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1. © GENESIS ENQUANTO UM MITO ** Um conhecido teélogo slemio definiv mite, como “a expressio de realidades janserviueis em termos de fendmenos observiveis"*, Todas as estorias que ocorrem na Biblia sio mitos para o cristio devoto, quer correspondam 208 fatos histéricas ov nio, Todas as sociedades humanas tém mitos nesse sentido-e, normalmente, 0s mitos aos quais se J maior importancia so aqueles que tém menos possibidade de realizagio. A -nicsasionlidads do.mrnoce sua verdadeta estacia, pois ego exige uma demonstragao de {6 que se faz suspendendo-se a duvida critica Mas, se 0s mitos 130 significam aquilo que parece’m-significar, como vieram a ter qualquer significado? Qual € a natureza do modo esotérico \,” de comunicacao através do qual o mito parece dar “expressto a reall- Trata-se de um velho problema que recentemente tomou nova forma, pois, se 0 mito € um modo de_comunicacéo, parte da teoria incorporada aos sistemas digitals de computador deve ser relevante para seu estudo. O mérito de tal abordagem esti em chamar a atengio exata- mente para aqueles aspectos do mito que, cram antes considerados defei- © Reproduzido de Leacn, E.R. Genesis as myth. Discovery, Londres, 23(5): 20-5, malo 1962, ‘Trad. por Alba Zsluar’ Guimaries. 'Ver também Leacn, E.R. Lévi-Strauss in the Garden of Eden. Transactions of the New York Academy of Sciences, 23(4): 38696, 1961, Todas’ as indicagdes como, por exemplo (4, 3), referemse a0 versiculo ter- tire do quarto capitulo do Génssis, de acordo com's Versio Inglesa Autorizada, 2 Baarscx, HL Wa Kerygma and myth: a theological debate. Londres, S.P.C.K., Root . fae um trago comum a todc i SS : jos os $i itolégicos qu orias *S S€ fepit ri bs 50) Boe criado emesis (1,27) eé ‘depois criado novamente (2, 7). E com se dis zc hos no bastastem, ainda temos Noé no tan ne ee eae contend) a “mesma” estéria, a ‘ma outra caracteristica das esid F oe a fst constanemente estabelecendo -eategorias opost: icipic us criou o céu e a terra”; “Eles - £0 Omer, © principio ¢ 0 fim’. disse 0 Senhor", Assim sempre é verse inguagem dos técnicos da comynicagio, & primeira dessas carac- es He muito a unidade da infafmaga osit. “Inte ace sagem. Se existem apenas duas men e bitri qual den anton \opfeee tor) contra um fundo de interferéncid truido) eat os cicolha aberios ao receptor ne inerpretscdo do que ele recebe MS que sai alavra : pen iomio geese ss SLMS Qe es poe we asnaeee ee mensagem codificada confusa com interferéncia A © significado essencial de todas as outras verses Tame Oy w Sg Weve, The mathemati TSP Sak REN ge The mathemati! tery of emmansion, Us A estrutura binéria do mito © ponto de vista do antropélogo é diferente. Ele rej tum transmissor sobrenatural ¢ observa apenas uma variedade de possiveis receptores. A redundincia aqui aumenta a informagio, quer dizer, @ incerteza quanto 20 possiveis meios de decodificar_a mensagem, Isso Teplice aquele que € certamente o mais impressionante de todos os fenb- menos religiosos: a adesio apaixonada & crenca sectéria. Toda a cristan- dade compartlha um nico corpo de mitologia e é, pois, extraordinério jue os membros de cada seita crista particular sejam capazes de se con- encer que apenas eles possuem o segredo da verdade revelada. As pro- (Casi sb er dda comunicacio nos ajudam a entender esse (paradox “Porém, se 0 verdadeiro crente pode interpretar sua propria mito- Iogia da maneira que quiser, qual 6 0 principio que goversa a formagao do mito original? Serd a0 acaso que um mito assume um padréo 20 fnvés de outro qualquer? A estrutura bindria do mito sugere 0 oposto. "As oposigées bindrias so Jntrinsecas. a0 processo do pensamento humano. Qualquer descrigio do mundo necessita da diseriminagdo de categorias na forma “p € 0 que nao-p nao é”. Um objeto esté vivo ou ¢ nio se pode formular 0 conceito de “vivo” a nio set como © contririo de seu par, "morto". Assim, também os seres humanos so wardes ou nao-varbes, ¢ as pessoas do sexo oposto esto disponiveis ou nao como parceiros sexuais. Sio essas, universalmente, as mais impor- tantes oposigdes em toda a experiéncia humana. "A religido esté voltada, em toda parte, para a preocupagéo com 0 primordial, a antinomia entre a vida e a morte, procurando negar_o ‘vingulo binério entre as duas pal avras. Isso é feito por meio da eriagio ‘Ga idéia mistica de “o nao mundo”, um mundo dos mortos onde a vida 6 perpétua, Os atribatos desse outro mundo sio necessariamente aqueles {que nao sio deste mundo; a imperfeicao daqui é compensada com a per- feigdo de ld. Mas essa ordenagio l6gica das idéias traz uma conseqiiéncia desconcertante: Deus passa a pertencer ao outro mundo, O “problema” tral da religi8o consiste, portanto, em restaurar alguma espécie de pea entre o Homem e Deus. “Bisse padrdo esté incorporado & estrutura de qualquer sistema mitico. © mito primeiro discrimina entre os deuses ¢ os homens para depois ‘ocupar-se com as relagSes ¢ 0s intermediarios que ligam os homens aos deuses. ‘Tudo isso jé estava implicto em nossa definicao inical. ‘© mesmo acaiitece com as relagées sexuais. Toda sociedade humana tem regras dé incesto ¢ de exogamia. Embora variem, as regras sempre oo x ovvinwo3, ‘B1aranve Jntv> ovay| Pr aa Vous O¥SvIAIOD es sone tase ny implica que para cada homen parc, tds as et : radas por 20 menos uma distingéo. biniia: existem mulheres Go seves gd So us eng vn oka scans e tulinis di outa cage. pant gute rlnbes tavee es oa Mas aqui também somos levados ao paradoxo. Como foi no Magy Se 0 nosoeprimeros pas cram pesos de dus copes ol taribura carpe! Se ram ambos da nue dips wee ai eae meeeneiiees ane caus oc do mando sevcem times SONG eae ae ie cas infant), mes ben procmineses denon a ae elena profundas queiey pty © probent costal perenne eae ane Seva lope do nolo penttoenn sor kes s Gage oe dene eee Assim, apesar de todas as tatonbas de telogn, ct sptco do “hirano, monalimonal, mascung feminine: kptino Aegina, bea? man segs de we afiacke pan fade fe Be es ae dinungidee rg mediaio" (nese sete) € sempre sleangada com a ino Gao de uma uiceira bategoria, que ¢ “apormal” ou “anémala” em termos enor fabio dees endo. mics gen Eve oem Stora dosnt sadn & pean Yoh de tds Be SEEN de ands do mito dervaseofginalmente das te nica da Linglisea Estrtural aocada a0 some de Rome lakobson ines dovove tis itedltamentes Clie Lovano, On tee: Flos do kino seve para lustal © panipc gee eros mits dos Indios Pueblo Islan foposigi ene a vida e a morte, Neues miton, enconttamos uma iplcedattebo de cacpones sgiodlum (revso por's il) poan (ocean par money a Tait eanborin mediedor, je gto Paes eeace pat a nae Bs ein pt iro nn) utin mts an Conjunto emprgamuma(etadeiferete: sims ue pasa ate woe mmatam para iver, predatores (que matam para vvers eats duc comem Came apace Taclucores, aa matila cov ys cone eee ts mio ciaipurt ier). Por atvmulnglo, ese Gahan pal te simbolos associados traz a implicagao de que a vida e a morte ndo sf0 Taxousow, Re HALLE, M, Fundamentals of language. Mouton, 1956. apenas a cara e a coroa da mesma moeda, que a morte ndo & a conse giiéncia necesséria da vida *. 'A fig. 1 foi planejada por mim com o objetivo de mostrar uma estra- tura andloga nos quatro primeiros capitulos do Génesis. As trés faixas horizontais do diagrama correspondem (a) a estéria da criagio em sete dias, (b) a est6ria do Jardim do Eden ¢ (c) a estéria de Caim ¢ Abel O diagrama também pode ser lido verticalmente: a coluna 1 na faixa 6 corresponde a coluna 1 na faixa a, ¢ assim por diante. A andlise por- menorizada é a seguinte Faia superior Primeiro dia, (1, 1-5; no esté no diagrama.) © Céu distingvido da Terra, 2 Luz das Trevas, o Dia da Noite, a Tarde da Manhi. Segundo dia, (1, 6-8; Goluna 1 do diagrama.) Agua (fértil) em cima (chuva); gua (inférti) embaixo (mar). Mediadas pelo firmamento (céu) Terceiro dia. (1, 9-10; coluna 2 ¢ 1, 11-12; coluna 3.) © mar oposto f terra seca. Mediados pela “relva, ervas que déem sementes (cereais) ¢ vores frutfferas", que crescem na terra seca mas precisam de gua. Essas titimas so clasificadas como coisas “cuja semente esta nclas pro- prias” ¢ dessa maneira so contrastadas aos animais com elementos dos dois sexos, passaros, etc. ‘A criagéo do mundo enquanto uma entidade estética (quer dizer” morta) esté agora comipleta ¢ toda essa fase da criagdo € oposta a cris sao das coisas méveis (quer dizer, das coisas vivas) Quarto dia, (1, 13-18; coluna 4.) © sol e a lua, moves, sio colocados no firmamento, fixo, da coluna 1. A luz ¢ as trevas tornam-se alternén- cias (a vida e a morte passam a se alternar) Quinto dia. (1, 20-23; coluna 5.) Os peixes e 08 péssaros so coisas vivas que correspondem & oposigio mar/terra da coluna 2, mas também rmedeiam as oposigées da coluna 1 entre o oéu ea terra e entre a gua salgada e a agua doce. Sexto dia. (1, 24-25; coluna 6.) Gado (animais domésticos), feras (ani- mais selvagens) © coisas rastejantes, que correspondem a triade estatica TLéveSrasuss, C. The structural study of myth, In: Sentox, T. A. org. Myth: ‘a mposium, University of Indiana Press, 1955, [Trad. port.:”O ‘estado estru- tural dos mitos, In: Antropologia estrutural, Rio de Jeneizo, Tempo Brasileiro, 19734 da coluna 3. Mas apenas a relva é destinada aos animais, Todo o resto, inclusive a carne dos animais, é para o uso do Homem (1, 29-30), Pos- teriormente, no Levitico 11, as criaturas que no se encaixam nessa ordenagao exata do-mundo — como, por exemplo, as criaturas das Aguas que nao 1ém barbatanas, os animais ou pissaros que comem came ou Peixe, ete. — sao classificadas como “abominagées". AS coisas que ras- {tgjam sdo anémalas em relagdo as quatro categorias principals — Aves, Peixes. Gado ¢ Feras — e so, portanto, abominagies ab initio (Levitico 11, 41-2). Essa classificago, por sua vez, leva-nos a uma contradigao anbmala. Para permitir que os israclitas comessem gafanhotes, 0 auior Ge Leviticn 11 teve de introduzir um requisito especial na proibigio de comer coisas que rastejam: “Mas de todo inseto que voa (e que rasieja), que anda sobre quatro pés, cujas pernas traseiras sio mais compridas para saltar com clas sobre a terra, estes comereis” (vers. 21). Os pro- cessos da discriminagao bindria no poderiam ter sido levados mais longe! (1, 26-7: coluna 7.) O Homém ¢ a Mulher so criados simulta- neamente, O sistema das criaturas vivas ria sua totalidade é instruido no sentido de “scram frutiferas € se multiplicarem", mas os problemas da Nida frente 4 Alas e do Incesto frente Procriagdo nso sao encarados Je maneiraalguma, Faixa central A est6ria do Jardim do Eden. que agora se segue, desde 0 inicio enfrenta os problemas que foram evitados na primeira versao. Inicia-se novamente com a oposicao entre 0 Céu e a Terra, que é mediada por uma névoa fertilizadora saida da terra seca infértil (2, 4-6). Esse tema, que obscurece a distingdo vida/morte, € repetido. Addo, vivo, é formado do pé sem vida da terra"(3, 7), do mesmo modo que os animais (2, 19). Jardim é fertilizado por um rio que “saia do Eden” (2, 10) €. or fim, Eva, fértil, é formada de uma costela de Adio, infértil (2, 22-3) A oposigio Céu/Terra é seguida de mais oposigées — Homem/ “Jardim (2, 15), Arvore da Vida/Arvore da Morte (2, 9, 17). Esta tiltima é chamada de arvore do “conhecimento do bem € do mal”, 0 que quer dizer 0 conhecimento da diferenga sexual. E também recorrente 0 tema de que a unidade do outro mundo (Eden, Paraiso) torma-se dualidade neste mundo. Fora do Eden, 0 tio Jivide-se em quatro, repartindo o mundo em terras separadas (2, 10-14) No Eden, Adio pode existir por si s6, a Vida pode existir por si s6, mas neste mundo hé homens e mulheres, vida e morte. Isso repete 0 con- traste entre as plantas assexuadas ¢ 0$ animais com os dois sexos a0 mes- ‘mo tempo que foi enfatizado na primeira estoria. ‘As outras criaturas vivas sio agora criadas especificamente por causa da soliddo do Homem no Eden (2, 18). As categorias sio Gedo, Aves ¢ Feras, nenhuma das quais adequada para se tornar “cOnjuge” do Ho- mem. Entio Eva é finalmente tirada de uma costela de Adio... “eles so uma s6 came” (2, 18-24). ‘A comparagao da faixa a com a faixa b nesta fase nos mostra que, nna segunda estéria, Eva toma o lugar das “coisas que rastejamm” da pri- meira estéria, Assim como as Coisas Rastejantes eram andmalas em relagio 2 Peixes, Aves, Gado e Feras, também Eva é andmata dentro da oposigio Homem/Animais. E, como mediacao final (cap. 3), @ Sci: pente, coisa que rasteja, € andmala dentio da oposicio Homem/Muiher Gs artistas cristéos sempre foram sensiveis a esse fato, pois conse- guiam dar a0 monstro uma aparéncia hermafrodita, ainda que indicando alguma espécie de identificacao entre a Serpente ¢ @ propria Eva. Hugo Van der Goes fem A Queda, que se encontra no Kunsthistorisches Mu- scum de Viena} coloca Eva ¢ a Serpente na mesma pose. Miguel Angelo faz com que tanto Adio quanto Eva fitem a Serpente em adorayao, mas a Serpente tem a fisionomia de Eva®, Adio e Eva comem 0 fruto proibido € tornam-se conscientes da iferenga sexual. A morte torna-se inevitével (3, 3-8), mas, pela priv meira vez, 2 gravidez e a reprodugao tornam-se possiveis. Eva ndo engra- Vida sendo depois de ter sido expulsa do Paraiso (4, 1). Faixa inferior Caim, 0 lavrador, ¢ Abel, 0 pastor, repetem a antitese entre 0s trés primeiros ¢ os tes dltimos dias da criegdo na primeira historia. O mundo vivente de Abel grada mais a Deus (4, 4-5). Q fratrcidio de Caim compara-se a0 incesto de Adio e, por iso, Deus interroga ¢ amaldicoa Caim (4, 9-12) da mesma forma e na mesma seqiiéncia que interroga e amaldigoa Adio, Eva e a Serpente (3, 9-19). A iltima parte de 3, 16 € mais tarde repetida exatamente (4, 7); portanto, 0 pecado de Caim no foi apenas fratricidio, mas também_homossexuslidade_jncestuosa, Para que a existéncia assexuada imortal do Paraiso possa ser trocada por uma existincia heterossexual fértl do mundo real, Caim — como Adio — precisa adquirir uma esposa (4, 17). Para isso, Adio precisa eliminar uma irma, Caim um irmao.. A simetria € completa, ‘Comparagio intercultural Temata mei dala iin ds cgris de ine, padst eee is een corer ales ieee eas "Gnoobick, G. The world of man. Londres, C. W. Daniel, 1934, 66 Cteeros Kents Ctegoras antmstr Cages ets ‘eres cates Uaeaee) ‘tio cee FIRMAMENTO TERRA © ato mundo cee Fee ato Cine srinbas ‘cosas ex pares woz TREVAS DIA+SOL—NOITE LUA bia NOmTE Pe At Mir Apsadoce Terns AVES PEIXES PLANTAS nate Dro es RIO QUATRO -RIOS Coins cope semen cores ceneais FRUTAS ReLva | co1sas nasTEsANTES | GADO FERAS. Po — HOMES tpor 3 9) came Apxo EVA SERPENTE EXPULSKO DO PARAISO| laridade. entre ox ‘mitos € vista na forma bindria, como neste quadro, ‘Adio + Eva (como expos) Calm -+ expose Procite ig. 2. As categorias de incesto tgm uma base légica em todos os mitos. A. simi- is claramente quando si analisados seu conteédo superficial. A comparagéo entre culturas torna-se mais, facil quando representamos a andlise como um padrio sistemético de isriminagdes binérias como na fig. 2. 1} Compreende-se, entao, que Adio/Eva e Caim/Abel. sio variagées de um tema que também pode aparecer em oulras formas, como no bem conhecido mito de Edipo. O verdadeiro simbolismo nesses dois casos é quase que idéntico. Edipo, como Adio ¢ Caim, est inicialmente preso 8 terra ¢ imével. Na conclusio da versio ateniense da estéria, Edipo é um ndmade desterrado protegido pelos deuses. O mesmo é Caim (4, 14-15). ‘A Biblia inclui igualmente o contrério desse padrio. No cap. 28 do Genesis, Jacé é um desterrado solitério € um némade sob a protecéo de Deus, mas ele (32, 24-32) & renominado como Israel e, dessa mancira, recebe 0 status de um primeiro ancestral com uma base territorial autée- tone, dominado por Deus. Embora morra no Egito, Jacs é enterrado em seu proprio solo ancestral em Israel (40, 29-32, 50, 5-7), Na est6ria de Edipo, temos ¢ Esfinge de Jocasta no lugar da Ser- pente de Eva. Como Jocasta, a Esfinge € feminina; como Jocasta, a Esfinge se suicida; como a Serpente, a Esfinge conduz os homens destruigéo com a Sua habilidade verbal; como a Serpente, a Esfinge é ‘um monstro anémalo, Eva escuta as palavras da Serpente e seduz Adio para 0 incesto. Edipo resolve o enigma da Esfinge e é levado a0 incesto. Mais uma vez, 0 patricidio de Edipo toma 0 lugar do fratricidio de Caim. lids, Edipo encontra-se com Laio “num cruzamento”. Paralelos desse tipo so muito préximos para serem considerados acidentais, mas esse tipo de algebra no é familiar © mais evidéncia sera necesséria para convencer os céticos. O Génesis contém muitos outros exemplos de primeiros antepassados. Em primeiro lugar, Née sobrevive a destruigéo do mundo pelo dil vio junto com_trés filhos eas esposas deles, Antes disso, a populacio do mundo incluia trés espécies de seres: os “tilhos de Deus", as “filhas dos homens” e os “gigantes”, que eram o resultado da unido dos dois primeiros (6, 1-4). Como os genitores das noras de Noé foram todos destrufdos pelo dilivio, Noé passa a ser o tinico ancestral de toda a humanidade, sem que haja implicagdo de incesto. O cap. 9, 1-7, dirigido a Nog, € quase uma duplicata do cap. 1, 27-30, dirigido a Adao. Embora o incesto heterossexual tenha sido evitado, o tema do incesto homossexual da estdria de Caim e Abel reaparece na saga de Noé quando este, bébado, é seduzido por seu préprio filho Cam (9, 21-5). Os cana~ neus, descendentes de Cam, séo por isso amaldigoados.' (Que hé a inten- gio de um ato homossexual, é evidenciado pela linguagem: “Cam, (...) vviu a nudez do pai”. Compare-se com Levitico 18, 6-19, onde “desco- brir a nudez de” significa, de forma consistente, ter relagées sexuais com.) Em segundo lugar, Lot escapa da destruicio do mundo pelo fogo junto com duas filhas casadouras. Bébado, Lot € seduzido por suas pré- prias filhas (19, 30-8). Os moabitas e os amonitas, descendentes dessas filhas, so por isso amaldigozdos. No cap. 19, os homens de Sodoma tentam ter relagdes homossexuais com dois anjos que visitavam Lot. Este oferece suas filhas casadouras no lugar dos anjos, mas elas escapam ilesas. Dai se conclui que 0 incesto de Lot ¢ menos grave do que relagdes_he- Astesseauais com um estrangeito ¢ ainda menos grave do que felagdes homosexuals, Em terceiro lugar, 0 caso dos sodomitas © dos anjos contém ecos de “os filhos de Deus" e “as filhas dos homens", mas encadeia-se super- ficialmente com 0 eap. 18, quando Abraio recebe a visita de Deus ¢ de ois anjos que prometem’ que sua esposa Sara, envelhecida ¢_estéil, gerard um filho. Sara é meia-irma de Abraao pelo mesmo pai (20, 12) € as relagdes dele com ela so claramente incestuosas (Levitico 18, 9). Abraio cede Sara ao Fara6, dizendo que ela € sua irm& (12, 19) & faz © mesmo com o rei Abimelec (20, 2). Isaac repete 0 jogo com Abime- lec (26, 9-11), mas com uma diferenca. A esposa de Isaac, Rebeca, & filha do filho do irmio do pai dele (prima em segundo grau) e a relacao rndo € realmente incestuosa. A esteriidade de Sara é um aspecto do sea incesto. A intervengdo sobrenatural que, em ultima anélise, The assegura a geragdo de um filho evidencia que o incesto foi perdoado. O Farad ¢ Abimelee sofrem ambos punigdes Sobrenaturais por uma infragao menor, © adultério, mas Abrado, 0 marido incestuoso, scbrevive ileso. Hé outras estérias no mesmo conjunto. Agar, a escrava egipcia de Sara, gera um filho com Abraio, Ismaci, cujos descendentes so ndma- des de baixo status. O filbo de Sara, Isaac, € distinguido com status mais alto do que os filhos das concubinas de Abraio, que sfo enviados para “o pais do Leste” (ef. 0 errante Caim, que faz @ sua casa em Nod, “ao coriente do Eden”). Tsaac prefere casar-se com uma parenta a casar-se com uma mulher cananéia. O casamento de Esaii com uma hitita € carac- terizado como um pecado. Em compensacio, Jac6, seu irmao gémeo mais novo e protegido, casa-se com duas filhas do irmao de sua mae, que 6, por sua vez, filho do filho do. irmao do pai do pai de Jac. | 7 Em conjunto, essi longa série de{mitos invertidos e repetitives asse- vera: = 42) superioridade moral da endogamia entre parentes préximos; b) que 0 heréi ancestral saprado, Abraio, pode levar isso t20 longe ‘que chega a casar com sua meie-irma paterna (uma felacio incestuosa). Abrado € dessa forma igualado ao Fara6, pois os farads do Egito se ccasam regularmente com suas meias-irmas patemas; € ©) que se estabelece uma escala que coloca os vizinhos tribais dos israclitas em graus variados de inferioridade social, dependendo da natu- reza do defeito nos seus ancesirais originals em comparagao com a des- cendéncia pura de Jacd (el). © mito requer que os israclitas descendam claramente de Taré, 0 pai de Abrado, 0 que 6 € conseguido a custa de uma transgressio da regra do incesto. Mas, com a recitagio de inimeras est6rias similares, que envolvem transgressbes ainda maiores da moral sexual, as relagoes entre Abraio e Sara sobressaem por serem singularmente honradas, Assim como Adio e Eva eram honrados em comparagio com Caim e Abel, 0 incesg de Abraao-tamblm passa despercebido no mes de personagens revoltantes como Cam, as filhas de Lot e os homens de Sodoma ‘Concentrei-me aqui na questao das regras ¢ das transgressbes sexuais para mostrar como unis ultiplicidade de reneticéss, inversGes ¢ vatia- de vir a format uma “mensagem” consisente, Nao pretendo dizer Spe due Fo tao padtge eae aoe a TS cone ‘A novidade a andlise que apresentei ndo esté nos fatos mas sim rosesso. Ao invés de tomar cada mito como algo em si mesmo com um significado singular para si, assumimos, desde 0 inicio, que todo mito faz parte de usr-complexo’¢ que qualquer padrio que apareca em tum deles iri reaparecer, na mesma ou em outias vaniagdes, em outras partes do complexo; A gstrutura que € comum a todas as variagdes torna-se evidente quando as vers6es diferentes so superpostas umas as outras. Sempre que um corpo de mitologia é recitado no seu contexto reli- so, “sente-se" que tais padrdes estruturas estio presentes e que comu- ‘ican siiicadoy como £ poesia conunier-sigiticados- Mesmo-que fouvinte comum no esicja completamente consciente daquilo que foi comunicado, a ““mensagem” Ié esté num sentido bastante objetivo, Se © trabalho da programacéo pudesse ser realizado, a andlise propriamente dita poderia ser feita muito melhor por um computador do que por qual- quer ser humano. Além disso, parece evidente que padres muito seme- Thantes existem nos mais diversos tipos de mitologia, o que me parece ser um fato de grande significagio psicoldgica, socioldgica e cientifica ‘Aqui realmente estio_fendmenos observiveis que sio a expressio de realidades inobservavels, v Mas as novas experiéncias que todo esse conjunto de idéias que 0 estudo da obra de E. R. Leach permite sugerir, devem ficar com o leitor. E aqui, de fato, termina a tarefa do apresentador dos textos ¢ da obra que, neste momento, é uma espécie de fracassado mestre-de-ceri- monies. Isso porque toda apresentagdo tem sempre uma atmosfera ten- denciosa, indicendo como importante aquilo que admiramos e percebe- ‘mos mais claramente, deixando talvez de lado aspectos igualmente basi- 0s. No caso em consideracéo, foi minha intengdo demonstrar como 0 trabatho de Leach exprime tendéncias ¢ problemas que estéo no centro mesmo da Antropoogia Social inglesa, ni sendo muito facil, como € comum ocorrer, colocar os autores em gavetas fechadas e definitivas. No curso desta apresentagio, como se verificou, cruzamos com uma obra Penetrante, cristalina, ambiciosa ¢ dividida pelas contradigdes dilemas do seu meio ¢ do seu tempo. Se, como jé disse alguém muito impor- tamte, “a prova do pudim esti em comé-lo”, trata-se agora de experimen- tar € aplicar esse conjunto de idéias aquelas realidades que o leitor con- sider convenientes para estudo e reflexdo. S6 assim, creio, 0 mundo social serd melhor interpretado e entendido, e, dialeticamente, a obra fascinante de Edmund R. Leach devidamente honrada e inevitavelmente criticada e repensada, Bibliografia citada Ansxor, Hannah, 1976 — Imperialismo. A expansio do poder. Rio de Janeiro, Ed. Documentizio. 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