquirido anteriormente e aceitar 0 ponto de vista alhcio como verdade. O derviche, 20 ser informado da 12740 da contenda, mostra que cles rio conheciam o objeto, mas um aspecto dele, € que, por iss0, 0 saber de ambos cra, 20 mesmo tempo, certo cequivocado, Aponta a necessidade de colocar-se em mais de uma perspectiva (ou seja, passar para 0 lado oposto) na andlise de uma questo, Considerar ‘um objeto de vérias perspectivas leva & coneiliagio, que é 0 bom centendimento com os outros a partir da accitagio de seus pontos de vista. A passagem da conjungio com um ponte de vista para a conjungo com miilriplos pontos de vista implica a substicuigio da polémica pelo contrato, da confrontagio pela conciliagio. ‘Num nivel ainda mais abstrato, emos um oposigéo seman- tica: Iparcialidade/ versus /toralidade/. Ao longo da narrativa, hi uma afirmagio da /parcialidade/, quando cada um dos sujeitos manifesta seu ponto de vista, sustenta-o e nega o saber do outro. [Em seguida, no momento em que o daroés afirma que ambos tm razo e nenhum a tem, ocorre uma negagio da /parcialidade/. Depois, quando mostra que o objeto tinha faces diferentes, di-se ‘umaafiemagio da roralidade/. O cermo /parcialidadc! éoclemento semantico que, no texto, & considerado disférico, enquanto a o- talidade!¢ vista como euférica, ou seja © primeira tem um valor negativo, enquanto o segundo tem um valor positive. Observe-se que na analise caminhamos do mais concreto a0 maisabstrato, do mais complexo.2o maissimples. Na produgio, Faz~ seocaminho inverso.A categoria maisabstrata/parcialidade! versus Jrotalidade/ converte-se, num nivel de abstracio intermediaria, 2 respectivamente, em saber obtido de um tinico pontode vstaesaber adquitido de miiltiplas perspectivas. Num nivel mais concreto, essa categoria érevestidapelasafirmagesde que oescudo éfeitodeouro ou de prata.e pela constatacio de que ele é de prata e de ouro. O percurso gerativo de sentido é uma sucessio de patama- 1s, cada um dos quais suscetivel de receber uma descrigio ade- uada, que mostra como se produz se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples 20 mais complexo. No modelo ue estamos apresentando, os patamares do percurso sio txts ‘Vamos agora descrevé-los. O esquema do percurso & o seguinte: ‘Componente | Componente Sintéxico ‘Semantico Nivel Sintaxe Semnntica Estruturas | profundo | fundamental fundamental sémio- narrativas | Nivelde | Sintaxe Sernntica superficie | narraiwa arrativa Sintaxe discursiva Estruturas Discursivizagio Semintica discursiva prin {actorialzacio, Tematizagéo temporalizacio, Figuratvizacion espacializagao) Osués nivcis do percurso si00 profundo (ou fundamental), ‘narrative eo discursivo, Em cada um deesexste um componente sintéxico ¢ um componente semantico, Na gramdtica, a sintaxe faz parcomamorfologia. Enquanto estaestudaaestruurado vocabulo, aquela dedica-se a0 exame das regras que presidem as relagoes entre 0s vocibulos,&construgdo das oragées es rlagGes interoracionais. Numa eoria do discurso a sintaxe contrapée-se 3 semantica. No entanto, tem cla, em ambos os casos, uma acepeio relativamente comparivel. A sintaxe dos diferentes niveis do percurso gerativo é de ordem relacional, ou seja, € um conjunto de regras que rege o encadeamento das formas de conteiido na sucesso do discurso. Embora cla seja puramente relacional, em, assim como a sintaxc estudada pela gramética, um cardter conceptual. Exemplifiquemos esse fato. Para constituir uma ‘oragdo, combinamos um predicado a uma série de argumentos. Se unirmos um verbo de ago a um sujeito agente € a um objeco paciente,reremos uma oragao que manifesta uma acio-process. Esse esquema relacional, jf dorado de um contetido (ago, agente, paciente), pode receber diversos investimentos semanticos: 0 jardinciro colheu a rosa, a cozinheira derreteu a manteiga, etc. Se Tigarmos um verbo a um sujeito paciente, obteremos uma oragdo deprocesso. Pode-serevestiresse esquema rclacional com diferentes contetidos: a manteiga derreteu, 2 noite desceu, etc. Asintaxe dos diversos patamares do percurso tem também um cardter conceptual, o que significa que cada combinatéria de formas produz um determinado sentido. A distincio entre sintaxe € semantica nfo decorre do faco de que uma sea significativaeaoutra ‘do, mas de que a sintaxe é mais autdnoma do que asemintica, na ‘medida em que uma mesma relagio sintitica pode receber uma variedade imensa de investimentos seminticos. NIVEL FUNDAMENTAL. [A Semantica do nivel fundamental abriga as categorias semanticas que esti na base da construgio de um texto, No nosso cexemplo, a caregoria do nivel fundamental é/parcialidade/ versus /totalidadel. Em outro texto, poderia ser /natureza/ versus feulturay «em outto, vidal versus ‘morte! e assim por diante. Uma categoria semintica fundamenta-se numa diferenga, numa oposigio. No centanto, paraquedois termospossam serapreendidosconjuntamente, 2 2 preciso que tenham algo em comum e é sobre ese tao comum que se estabelece uma diferenga. Nao opomos, por cxemplo, ‘sensibilidade/ a /horizontalidade!, pois esses elementos nio tém ‘nada em comum. Contrapomos, no entanto, /masculinidade! a ‘eminilidade/, pois ambos se situam no dominio da Isexualidadel Assim, quando, no discurso politico dos conservadores, estabelece- ‘se uma oposigéo entre /democracia/ versus fcomunismol, comete- scuma vokéncia semintica, uma vezqueo primeiro rermo concere aregime politicoeo segundo, asistema econémico, nao tendo, pois, nada em comum. O contririo de democracia ¢ditadura; 0 oposto de comunismo € capitalism. Os termes opostos de uma categoria seméntica mantém entre si uma relagio de contrariedade. Sio conttirios os termos que estio em relasdo de pressuposigio reciproca, O termo ‘/masculinidade/ pressupie o cermo /feminilidade! para ganhar sentido ¢ vice-versa. Se se aplicar uma operagio de negagio a cada um dos contritios, obtém-se dois contraditérios: nfo masculinidade/ é 0 contraditério de /masculinidade/ ¢ /ndo feminilidade/ ¢ 0 de /feminilidade/. Cada um dos contraditérios implica o termo contririo daquele de que é0 contradicétio. Assim, ‘no masculinidade/ implica Neminilidadet e /ndo feminilidade! implica /masculinidade/. Os dois contraditétios (aqui, !ndo masculinidade! ¢ /nio feminilidade/) sio contritios entre si. Para distingui-los dos outros dois contritios (/masculinidade/ ¢ Hfeminilidadel), vamos chamé-los subcontriios, Pode-se, num primeiro momento, pensar que nio hé necessidade de distinguir as relagbes de contrariedade das de contraditoriedade. E preciso, no entanto, verificar que os termos que estio em relagio de contraditoriedade definem-se pela presenca eauséncia de um dado trago: /masculinidade/ versus /néo masculinidade!. Os termos em relagio de contrariedade possuem um contetido positivo cada tum. Assim, a feminilidade nfo é a auséncia de masculinidade, mas ¢ uma marca semintica espectfica No discurso, 0s rermos contrérios ou subontiris podem parecer reunidos. Teremos, ent, termes complexos(reunio dos consis ae ou net (onus dossubeoneis no a nn ‘O mito constrdi-se com a jungao de rermos opostos. No universo, mise cristio, a partir da oposicio semantica de base /divindade! ersus fuumanidadel,reremos seres complexos, como Cristo (divine dade e humanidade) ou neutrs, como osanjos (nem divindade nem, hhumanidade). No universo cultural grego, o miro doandrégino con- ‘masculino e feminine, ccbe um ser, a0 mesmo tempo, Cada um dos elementos da categoria semintica de base de tum texto recebe a qualifieagao semantica feuforial versus Idisoril © termo ao qual foi aplicada a marca /euforial € considerado um valor postivo; aquelea que foi dada a qualificagio /disforia €vis- to como um valor negativo. No nosso exemplo, a /parcialidade! € disfiricaca hotlidade!, eutrica. Buforia e disforia nao sto valo- es determinados pelo sistema axiol6gico do leitor, mas estio ins- critos no texto. Assim, dois textos podem utilizar-se da categoria de base, /naturezal versus Icivilizagao! e valorizar, de maneira dis rita, esses termos, No texto de um ecologista, a natureza certa- mente serio termo euforico ea civilizagio,o disférico. Num texto aque trate dos perigos da floresta, alvez a situacao se inverta. Da mesma forma, 0 discurso de certos fundamentalistas que pregam a.exceléncia do martiri valosizaré positivamente a morte ¢ neg tivamente a vida, a0 passo que o discurso sobrea felicidade como algo do aqui e agora possivelmente considerars a vida como valor positivo e a morte como negativ. 2 [A sintaxe do nivel fundamental abrange duas operagbes: 2 a «ssividade de um texto, ocorrem essas negagio ea assergio. Na su duas operagdes, o que significa que, dada uma categoria tal que a versus b, podem aparecer as seguintes relagées: 4) afirmagio de a, negagio de a, afirmagio de b: }) afirmagio de b, negagio de b, afitmagio de a. 2 » No “Apslogo dos dois escudos”, dada a categoria /parciali- dade! (cermo a) versus /ttalidade!(eermo 6), hd aseguinte organi- zagio sintéxica fundamental: afirmagio da /parcalidade!, quando cada um dos cavaleirosafirma seu ponto de vistas negagio da /par- Augusto Meyer, Chuva de padra, em Poesis, Rio de Janeiro, Livraria Sto Joss, 1965, p26 * Oswald de Andrade, Vico na fal, em Poesias reunidas 5. ed, Ride Janeiro, (Ghiaagio Basics, 1971, p. 125, + PylVerlan, Are postique, em Oeuwres poéiques completes, ars, Galiard 1962, p. 227 "© Cruze Souza, Alu em Poosas completa, Rio de Janeiro, Edges de Ouro, 1968, p37. " Goncalves Dias, Poesia, 4 ed, Ro de janeiro, Al. 1967, p27. "PB Shelley, Song to the man of England, em The Complete Works of Percy Bysshe Sly, New York, Random House Ics: p. 6 "TS. Blot, Fragment of an Agon, em Collected Poems, London, Faber and Faber Liited, 1968, p. 131 We Whitman, A woman waits for me, em Leaves of Grass and Selected Prose by Wal Whitman, Nev York, Random House Inc, 1950p. 85 3 SINTAXE DISCURSIVA Lum precisa de muita gua em fs pra que tadoe os poco se ease: fe reitand, de ur pra outro pogo, fem fazes cas, ero fase erase S88 a enteng-io do dacssotnco, fem que tem vara seca que de combate Jodo Cabra de Molo Neto Os esquemas narrativos si0 assumidos pelo sujcito da cenunciagio que os converte em discurso. A enunciagao é 0 ato de produgio do discurso, & uma instincia pressuposta pelo enuncia- do (produto da enunciasio). Ao realizarse, ela deixa marcas no discurso que cons tir ou nfo a enunciagio no interior do enunciado. Quando se diz “Bu afirmo que 0 quadrado da hiporenusa ¢ igual 3 soma do aquadrado dos catetos’, o enunciador coloca o sujeito da enunciagao (cu) eo at0 de enunciar (afiemo) no interior do enunciado. Quan- do se diz “O quadrado da hipotenusa ¢ igual & soma do quadrado dos catetos", deixa-se fora do enunciado 0 simulacro do ato de cenunciar. Mesmo quando os elementos da enunciasio no apare~ ccem no enunciado, a enunciagio existe, uma vex que nenhuma frase se enuncia sozinha. Hi sempre alguém (um eu) que diz-que i. Por exemplo, 0 enunciador pode reprodu- 56 ‘© quadrado da hipotenusa ¢ igual 3 soma do quadrado dos cateto. ‘Mesmo quando se simula a enunciagio dentro do enunciado, de tal forma que se diga “Eu digo que a Tecra gira em torno do Sol”, haverd ainda assim uma instincia pressuposta que tend produzido «esse enuinciado: “Eu digo (Eu digo que a Terra gira em rorno do Sol”, Isso implica que & preciso distinguir duas instincias: 0 eu pressuposto ¢ 0 eu projetado no interior do enunciado, Teotica- rence, essa duas instincias nfo se confundem: a do ew pressu- posto éa do enunciador ea do eu projetado no interior do enun- ado € a do narrados. Como a cada eu corresponde um tu, hi um ‘4 pressuposto, o enunciatirio, « um tu projetado no interior do ‘nunciado, 0 narratiio, Além disso, o narrador pode data palavra 4 personagens, que falam em discurso direc, instaurando-se en- to como eu ¢ estabelecendo aqueles com quem falam como s Nese nivel, eemos o interlocutor e o interlocutiio. Onunciadoreo enunciatirio so oautare oleitor. Naosio ‘oautore oleitor reais, de carne e osso, mas.o autor eo letor impli- ) as figuras de pensamenco, No procedimento da ilustragao, 0 narrador enuncia uma afirmagio geral e dé exemplos com a finalidade de comprové-la, 7s % Dos que ascendem ao principado pelo crime Hi duas maneiras de romar-se principe e que no se podem acti- buir totalmente fortuna ou ao mérito, Nao me parece bem, por- tanto, dcixarde falarnestes casos, se bem que deles se pudese falar _maisdetidamente onde trata das repiblica. tas maneiras so: chegarao principado pela maldade, por vias celeradas,contriiasa todas eishumanas edivinas: eromar-se principe por mereé do favorde seus conterrincos. Para nos reerirmos ao primero destes modos, apresentaei dos exemplos, ur antigo e outeo moderno, sementrar,contudo, no mérito desta pare, pois julgo que bastaria a.alguém imité-los se estivese em condicio de devé-lo fazer. Agitocles Siciliano tornou-se tei de Siracusa, sendo no 6 de impura mas também de condigao abjeta. Filho de um olciro, teve sempre vida eriminosa na sua mocidade, Acompanhava as suas maldades de tanto vigor de inimo e de corpo que, ingres- sando na milicia, chegou a ser pretor de Siracusa, por forga da- ucla maldade. Nest posto, deliberou tornar-se principe e man- ter, pela violencia e sem favor dos outros, aquele poder que Ihe fora concedide por acordo entte todos Accra deste seu designio,entendle-se com Amilear,cartaginés {que estava com seus exércitosna Sicilia, certa man, reunis 0 povo eo Senado de Siracusa, como se ele tivesse de consultilo sobre os negsciospiblicos. Ea um sinal combinado fez que seus soldados marasem rodos os senarese 0s homens mais ticos da cidade. Morto estes, apoderou-se do governo daquela cidade € 0 conservou sem nenhuma hostlidade por parte dos edadios." No nivel narrativo, temos a passagem de um estado de disjungio com o poder para um estado de conjungio com ele (ascensio ao principado). No capitulo anterior, o narrador estudara duas formas de como essa mudanga de estado pode operar-se: por merecimento ou por sorte (= fortuna), Nesse capitulo, comeca por uma afirmagio gera: hi duas outras formas de um homem comum ascender ao principado, por meio de crimes ou mediante a escolha de seus concidadios. Na verdade, essas duas maneiras so esquemas narrativos distintos. Na primeira, um sujeito desapossa outro(s) de seu poder, tomando-o para si. Na segunda, outros atribuem © poder @ um sujito. Enunciado o esquema narrativo basico da primeira forma dde chegada ao poder: desapossamento, tematizado por crime ¢ to- ‘mada do poder, o narrador vairelatar dois casos particulares(nesse fragmento, apresentamos apenas um) que confirmam a verdade geral exposta. Por isso, a narrativa de como Agitocles Siciliano as- ‘cendeu ao principado é a particularizagéo do prine(pio narrative geral jd exposto. Temos, entio, 0 argumento por ilustragio. No «aso, 0 recurso argumentativo utlizado pelo narrador € inteiramente adequado, porque © caso particular comprova a verdade geral enunciada e nenhum outro exemplo pode desmen- tila, Com efeito, mesmo que arrobissemos centenas de outros «casos para mostrar que se pode atingir © principado de outras manciras, 0 principio exposto pelo narrador permaneceria vi do, pois um tinico exemplar é suficiente para assegurar que se pode atingir 0 principado mediante erime. procedimento da ilustragao ¢ bastante adequado, quan- do se mostram varias maneiras de ser ou de fazer, porque, nesse «caso, 0s contra-exemplos nao destroem a afirmagio geral. Nao costtuma ser boa a utilizagio desse recurso quando a afirmasio getal engloba uma totalidade. Se disséssemos que todos os in- gleses sao secos ¢ déssemos um exemplo para ilustrar 0 que alirmamos, nossa argumentasio poderia scr destruida por um tnico contra-exemplo, Na verdade, bastaria mostrar que hé um Ainico inglés que se caracterize pelo calor humano para demons- trar que nem todos os ingleses sio secos. ‘As chamadas fleur de pensamento também sio empregadas pelo enunciador para fazer 0 enunciatério crer naquilo que ele dit “Todos os manuais de reérica aludem A dificuldade de siste- rmatizar as figuras de pensamento, Uma dessas dificuldades reside no fato de que uma figura pode ser consticuidade outraoudeoutras. Por cexemplo, uma antitese pode ser consttuida de duas hipérboles: ‘Agora sobre as nuvens os subiam/ as ondas de Netuno furibundo, agora ve parece que desciam/ as incimas encranhasdo Profundo.* n 7% Isso significa que nem todas as figuras de pensamento per- tencem & mesma ordem de fendmenos. Hi algumas figuras de pen samento que se constroem a partir de relagées seminticas ¢ outras ‘que se estabelecem a partir de mecanismos da sintaxe discursva. E destas que vamos tratar agora Hi duas inscancias no discurso: a do enunciado ¢ a da cenunciagio, Nao se pensa aqui na instincia da emunciagao pressu- posta por todo enunciado, masnas marcas deixadas pela enunciagao no enunciado (por exemplo, pronomes pessoais ¢ possessivos, adjetivos c advérbios apreciativos, déiticos temporais e espaciais, ‘verbos performativos), Com as marcas da enunciasio deixadas no enunciado pode-se reconstruir o ato enunciativo. Este nio & da cordem do inefivel, mas é tio material quanto o enunciado, na ‘medida em que cle se enuncia, Podemos distinguis, a enunciagio enunciada e o enunciado enunciado. Aquela ¢o.con- junto de elementos lingtisticos que indica as pessoas, os espagos & no texto, ‘8 empos da enunciagio, bem como todasasavaliagbes, julgamen- tos, pontos de vista que sio de responsabilidade do ev, revelados pot adjetivos, substantivos, verbos, etc. O enunciado enunciado & ‘0 produto da enunciagio despido das marcas enunciativas. Hi assim clementos do texto que remetem a instincia da enunciasio (o ew inscrito no discurso) ¢ elementos que se referem ’ inseancia do emunciado (nio ev). Por exemplo, quando na fabu- |a do lobo e do cordeiro, de Fedro, se afirma a respeito do lobo “Entio o ladrio...”, 0 termo utilizado encerra uma avaliagio do narrador, o que faz dele um clemento da enunciagio enunciada, (© enunciador pode, em fungao de suas estrarégias para fazer cet, construir discursos em que haja um acordo entre enun- ciado ¢ enunciagio ou discursos em que haja conflitos entre essas duas instancias. E preciso sempre lembrar que a discordéncia en- tre enunciado e enunciagio nao & um desacordo entre um con- tetido manifestado e uma intengio comunicativa inefivel, uma vex que as tinicas intengdes do sujeito que se podem apreender esti scritas no discurso. Isso quer dizer que 0 conflito pode estabelecer-se entre 0 enunciado e a enunciagio enunciada, ou seja, as marcas deixadas pela enunciagio no enunciado, os ele- _mentos do discurso que remetem ao ew que 0 orga Esses dois modos de construir 0 discurso impdem duas maneiras distintas de ler. No caso de um acordo entre enunciado «c enunciagio, 0 discurso x deve se lido como X; no caso oposto, © discurso x deve ser entendido como nao x. £ 0 caso, por exemplo, da ironia, quando 0 enunciador diz algo que deve ser compreen- dido como seu contritio. Vamos descrever algumas figuras de pensamento. Antes, porém, cabe um lembrete. Como essas figuras ret6ricas so usadas como estratégia de persuasio, no h4 nenhum interesse em apreender figuras isoladas, como fazem os manuais escolares. O {que importa é mostrar sua Fungo na economia geral de produgio de sentido de um texto ‘As oposigées entre enunciado e enunciagio podem ser de dois tipos: categéricas e graduais. Estas se expressam como mais ‘ou menos; aquelas, como afirmagio © negagio. A partir dai, produzem-se varios tipos de relagdes No ambito das oposigdes categdricas Antifrase ou Ironia Quando se afirma no enu jo ese nega na enunciagso, es tabelece-se a Figura que a retérica denominou ancifiase ou ironia Negrinha era uma pobre defi de sete anos. Preta? Nao; fusca, rulatinka escura, de cabels rugose olhosassustados Naseera na senzala, de mie eserava, eseus primeiros anos vivea-os peloscantosescuros da cozinha, sobre velhaesterae taposimun- dos. Sempre escondida, que a patroa nio gostava de eriangas Bxelente senhora, a patroa: Gorda, ria, dona do mundo, ami- mada dos padres, com lugar certo na igteja © camarote de huxo ” reservado no eu. Entaladas as banhas no rono (uma cadeira de balango na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas eo vigé- rio, dando audiéncias,discutindo o tempo. Uma vircuasasenho- acm suma— “dama de grandes vireudes apostélca,estio da religio e da moral, diziao reverendo. ‘Grima a Dona Inicia ‘A-exclente Dona Indcia era mestra na arte de judiar de criangas. ‘Vinha da excravidio, fora senhora de escravos~ e daqueasfero- 2s, amigas de ouvir canta 0 bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afzera a0 regime novo ~ essa indecéncia de negro igual a branco qualquer coisinha ~ polica! “Qualguer coisnht’ wna mucama asada ao forno porgue se enragou dela o senhor: ua novela de retho porque die: “Como € ruin sn © 13 de maio tirou-the das mos o azorrague, mas nfo Ihe titou dda alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os freness. nocente derivative. ~ Ail Comoaliviaa gente umaboaroda decoctes bem fincados.. [Nesseconto,onarradormostraaoposigioentreamanciracomo cfetivamente &dlona Inéciae.imagem que dela cinham as pessoas que arodeavam (porexemplo, “damadegrandes virtudesapostélicas,esteio dareligiio eda moral”) ou queela fazia desi mesma ou desuasagbes("e ‘qualquer coisinha: a policia!”). O narrador vai pontuando 0 texto com antifrases, que destacamos. As expressdes “excelente”, “étima’", “qualquer coisinha’ “inocente derivativo” remetem & instincia do enunciado, uma vez que refletem os pontos de vista dos atores do enunciado (Dona Inécia, 0 reverendo, etc.) [4 expressBes como “mestra na arte de judiar de criangas’, Yama mucama assada 20 forno porque se engracou dela o senhor”, etc. revelam a avaliagio do enunciadora respeito de dona Inicia, Desse conflro entre enunciado e enunciagio enunciada depreende-se que, na vor do narrador, os termos do enunciado destacados querem dizer o contrtio do que dizem, Esté ai aantifase. Sabemos que “qualquer coisinha’, na voz do narrador, significa “ato extremamente violento”, porque hé um desacordo entre ‘enunciado (“qualquer coisinha’, dito pordona Inécia) ea enunciagao enunciada (“uma mucama asada ao Forno”), que nos evaa perceber «que o que se afirma no enunciado se nega na enunciacio, ‘Aantfiase, esse texto, tem a fungio de chamar a atengao para oposicio entre o ser (0 que efetvamenteé) €0 parecer de dona Indcia (aimagem que dea faziam os outrosouela mesma).O desacordo entre cnunciado e enunciagéo revela que dona Indcia se situa no ambito da ‘mentira:o que parece nio é assim como 0 que se diz ndo éo que diz. Litores Quando se nega no enunciado e se afirma na enunciagio, constréi-sc a figura que a retérica denomina ltotes, ‘Quando se diz, num certo contexto, “Voce parece nio estar passando bem’, deseja-se dizer “Voce parece estar passando mal”. Quando se diz que alguém nao & nada bobo, pode-se estar querendo dizer que € esperto. Sempre se definiu a cestabelece-se uma confusio entre mecanismo sintéxico produtor de um dado efeito de sentido e esse efeito. O mecanismo é um wes como atenuagio. Com isso, jogo de negagio e afirmagio, enquanto o efeito ¢ de atenuasio. Hi autores que distinguem dois tipos de Mores: uma em que se diz menos para dizer mais “Tenho afeigio por voce” para significar “Amo-a") ¢ outra, que é resultance de uma negagio gramatical, fem que, a0 nega, aflema-se, Na verdade, esses autores tiveram niecessidade de distinguir duas espécies de litotes, porque uma std no mbito das oposigoes graduais e outra no das oposighes categbricas, Por isso, propomos chamar litotes s6 0 segundo tipo, cenguanto o primeito seré englobado no eufemismo. Tem aga mi Tt, space qu omer bs ier que a mim no me. 30 contriro, Fameno, con- ‘ersdo, nent, sem asa nem presungo: fa ponderado ¢ rodesto,e explicase hem. Ainda nao Ihe ouvi grandes cous, nnem estas io press a quem chega de fore vive em familias 8 aque the ouvisiointressances." O narrador, o Conselheiro Aires, nega no enunciado que “Tristdo Ihe desagrade; em seguida, numa seqiiéncia de enunciagio al a cnunciada, afirma que ocorreo contrério eenumeraas qualidades do rapaz. Do estrito ponto de vista lingistico, a frase “a mim néo me desagrada’, ndo pressupde necessariamente que Tristio lhe agrade. A afirmagio 56 surge da oposi¢io entre enunci lo e enunciagao ‘enunciada, No entanto, por que empregar a litotes ¢ no uma afirmasio categérica? Porque a litotes em lugar de uma afirmagio clara produz. um efeito de atenuacio. Embora Tristio nao desagrade a0 Conselheito, este nao revela grande entusiasmo pelo rapaz. E para «se feito de sentido que o narrador chama a atengio do narratério. Poderia causarestranhezao ato de termosconsideradoa frase “amim no me desagrada’ como elemento do enunciado, uma ver ue estd ela em primeira pessoa, No entanto, cabe lembrar que se trata de um jogo do eu. Na verdade, 0 ponto de vista do ex nareador no estd no dito, mas no dizer. ‘Temos como que dois eu: 0 da ‘enunciagdo € o do enunciado. © primeito nao demonstra muito ‘entusiasmo pela pessoa que agradavaa todos, mas vénela uma série de qualidades; o segundo nega que o rapaz Ihe desagrade. Preterigéo Quando se airma no enunciado e se nega explicitamente na «nunciagao (endo implicitamentecomo naantifiase),ocorreafigura ‘que a retdrica denominou preterigao. Nesse caso, 0 enunciador afirma textualmente que nao pretende dizer o que disse, simula nao querer dizer 0 que, contudo, disse claramente. Um belo excmplo de pretetigao ocorre na pega filio César, de Shakespeare. Anténio, «em seu discurso no sepultamento de César (cena i do terceiro ato), desaprovaaopinio de Brutussobre Césare, ao mesmo tempo, nega explicitamente que o faca; glorfica © morta ¢ nega que o esteja fazendo. O narradorenumeraasacusagbesde Brutusa Césareafirma ue Brucus é um homem honrado, Entretanto, em seguida elenca fatos (enunciado) que contrariam a opinigo de Brutus. Com isso slorifica César e desaprova Brutus, embora negue explicitamente ‘que o esteja fizendo, Amigos, romanos, compatrotas, prestai-me atencio! Estow aqui ‘para sepultar César, nao para gorifccto. © mal que fazer 0s hhomens perdura depois deles! Freqientemente, 0 bem. que ize ram é sepultado com os proprios ossos!_ Que assim scja com ‘César! O nobre Brutus vos disse que César era ambicioso. Se assim foi, era uma grave flka ¢ César a pagou gravemente. Aqui, com a permissio de Brutus ¢ dos demais (pois Brutus é um ho- mem honrado, como todos os demais sio homens honrados), venho falar nos funerais de César. Era meu amigo, lel justo omigo; mas Brutus diz que era ambicioso; ¢ Brutus & um ho- ‘mem honeado. Tiouxe muitos caivos para Roma, cujosresgates encheram os cofres do Estado, César, neste particular, parecia mbicioso? Quando os pobres deixavam ouvir suas vores lasti- moss, César desramava ligrimas. A ambigao deveria ter um co- ‘ago mais duro! Entrctanto, Brutus disse que ele era ambicioso € Brutus € um homem honrado, Todos vs 0 vistes nas Lapetcis: ‘rds veres eu The apresentei uma coroa real ¢, ts vezes, cle a recusou, Ito era ambigio? Entretanto, Brutus disse que cle era ambicioso, sem dividsalguma, Brutus um homem honsado, ‘Nao falo para desaprovar 0 que Brurus de, mas aqui etou para falar sobre aquilo que conhego! Todos vs jf o amastes, nfo sem motivo. Que razo, entio, vos detém, agora, para prantei-lo? Reticéneia Quando nao se diz no enunciado ¢ se diz na enunciagio, constitui-se uma figura aparentada aquela que a retérica ‘chamou reticéncia [Nese caso, suspense o enunciado e éa enunciagioenunci- ada que nos indica 0 que seria dito se 0 enunciado fosse construido. FE, em Memérias péstumas de Brds Cubas, de Machado de Assis, que encontramos © mais radical exemplo desse procedi- mento, Na enunciagio enunciada, 0 narrador dd seu ponto de vista a respeito do comportamento de Virgilia ¢ Bris Cubs os dois vadios ali postos, a repeirem o velho didlago de Adio ¢ Ena” (destaques 108808). Em seguida aparece o citulo do ca- velho dislogo de Adio ¢ Fv pitulo segui 3 Bris Cubas Virgil... Beds Cubas Virgie Bris Cubas Virgin. Virgins " © narrador, depois de remeter 0 narratério 4 meméria intertextual (a histria biblica de Adio € Eva), utiliza-se apenas das indicagoes dos interlocutores e de sinais de pontuagio, bem como de brancos e nao brancos. Assim, diz sem dizer eriando uma forte sugestio de erorismo. No dominio das oposicdes graduais 4) Quando se arenua no enunciado ¢ se intensifica na enunciagéo, ocorre a figura chamada eufemismo pela retérica, A seguir exemplificaremos esse procedimento num texto b) Quando se intensifica no enunciado ¢ se atenua na ‘enunciagao, temos a hipérbole Nessas duas figuras, é preciso que o jogo atenuasiofinten- sificacao esteja presente no texto para que o enunciatitio perceba {que se trata de uma atenuagio do sentido exato ou um exagero. No romance O coronel e 0 labisomem, de José Candido de Carvalho, 0 narrador relata, em certa passagem, seu encontro com uum lobisomem: De repente, rlembrei estar em noite de lobisomem ~ era sexta feira. || Jd um estrd era andado, quando, numa roga de man- dlioca, adveio aquela figurio de cachorro, uma pega de vite pal- mos de pélo ¢ rava [.] Dei um pulo de cabrito e preparado cstava para a guerra do lobisomem. Por descargo de consciéncia, do que nem carecia, chamei os santos de que sou devocioneiro: Jorge, Santo Onofre, Sio Jos Em presenga de tal apeacio, mais brabento apareceu a pest CCiscavao chio de solta terrae macega no longe de der bragas ou mais, Era trabalho de gelar qualquer cristio que nao levasse 0 nome de Ponciano de Azeredo Furtado, Dos olhos do lobiso- ‘mem pingava labareda, em rsco de contaminar de fogo verdal adjacente. Tanta chispa largava 0 penitence que urn cagador de paca, etando em distancia de bom respeto, cuidou que 0 maco cestivesse arcdendo. i nessa altura eu cinha pegado a seguranga de ma Figueira ¢ ki cm cima, no galho mais firme, aguardava a clberacio do lobisomem. Garrucha engailhada,s6 pedia que 0 quia de tro, Sabidio, cheio de volas € negagas, deu ele de executar macaquice que munca cuidei que tum lobisomem pudesse fazer. Aquele par de braasespava aquie na esperanga de que eu pensasse ser uma siciadelese nfo uma pesoa Sozinha. O que o galholista queria € que eu, coronel de Snimo desenfreado,fosse para o barro denegrir a farda e deslus- rar a patente. Sujeico especial em lobisomem como eu nao ia cair em armadilha de pouco pau. No alto da figucra estava, no alto da figueirafiquei. " No decurso do romance, percebe-se uma oposigio entre 0 fazer ¢ 0 dizer do narrador. Nessa passagem, o narrador, que aft- mara iria enfrentar 0 lobisomem, foge dele. Com um jogo de hipérboles (Cuma pega de vinte palmos de pélo ¢ raiva’,“ciscava 0 chao de solear terra e macega no longe de dex bragas ou mais") € eufemismos ("Por descargo de consciéncia, do que nem carecia, chamei os santos de que sou devocioneiro”), 0 narrador simula uma coragem que nao teve, oculta seu medo. Mas, 20 veli-lo, desvela-, as cy Em relagio ao lobisomem, 0 enunciado intensifica 0 que a cenunciagio atenua. Ele “cscava o chao de soltar terra e macega no Tonge de der bragas ou mais’, “dos [seus] olhos pingava labareda, em risco de contaminar de Fogo o verdal adjacente” eaf, segundo o ponto de vista do narrador, lobisomem, queo enunciado descrevera como “vinte palmos de pélo craiva’, espiava aqui eld, com uma precaugio desnecessiria,alevar 0 enunciado ao pé da letra, na esperanga de que ‘© coronel “pensasse er uma stcia dees e no uma pessoa sorinha’ Em relagio a0 coronel, 0 enunciado atenua 0 que a cenunciaglo enfatiza, Observe-se, por exemplo, o perfodo “Ja nes- sa altura tinha pegado a seguranga de uma figueita,¢ ki em cima, no galho mais firme, aguardava a deliberacao do lobisomem Nele, 2 atenuagio de “aguardava a deliberagao do lobisomem contrapée-se i énfase dada & seguranga, por exemplo, pelo adjeti- ‘yo no comparativo de superioridade “mais firme”. No seu fazer persuasivo, o enunciador procuracriar efeitos de estranhamento com a finalidade de chamar a atengao do ‘enunciatério para sua mensagem. Para isso, utilza-se de recursos retéricos. Assim, o enunciatiio, por meio de uma percepgio iné- dita e inesperada, pode atentar melhor para certos elementos que «estio sendo comunicados ¢ aceitar mais facilmente o enunciado. Dizendo sem ter dito, simulando moderagio para afirmar de ma- neira enfitia, fingindo énfase para dizer dle maneira atenuada, 0 ‘enunciador quer fiver crer. Quando hé acordo entre enunciagio ‘e enunciado, 0 narrador trabalha com verdades ¢falsidades. Quan- do ele instaura um conflito entre ess duas instincias, manipula 60 segredo ¢ a mentira: 0 que parece dizer nao diz; 0 que nio parece dizer, diz, Com efcico, eses procedimentos retéricos ope- ram no imbito da simulagio (/parecer/ e /nio ser!) ou da di mulagio (Indo parecer/ ¢ /ser/). Cabe ao enunciatirio perceber esse segredo ou essa mentira no seu fazer interpretative. O acordo entre enunciado e enunciacio funda a previsibilidade, a norma- lidade, a certeza, a no contraditoriedade, enquanto desacordo constitui o terreno da imprevisibilidade, da incerteza, da anor- malidade, da labilidade, da contraditoriedade, Desse ponto de vista, os mecanismos ret6ticos no sio or hatos que se possam suprimir, mas constituem uma maneira 1 de dizer. Aliés, nio deveriam ser chamados figuras, ‘mas procedimentos, mecanismos, Pazem parte dos recursos de per- suasio do enunciatirio pelo enunciador, pois, instaurando no dis- curso o segredo ea mentira, desvelam uma nova verdade, produ- zem um novo saber, descobrem significados, encobrindo-os insubstiut NOTAS, "Goncalves Dias, Poesia, 4, ed, Rio de Janeiro, Agi, 1967. pp. 1-2. RaulPompéia,© Ateneu erica de saudades, 4. e, So Paulo, Aca 1976 pI Raimundo Correia, Anotecer em Antone Lages, rig racional, Sto Paulo, 1s, 1987, p. 129, * Herbert Danie, Passagem para o préxime sono, Ro de Janeiro, Codecri, 1982, p. 106, Graclano Ramos, Vida secas, io Paul, Martins, 1971, pp. 133-4, Clave Bile, Sonato xt, Via Lctea, em Olav Bile, Poesia, 4, ed, Rio de Jianeco, Age pp 47-8 » Machado de Assis, Memorial de Aires, em Obra completa, Ro de Janeiro, Nova Aguiar, 1979, v1, pp 1190-1 * Nicolau Maquavel, © principe: esritos politicos, 4. ed. Sio Paul, Nova Cuter, 1987, p. 35. Luis de Cares, Os Lusiads, ws, 76, 14 "© Monteiro Lobato, Negrnha, em Montero Lobato: textos escolhidos, Rio de Jancieo, Agi, 1967, pp. 746. 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E.a semantica discusiva que reveste e, por isso, concretia as mudangas de estado do nivel narrativ. Mas como se faz essa concretizagio? Analiscmos dois textos: Circa vciwo Bailando no ar, gemia inquicto vagalume: "Quem me ders, que fosse aqua Toura este, {gue arde no eterno azul, como wma eterna vl” Masa esta, itando a lua, com citime: “Padesse eu copiar o transparente lume, ‘Que, da grega coluna d gética janela, Contemplous suspiros, a fronte amada e bela!” Mas lua, fitando o sol, com azedume: “Miseral eivesse eu aquela enorme, aquela CClaridade imortal, que toda a luz resume!” ‘Maso sol, inclinando a nil capela: “Pesa-me esta brilhante auréola de nume. Enfara-me esta azul e desmedida umbela.. Por que nao nasci eu um simples vagalume?”" (O scr humano nunca est contente com 0 que é sempre almeja ser como é 0 outro. Sempre aspira «ser mais, No entanto, se est no dpice, julga que a posicio the pesae deseja ser menos. Eases dois textos dizem praticamente a mesma coisa, No nivel, narrativo, temoso reconhecimento de um estado ¢ o querer estar em conjungio com algo mais ou estar em disjungao quando se tem o -miximo dealguma coisa. Apesar desse sentido comum, os dois textos io muito diferentes. E preciso ver em que consiste ess diferenga. segundo & mais abstrato do que o primeiro. Ele fala da insatisfagio de todo ser humano com sua condigio edo consegiiente descjo de alterila. Esse texto é uma concretizagio do nivel narratvo: ‘osujeitoda narrativa 0 serhumano, osaber nao ser (reconhecimento cde um estado) aparece sob a forma da insatisfacao, 0 querer set manifesta-se como desejo, etc. O primeito texto diz basicamente a mesma coisa. Entretanto, é mais concreto: o er humana (sujito do sivel narrative) aparece sob a forma de vagalume, estela, lua, sol; 0 algo mais desejado manifesta-se como luminosidade cada vez mais intensa, tc. Osegundo texto énio figurativo ou teméticoso primeito Eum texto figurativo. TEMAS E FIGURAS Podem-se revestir os esquemas narrativosabstratos com temas ceproduzirum discurso no figurativo ou podem-se, depoisde recobrir (0s clementos narrativos com temas, concretizé-los ainda mais, reves- ‘tindo-os com figuras. Assim, tematizacio ¢ figurativizagio sio dois inveis de coneretizacio do sentido, Todos os textos tematizam o nivel narrativoe depois esse nivel temtico poderd ou nao ser figurativizado, ‘A oposigio entre tema ¢ figura remete, em principio, & coposigao abstrato/concreto. No entanto, € preciso ter em mente que conereto e abstrato nao sio ermos polares que se opdem de ‘maneira absoluca, mas constituem um continuum em que se Vai, de mancira gradual, do mais abstrato ao mais concreto, A figura €0 termo que remete a algo existente no mundo natural: érvore, vagalume, sol, correr, brincar, vermelho, quente, etc. Assim, a figura é todo contetido de qualquer lingua natural ou de qualquer sistema de representagao que tem um correspondente perceptivel no mundo natural. Considerar gradual a oposigdo concreto/ abstrato permite aplicar essa categoria a todas as palavras lexicais € nao apenas aos substantives, como sempre fez a gramitica, Quando se diz que a figura remete a0 mundo natural, pensa-se ‘Go s6 no mundo natural efetivamente existente, mas também no mundo natural construido, Eo caso, por exemplo, de um texto de fcgo cientifica em que aparega um ser que em lugar dos 1pés tenha rodinhas para se locomover, que nao tenha carne, mas ‘um revestimento de peda, etc, Esse ser € uma figura de um mundo natural construfdo. Tema é um investimento semantico, de natureza puramente conceptual, que ndo remete 20 mundo nacural ‘Temas so categorias que organizam, categorizam, ordenam os clementos do mundo natural: elegincia, vergonha, raciocinar, calculista, orgulhoso, et Js vimos que, dependendo do grau de coneretude dos ele- rmentos semanticos que revestem 0s esquemas narrativos, ha dois tipos de texto: os figurativos © os tematicos. Os primeiros eriam sum efeito de realidade, pois constroem um simulacro da realida- de, representando, dessa forma, mundo; os segundos procuram cexplicara realidade, classficam eordenam a realidade significante, estabelecendo relagées e dependéncias. Os discursos figurativos tém uma fungio descritiva ou representativa, enquanto os tcmiticos tém uma funséo predicativa ou interpretativa. Aqueles Sio feitos para simular © mundo; estes, para explici-lo, 91 2 E importante ressaltar que, quando se fala em textos figu- rativos ¢ temiticos,fala-se, respectivamente, em textos predomi- nantemente, ¢ nio exclusivamente, figurativos ¢ tematicos. Com feito, em geral, aparccem algumas figuras nos textos tematicos cou alguns temas nos textos figurativos. A classificagao decorre assim da dominancia de elementos abstratos ou concretos ¢ no de sua exclusividade. Quando tomamos um texto figurativo, precisamos desco- brit o tema subjacente as figuras, pois para que estas tenham sen kido precisam ser a concretizacio de um tema, que, por sua vee, é © revestimento de um esquema narrativo. 0 almoerve Vai entio,empacou o jumento em que eu vinha montado; fas uci, ele de dois corcovos, depois mais tts, enfim mais um, que me saci Fora da sea, com rl desasre, que o péesquerdo me ficou preso no estibo;tentoagarear-me a0 vente do animal, ‘nas jd entdo,espantado,disparou pela estrada afora Digo mal: teavou dispar. eefeivamente deu dous saltos, mas um almo- creve, que al extava,acudiua tempo de he pega area edeté- Jo, no sem esforgo nem perio. Dominado o brato, desvenc! Iheisme do estribo e pus-me de pé = Olle do que vosmecé escapon, dise almocreve F ra verdade; se 0 jumento corre por ali fora concundia-me ddevers,¢nfo si sea morte nio estara no fim do deste cabera arid, ama congestéo, qualquer tanstomo of dent, I se me fa a citnci em flor. © almocreve salvara-me tlvez a vida; era postivo; eu sengivo no sangue que me agitava © eoragio. Bom alimocreve! enquanto eu ornava 3 consciencia de mim mesmo, cle cuidava de consertatos arcs do jumento, com muito zelo€ ane. Resolvi dar-lhe trés moedas de ouro das cinco que trazia comigo: no porque tal fosse © prego da minha vida — essa era incstimavels mas porque ea uma recompensa digna da dedicagao com que ele me salvou. Esta dito, dousthe as és moedas.. = Pronto, disse ele, aprexentandlo-me a rédea da cavalgadura. ~ aqui nada espondisdeia-me, quesinda no estouer mit. — Ora qual ~ Pois nao € certo que ia morrendo? = Seo jumento corte por a for, épossve; mas, com a ajuda do Senhor,viu vosmect que néo aconteces nada Fai aos alforges, tie’ um colete velho, em eujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, ¢ durante este tempo cogite se no era excesiva a gratifiagio, se nao bastavam duas moedss. Talvez uma. Com elec, uma moeda ea bastante para lhe dar estemecs de alegria. Examine-he a toups: era urn pobre-diabo, que nunca jamais via uma mocda de ouro, Portanto, uma mocda. Tite, via teluzir luz do sol: nao a viu o almocteve, porgue eu tina: Ihe volado as costs; mas suspetou talve, entrou a falar 20 jumento de modo sigificaivo: dava-he conslhos, diza-lhe que tomas julzo, que o “senhor doutor”podia castigo; um mo- logo paternal Valha-me Deus! até oui extalar tm bejo: er 0 almoceeve que Ihe bijva a txt, = Olé exclame ~ Queia vosmecé perdoar, mas 0 diabo do bicho ext a olhar pana gence com tanta grag. Rime, hese, met-he na mao um cruzado em prat,cavalguei thor dei ‘© jumento, e segui a rrote largo, wm pouco vexado, tum pouco incerto do efeito da pratinha, Mas a algumas bragas de distancia, olhei para tris, 0 almocreve fariarme grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento, Advert que dlevia ser assim mesmo; eu pagara-The bem, pagara-lhe talvez ddemais. Meti os dedos no bolso do colece que tazia no corpo & senti umas moedas de cobre, eram os vinténs que eu devera ter dado 20 almocreve, em lugar do erwado de prata sve texto ¢ figurative, Nele representa-se © mundo com termos como cavalo, estribo, almocreve, segurar as rédeas, moedas de ouro, cruzado de prata, vinténs de cobre, etc. E necessirio ute, na leitura, enconttemos os temas subjacentes que dio sentido a esas figuras. So basicamente trés esses tem: salvacio, 0 valor da recompensa. Esses temas sio concretizagies dde esquemas narrativos: hé uma performance em que um sujeito tiraa vida de outro; essa performance, embora possivel, nao chega 4 concretizar-se porque tum rerceito sujeito impede sua realizacio; hh, em seguida, uma sangio em que o sujeito que nfo entrou em disjungdo com a vida reconhece que o terceiro sujeito € que impediu que a disjuncio se desse e, por isso, recompensao. acidente, a a ‘A performance nio realizada ¢ tematizada como um aciden- te (em outro texto poderia ser tematizada como tentativa de homi- cidio) e, posteriormente,figurativizada como 0s corcovos de um cavalo que derrubam um cavaleito da sela, que, a0 cain, prende o pé no estribo. O ato de impedir a realizagio dessa performance & tematizado como salvagioc figurativizado porsegurararédeaedeter ‘animal, A recompensa é tematizada como oferecimento de um bem material, figurativizado como di principal do texto: o valor da recompensa nio ¢ fixado pelo valor do ato, mas pelo valor de quem o faz, O narrador, 2 medida que vai desvalorizando o almocreve, vai diminuindo o valor da recompen- ito. Af aparece o tema sa, 0 que é figurativizado pelo seu valor pecunistio decrescente:trés moedas de ouro, duas, uma, um cruzado de prata, uns vineéns de cobre. O nartador deu ao almocreve um cruzado de prata, mas ar- rependeu-se pois chegou i conclusio de que pagara demais ede que deveriater-lhe dado uns vinténs de cobre. Em todo texto, temos um nivel de organizagao narrati- vva, que ser tematizado. Posteriormente, o nivel de organiza- ‘gio temitica poders ou nado ser figurativizado. O nivel tem: dé sentido ao figurativo e 0 nivel narrativo ilumina 0 temético, ‘A tematizagio pode ser manifestada diretamente, sem a cober- tura figurativa. Temos entio os textos temiticos. No entanto, no ha texto figurativo que nao tenha um nivel temitico subjacente, pois este é um patamar de concretizagio do sentido anterior & figurativizagio. Um mesmo esquema narrative pode ser tematizado de diferentes manciras. A disjungao com a vida pode tematizar-se como morte natural, assassinato, morte acidental, etc. Por sua vex, 0 mesmo cema pode ser figurativizado de diversos mods. Pode-se figurativizar © tema do exotismo com sol, palmeiras, rmulatas desnudas, samba, praias, ou ainda com pinheitos, neve, cesportes de inverno, casacos de pele GGastei tinea dias para ir do Rocio Grande ao corago de Marcela, ‘io jd cavalgando o corel do cego desejo, mas 0 asno da pacién- cia.a.um tempo manhoso e teimoso. Que, em verdade, hi dous rmcios de granjear a vontade das mulheres: 0 violento, como 0 ‘ouro de Europa, eo insinuativo, como ocsne de Leda ea chuva ‘de ouro de Dinae,trésinventos do padre Zeus, que, por esarem fora da moda, af ficam trocados no cavalo € no asn0.’ Esse texto € magnifico do ponto de vista da anilise do dis- ‘curso, pois nele Machado de Assis desvela o problema dos proce- dimencos de tematizagio ¢figurativizagao. No nivel narrativo, ocor- re a passagem de um estado de disjungio com 0 amor para um ‘estado de conjungio com ele, Essa transformagio € vematizada como conquista amorosa. O préprio narrador explica que dois temas distintos podem revesti a conjungio com © amor: 2 con- quista amorosa violenta ¢ a conquista amorosa insinuativa. A pri- meira ¢ figurativizada pelo galope imperuoso do corcel do cego

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