Você está na página 1de 38
‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, $. Paulo, 1(2}: 7-44, 2.sem, 1989 ____AQUESTAO DA MORALIDADE: da razao pratica de Kant a ética discursiva de Habermas Barbara Freitag* RESUMO: A moralidade, enquanto princfpio que orienta a acdo, permite vérias abordagens, que sugerem um tratamento interdisciplinar. Neste ensaio a autora limita-se a quatro abordagens: a filosdfica (Kant), a sociol6gica (Durkheim), a_psicogenética (Kohlberg) ¢ a discursiva (Habermas). A grade que orienta esta seleco e delimita os temas abordados € 0 estruturalismo genético de Piaget, que fornece os elementos para se pensar adequadamente a questéo em seu conjunto. O estruturalismo genético se funda na razio, inclui a sociedade na reflexdo, reconstr6i a génese do julgamento ¢ considera fundamental © discurso, Por isso, Piaget repousa em Kant, debate-se com Durkheim, prepara o terreno para Kohlberg ¢ antecipa a teorizacdo de Habermas, UNITERMOS: Moralidade: na filosofia; na sociologia; na psicologia genética; na teoria da acdo comunicativa. Introdugao Em 1978, duzentos anos atras, Kant langava sua Critica da razdo prdtica, reas- sentando a questo da moralidade em novas bases. Reinterpretando a filosofia da ilus- tracio (Rousseau, Bentham, Kant), a sociologia classica (Marx, Durkheim, Weber) de- bateu essa questo sob o dngulo da normatividade e regularidade do comportamento so- cial, enquanto a sociologia moderna (Parsons, Luhmann, Habermas) focalizou-a de duas * Professora da Universidade de Brasflia (UnB), Coordenadora do mestrado ¢ doutorado em So- ciologia. 8 FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razo pritica de Kant & ética discursiva de Habermas, ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, N(2): 7-44, 2.sem. 1989, Opticas distintas: a sistémica e a do mundo vivido. A questo da moralidade encontra, porém, uma nova expressao na ética discursiva (Apel, Wellmer, Habermas) que procu- ra, calcada nas pesquisas do estruturalismo genético (Piaget, Kohlberg), reatar 0 elo perdido com a filosofia moral de Kant, O presente artigo se propée retomar a discusso sobre a questo da moralidade a partir da dptica desse estruturalismo, discutindo quatro momentos significativos desse periodo de debate: 1. A fundamentagao filoséfica: Kant x Piaget 2. A fundamentacdo sociolégica: Durkheim x Piaget 3. A fundamentac3o psicolégica: Piaget x Kohlberg 4. A ética discursiva, uma tentativa de sintese: Habermas x Piaget A moralidade assim fundamentada permite questionar 0 positivismo sociolégico, sugerindo ainda um tratamento interdisciplinar da questao. A grade tedrica escolhida — © estruturalismo genético ~ tem uma fungio simultaneamente seletiva e delimitativa. Permite selecionar as dimensdes do debate consideradas relevantes para fundamentar teGrica e experimentalmente a questdo, ¢ permite delimitar a discussio no tempo e no espaco. Enquanto estruturalismo genético, da destaque &s estruturas I6gicas, psiquicas ¢ sociais que integra a questo da moralidade, refletindo simultaneamente a formagao dindmica dessas estruturas em termos de processo de equilibracao e desequilibragao. 1. A fandamentagéo filoséfica da questao da moralidade a) Kant e a razio prética Como € sabido, Kant estudou detalhadamente duas formas de manifestagdo da ra- Zio: a razio tedrica e a razdo pritica. A razio teérica pura permite ao sujeito (epistémico) elaborar 0 conhecimento do mundo da natureza. A razdo prética pura abre o caminho para o conhecimento do mun- do social (System der Sitten), ou seja, da sociedade. Essa distingao se impunha a Kant na medida em que atribufa uma diferenga qualitativa & natureza ¢ a sociedade, os dois mundos em que atuaria a razio, conhecendo as leis matemfticas e fisicas do mundo na- tural e fazendo as leis que regeriam 0 mundo social ou dos costumes. A qualificagdo da razo como “pura”, i., reine theoretische ou reine praktische Vernunft, exprime 0 fato de que se trata de faculdades da razéo cuja existéncia inde pende de qualquer experiéncia, Trata-se, pois, de faculdades “‘dadas”, a priori, isentas de qualquer forma de vivéncia e independentes da atuagéo do sujeito sobre o mundo. Aos instrumentos do pensamento (as categorias a priori) da razo tedrica pura, corres- Ponde o “imperativo categérico” como instrumento do julgamento moral da razio préti- FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razSo prética de Kant & éica discursiva de Habermas. 9 ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 12): 7-44, 2.em. 1988. ca pura. Em ambos os casos estes instrumentos esto dados, existem previamente a qualquer forma de experiéncia. A questio da moralidade em Kant resume-se, em tiltima instdncia, na questo do “imperativo categ6rico” que orienta a ago da razao pritica; mas 0 estudo filos6fico dessa questo permaneceria atrofiado, se ele fosse reduzido a tal imperativo. O impera- tivo categérico como instrumento privilegiado para pensar a questdo da moralidade em Kant constitui apenas um dos instruments da raz4o. Uma compreensao integral da mo- ralidade em Kant pressupée 0 conhecimento integral de sua Erkenntnistheorie, ou seja, a reflexdo das condigdes da possibilidade do conhecimento como tal. A razio pratica é 0 complemento necessério da razo tedrica. Enquanto esta per- mite ao sujeito (epistémico) conhecer as leis que regem o mundo da natureza, incluindo as leis do cosmos, do mundo organico e inorganico, a razo pritica pura desvenda as leis do mundo social, regido pela vontade ¢ liberdade dos homens. O mundo da nature- za representa para Kant o reino da necessidade, contingéncia, determinagao. © mundo social ou a sociedade, o reino da liberdade, do possfvel, da indeterminacdo. Cidadao dos dois mundos, 0 homem tem a faculdade de conhecer o primeiro (reconstruindo desvendando as suas leis) e de agir no segundo (formulando as leis sociais que devem regé-lo). © mundo da natureza representa o Sein, cuja finalidade escapa & vontade hu- mana. O mundo social ¢ 0 mundo do Sollen, cuja finalidade é definida pela vontade humana, motivo pelo qual ele constitui o sistema dos fins (System der Zwecke). No pri- meiro, o ser, valem os julgamentos cientificos; no mundo do dever ser ou dos fins, va- Jem os julgamentos morais. ‘A questio da moralidade somente surge em decorréncia dessa ‘“indeterminagao” do dever ser ou do mundo social, onde os homens tém a liberdade de fazer valer as suas vontades, fixar os seus prdprios objetivos ou fins. E por isso que nesse mundo a ago dos homens pode ser julgada segundo os critérios do bem ¢ do mal, do certo ¢ do erra- do, do justo ¢ do injusto. Os critérios do julgamento encontram-se arraigados na razio pritica pura; seu instrumento privilegiado €, como vimos, o “‘imperativo categérico”. Este se resume na seguinte sentenca: “Age de tal modo que a méxima de tua vontade possa sempre valer simultanea- mente como um princfpio para uma legislaco geral.""* (Kant, 1977a, p. 140). * Handle so, dass die Maxime Deines Willens jederzeit zugleich als Prinzip einer allgemeinen Ge~ setzgebung gelten kone. 10 FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razio pritica de Kant & ética discursiva de Habermas. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989, Para compreender a extensao ¢ profundidade desse imperativo, toma-se necessario esclarecer alguns conceitos kantianos que 0 sustentam e sem os quais ele perderia seu estatuto racional. Trata-se dos conceitos de vontade, liberdade, autonomia, meios e fins, dignidade, universalidade, dever, maxima, imperativo, entre outros. A vontade & pensa- da por Kant como a faculdade de autodeterminagao das prdprias acdes, segundo certas leis preconcebidas. Esse conceito implica a idéia da “vontade” como gesetzgebender Wille, i.é., a vontade legisladora e mais especificamente uma vontade legisladora geral (Kant, 19776, p. 64). O exerefcio da vontade pressupée por sua vez a liberdade, ou se- ja, a existéncia de um espaco indeterminado dentro do qual a vontade consegue expri- mir-se agindo, perseguindo fins pré-fixados, com meios livremente selecionados. Para Kant a liberdade nao existe sendo sob a forma de uma idéia, produzida pela razdo. Ela nao tem “realidade” fora da razo, mas sem ela nao haveria vontade. A razdo € pratica porque se toma a causa determinante da vontade, Neste sentido a propria moralidade teside no conceito da liberdade que se expressa na vontade. O conceito de autonomia est inseparavelmente ligado a idéia da liberdade; ¢ nele o principio geral da ética en- contra sua forma de expresso mais adequada (Kant, 1977b, p. 87-88). A autonomia é definida no contexto da liberdade e em contraposico & heteronomia. A natureza e as leis que a regem representam, como vimos, 0 Sein, o espaco do determinado, a hetero- nomia. © mundo social ou dos costumes representa o Sollen, o espaco indeterminado, a autonomia. A autonomia do sujeito se expressa na sua capacidade de autodeterminagao, na sua vontade legisladora de estabelecer e concretizar fins no mundo social. Esses fins (Zwecke) s6 podem ser alcangados através de certos meios. Faz. parte do imperativo ca- tegérico a exigéncia de que um ser humano jamais deve ser visto e usado como um meio mas sim, exclusivamente, como um fim em si (Kant, 1977b, p. 61). Isto significa que toda a legislacao decorrente da vontade legisladora dos homens precisa ter como fi- nalidade o homem, a espécie humana enquanto tal. Mais especificamente, a vida e a dignidade (Wurde) do homem. O imperativo categérico orienta-se, pois, segundo um valor basico, inquestionAvel ¢ universal: a dignidade da vida humana. Kant admite que no mundo social, no sistema dos fins, existem duas categorias de valores: o prego e a dignidade. Enquanto o prego representa um valor exterior ¢ a mani- festacdo de interesses particulares, a dignidade representa um valor interior, de interesse geral. A legislacao elaborada pela razio pritica precisa levar em conta, como finalidade supema, a realizagéo desse valor interior e universal: a dignidade humana. ‘Com isso atende-se a exigéncia do imperativo categérico de jamais transformar um outro homem em meio para alcangar fins particulares e egofstas (0 prego). A realizacao da dignidade humana pressupée 0 respeito miituo (Achtung) e impée conseqiientemente © respeito & lei geral que defende a dignidade humana. O valor universal da dignidade humana, transformado em finalidade ultima e universal do mundo social, é defendido ¢ respeitado por uma lei universal que por isso mesmo impée seu respeito e Ihe FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razlo prética de Kant a ética discursivade Habermas. 11 ‘Tempo Social; Rev, Sociol, USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. confere validade universal. O respeito & dignidade da pessoa humana € transferido para a lei que defende essa dignidade, que assim se torna universal e necesséria. Enquanto universal e necesséria ela é boa e justa, o que Ihe confere validade objetiva. Em conse- qiiéncia desse encadeamento de idéias ¢ conceitos, seguir as prescricées de uma lei uni- versal nao significa sujeigao heterénoma & lei e sim um ato racional de respeito & espé- cie humana, uma expresso de vontade (legisladora). Seguir essa lei significa um “de- ver”. O dever (Pflicht) 6 compreendido por Kant como sendo a necessidade de uma ago por respeito a lei (Ibid. p. 26). Seguir uma lei por dever significa seguir a instru- do racional do imperativo categérico que, em outra formulagéo, diz: “Age segundo a maxima que possa simultaneamente transformar-se na lei geral.””* (Kant, 1977b, p. 81) Resta esclarecer que Kant faz. uma distingao entre maxima e lei. A lei € um prin- cfpio objetivo, prescrevendo um comportamento que todo ser racional deve seguir. ‘A mdxima & um principio subjetivo que contém a regra pritica que a razéo deter- mina de acordo com as condigées do sujeito. Os imperativos expressam a necessidade de agir segundo certas regras. Kant distingiiu entre imperativos hiporéticos (que por sua vez podem ser probleméticos ou técnicos e assertérios ou pragmaticos) ¢ imperati- vos categéricos. Somente os imperativos categ6ricos tém valor moral. Os imperativos hipotéticos nos quais se formulam as regras de az4o para lidar com as coisas (imperati- vos técnicos) e com o bem estar (imperativos pragmiticos) encontram-se fora do ambito da questo da moralidade. Vimos anteriormente que a moralidade, enquanto manifestagao da razo pritica, € parte integrante da Erkenntnistheorie de Kant como um todo. A moralidade nao sé complementa a critica da razo te6rica pura; até certo ponto sobrepée-se a cla. Ao des- vendar as condicées da possibilidade do conhecimento do mundo (natureza), Kant havia ressaltado que a razio (te6rica) nfo tinha & sua disposicao senao dois instrumentos: a sensibilidade (formas da intuico: tempo € espago) ¢ 0 entendimento (categorias a prio- ri). Tdéias como a existéncia do mundo, a existéncia de Deus, a imortalidade da alma etc. nfo caem no Ambito da razdo tedrica, sendo fruto de uma razo especulativa, ‘‘dia- Iética”. No final da critica da razo pritica lemos, contudo, que 0 conceito de Deus, que efetivamente no pertence ao campo da fisica, pertence a0 campo da moral, como 9s demais conceitos que servem como postulados da razo prética. machen kann. * Handle nach der Maxime, die sich selbst zugleich zum allgemeinen Ge 12 FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razo prética de Kant & 6tica discursiva de Habermas. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. “Portanto, 0 conceito de Deus nao pertence originariamente a fisica, isto é, & ra- zo especulativa, mas & moral, ¢ 0 mesmo pode-se dizer dos demais conceitos da razio, como postulados desta em seu uso pritico, conforme tratamos acima.”* (Kant, 1977a, p. 274). ‘Assim, ao desvendar as condigées da possibilidade de pensar 0 mundo social, Kant parte da existéncia dessas idéias — “Deus” (a causa tiltima do mundo da natureza), “liberdade”’ ¢ ‘‘vontade”” (a causa da legislacdo do mundo social) e tantas outras — co- mo postulados sem os quais os exercicios da razio pratica e a ago no mundo social se- riam impenséveis. b) Kant x Piaget Se coube a Hegel “dialetizar”” e “historicizar” 0 pensamento kantiano, coube a Piaget fundamenté-lo empfrica ¢ experimentalmente, assegurando-Ihe uma vida nova no debate contemporaneo da moralidade. Em sua epistemologia genética, Piaget dé desta- que & contribuigao revolucionéria de Kant no campo da teoria do conhecimento ao le- vantar as duas questées centrais para 0 conhecimento: (a) como a ciéncia se torna pos- sivel?; (b) como a sociedade & (moralmente) possfvel?, buscando a resposta na atividade pensante do sujeito. Desse modo, na opinido de Piaget, Kant assentou a teoria do co- nhecimento em novas bases, sem as quais a moderna epistemologia genética seria invia- vel ‘A revolugdo copernicana consistiu em ancorar no sujeito (epistémico) a capacida- de de construgdo ¢ reconstrugao dos dois mundos: 0 da natureza e o dos costumes. As condigées da possibilidade do conhecimento cientifico e as condigées da possibilidade de legislar estéo dadas nos instrumentos do pensamento do sujeito. Kant “libertou-se definitivamente do ‘realismo’ das aparéncias para situar no su- jeito a fonte nio sé da necessidade dedutiva, mas também das diversas estruturas (espaco, tempo, causalidade etc.) que constituem a objetividade em geral e que, assim, tornam possivel a experiéncia. Ele descobriu, portanto, o papel dos quadros 4 priori ¢ a possibilidade de jufzos sintéticos a priori, juntando-se as simples liga- * Also ist der Begriff von Gott ein ursrptinglich nicht zur Physik, di. fir die spekulative Vernunft, sondern zur Moral gehoriger Begriff, und eben das kann man auch von den iébrigen Vernunfibegriffen sagen, von denen wir, als Postulaten derselben in ihrem praktischen Gebrauche, oben gehandelt haben. FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razio prética de Kant ética discursivade Habermas. 13 ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. 6es I6gicas (ou jutzos analiticos a priori) e suscetiveis de impor a percepgao e & experiéncia em geral uma estrutura compativel com a deducdo matemética.”* (Piaget, 1967, p. 22-23) A partir de Kant o sujeito (epistémico) adquiriu, assim, consisténcia e profundida- de insuspeitadas, que a psicologia e a epistemologia genéticas passariam a confirmar e consolidar. Piaget considera, no entanto, que Kant se excedeu ao atribuir as categorias a prio- ri uma consisténcia e rigidez que elas nao tém. Para Piaget, Kant pecou em pelo menos dois pontos: ignorou a génese dessas categorias ¢ néo as submeteu a um controle expe- rimental. Sua Erkenntnistheorie pertence, por isso mesmo, ao campo das epistemologias “paracientfficas” (Id. Ibid. p. 27). Gragas &s contribuig6es da moderna psicologia genética, hoje € possfvel recons- truir experimentalmente a génese das estruturas de pensamento na crianga, o que per- mite dar um estatuto de cientificidade & moderna epistemologia (genética). Se Kant estava certo em atribuir as faculdades da razio humana a competéncia de criar a ciéncia e instituir a moral, estava enganado quanto a natureza dessas faculdades. Elas no sio dadas a priori como se fossem inatas, mas se constroem a partir do nasci- mento da crianga, constituindo-se como instrumentos do pensamento no adulto apés longa génese. Elas tampouco so puras, livres de qualquer experiéncia, mas decorrem da experiéncia e vivéncia da crianga no mundo; mais especificamente, de sua acdo per- manente sobre os objetos do mundo fisico ¢ de sua interacdo com objetos (pessoas) do mundo social. A diferenca de Kant, 0 sujeito (epistémico) ndo somente constréi e re- constréi o seu conhecimento da natureza ¢ da sociedade, mas elabora, na descoberta desses mundos ¢ na aco ¢ interagdo com eles, seus instrumentos do pensamento. Os conceitos de espaco e tempo (sensibilidade), de quantidade, qualidade, causalidade etc. (entendimento), de justica, respeito 4 norma etc. (moralidade) so o fruto de uma cons- truco sistemdtica que se dé por etapas (psicogénese). Esse processo de construgéo dos proprios instrumentos do pensamento é alimentado por fontes internas (maturagdo equilibragio) e fontes externas (socializagdo familiar e transmisséo cultural), sendo pois * Kant “s'est affranchi définitivement du ‘réalisme’ des apparences pour situer dans le sujet la sour- ce, non pas seulement de la nécessité déductive, mais encore des diverses structures (espace, temps, causalité, etc.) qui constiwent Fobjectivité en général et qui rendent ainsi lexpérience pos- sible. Il a donc découvert le réle des cadres a priori, et la possibilité de jugements synthétiques a priori, $ ajoutant aux simples liaisons logiques (ou jugements analytiques 4 priori et susceptibles dimposer a la perception et & Texpérience en général une structure com- patible avec la déduction mathématique. 14 PREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razio prética de Kant a ética discursiva de Habermas. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989, impensavel sem a participagéo ativa do sujeito sem sua experiéncia e vivéncia no mundo. A. génese desses conceitos nas estruturas do pensamento da crianga para 0 adulto pode ser demonstrada experimentalmente pela psicologia genética em situagdes dialégi- cas criadas e conduzidas com 0 auxilio do método clinico (ou critico). Para as categorias da razo terica, essa génese esté ricamente documentada em trabalhos como O nascimento da inteligéncia na crianga (1937), A génese do nimero na crianca (1941), O desenvolvimento das quantidades fisicas na crianga (1941), A génese das estruturas ldgicas elementares (1959) ¢ tantos outros, desenvolvidos nas liltimas cinco décadas por Piaget ¢ sua equipe. Para as categorias da razdo pritica, essa gGnese foi descrita e analisada em trabalhos como Linguagem e pensamento na crianca (1923), O julgamento e 0 racioctnio na crianca (1924), A representagdo do mundo na crianga (1926), mas especialmente em O julgamento moral na crianga (1932). Neste tiltimo livro, Piaget detém-se longamente sobre a formagao de dois concei- tos fundamentais para a consciéncia moral da crianga: a nogao de regra social € a nocao de justica. Nas entrevistas clinicas feitas com imimeras criangas de varias idades, Piaget “descobre” a génese da moralidade, mostrando que ela se dé através de trés grandes estdgios. Num primeiro est4gio (amoralidade), verifica-se a auséncia de qualquer cons- ciéncia moral; a crianga nao tem nenhuma nogdo da regra social nem de justica. A questo da moralidade surge num estégio subseqiiente (heteronomia moral) quando a crianca desenvolve uma compreensao rudimentar das regras sociais e uma nogéo inci- piente de justiga. Nesse estdgio a regra social € percebida como imposta coervitiva- mente de fora, por uma autoridade que independe de sua vontade. A justica assume para cla os tracos do direito punitivo, i.., punico a qualquer preco, pela mera transgressao da regra. As agGes sociais sio julgadas de acordo com as conseqiiéncias objetivas, in- dependentemente das intenges. A relacdo social entre atores do mundo social perce- bida como relagao hierérquica (do mais velho ou poderoso para o mais novo ou fraco). Na auséncia da autoridade, a regra perde sua validade. Ao estégio da heteronomia mo- ral segue-se 0 estdgio da autonomia, momento em que o adolescente toma consciéncia da necessidade da regra como instrumento regulador das relagGes sociais. A regra entao € 0 resultado de um ato voluntério e consensual dos membros de um grupo, em cujo Ambito a regra tem validade, impondo 0 respeito miituo (reciprocidade). As relagdes so- ciais so percebidas como relagées horizontais, regidas pela cooperagao e solidariedade entre os membros do grupo. A nogao de justiga desenvolvida nesse estdgio corresponde a forma do direito restitutivo. As punig6es si dosadas de acordo com a gravidade do delito, buscando a reparagao da parte prejudicada. As acdes sociais so julgadas de acordo com a intengao e nao pelas conseqiiéncias objetivas. Uma regra, desde que per- cebida como necessaria e valida, é seguida mesmo na auséncia do controle da autorida- de. O sujeito pondera os atos segundo seus préprios critérios, formando seu julgamento independente da opinido ou pressio do grupo. FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razio pritica de Kant & ética discursiva de Habermas. 15 Tempo Social; Rey. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. “A partir de entio a regra € concebida como um decreto das priprias conscién- cias. Nao € mais coercitiva nem exterior: pode ser modificada e adaptada as ten- déncias do grupo. Nao constitui mais uma verdade revelada, cujo caréter sagrado resultasse de suas origens divinas e de sua permanéncia hist6rica: ela é construgao progressiva e aut6noma.’”* (Piaget, 1973a, p. 48). “... pelo fato mesmo de que a crianga se sujeitaré a certas regras de discussiio e de colaboragao, a cooperar portanto com seus préximos em toda reciprocidade (sem falso respeito pela tradicéo nem pela vontade singular deste ou daquele indivi- duo), ela vai precisamente dissociar 0 costume do ideal racional. Com efeito, é da esséncia da cooperagdo, por oposicao & coergéo social, comportar, ao lado do es- tado de fato das opinides recebidas provisoriamente, um ideal de direito funcio- nalmente implicado no proprio mecanismo da discussio e da reciprocidade.”** (ld. Ibid. p. 50). Piaget lanca para esse estgio da moralidade duas idéias centrais e de amplas con- seqiiéncias para a ética discursiva: (a) destaca a importincia do didlogo cooperativo ¢ da fundamentaco racional argumentativa da regra no contexto social; € (b) mostra co- mo a partir da discussio e da reciprocidade no grupo uma regra ideal se dissocia da re- gra tradicionalmente praticada. ‘Ao mesmo tempo que Piaget langa uma ponte para a futura teorizagéio de Haber- mas, percebe-se em seus prdprios trabalhos a forte influéncia filos6fico-epistemolégica de Kant, e a influéncia sociolégica de Durkheim. A relago do pensamento de Piaget com o de Durkheim ¢ Habermas ser objeto dos dois t6picos seguintes. Neste momento, cabe tecer algumas consideragées sobre a relaco do pensamento de Kant e Piaget. Um confronto entre Piaget e Kant em torno da questo da moralidade permite es- clarecer em que o estruturalismo genético se inspira na filosofia iluminista da razio pratica, e em que dela se afasta. * Dorénavant, la régle est congue comme un libre décret des consciences elles-mémes. Elle n'est plus coercitive ni extérieure: elle peut étre modifiée, et adaptée aux tendances du groupe. Elle ne constitue plus une vérité révelée, dont le caractere sacré tient d ses origines divines et @ sa per- ‘manance historique: elle est construction progressive et autonome. +". par le fait méme que Cenfant s'astreindra & certaines régles de discussion et de collaboration, donc d cooperer avec ses proches en toute réciprocité (sans faux respect pour la tradition ni pour la volonié singuliére de tel ou tel individu), il va précisément dissocier la coutume de Tidéal ra~ fionnel. Il est, en effet, de Cessence de la coopération, par opposition @ la contrainte sociale, de comporter a cbté de (état de fait des opinions recues provisoiremente, un idéal de droit fonctio~ rnellement impliqué dans le mécanisme méme de la discussion et de la réciprocité.” 16 FREITAG, Barbara. A questo da moralidade: da razSo prética de Kant & ética discursiva de Habermas. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. Ao refletir sobre as condiges da possibilidade da vontade legisladora como causa determinante das ages humanas, Kant abordou o tema da moralidade a partir de uma perspectiva filos6fica, epistemolégica. Ao indagar sobre os critérios segundo os quais uma crianga orienta sua aco ou julga a agdo dos outros em situag6es alternativas ou de conflito, Piaget aborda o tema da moralidade a partir de uma perspectiva psicolégica, genética, experimental. O que em Kant é um dado a priori, externo a experiéncia, 6 em Piaget o resultado de uma génese. As estruturas cognitivas maduras (pensamento formal € julgamento auténomo) sio constatadas s6 depois de completada a psicogénese, refle- tindo a interiorizagao de agGes € interacées. Em Kant a liberdade € um pressuposto de toda a argumentagao subseqiiente, um conceito inexplicado e sem explicacdo. Em Piaget a liberdade € o pensamento autono- mizado em rela 4s formas concretas da vida e do pensamento, € 0 coroamento de um longo processo (bem sucedido) de construgdo das estruturas da moralidade auténoma e do pensamento hipotético-dedutivo, Enquanto Kant situa a moralidade — sob a forma do imperativo categérico ~ no sujeito moral, Piaget a inscreve — enquanto processo de to- mada de consciéncia da regra social e de sua natureza— no sujeito empfrico concreto: a crianga em seu contexto social. A moralidade kantiana comega com a liberdade mas termina com a sujeigéo do Sujeito ao imperativo do dever (Pflicht), 0 dever de subordinacdo da prépria vontade & vontade da lei (universal). A moralidade (auténoma) de Piaget comega com a sujeicéo inquestionada e inconsciente da crianga a lei heterénoma e termina com um grito de in- dependéncia em relagao a leis que nao decorrem de um proceso argumentativo fundado ha cooperacdo € no consenso de todos. Se em Kant a méxima que orienta a ago (0 prinefpio subjetivo) se objetiva na lei universal, em Piaget a lei externa se subjetiviza e se transforma em um prinefpio ideal e subjetivo que passa a orientar a agéo moral do sujeito. Apesar das muitas diferencas apontadas entre Kant e Piaget, persiste todavia um “nticleo duro” de posigées comuns no que concerne & questo da moralidade: a crenga inabalavel na capacidade de autodeterminacao do sujeito, arraigada na faculdade da ra- zo, ¢ a recusa radical de qualquer forma de heteronomia. 2. A fundamentagao sociolégica da questio da moralidade a) A mudanga de éptica Em termos gerais, a reformulagéo sociolégica da moralidade relega o sujeito a um segundo plano. Desta forma, a existéncia objetiva da lei (ética) assume prioridade diante da consciéneia da necessidade do respeito a lei (moralidade). A dialética entre sujeito © sociedade, presente na argumentagao de Kant e Piaget, na qual cabe ao pélo FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razo pritica de Kant & ética discursiva de Habermas, 17 ‘Tempo Social; Rev. Sociol, USP, S. Paulo, 12): 7-44, 2.sem, 1989, do sujeito 0 comando do processo legislador, é redefinida, atribuindo-se exclusivamente a sociedade a competéncia de formular a lei objetiva. Ao individuo cabe sujeitar-se a ela, integrar-se no contexto societério, subordinando-se ao interesse geral. ‘A hegemonia da sociedade em face do individuo é legitimada pela afirmacao de que a sobrevivéncia do todo tem primazia sobre a sobrevivéncia do sujeito. Este, trans- formado em mero elemento ou parte integrante do todo, é despido das caracteristicas que expressavam a sua esséncia: razfo e liberdade. A sociologia positivista, em princi- pio contréria a qualquer forma de reducionismo, comete o reducionismo mais fatal: identifica sociedade com natureza, leis sociais com leis fisicas. Apesar de todas as diferengas de matiz ou de contetido entre as teorias sociol6gi- cas classicas e modernas, entre marxistas ¢ teéricos sistémicos, entre os socidlogos po- sitivistas e os criticos, ha unanimidade em um ponto: a objetividade do social é impla- cAvel, prevalecendo sobre a subjetividade do individuo. O mundo social, o sistema dos costumes e fins, ou seja, a sociedade, passa a ser visto pela sociologia como uma reali- dade objetiva, de existéncia prépria. Os fatos sociais, as relagdes de produgao, 0 siste- ma social afirmam-se como “coisas” alheias, independentes ¢ contrérias ao sujeito do- tado de vontade. A sociologia dos séculos XIX e XX decreta a impoténcia do sujeito, inserindo-o nna engrenagem social, onde ele ~ transformado em “pega” ou “‘elemento” — esté sujeito a “Ieis universais” que garantem o funcionamento ¢ a preservacdo da sociedade. Basta Iembrar a “lei dos trés est4gios”” de Comte, a lei da evolucao e diferenciagao de Spen- cer, as leis demogréficas de Malthus, as “leis de ferro” da economia politica, as leis da produgao de Marx, os mecanismos de integracéo e equilibrio de Parsons ¢ tantos outros. Todo 0 esforgo (filoséfico e epistemolégico) de Kant em distinguir entre © reino da necessidade (natureza) € o reino da liberdade (sociedade), entre leis naturais ¢ so- ciais, entre 0 “ser” e 0 “dever ser”, o determinado e o indeterminado, o inconsciente e © consciente, sucumbe & obsessio positivista da sociologia, preocupada em estabelecer- se como ciéncia. A revolugao copemicana realizada por Kant, atribuindo ao sujeito a competéncia de conhecer o mundo real (natureza) e de legislar sobre o mundo dos costumes e fins (Sociedade) é objeto de uma contra-revolucdo conservadora, que restaura 0 status quo ante: afirma-se a existéncia de um “real” (onde natureza e sociedade esto assimilados) externo a consciéncia, regido por leis que independem dela. Na leitura sociol6gica as leis sociais so equiparadas as leis da natureza, A fim de assegurar & sociologia seu es- tatuto de cientificidade, os socidlogos ndo hesitam em sacrificar a autonomia (die Machbarkeit des Systems der Sitten) & heteronomia (die Bestimmtheit der natiirlichen und sozialen Welt), assimilando as leis da regularidade e nomatividade do social as leis fisicas ¢ mateméticas. O mundo dos costumes, que para Kant representava o sistema dos fins autodeterminados (Sollen), passa a ser decifrado nos moldes da mecanica celeste, determinada por uma causa alheia A vontade humana, heterénoma (Sein). 18 FREITAG, Barbara. A questo da moralidade: da razo pritica de Kant a ética discursiva de Habermas. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2); 7-44, 2.sem, 1989. Em uma sociedade concebida como “organismo social” (Spencer), “modo de pro- dugio”’ (Marx), “sistema social’ (Parsons), os individuos apenas exercem “fungdes”’, assumem as feigdes de Charaktermaske, desempenham “papéis””. As regras sociais no visam mais dignidade e integridade do sujeito, mas tém em vista a preservacao do or- ganismo social, a manutenco das relagdes de produco, a defesa do equilfbrio ¢ a inte- gragio do sistema social. Ndo h4 margem para a liberdade do sujeito, no hé conflitos morais, nfo hé principios que orientem a ago individual, pois tudo jé se encontra pré- estruturado, definido, inexoravelmente objetivado e rotinizado. Na Optica sociolégica os critérios do bem e do mal, do justo e do injusto, do legt- timo e do ilegitimo nao se encontram mais arraigados no sujeito, mas estio inscritos nas estruturas sociais, nas instituigdes, nos mecanismos de controle social. O homo sociolo- gicus (Dahrendorf) € esvaziado de sua dignidade, isento de responsabilidade, podado em sua vontade; ele € essencialmente a-moral, i.e., desprovido de princfpios reguladores de sua aco, mero ponto de confluéncia e convergéncia de papéis sociais moldados e pré-estruturados coletivamente, por uma instncia fora e independente dele: a socieda- de. Os conflitos morais nao pertencem ao repertério do homo sociologicus, que 86 co- nhece conflitos entre papéis diferentes € conflitos no interior de um mesmo papel social. Eles exprimem desajustamentos do sistema social ¢ de suas funcdes e podem ser facil- mente eliminados institucionalizando-se mecanismos sociais para sua regulamentacao. O homo sociologicus, tutelado (entmiindigt), expropriado de sua vontade legisladora, s6 se concretiza em instituigdes especializadas que pensam e falam por ele: parlamentos, congressos, tribunais, etc. Na discussdo sociolégica a questio da moralidade foi subs- tituida pela questio do direito. O sociélogo que de forma mais “pura”, “‘tipico-ideal’’, representa essa posicao, € Emile Durkheim. b) A moralidade em Durkheim O deslocamento do foco de interesse do sujeito para a sociedade fica explicito nas Regras do método sociolégico (1895), nas quais Durkheim postula que os fatos sociais devem ser encarados como coisas, externas & vontade e & consciéncia dos individuos, dotados de existéncia propria, fora de suas consciéncias. Os fatos sociais impSem-se coercitivamente ao individuo, exercendo sobre ele autoridade e exigindo dele obedién- cia e sujeigao. A objetividade do conhecimento da natureza e da sociedade nao & mais assegurada, como em Kant, pelos instrumentos do pensamento do sujeito, mas sim pelas regras do método, elaboradas pela ciéncia. A ciéncia é um fato social, produzido pelo coletivo. Enquanto “coisa”, fato objetivo, a ciéncia tem a mesma realidade e objetivi- dade que 0 mundo natural € social que ela analisa. As regras do método constituem os instrumentos que tornam 0 conhecimento possfvel. FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razfo pritica de Kant & ética discursiva de Habermas, 19 ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 12); 7-44, 2.sem. 1989. Nas Formas elementares da vida religiosa (1912) Durkheim revé e aperfeigoa sua metodologia, formulando sua epistemologia das ciéncias sociais sob a forma de uma verdadeira sociologia do conhecimento. As categorias do pensamento — tempo, espago, quantidade, qualidade, forga, género etc. — ndo sio dadas a priori (Kant) nem desen- volvidas pelo sujeito (Piaget), mas so 0 fruto de uma génese no interior da sociedade. Sao categorias decorrentes das “representacdes coletivas”, i.c., formas de viver, sentir ¢ pensar desenvolvidas pelo coletivo, no interior de um grupo, remontando em sua ori- gem a formas de vida religiosa, ao “sagrado"”. Essas “representagdes coletivas’” sao a0 mesmo tempo a fonte e a esséncia da moral na sociedade. E importante lembrar que, ao “sagrado”, Durkheim opée o “profano”, a0 qual pertencem todas as formas de viver materiais, incluindo a produgéo de bens, a reprodu- cao biolégica e material da coletividade. Para Durkheim a sociedade nao se manifesta nessas formas profanas da vida, mas sim em suas formas sagradas, em suas representa- Ges do mundo, em sua moral. Ciéncia ¢ moral saem ambas do mesmo bergo (“0 sagra- do”) e constituem a esséncia da sociedade. As representag6es coletivas traduzem dife- rentes estigios de organizacdo da vida religiosa, gradativamente dessacralizada, secula- rizada. A sociedade tem para Durkheim um cardter proprio, expressa uma realidade sui generis, mas ao mesmo tempo se integra na natureza, da qual representa 0 est4gio mais elevado e a expresso mais complexa. “.. a sociedade € uma realidade especffica, mas nao € um império em um império; faz parte da natureza, da qual é a mais alta manifestagao. O reino social € um rei- no natural, que difere dos outros somente por sua maior complexidade.””* (Dur- kheim, 1968, p. 25) Na leitura de Adomo, Durkheim nio sé idealiza a sociedade & semelhanca do que Hegel fizera com o Estado, mas a deifica. A sociedade passa a ser a origem e o princi- pio regulador de toda a vida individual e social, cientffica e moral, a razio de ser, ér- bitro ¢ a finalidade tltima de toda aco humana, individual e coletiva. Ela representa 0 saber religioso, moral ¢ cientffico conjugados. E onisciente ¢ onipotente, em suma, a propria obra de Deus, a materializacao e 0 coroamento de toda a criagéo, de todo o mundo da natureza. ‘A sociedade nao pode, por isso mesmo, ser compreendida como o somatério das vontades, dos sentimentos ¢ pensamentos dos individuos que a compéem. No convivio +... la société est une réalité spécifique, elle n’est cependant pas un empire dans un empire; elle fait partie de la nature, elle en est la manifestation la plus haute. Le regne social est un regne naturel, qui ne différe des autres que par sa complexité plus grande. 20 FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razio prética de Kant a ética discursiva de Habermas, ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989, social, d4-se para Durkheim uma nova qualidade, ocorre uma “qufmica”” especial (a sa- cralizacdo do grupo social, do coletivo) que confere & sociedade um estatuto proprio, ir- redutivel & forma de viver, sentir e pensar do individuo. A sociedade expressa sempre 0 mais verdadeiro, 0 melhor e 0 mais justo que a mente humana foi capaz de produzir. Essa verdade revela-se de forma convincente, para Durkheim, no estudo das formas clementares do totemismo australiano, cujos tragos fundamentais servem de grade para © estudo ¢ a andlise de outras formas de vida religiosa e societéria. O simples j4 contém no embriéio 0 complexo. Mas o simples nunca é 0 sujeito ou o individuo isolado, ele pressupée 0 social, no qual as formas de viver, sentir, pensar e julgar j4 se depuraram; ¢ no qual o individual e 0 subjetivo esto depositados, como sedimentos sem importancia, no solo do profano. Em A divisdo do trabalho social (1893), coerentemente com o acima exposto, Durkheim nao analisa as formas que assumem o trabalho ¢ a producao e reprodugao de bens materiais (aspectos do mundo profano), mas dedica sua atencao as formas que as- sume a solidariedade no interior de sociedades simples e complexas, solidariedade vista como um fruto da divisdo social do trabalho. Diferentes formas de diviséo do trabalho geram diferentes formas de solidariedade: sociedades simples, em que a divisdo do tra- balho se restringe & diviséo de tarefas entre sexos e idades, produzem a solidariedade mecfinica; sociedades complexas, em que a divisio das tarefas abrange os setores de produgao ¢ as atividades profissionais, produzem a solidariedade organica. No primeiro caso, a solidariedade € analisada na forma do direito punitivo, no segundo, na forma do direito restitutivo. A solidariedade mecdnica corresponde uma percepecao heterénoma da lei, que se impde com autoridade implacével ao individu, que sofre punigGes nao para repor dano causado em caso de transgressao da norma, mas para reafirmar diante do coletivo a validade da norma violada. A punigao do infrator constitui ligao de moral para os demais membros do grupo, por isso geralmente é publica, tem efeito demonstra- tivo e sua fungao é reafirmar a solidariedade (mecAnica = automatizada) do grupo. A solidariedade organica coresponde o direito restitutivo, caleado no contrato firmado entre partes aut6nomas. A transgressio da norma visa A reposigdo dos danos causados a0 parceiro do contrato, dentro de uma perspectiva de reciprocidade e igualdade de reitos. Com a punico 0 sujeito é lembrado das suas obrigagées ¢ responsabilidades em face de outro sujeito. O direito que regulamenta as relagGes entre ambos é privado, mas gera uma solidariedade organica, que conscientiza a cada um de suas fung6es no con- texto do todo. Nessas duas formas da solidariedade exprimem-se os sentimentos morais de dois tipos de sociedade, as simples (com divisao biolégica do trabalho) ¢ as comple- xas (com divisao social do trabalho). As duas formas da solidariedade estao materiali- zadas nas formas do direito punitivo, por um lado, e contratual, por outro. A questo da moralidade, deslocada do sujeito para a sociedade, resulta na mora- lizacdo da sociedade. Esta passa a ser a instncia que julga o certo e o errado, o bem e FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razSo pritica de Kant a ética discursiva de Habermas. 21 Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989, © mal, 0 verdadeiro e o falso, anulando no sujeito a competéncia do julgamento moral. Esse sujeito passa a ser um joguete nas méos da justica, materializada nas diferentes formas do direito. ‘A teoria sociolégica (positivista) de Durkheim transforma 0 imperativo categérico de Kant no imperativo da sociedade: “Age conforme as normas sociais o prescrevem.” ‘A questo da moralidade € transformada em uma questo pedagégica. Como a socieda- de é infalivel, representando a materializacao da verdade e da justica, somente o indivi- duo é suscetivel do erro ¢ da injustica, ¢ por isso precisa ser enquadrado, educado para o social. Em sua Educado Moral (1925) Durkheim indica as linhas mestras que devem orientar a educagdo moral do indivfduo para a sociedade. Sua conscientizacao da im- portincia ¢ adequagéo das normas sociais constituem 0 pressuposto para o funciona- mento da sociedade. Vimos que Durkheim assimila a sociedade 8 natureza, as leis sociais as leis natu- rais. Em seu esforgo de apagar limites onde teria sido mais prudente manté-los, Durkheim pecou por mais uma indistingdo que Ihe traria problemas tedricos ¢ préticos: nao diferenciou a sociedade, por cle idealizada como boa, racional e justa, das socieda- des histéricas que 0 cercavam, marcadas pela revoluco ¢ contra-revolugao, por guerras € lutas de independéncia, pela desigualdade politica, econdmica ¢ social. Fendmenos como a anomia, 0 suicfdio, o caos econémico, a ganancia dos ricos, o despotismo dos poderosos, as lutas de classe nio podiam, por isso mesmo, ser vistos como produtos da sociedade. Sua causa tinha que ser loalizada na imperfeigio da natureza humana. Esta, originalmente egoista ¢ incompetente para a vida social, precisava ser transformada em uma “segunda natureza”, altruista, apta & vida em sociedade. Em sua aula inaugural, que introduz 0 ciclo de conferéncias sobre a educagao mo- ral, Durkheim explicita: “O homem a ser criado pela educagao moral nao é 0 homem que a natureza fez e sim 0 homem que a sociedade quer ter.”” (Durkheim, 1963, p. 44). Neste ciclo de palestras, a moral ¢ definida por Durkheim como um sistema de re- gras de agao que orientam 0 comportamento. A questio moral resume-se na sentenca: “Agir bem significa obedecer bem’ (Id. ibid., p. 78). A educagéo moral consiste pois. em fazer o individuo agir corretamente, fazendo-o obedecer ao conjunto de regras vi- gentes na sociedade. A questo moral reduz-se & questio pedagdgica de promover a obediéncia do individuo a essas regras. Os trés elementos da moralidade discriminados por Durkheim séo 0 espitito de disciplina, a adesdo ao grupo ¢ a autonomia. O esptrito de disciplina fortalece na crian- ca a obediéncia a regra. As regras sociais tém para Durkheim duas caracteriticas im- portantes: regularidade ¢ autoridade. A regularidade com que uma regra aparece jé € © indicio de sua adequacéo, corregao ¢ justiga. O seu aparecimento freqiiente no con- texto social Ihe confere autoridade. Seguir uma regra social legitimada pela sua fre- qiiéncia e autoridade converte-se em um “dever". A regra social, enquanto fato social, 22 FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razio prética de Kant a ética discursiva de Habermas. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 12): 7-44, 2.sem. 1989. enquanto “coisa”, j4 representa uma ordem que exige obediéncia. O espirito de disci- plina, transmitido na educacao moral, facilita essa obediéncia, promovendo a sujeiga0 da crianga a autoridade da regra. Professores e pais, que so a personificagao da autori- dade da regra, devem insistir na disciplina e cobrar a sua pratica, inculcando assim 0 “espirito de disciplina” nas novas geracées. Os objetivos fixados pela vontade do individuo séo por definicao a-morais, vazios de qualquer sentido © valor moral. O valor moral s6 é conferido a objetivos fixados e defendidos por um grupo, pela sociedade. Estes sao a fonte ¢ a finalidade da educagio moral. Educar a crianga para a vida no grupo, fazé-la aderir aos objetivos nele vigentes, significa educé-la moralmente. A adesio do individuo a um grupo € a condicdo sine qua non de uma vida moral. A liberdade é interpretada por Durkheim como sendo uma per- versio que expressa 0 medo da regulamentacao social. As regras sociais dotadas de re- gularidade e autoridade superam esse medo e corrigem a perversio. O grupo é a prote- cdo contra a liberdade anérquica, assegurando a agao moral dos seus membros. suicidio (egofsta) ocorre justamente pela falta de arraigamento do individuo num grupo (familia, igreja, exército etc.). A educaco da crianca para a vida no grupo toma sua natureza de egofsta em altruista, transformando-a simultaneamente em ser so- cial © moral. A integracao do individuo na vida, nos sentimentos, nas regras e repre- sentag6es do grupo, constitui a condicio da possibilidade de seu agir moral. A autonomia da crianga, 0 terceiro elemento da moralidade em Durkheim, nao se encontra portanto enraizada na razao pratica do sujeito, mas decorre da educag4o moral como um estado de consciéncia atingido pela crianca depois de sua integragéo no gru- po. A autonomia consiste em sua submissio consciente as regras sociais, gragas a seu espirito de disciplina e a transformacdo de sua natureza egofsta em altrufsta. A autono- mia consiste apenas na liberdade, que o individuo tem, de aceitar a regra como dever. E mediatizada pelo conhecimento objetivo do funcionamento da natureza e da sociedade ¢, portanto, pela ciéncia. Esta possibilita a cada ser social reconhecer o plano geral da criagéo no contexto da natureza (¢ de sua manifestacdo suprema: a sociedade), obede- cendo, por livre opgdo, a sua Iégica ¢ harmonia. A educagao moral que visa a essa “autonomia” significa em vltima instancia sujeicao e obediéncia as normas sociais, re- conhecidas pela ciéneia social como validas e vigentes no contexto societério. Percebe-se facilmente que Durkheim, a0 mesmo tempo que utiliza certos conceitos da filosofia moral de Kant (vontade, dever, regra, autonomia etc.), esvazia-os de seu significado original, retraduzindo-os como expresso da razo societéria, identificada com as regras ¢ normas sociais dominantes. A crianga ndo é educada para aceitar as re- gas (ideais) que ela reconheca como vilidas por serem gerais ¢ necessérias, mas sim para sujeitar-se e obedecer disciplinadamente a todas e quaisquer regras, pelo mero fato de serem sociais. FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razlo pritica de Kant & ética discursiva de Habermas. 23 Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989, c) Durkheim x Piaget No tiltimo capitulo de O julgamento moral na crianca (1932), Piaget examina detalhadamente a contribuicdo dada por Durkheim A questo da moralidade, no que ela tem de valida e aceit4vel e no que tem de equivocada e inaceit4vel. Segundo Piaget, Durkheim nao distingue sociedade de fato ¢ ideal de sociedade; nao reconhece a existéncia em uma sociedade concreta de pelo menos dois tipos de mo- ral (a heterOnoma e a autOnoma); assimila o “dever” ao “bem”, a obediéncia a regra a ago moral; e, o que é mais grave, define a autonomia em termos de heteronomia. Em conseqiiéncia do primeiro equivoco, Durkheim atribui as qualidades imaginérias de uma sociedade ideal, &s sociedades realmente existentes. Assim, confunde o nivel de equili- bragdo ao qual a sociedade pode e deve aspirar com o nivel efetivamente alcancado. O segundo equivoco decorre do primeiro. Onde Piaget vé uma luta entre dois padrées mo- rais que tém como substrato relagées sociais distintas (autoridade hierdrquica versus igualdade cooperativa), Durkheim afirma a unidade moral. A assimilacdo ilfcita das duas formas da moral (heterdnoma e auténoma) acarreta sérias conseqiiéncias para a concepgao pedagégica de Durkheim: “... 16 onde veriamos na “escola ativa”, o self-government ¢ a autonomia da crianga, 0 tinico processo de educagéo que leva & moral racional, Durkheim de- fende uma pedagogia que é um modelo de educagio tradicionalista e que, para chegar & liberdade interior da consciéncia, apéia-se em métodos que, apesar de to- dos os atenuantes postos por ele, so essencialmente autoritérios."* (Piaget, 1971, p- 273). E no contexto da educagéo moral que os demais equivocos de Durkheim se ex- pressam com maior nitidez: a assimilacdo do “bem” ao “dever” (“‘agir bem € obedecer bem!) fortalece a subordinacao cega a regra social ¢ as ordens emitidas pelos mais velhos ¢ poderosos; ¢ finalmente, a compreenséo da autonomia como a aceitaco vo- luntéria da regra (heterénoma) enquanto expresso de um plano geral e superior exone- 12 0 sujeito de sua responsabilidade social e o desautoriza a agir e julgar segundo suas convicgées préprias. * 1d olt nous verrions dans ‘Técole active’, le self-government et Cautonomie de Fenfant, le seul processus d éducation menant a la morale rationelle, Durkheim défend une pédagogie qui est un modéle df Education traditionaliste et compte sur des méthodes fonciérement autoritaires, malgré tous les tempéraments qu'il y amis, pour aboutir a la liberté intérieure de la conscience. FREITAG, Barbara. A questio da moralids ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, razio prética de Kant a ética discursiva de Habermas, 7-44, 2.sem, 1989. ‘As contribuicées positivas do pensamento de Durkheim para a psicologia genética de Piaget se resumem na apropriagao — recorrendo a dois textos diferentes — de duas idéias. Mesmo assim, Piaget submete essas idéias a uma transformagao profunda, dando por sua vez novos significados aos conceitos apropriados. Da Divisdo do trabalho so- cial Piaget aproveita a idéia da evolugao, das sociedades primitivas, dotadas de solida- riedade meciinica, as complexas, caracterizadas pela solidariedade orgdnica. Da Educa- ao moral toma emprestados os trés elementos componentes da moralidade. ‘A caracterizacdo que Durkheim faz de um ¢ outro tipo de solidariedade (que inclui entre outras a dimensao da consciéncia individual), € aproveitada por Piaget para defi- nir os dois estégios sucessivos da moralidade. A solidariedade mecdnica corresponde a moralidade heter6noma; & solidariedade organica, a moralidade auténoma. As formas da solidariedade (Durkheim) exprimem representagées coletivas; os estégios da moralidade (Piaget) exprimem representacées individuais. As sociedades evoluem, gracas & diviséo do trabalho, da solidariedade mecnica & organica. Na psicogénese infantil, a moralida- de heterénoma € superada pela moralidade auténoma, Durkheim trata da moralidade no Ambito da sociedade, Piaget trata da moralidade na consciéncia da crianga. Os dois au- tores tematizam a regra social ¢ sua conscientizacao por parte dos membros do grupo social para o qual essa regra vale. Mas, enquanto Durkheim sé admite uma forma de moral para cada tipo de divisio do trabalho, Piaget parte da existéncia de varios tipos de moral vélidos simultaneamente na sociedade, 0 que impée a crianga a tarefa de conscientizar-se simultaneamente de uma ou outra, assimilando-as ou rejeitando-as. Essa reconstrugao da moral na cons- ciéncia da crianga permite a discriminacdo ¢ relativizacdo de varias formas da moral (na sociedade) e a elaboracdo de um ideal de regra que independe das formas concretas en- contradas e vividas. ‘A reelaborag&o da questo da moralidade por parte de Piaget corrige a simplicida- de do modelo dualista de Durkheim e sublinha a crescente independéncia adquirida, por parte do adolescente, em face da lei e da regra estabelecida. A teoria sociolégica de Durkheim procura descrever ¢ explicar 0 fato social da solidariedade (moral na sociedade) como uma realidade objetiva, decorrente da divisio do trabalho. A teoria psicogenética de Piaget procura descrever e explicar a reconstru- cdo da regra e do mundo social na consciéncia moral da crianga no decorrer da psico- génese, O que para Durkheim so fatos sociais (coisas) que se sucedem, caracterizando a evolucio (histérica) das sociedades, so para Piaget estégios de consciéncia, construf- dos ¢ reconstruidos pela crianga num permanente trabalho do pensamento e do conceito (psicogénese). Mas a homologia entre a evolucdo social, das sociedades simples as complexas, ¢ a evolucao psicogenética, da moral heterénoma 4 aut6noma, puramente externa, porquanto as teorias que fundamentam uma ¢ outra andlise da moralidade par- tem de pressupostos distintos e focalizam diferentes aspectos da questio. FREITAG, Barbara. A questo da moralidade: da razo prética de Kant & ética discursiva de Habermas. 25 Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem, 1989. Por isso mesmo a apropriagdo que Piaget faz dos trés elementos da moral, a partir da Educacdo moral de Durkheim, ocorre dentro de padrées que dao novo estatuto a es- ses elementos, assentando-os em novas bases teéricas. A disciplina e a obediéncia & regra, objetivo principal da educacéo moral dur- Kheimiana, passa a ser na psicologia genética de Piaget um trago do estdgio da cons- ciéncia moral heterénoma, que tenderé a desaparecer com o advento da autonomia mo- ral. A adesio a um grupo, condicao sine qua non da aco moral em Durkheim, também é um elemento central na concep¢ao da moralidade infantil. Mas, ao contrdrio do autor da Educacdo moral, que insiste na subordinacao do individuo ao grupo, 0 autor do Jul- gamento moral na crianca ressalta a dimensdo da cooperacdo recfproca entre iguais, que permite a fundamentacao argumentativa da regra vigente no grupo e a elaboracao, no sujeito integrado nesse grupo, de regras € princfpios ideais desligados da rotina quo- tidiana. O grupo social néo € condigao sine qua non da moralidade; esta resulta de um processo cognitive mais amplo, a descentragio, que envolve a dimensao lingifstica, 16- gica e moral. E, finalmente, o terceiro elemento da moral — a autonomia — revela posicées teéri- cas ¢ conseqiiéncias préticas radicalmente opostas em Durkheim e Piaget. Para ambos, a autonomia é vista como o resultado de um processo: para Durkheim, é a subordinagao do individuo originalmente egofsta as regras do grupo, assumindo assim sua natureza social (moral) altrufsta; para Piaget, € um proceso de maturagdo e descentragao, em que 0 sujeito se emancipa da autoridade da regra, da coercao do grupo, ¢ forma auto- nomamente os seus padrées de julgamento ¢ concepgées da regra (ideais), sem interfe- réncia de terceiros. No caso de Durkheim a autonomia resulta da obediéncia & regra € na aceitagao inquestionada da coergdo do grupo (heteronomia). No caso de Piaget a autonomia resulta na consciéncia da possibilidade ¢ da liberdade de reformular regras, reorganizar 0 mundo social, respeitadas as opinides ¢ argumentacées do grupo, conside- rado o melhor (= “mais razodvel”) argumento. A mesma palavra exprime assim con- ceitos radicalmente opostos. Se em Durkheim a autonomia do sujeito coincide com a subordinacio a uma norma grupal heterénoma, em Piaget a autonomia do sujeito signi- fica a superacdo dessa heteronomia. As relagGes sociais originalmente accitas ¢ perce- bidas como hierdrquicas (verticais) so agora redefinidas (pratica e teoricamente) como relacdes democriticas (horizontais) em que o respeito mituo decorre do respeito & dig- nidade ¢ liberdade da pessoa de cada um dos seus membros. Se tivéssemos que localizar a teoria da moralidade de Piaget numa escala cujos extremos estio representados por Kant ¢ Durkheim, certamente caberia a Piaget um lu- gar de honra, muito préximo de Kant. Mas & 6bvio que a construgdo de tal escala seria uma “‘operacionalizagao” equivocada da questio da moralidade. Cabe a Durkheim e & sociologia de modo geral o mérito de terem refletido o papel constituinte do social na formagio do pensamento ¢ da moralidade. Ao contrério do que imaginava Kant, a ra- 26 FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razio prética de Kant & ética discursiva de Habermas. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, (2): 7-44, 2.sem., 1989. zo prética nfo pressupde unicamente a liberdade, mas também 0 grupo social € a so- ciedade, sem os quais os julgamentos morais e as ag6es sociais perderiam a razio de ser. Gragas a Durkheim, Piaget se deu plenamente conta deste fato: a razo (te6rica e prética) piagetiana “socializada”” e “‘comunicativa”, e nfo “pura” e a priori, como a de Kant. 3. A fundamentagao psicolégica da moralidade a) A 6ptica psicogenética (Piaget) ‘As duas contribuigées mais significativas da psicologia para a questéo da morali- dade foram, sem dtivida, desenvolvidas pela psicandlise e pelo estruturalismo genético. Enquanto aquela privilegia os aspectos inconscientes e afetivos da questio, o estrutura- lismo genético enfatiza seus aspectos conscientes e cognitivos. Como de inicio me propus delimitar 0 tema, deixarei o exame da psicandlise para outro momento, concentrando-me aqui na abordagem a partir da dptica psicogenética. Nessa Optica, a questo da moralidade recebeu um tratamento cientifico, simulta neamente experimental ¢ interdisciplinar. A fundamentagao empirica, fornecida pelo estudo detalhado da génese da moralidade em criangas de diferentes idades, permitiu a reformulaco ¢ consolidagdo te6rica da questao. Inspirado em Kant e Durkheim, Piaget consegue mostrar de forma convincente quais os aspectos dessas teorias que resistem a um exame experimental e quais precisam ser rejeitados. A interpretacdo das entrevistas clinicas realizadas com criangas de todas as idades em varias partes do mundo permite a0 mesmo tempo um balanco da questo e uma critica de sua fundamentacio filoséfica e sociolégica. Kohlberg e colaboradores deram prosseguimento aos trabalhos de Piaget ¢ de sua equipe, ampliando a base de sustentagao experimental. Além de criangas e adolescentes, preferencialmente estudados pelos pesquisadores de Genebra, Kohlberg passa a incluir em suas andlises adultos de todas as classes e profissées. A pesquisa intercultural, que em Genebra tinha estatuto absolutamente secundério, assume importéncia crescente nos estudos da moralidade realizados por Kohlberg. A tese da universalidade dos estagios de suas seqiiéncias s6 poder ser confirmada se nenhuma cultura ou sociedade apresen- tar desvios do padrio te6rico postulado. Recapitulemos, com base no que jé foi dito nos t6picos precedentes, em que con- siste a especificidade do tratamento psicogentico da questéo da moralidade segundo Piaget: 1. A moralidade infantil nao é inata, mas resulta de uma génese. FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razlo prética de Kant a ética discursiva de Habermas. 27 ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989, 2. A génese da moralidade dé-se através de processos interativos da crianga com 0 mundo social. 3. A moralidade infantil ndo resulta da assimilacdo passiva das regras vigentes no gru- po social, mas decorre de uma construco e reconstrucao ativa por parte da crianga. 4. Os processos de construgo e reconstrug’o das regras sociais na estrutura cognitiva da crianga (psicogénese) constituem tomadas de consciéncia que envolvem a dife- renciagdo do eu e do grupo (descentragao), a nogao e a pritica da reciprocidade (respeito miituo & regra), a aleatoriedade da regra (sua validade depende de sua rea- firmaco por parte de todos os membros do grupo), a criagao de uma regra ideal (principio de ago) que independe da experiéncia concreta e das préticas de regras no grupo. 5. A génese ou construgao da moralidade se dé por estégios que obedecem a uma se- giiéncia determinada: & medida que a crianca cresce e amadurece, passa pelo estagio da amoralidade (auséncia de regras) para a moralidade heterénoma (consciéncia au- toritéria da regra imposta de fora contra a vontade) até o estigio da moralidade auté- noma (consciéncia da nevessidade e generalidade da regra como resultado do con- senso argumentative do grupo). 6. A seqiiéncia dos estégios e sua organizagio em esquemas ou estruturas de pensa- mento (qualitativamente distintos em cada est4gio) séo fendmenos universais. Em sua ontogénese, toda crianga passa pelos mesmos estégios na seqiiéncia prevista pela teoria, independentemente do momento histérico e do contexto social ou cultural vi- vido. 7. Os fatores que promovem a génese das estruturas morais se localizam no interior do sujeito (maturacdo e equilibracdo das estruturas mentais) € no contexto social (so- cializagao familiar e transmiss4o cultural e educativa). 8. A moralidade auténoma (do adolescente / adulto) é racional e consciente. No con- texto da psicogénese, a moralidade se resume a esquemas do pensamento moral ¢ a critérios de julgamento que, juntamente com os instrumentos do pensamento moral, constituem a inteligéncia humana que tem como fungio a preservagio da vida ¢ a melhor adaptagio do individuo ao seu meio natural e social. Esses instrumentos so forjados em situagées sociais concretas, das quais se autonomizam posteriormente, permitindo ao sujeito pensar e julgar a realidade social a partir de possibilidades ideais. Os critérios de julgamento moral — como justiga, verdade, adequaco da regra etc, ~ so deduzidos desses padrées de exceléncia. 9. A moralidade estabelece um elo imprescind{vel entre sujeito e sociedade: sem ela 0 sujeito sucumbe aos ditames do grupo ou a tirania do ditador; sem o grupo 0 sujeito no se constituiria como tal. 28 FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razsio prética de Kant & ética discursiva de Habermas. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989 b) Piaget x Kohlberg Os trabalhos de Kohlberg e de sua equipe calcam-se explicitamente na teoria da moralidade desenvolvida por Piaget nos anos trinta. Em Estdgios e seqiténcia (1969), Kohlberg resume ¢ endossa os pontos centrais dessa teoria, introduzindo no decorrer dos anos subsegiientes novas reflexées sobre a questio da moralidade, do ponto de vista psicogenético. As inovagdes metodol6gicas propostas levaram a conseqiiéncias teéricas que merecem uma discuss4o mais detalhada. O procedimento metodol6gico adotado por Piaget e sua equipe girava em torno de pequenas histérias que eram narradas as criangas, pedindo-se, posteriomente, seguindo © método clinico, que julgassem as agdes narradas € que justificassem sua prépria to- mada de posigao. As pequenas hist6rias inventadas para identificar os estégios da mo- ralidade infantil giravam em torno de trés temas: 1. a intengdo € as conseqiiéncias obje- tivas de atos; 2. as sangées ¢ castigos decretados em casos de infracées a regra ou de mentira, 3. a pritica e a consciéncia de regras do jogo. No primeiro caso, so narradas duas historietas: a de um menino que “sem que- rer”, por ser desajeitado, quebra muitos pratos; ¢ a de outro menino que intencional- mente quebra um ntimero menor de pratos. A entrevista clinica conduzida com a crianga procura esclarecer os padrées segundo os quais ela analisa as agdes das criangas da hist6ria, se pela intengao ou pela consegiiéncia das acées, e de que maneira o julga- mento € justificado. Um julgamento mais severo da crianga que quebrou mais pratos sem querer é atribuido & heteronomia moral; um julgamento mais severo das més inten- Ges do segundo menino é atribuido & autonomia moral. No segundo caso, so apresentadas duas criangas: uma brinca com 0 brinquedo do irmao e 0 quebra; a outra brinca de bola no quarto (0 que era proibido) € quebra a ja- nela, Qual das duas criangas mereceria um castigo maior, e de que tipo? Uma transgre- diu expressamente uma regra, a outra nao. A necessidade de punico a qualquer preco ¢ da punigao maior em caso de transgressio da regra (proibigo) faria parte dos esquemas da moralidade heterénoma, que estaria se exprimindo sob a forma do direito punitivo. A punigao que consiste em compensar o irmao pela perda do brinquedo, entregando-Ihe um dos préprios, seria vista como expresso da moralidade aut6noma, expressa sob a forma do direito restitutivo. A questo da mentira é trabalhada analogamente. Sao nar- radas hist6rias de duas criancas que voltam da escola: a primeira mente, contando & mae que no caminho para casa havia visto um cachorro do tamanho de um boi; a outra, es- conde um boletim com notas ruins e mente para a mae, dizendo que havia tirado dez em matemética e por causa disso recebe um presente. No final do dia as duas mentiras so desmascaradas. Qual é a pior mentira? Se a crianca confunde, ao julgar as mentiras da historia, o tamanho do animal com a gravidade da transgresséo (“realismo moral”), considerando a primeira mentira mais grave, ela pertence claramente ao estégio da FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razio pritica de Kant ética discursiva de Habermas. 29 Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2,sem. 1989. moralidade heterénoma. Se considerar a segunda mentira mais grave, por incluir a di- mensio de mé f€ ¢ da intencionalidade, j4 pode ser considerada pertencente ao estégio da autonomia, considerando-se obviamente 0 tipo de argumento usado para justificar a tomada de posigao. No terceiro caso, finalmente, a crianca entrevistada dialoga sobre a pratica das re- gras de um jogo (bolinha de gude, amarelinha, futebol etc.) até ser questionada sobre a possibilidade de mudanca das regras, as condig6es nas quais isso seria admissfvel e sob que forma a nova regra poderia adquirir validade. Se a crianca argumentar recorrendo aos conceitos de cooperacdo, respeito mtituo, consenso do grupo, melhor argumento apresentado etc., ela atingiu a autonomia moral; se argumentar em favor da manutengao das regras a qualquer preco, atribuindo-Ihes autoridade absoluta, nesse caso ela ainda se encontra no estgio da heteronomia. Quando desconhece toda e qualquer regra social, imitando jogos com gestos ¢ atividades motoras (simulando 0 jogo do futebol) sem co- nhecimento algum das regras do jogo, a crianga ainda se encontra no estdgio da amora- lidade. ‘A operacionalizagao da questo da moralidade nas historietas ¢ na técnica da en- trevista clinica permitiu demonstrar experimentalmente a validade da tese piagetiana da construcao gradativa de estruturas, conceitos e critérios do julgamento moral na crianga (adolescente). Ao mesmo tempo, esse trabalho experimental apontou para uma série de limitagées ¢ falhas, entre as quais cabe lembrar pelo menos quatro: 1. No julgamento da aco das criangas da historia, a crianga entrevistada tende a ser mais rigorosa do que se- ria consigo propria. Isso significa que os critérios de julgamento para os outros nao pre- cisam coincidir necessariamente com os princfpios que orientam a propria acdo. 2. As situagées imaginérias criadas com as histérias narradas nao sao suficientemente envol- ventes para comprometer a crianca com o que diz sobre os atores ficticios. 3. Os julga~ mentos emitidos ainda nao sao garantia de como a crianca efetivamente agiria na mesma situagao. 4. As duas formas da moralidade postuladas fornecem uma grade pouco dife- renciada para posigées que nio se enquadram claramente em um ou outro estégio. Por isso mesmo Piaget criara um estégio intermediério (semi-autonomia) que no entanto nao permite uma diferenciagdo nitida para cima e para baixo (na escala psicogenética). Lawrence Kohlberg, discipulo de Piaget e atualmente um dos maiores pesquisado- res da questéo da moralidade a partir da éptica psicogenética, procurou evitar os pro- blemas criados com a metodologia piagetiana. Em lugar de histérias alternativas de ato- res distintos, apresentou a seus entrevistados hist6rias em que o protagonista se encon- tra em uma situacao de conflito que permite pelo menos duas solugées distintas. As si- tuag6es esto préximas do quotidiano de cada um, e em principio poderiam ocorrer a qualquer de nés. Desse modo Kohlberg procura reduzir a distancia do entrevistado com a histéria, facilitando uma certa identificagdo entre ele os protagonistas. Nao existem solugées do conflito sem infracdo contra alguma lei ou um principio. Quem age, torna- 30 FREITAG, Barbara. A questo da moralidade: da razo pritica de Kant & ética discursiva de Habermas. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. se culpado de uma forma ou de outra, transgredindo alguma norma mais ou menos im- portante. As respostas dos entrevistados abriram os olhos para novas dimensdes do pro- blema. A maior sofisticagdo metodolégica de Kohlberg reflete-se em um plano de codifi- cago mais diferenciado e detalhado ¢ numa discriminacdo de maior mimero de nfveis ou estigios da moralidade, que por sua vez. leva a algumas reformulagées tedricas. Em esséncia, porém, Kohlberg mantém os prineipios basicos do estruturalismo genético € confirma as teses centrais de Piaget. Uma das historietas usadas por Kohlberg sua equipe jé se converteu num ‘“clés- sico” da discusso da moralidade em circulos de especialistas: é 0 chamado “dilema de Heinz”. A histéria é simples: a mulher de Heinz est & morte. H4 um remédio que pode- ria salvé-la, mas 0 farmacéutico da cidade nao quer vendé-lo. Desesperado, o homem procura levantar dinheiro mas ndo consegue obter a quantia exorbitante exigida pelo farmacéutico. A noite, o homem arromba a farmécia e leva o remédio para a mulher. Outras situagées de conflito sio imaginadas por Kohlberg e sua equipe. Por exemplo, um navio afunda. No escaler encontram-se trés sobreviventes: 0 capitéo, um marinheiro jovem e um cientista velho. O equipamento e as reservas de combustivel € alimentago para assegurar o salvamento efetivo sé dariam para dois. Um dos trés tem que saltar no mar. Qual deles e por qué? Kohlberg e sua equipe trabalham ainda com 0 método clinico ou critico, esforgan- do-se por obter um quadro — 0 mais preciso posssfvel ~ do que o entrevistado realmente pensa. O importante nao € obter a resposta “‘certa”, mas sim uma resposta que seja au- téntica e que esteja acompanhada dos argumentos que levam o entrevistado a emitir tal julgamento, ponderando os prés ¢ os contras das possiveis decis6es, mostrando o nfvel de profundidade e diferenciagdo em que o dilema é pensado. Importante no método clf- nico € saber ouvir e reorientar o diélogo & luz dos argumentos € das justificativas ex- postas. Nesse tipo de conversa 0 pesquisador recorre muitas vezes & contra-argumenta- 40, caso 0 entrevistado nao levante por conta prdpria questées conflitantes ou opostas. Em 1958 Kohlberg apresenta uma nova proposta de conceber os estégios da mo- ralidade infantil que procura superar o esquema dual de Piaget, introduzindo uma escala que abrange seis estgios distintos, que nessa primeira tentativa de reformulagao 0 autor caracteriza da seguinte forma: 1. Orientagao para a punicdo e a obediéncia. Respeito diante da autoridade ou do prestigio de superiores. Fuga a responsabilidades. Responsabilidade objetiva. 2. Orientacao ingénua e egofstica. A agio correta é aquela que atende as necessidades do Eu e possivelmente do outro, instrumentalmente. Consciéncia da relatividade do valor de uma necessidade e da perspectiva dos demais, envolvidos na aco. Igualita- rismo ingénuo e orientacdo para a troca ¢ a reciprocidade. FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razso prética de Kant 4 ética discursiva de Habermas. 31 Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. 3. Orientago para o ideal do ‘‘bom menino’’, preocupado em obter a aceitagao € 0 re- conhecimento dos outros. Conformidade com as representagées estereotipadas do comportamento coletivo. Julgamento de acordo com intengées. 4. Orientagio para a preservacdo da autoridade e da ordem social. Preocupagao em cumprir seu “‘dever”, demonstrar respeito & autoridade e & ordem enquanto tais. Consideracéo com as expectativas dos outros. 5. Orientagao legalista-contratual. Reconhecimento de um componente aleatério das regras. Expectativas como ponto de partida para o consenso. “Dever” € definido como contrato. Busca evitar a violagdo dos direitos ¢ das intengdes dos outros. De- fesa da vontade e do bem estar da maioria. 6. Orientagéo por princfpios. Transcende aquelas agées contidas em papéis sociais atribuidos € inclui a orientagao por princfpios légicos universais. Ago segundo a consciéncia propria na base da confianga e do respeito (Kohlberg, 1969, p. 379-389). A base empirica para essa nova definicdo dos estégios encontrava-se no rico mate- rial coletado por Kohlberg no caso dos julgamentos emitidos sobre “Heinz” e seu dile- ma de aco. O que surpreendia nas instrugées de codificagao € que Kohlberg procurava obter uma classificacéo do estégio moral, independentemente do tipo de resposta dada pelas pessoas entrevistadas. Nao importava, pois, se 0 entrevistado inocentava ou con- denava Heinz, 0 que importava — para a classifiagdo em um ou outro estagio — era a forma como esse julgamento era apresentado, justificado, ponderado, face as alternati- vas de acdo disponiveis. Desse modo 0 esquema de classificacdo permitia, para cada estgio, uma versdo a favor e outra contra 0 modo de agir de Heinz. Kohlberg, mais tarde reforcado por Rest outros, procurava assim levar ao extremo a separaco de forma e contetido do julgamento, privilegiando (nessa primeira versio) a forma. Esta solugao suscitou criticas de todo os lados e em diferentes nfveis do problema. Em sua esséncia as criticas podem ser resumidas nos seguintes t6picos: falta de emba- samento empfrico; formalismo exagerado; postulados filoséficos nao explicitados; etno- centrismo cultural. ‘Surgiu entdo uma literatura abundante, por vezes pedante na minticia, irritante na perda de visdo de conjunto, repleta de modismos metodolégicos, oportunismos carrei- ristas, academicismos ridiculos, mas que depois de uma triagem cuidadosa se tora es- tratégica para repensar a questo da moralidade. Para dar uma idéia do que se produziu nesses trinta anos de debates, cabe Iembrar que existem bibliotecas cheias de teses de mestrado e doutorado, livros e manuais in- termindveis, atas de congressos ¢ reunides académicas em que a questéo da moralidade nos termos de Kohlberg foi amplamente discutida. Existem debates intermindveis sobre a realidade empirica (ou no) do estégio 6 proposto por Kohlberg. Alguns afirmam que ele existe, procurando fundamentar essa afirmago com pesquisas prdprias. Outros tei- 32 FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razio pritica de Kant & ética discursiva de Habermas. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. mam em dizer que se trata de mera dedugao te6rica, recorrendo aos fildsofos das mais distintas orientag6es para consolidar essa afirmagdo. Muitos metodélogos se especiali- zaram em inventar novos sistemas e critérios de classificacao, sugerindo estagios inter- mediérios do tipo “4 1/2”, “5 1/2” ou até mesmo novos estégios além do estigio 6. Se acusei a sociologia de ter simplificado o que Kant sutilmente havia diferencia do, € preciso acusar a psicologia cognitiva de ter diferenciado em excesso, prescindindo de uma visdo de sintese. E raro encontrar um esforco terico que procurasse reunir nu- ma reflexao coerente, os fragmentos empiricos e experimentais dispersos em revistas especializadas, espalhadas pelo continente americano, europeu e mesmo em alguns pat: ses fora dos centros de produgio mais tradicionais, como a Austrélia, Nova Zelandia ¢ India. ‘A vantagem de uma cultura periférica como a brasileira, que nesses trinta anos fi- cou totalmente & margem dessa discussdo, ¢ que ela hoje pode permitir-se fazer uma triagem da exuberancia da produgao teérico-empirica, ponderando e selecionando 0 re- levante, participando da discussao no que ela tem de efetivamente substancial. Um esforgo de sintese que resulta numa reformulacdo te6rica da questo da mora- lidade € feito pela propria equipe de Kohlberg (Rest, Levine, Hewer), em Moral sta- ges: a current formulation and responses to critics (1983) € posteriormente (1987) com a publicagao dos dois volumes de The measurement of moral judgment de Anne Colby, Lawrence Kohlberg e colaboradores (em que fornecem uma melhor fundamentacio te6- rica e validagao da pesquisa, além de acesso ao Manual de codificagao, no vol. Il). Nestes trabalhos os autores procuram explicitar pelo menos trés questées que em trabalhos anteriores haviam ficado ambiguos ou sem resposta: |. os pressupostos “‘meta- éticos” que fundamentam sua teoria da moralidade; 2. a justificativa tedrica e empirica de uma nova seqiiéncia de estagios da moralidade; ¢ 3. a contestacdo aos criticos (e as criticas) mais persistentes. Nos trés casos fica evidente uma reflexao te6rico-empirica exaustiva que busca sua legitimidade na filosofia moral de Kant e na psicologia experi- mental de Piaget, sem contudo repetir essas posigGes e sem cair na tentacio de simplifi- cé-las. O resultado uma teoria da moralidade moderna, filosoficamente refletida ¢ ex- perimentalmente fundamentada em pesquisas realizadas com pessoas de todas as idades, sexos, classes ¢ culturas. Para conhecé-la melhor nos deteremos um pouco mais nas trés questées levantadas pela propria equipe de Kohlberg. 1. Entre os pressupostos “‘meta-éticos” da teoria da moralidade, Kohlberg e cola- boradores defendem: 0 contetdo valorativo dos conceitos morais, seu caréter prescriti- vo, a generalidade ¢ necessidade das regras sociais basicas, justiga e dignidade humana; a dimensao cognitivista-racionalista da questo moral; 0 cardter processual, construti- vista da consciéncia da moralidade subjetiva. 2. A génese das estruturas cognitivas da moralidade se dé, como Piaget o havia concebido originalmente, por estégios. Kohlberg ¢ colaboradores definem, a partir de FREITAG, Barbara. A questo da moralidade: da razéo pritica de Kant a ética discursiva de Habermas. 33. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989, 1976, ts nfveis distintos da moralidade: o pré-convencional, o convencional e o pés- convencional, cada qual subdividido em dois estdgios. Os seis estégios daf resultantes, agrupados em pares, recebem uma nova nomenclatura (tomando-se como base os seis estégios definidos em 1959): 1) heteronomia moral; 2) individualismo instrumental; 3) expectativas interpessoais miituas e conformidade; 4) consciéncia do sistema social; 5) contrato social ou utilidade e direitos individuais; 6) princfpios éticos universais. Cada um desses estégios € caracterizado a partir de trés aspectos ou épticas dis- tintas: 0 contetido intrinseco do valor moral defendido (aquilo que é considerado cor- eto), as justificativas dadas pelo sujeito para defender esse contetido (Sptica do sujei- to), e, finalmente, a perspectiva s6cio-moral, conforme conscientizada pelo sujeito (Ko- hlberg et alii, 1987, p. 17-18 25-35). Os dois estdgios tfpicos para cada nivel (em seu desdobramento bindrio) procuram dar conta da dualidade introduzida por Piaget entre moralidade heterénoma e auténoma. Kohlberg e colaboradores constréem, desse modo, um novo sistema classificatério da moralidade infantil/adulta, em que os trés nfveis (pré-convencional, convencional, pés-convencional) procuram refletir a percep¢o que 0 sujeito tem da regra social en- quanto reguladora das ages no grupo. O nfvel pre-convencional exprime o fato de que a crianca ainda nfo se d4 conta do carter convencional da regra, aceitando-a como um fato da natureza ou um ditame de alguma autoridade, fora de sua consciéncia. No se- gundo nivel o caréter convencional da regra, decorrente de uma cooperacdo consensual dos membros do grupo, € reconhecido e respeitado. E, finalmente o terceiro nivel (pés- convencional) reflete 0 fato de que o adolescente/adulto j4 abstrai do caréter consensual e convencional da norma, que ele conhece € reconhece em todos os detalhes, 0 seu as- pecto ideal, orientando-se, gragas a essa abstragdo das normas ¢ regras habitualmente praticadas, por principios éticos préprios ¢ auténomos. Em cada um desses trés niveis surge a variante heterénoma e auténoma da ques- tao. Nos estégios de ntimero impar predomina a percepgao da regra ou convengao como imposta; nos estégios de mimero par, a dimensio de independéncia do individuo face & norma ou regra estabelecida. No conjunto hé uma génese da moralidade, da heterono- mia para a autonomia, mas em cada nivel a dialética entre a perspectiva imposta pelo grupo e a perspectiva subjetiva do membro do grupo (insider) se refaz em um patamar da consciéncia mais abrangente, habilitando 0 sujeito a reconhecer simultaneamente as leis sociais ¢ os princfpios morais. Em sua esséncia a escala mantém os contetidos j4 descritos na escala de 1959. A nova proposta discrimina melhor os trés aspectos que descrevem cada estgio, sem per- der de vista a distincdo fundamental de Piaget entre heteronomia autonomia, que ago- ra € retomada a cada nivel em sua dialética. Gragas & maior diferenciacao ¢ sofisticagéo dessa nova escala, Kohlberg procura responder & acusagio de formalismo, admitindo 34 FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razo pritica de Kant & ética discursiva de Habermas, ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989, agora que @ forma precisa ser relegada a um segundo plano em face de um valor central ¢ superior: a defesa da vida e da dignidade humana. As instrucdes de codificagao agora sao inequivocas. O entrevistado que der razio a Heinz em sua decisao de arrombar a farmécia para salvar a vida da mulher (independentemente do nivel em que se encon- trar) € premiado com uma classificacao superior Aquele que defender a proibicao de nao roubar, respeitar a lei, etc. Dificilmente pode sustentar-se hoje a critica antes dirigida a Kohlberg de que Ihe falta embasamento empirico. Inimeros estudos foram realizados sob sua supervisio, in- cluindo estudos longitudinais (observacées € entrevistas com as mesmas pessoas através dos anos) e estudos interculturais (USA, indios canadenses, homens adultos na Turquia, adolescentes nos Kibbutz de Israel). Esse vasto estudo empfrico-experimental nas mais diferentes culturas, classes sociais ¢ etnias, realizado para provar a universalidade dos estégios e de sua seqiiéncia também desmonta muitas das criticas que se caleavam na acusacdo de etnocentrismo. 3. O debate aberto com seus criticos (entre os quais se encontram Erikson e Ha- bermas) serviu, portanto, para melhorar a teoria e ampliar 0 campo da pesquisa experi- mental. Persistem todavia alguns problemas e argumentos cuja superagao nao depende de uma reflexdo e reformulagao da prépria teoria, mas das premissas (¢ equivocos) ine- rentes as teorias dos outros. O ponto chave para uma discussao, em que Kohlberg per- manece irredutivel, é a questo dos estagios. Kohlberg distingue trés tipos de teorias dos estdgios: o funcional, o soft e 0 hard. A teoria da moralidade de Piaget ¢ a sua pré- pria (Kohlberg ¢ colaboradores) pertencem ao tipo hard. O que caracteriza as hard structure stage theories 6 que elas concebem as estruturas como totalidades que se su- cedem em seqiiéncias invariantes. Em cada estégio, as estruturas representam niveis de integragdo hierdrquica e qualitativamente distintas, havendo progressao dos estagios in- feriores aos superiores. A teoria faz uma abstracao do sujeito ou ego concreto e unité- rio, introduzindo (melhor, reintroduzindo) a perspectiva de um epistemic self, i.e., 0 sujeito epistémico de Kant, que em Piaget encontra sua expressio mais precisa nas es- truturas l6gicas (hipotético-dedutivas) do pensamento e, em Kohlberg, no sujeito moral. ‘A maioria dos critics de Piaget e Kohlberg parte de teorias dos estigios que po- dem ser caracterizadas como funcionais ou soft (Erikson, Loevinger ¢ tantos outros), introduzindo conceitos de estruturas ou de estagios que ndo satisfazem os critérios esta- belecidos na hard theory. Trata-se pois de teorias que dispensam ou a idéia da totalida- de estruturada, ou a idéia da seqiiéncia invariante dos estégios, ou 0 seu cardter hierér- quico, em que o nfvel (est4gio) subseqiiente significa a superagdo ¢ absorgao do prece- dente. Trata-se, no mais das vezes, de criticos que realizaram estudos e formularam teo- rias vinculadas a0 campo das observac6es empiricas, sem interesse no nfvel de abstra- do necessério para a reformulagao de uma hard structure stage theory. FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razio pritica de Kant a ética discursiva de Habermas. 35 Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989, ‘Apesar dessa énfase no aspecto te6rico da questio da moralidade, Kohlberg ¢ sua equipe consideram ter contribufdo, com seus intimeros trabalhos empiricos, para a fun- damentagao experimental de muitos aspectos discutidos na filosofia moral, esclarecendo uma série de problemas que a filosofia por si s6 fora incapaz de solucionar. Com esta afirmagao polémica, Kohlberg levantou nova onda de protestos ¢ criticas, cuja solucdo precisa ser buscada em outros modelos tedricos. O critico de Frankfurt, Jiirgen Haber- mas, propée tal solugdo em sua teoria da ago comunicativa, em cujo bojo se cristaliza uma nova teoria sociolégica da moral: a ética discursiva. 4. A ética discursiva — uma tentativa de sintese a) A razio comunicativa de Habermas Em sua Teoria da acéo comunicativa (1981-1983) Jiirgen Habermas faz. 0 esforgo de pensar, em uma nova totalidade, os trés mundos (dos objetos, das normas ¢ das vi- véncias subjetivas), desmembradas pelas eriticas da razo pura de Kant. Se aos trés mundos correspondiam formas diferentes de aco (instrumental, nor- mativa, reflexiva), uma nova visio tedrica que integrasse os trés mundos numa totalida- de pressuporia uma forma de aco que ndo apresentasse as limitagées de nenhuma das outras trés. Somente a ago comunicativa € capaz de abarcar os trés mundos, anterio- mente isolados em esferas de aco estanques. Para pensar essa nova totalidade, Habermas propée uma mudanga de paradigma: da filosofia da consciéncia para a teoria da interagdo, da razio reflexiva para a razao comunicativa. Com essa nova “‘revolugéo copernicana” Habermas procura resgatar a validade da teoria cognitiva da razo sem incorrer nas limitagdes impostas por Kant. ‘A razdo comunicativa proposta por Habermas é essencialmente dialégica, substi- tuindo © conceito monolégico da razo pura de Kant. Ela nfo mais se assenta no sujeito epistémico mas pressupée o grupo numa situacao dial6gica ideal. A verdade produzida nesse novo contexto € processual e depende dos membros integrantes do grupo. Nesta nova concepgao da razao comunicativa a linguagem torna-se elemento constitutivo. A perspectiva lingiistica introduzida na reflexdo da teoria da ago comunicativa parte do dado pragmiitico da linguagem como base, “cho” de todo proceso interativo ue abrange as priticas comunicativas dos trés mundos: dos objetos, das regras, do su- jeito. Na fala quotidiana (Lebenswelt) as préticas comunicativas que permeiam esses trés mundos permanecem inquestionadas. A mesma linguagem que articula essas préti- cas permite, contudo, seu questionamento, suspendendo as aspiragdes de validade (Giiltigkeitsanspriiche) nelas subentendidas. Toma-se possfvel, através dessa lingua- gem, questionar a verdade dos fatos (do mundo objetivo), a correcdo ou justeza das normas (do mundo social) ¢ a veracidade do interlocutor (mundo subjetivo). Habermas 36 FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razio prética de Kant 8 ética discursiva de Habermas. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, (2); 7-44, 2.sem. 1989. chama de “‘discurso” esse questionamento das “‘aspiracées de validade’” embutidas na comunicacéo quotidiana. E um processo argumentativo acompanhado do esforgo de restabelecer um uso sui generis da linguagem, que exige a argumentacio e a justifica- cdo de cada ato da fala por parte dos interlocutores participantes da interagio. No discurso tedrico sto problematizadas e revistas as afirmagées feitas sobre os fatos, € reassegurado verbalmente o nosso saber sobre o mundo dos objetos, é redefini- da a verdade até entdo vigente ¢ aceita no grupo. No discurso prdtico sio postas em cheque a validade e a justeza das normas sociais que regulamentam a vida social. Nesse processo argumentativo, em que cada afirmagio precisa ser justificada, cada julgamento defendido e reafirmada a validade das regras em questo, prevalece unicamente o crité- rio do melhor argumento, capaz de obter a aprovagao dos membros do grupo. Ambas as formas do discurso pressupem interlocutores competentes e verazes, attando em situa- Ses dialégicas ideais, livres de coagao. A questo da moralidade em Habermas insere-se, pois, no corpo de sua teoria da acdo comunicativa. Enquanto “questo” ela € elaborada e repensada no contexto do discurso prético. Se para Kant o critério iiltimo da moralidade se condensava no “‘impe- rativo categérico”’, para Habermas ele se radica no “proceso argumentativo””, desenca~ deado pelo discurso prético. Essa mudanca de foco constitui a esséncia da “ética dis- cursiva’”’. b) A ética discursiva de Habermas Em seu livro Consciéncia moral e acdo comunicativa (1983), Habermas inclui 0 ensaio “Etica discursiva — notas para um programa de fundamentagéo”, onde procura sintetizar os principais tragos da ética discursiva, delimitando sua teoria em face das contribuigdes de Apel, Tugendhat, Wellmer, Rawls, Hare ¢ outros. Mas 6 em Moralida- de e ética (1986) que se encontram as reflexes mais precisas sobre o tema. Em sua esséncia, a ética discursiva procura substituir 0 imperativo categérico de Kant pelo procedimento da argumentacdo moral. Dessa forma, o imperativo categdrico é transformado em um princfpio universalizavel, na situagéo dialégica ideal, perdendo sua autoridade como critério moral absoluto “puro”. A ética discursiva sugere que so mente podem aspirar & validade aquelas normas que tiverem 0 consentimento ¢ a aceita- do de todos os integrantes do discurso pritico. Para que uma norma tenha condicdes de transformar-se em norma geral, aspirando validade universal enquanto maxima da con- duta de todos os participantes do discurso pritico, os resultados ¢ efeitos colaterais de- correntes da sua observancia precisam ser antecipados, pesados em suas conseqiiéncias € aceitos por todos. Isto ocorre através de um procedimento argumentativo em que pre- valece o melhor argumento, respeitados todos os demais, & luz de sua maior coerén- FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razSo prética de Kant a ética discursiva de Habermas. 37 Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989, cia, justeza © adequagao. O carter universal de uma norma ou princfpio moral qualquer 86 se evidencia se tal princfpio ou norma nao exprimir meramente a intuigéo moral de uma cultura ou época especifica, mas sim um contetido que possa ter validade geral, fu- gindo a toda e qualquer forma de etnocentrismo. Apesar da énfase dada ao caréter processual, ao procedimento dialégico, argu- menlativo, a ética discursiva néo é — nessa tiltima verso habermasiana — uma teoria pu- ramente formal. Ao contrério, Habermas sublinha que a ética discursiva parte da extre- ma vulnerabilidade da pessoa, tendo como contetido a defesa da integridade e dignida- de dessa pessoa, No contetido, a ética discursiva permanece, pois, fiel as suas ratzes kantianas; quanto & forma, ela se reorienta pelo enfoque processual mediante o qual es- se contetido € buscado, reafirmado e consolidado pelo grupo. A ética discursiva articu- la-se nos dois principios que sempre constituiram 0 corpo da questio da moralidade: a justica e a solidariedade. A justiga se obtém buscando através dos processos argu- mentativos conduzidos pelos integrantes do discurso prético a norma que defenda a in- tegridade invulnerabilidade da pessoa humana. Esse objetivo ou valor (buscado pro- cessualmente) s6 se efetiva no grupo social, que através da solidariedade reciproca as- segura 0 bem estar de todos. A dignidade da pessoa sé pode ser realizada no grupo que concretizar 0 respeito miituo e 0 bem estar de cada um, assim como a autonomia do su- jeito depende da realizagao da liberdade e da solidariedade de todos. Nao € mais 0 sujeito moral kantiano que, seguindo seu dever, define monologica- mente 0 que possa ser considerado um principio generalizvel, mas sim o grupo inte- grante de um discurso prético que dialogicamente elabora, & base do argumento mais justo, correto, racional, © que possa ser considerado um principio universalizdvel. No procedimento argumentativo, todos os integrantes do discurso participam, todas as vontades subjetivas so expressas, todas as criticas e ponderagdes so consideradas, to- das as conseqiiéncias priticas sio antecipadas e todos os efeitos colaterais de uma pos- sivel ago, pesados. O novo principio regulador, a norma universal que também seré a maxima moral de cada um, ndo é um dado a priori, mas o resultado tltimo de um longo processo argumentativo, viabilizado pelo discurso pratico. A ética discursiva de Habermas pressupée pelo menos trés dados, ainda nao sufi- cientemente explicitados: a competéncia comunicativa dos integrantes do grupo; situa- 6es dialégicas ideais, livres de coergao e violencia; e, finalmente, um sistema lingiifsti- co elaborado que permita por em pritica o discurso (teérico prético). Estes “dados” (pressupostos) contrastam com os “dados"” observados na realidade histérica que cons- tituem, nas sociedades modemas, verdadeiras “‘cargas politico-morais” insuportveis para © nosso tempo. Habermas enumera quatro: a fome no terceiro mundo, a tortura institucionalizada, 0 desemprego crescente, mesmo nas economias mais avangadas do mundo ocidental, ¢ as ameagas do desequilibrio ecolégico que implicam na possivel autodestruigao da humanidade. 38 FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razio prética de Kant a ética discursiva de Habermas. ‘Tempo Social; Rev. Sociol, USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. ‘A solugao desses problemas nem sempre se pode dar no contexto da “ética discur- siva", Habermas, por isso mesmo, havia destacado outras formas de ago, distintas da comunicativa, como a aco instrumental, que permitiria resolver parcialmente os pro- blemas da fome, do desemprego ¢ do equilfbrio ecolgico, naquilo que esses problemas tém de téenico. Quando a ago instrumental ¢ a comunicativa néo conseguem (pacifi- camente) resolver tais problemas, Habermas admite a acdo estratégica, cuja funcao pri- mordial consistiria em estabelecer as condigdes materiais e politicas para que @ acio comunicativa ¢, no contexto dela, o discurso pratico possam entrar em aco. c) Habermas x Piaget Gragas apropriagéo habermasiana do estruturalismo genético de Piaget € Kohlberg, € possivel fundamentar parte dos pressupostos da “‘ética discursiva”” acima mencionados: a competéncia comunicativa, a situacao dialégica ideal ¢ a existéncia de um sistema lingiifstico. 1. A psicogénese das estruturas do conhecimento € dos esquemas do julgamento moral da crianga ocorre, como vimos, por estégios, obedecendo a seqiiéncias fixas de carter universal. O pensamento Idgico-formal e 0 julgamento moral do adulto caracte- rizam-se pela competéncia hipotético-dedutiva e pela competéncia do julgamento moral aut6nomo (por principios). Os trabalhos empiricos ¢ interculturais de Piaget ¢ Kohlberg mostram que todas as criancas, independentemente do meio social, do contexto cultural ou do sexo, atingem no processo interativo com 0 mundo dos objetos e com o grupo so- cial os estégios mais avancados da psicogénese. Apesar do problema das “decalagens” (defasagens em atingir certos estigios, em certas faixas etérias), que introduz um fator complicador que a discussao atual ainda nfo esclareceu em toda a sua complexidade (Freitag, 1983), 0s resultados até agora obtidos permitem manter a tese da universalida- de dos processos e das competéncias. Para o estruturalismo genético, as competéncias do pensamento Iégico ¢ moral expressam-se na competéncia comunicativa. O pensa- mento socializado, ou a inteligéncia comunicativa, é justamente aquela faculdade da ra- 280 que, depois dos diferentes processos de descentramento, permitem a comunicagao das idéias e dos préprios pensamentos aos outros, considerando os pontos de vista des- ses agentes, seu nfvel de informagao, seus interesses, suas condigdes de compreensao. © qualificativo “comunicativo” ou “socializado” exprime o fato de que tal pensamento deixou de ser egocéntrico, privatizado, monolégico, utilizando para exprimir-se uma linguagem compreensfvel aos outros. O “pressuposto”” habermasiano, de interlocutores competentes integrantes de um discurso pritico encontra desse modo sua fundamentacéo tedrica ¢ empirica no estrutu- ralismo genético, deixando de ser pressuposto e transformando-se em conhecimento as- segurado pela experiéncia. FREITAG, Barbara. A questo da moralidade: da razéo prética de Kant a ética discursiva de Habermas. 39 ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, 8. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989, 2. A situaco dialégica ideal, livre de coerco, deixa igualmente de ser uma cons- truco teérica no sustentada, se recapitularmos as passagens da construgéo da morali- dade em Piaget e Kohlberg. A tomada de consciéncia do mundo social a partir da inte- ragio da crianga com 0 grupo decorre de praticas do jogo ou relagées sociais em que a crianca vai assumindo (mentalmente) as posigdes de cada jogador, compreendendo me- Ihor as proprias chances de jogar e vencer dentro das regras estabelecidas. Esse verda- deiro role taking (Mead) pode ser interpretado como um processo de reconstrugéo mental de todos os demais pontos de vista, egos com interesses e vontades préprias cu- jas acdes podem entrecruzar-se e cuja margem de liberdade est prefixada pelo jogo (papéis ou interagées padronizados). Essa tomada de consciéncia vai além do conheci- mento e da reconstrugao dos padrées sociais e das regras vigentes, na medida em que permite reconhecer a natureza social da regra e sua dependéncia do consenso e do res- peito miituo dos atores cujo comportamento ela pretende regular. Ao questionar a vali- dade de uma regra (reconhecimento de sua arbitrariedade) ¢ ao renegocié-la com os de- mais jogadores do jogo social (reconhecimento da necessidade da regra), a crianca pia- getiana pratica mentalmente o discurso ético, realiza um didlogo interior que pressupde a antecipacdo da aco dos outros, calculando e ponderando efeitos colaterais. Em caso de equivoco, os pares corrigem, contestam, argumentam e impéem 0 argumento mais convincente, A situacao dialégica ideal € realizada e praticada na situacao de jogo (conereto) e € reconstruida mentalmente em cada nova ago ou situagao de conflito. Piaget e Kohlberg descreveram na pritica e em situacdes experimentais a realidade e 0 funcionamento da ética discursiva, sem dar-Ihe este nome. Em sua releitura, Habermas retoma esse assunto com a terminologia que criara em trabalhos anteriores e consolidara na Teoria da agdéo comunicativa. O radicalismo democratico de Habermas, que se exprime em sua teoria consensual da verdade ¢ em sua teoria moral, encontra sua fundamentagao epistemol6gica e expe- rimental no estruturalismo genético de Piaget e Kohlberg. Independentemente das ca- racteristicas hist6ricas da sociedade em que se insere a psicogénese, a crianga, ao mes- mo tempo que interage com o grupo, constréi e reconstr6i as regras sociais que regem 0 seu funcionamento, elaborando padroes ideais de justica, igualdade e solidariedade. As situagées dialégicas ideais nio séo uma simples construgao te6rica, hipotética, tipico- ideal de Habermas, mas so praticadas democraticamente (sem a intervengdo dos adul- tos) ¢ espontaneamente nos grupos dos peers, durante os jogos ou em situagdes de con- flito vividas pelas criangas. © descompasso entre as estruturas de consciéncia moral atingidas e as estruturas autoritérias repressivas da sociedade pode levar — como Kohlberg acredita ~ a regressGes nos est4gios de consciéncia, a fim de acomodar as es- truturas do julgamento moral aos padrées vigentes na cultura. 3. O tiltimo pressuposto, 0 verdadeiro “cho” no qual todas as atividades societ4- rias se assentam, ¢ sem o qual a sociedade contemporinea perderia sua base real, é a 40 PREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razio prética de Kant & ética discursiva de Habermas. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem, 1989, linguage m, Ela assume na teorizagao habermasiana a fungao que Deus tinha nas éticas religiosas e que a sociedade tem na teoria sociolégica positivista. A linguagem é © ponto de partida e de chegada de toda a reflexiio da sociedade (sobre si mesma), in- cluindo aqui 0 conhecimento do mundo dos objetos e 0 conhecimento do mundo das normas. Sua origem € sua constituicao dentro das sociedades e sua aquisicao por parte da crianga nao constituem um interesse central no estruturalismo genético de Piaget Kohlberg, apesar de haver uma infinidade de trabalhos dos préprios autores ou de seus colaboradores que procuram desvendar a influéncia da linguagem na construco das es- truturas do pensamento. Em sua esséncia, 0 estruturalismo genético afirma porém que a linguagem é a expressdo de estruturas mentais ¢ nao, segundo afirmam sécio-lingiifstas como B. Bernstein, que as estruturas mentais sao 0 reflexo, ou melhor, a internalizagao das estruturas da linguagem. Habermas recorre a outros autores (Apel, Wellmer, Gada- mer, Bihler, Dilthey etc.) e a novas orientagdes de pesquisa: pragmética universal, hermenéutica, filosofia da linguagem, psico e sociolingtifstica etc. para melhor formular sua teoria. ‘Ao fundamentar dois dos pressupostos da ética discursiva, a saber, a competéncia lingifstica ¢ a situagéo dialégica, o estruturalismo genético de Piaget nao esgotou suas possibilidades como grade interpretativa para a teorizacdo de Habermas, Em sua Teoria da agao comunicativa 0 autor parte de um quarto pressuposto, estabelecendo uma ana- logia entre os processos evolutivos das sociedades histéricas ¢ a psicogénese (Freitag, 1985). Isso Ihe permite interpretar os processos societérios como processos de “‘apren- dizagem”’ coletiva. Se na psicogénese a crianga aprende reorganizando o seu conheci~ mento do mundo em patamares cada vez mais elevados ¢ sofisticados das estruturas mentais, também as sociedades, em seu percurso hist6rico, perfazem uma trajet6ria mar- cada pelo acréscimo de saber, que se institucionaliza nas estruturas cada vez mais com- plexas do sistema societério. As sociedades hist6ricas adquirem assim uma competéncia crescente para lidar com seus problemas de sobrevivéncia ¢ para controlar e equilibrar 0s conflitos ¢ as contradigées internas. A “teoria da agao comunicativa” pode ser inter pretada como uma tentativa de repensar e reordenar em termos piagetianos, 0 pensa- mento sociolégico produzido no decorrer do tempo. As teorias sociolégicas clissicas ¢ contemporaneas representam para Habermas a génese do conhecimento das sociedades sobre si mesmas. Ao reorganizar esse saber, 0 autor identifica areas de racionalidade comunicativa embutidas nos “‘nichos” do sistema. Apesar da predomindncia, nas mo- demas sociedades industriais, da razdo instrumental, necessdria para assegurar a repro- dugo material do sistema, mas presente ilicitamente também nas areas da organizagdo politica cultural da sociedade (“mundo vivido”), a razo comunicativa sobrevive ho- je, institucionalmente, na ciéncia organizada, nos parlamentos, tribunais etc. A psicogénese correspondem, pois, a sociogénese (processos evolutivos da socie- dade) ¢ a génese do conhecimento cientifico e critic organizado (histéria da ciéneia FREITAG, Barbara, A questo da moralidade: da razio prética de Kant A ética discursiva de Habermas. 41 ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. institucionalizada). Nos trés processos 0 denominador comum €0 aprendizado, isto 6, a capacidade crescente do sujeito, da sociedade ¢ dos cientistas de lidar com os problemas que enfrentam na realidade. Esse tiltimo pressuposto € fundamental para elucidar a teoria da modemnidade de Habermas. Sem incorrer no erro de Durkheim, confundindo as sociedades reais com © ideal de sociedade, mas evitando também o pessimismo pés-modemo a la Lyotard, Habermas defende a sobrevivéncia da razio comunicativa no contexto societério de hoje, exigindo a institucionalizacao do discurso (te6rico e prético) em todos os nfveis € em todas as reas da sociedade, ou seja, a renegociagao permanente, por parte de todos ‘0s membros da sociedade, da verdade do saber acumulado ¢ da validade das normas estabelecidas, assim como da veracidade de todos o participantes do discurso. A ética discursiva de Habermas € uma das pegas-chave desse projeto de radicali- zacio democratica. A questio da moralidade confunde-se aqui com a questio da demo- cracia em sua verso original: 0 debate ptiblico de todos os cidadaos da pélis na 4gora. Conclusao A moralidade, enquanto principio que orienta a agdo, permite varias abordagens, sugerindo um tratamento interdisciplinar. Neste ensaio, limitei-me a quatro: a aborda- gem filos6fica (Kant), a abordagem sociolégica (Durkheim), a abordagem psicogenética (Kohlberg) a discursiva (Habermas). A grade que orientou esta selegao ¢ delimitou os temas abordados foi o estruturalismo genético de Piaget, que fornece os elementos para se pensar adequadamente a questo em seu conjunto. O estruturalismo genético se calca na razio, inclui a sociedade a reflexo, reconstréi a génese do julgamento e considera fundamental 0 discurso. Por isso, Piaget repousa em Kant, debate-se com Durkheim, prepara o terreno para Kohlberg ¢ antecipa a teorizagdo de Habermas. Para Kant, a condicao da possibilidade da moralidade ¢ 0 sujeito. Trata-se de um sujeito livre, disposto a agir segundo certos principios (méximas), concretizando fins autodeterminados. Este sujeito € dotado de vontade ¢ razo. E 0 sujeito moral do “im- perativo categérico”. Suas faculdades se concretizario na formulagao € no respeito de uma lei geral e necesséria que tem como valor tiltimo € supremo a defesa da dignidade humana. A questéo da moralidade em Kant resume-se, pois, em trés postulados: existe um sujeito moral; ele € dotado de vontade e razdo; ¢ é capaz de legislar para 0 mundo dos costumes (sociedade) em defesa da dignidade do homem. Kant forneceu, assim, to- dos os conceitos necessérios para pensar em termos contempordneos a questiio da mo- ralidade. Ao distinguir entre razo pritica e razio te6rica, deixou claro que a razio pré- 42 FREITAG, Barbara, A questio da moralidade: da razo pritica de Kant & ética discursiva de Habermas. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. tica age no livre mundo do fazer (Machbarkeit) — a sociedade — ¢ que a razio te6rica reconhece um mundo determinado — a natureza. O sujeito epistémico complementa 0 sujeito moral; a ciéncia € necessdria para sobreviver na natureza, a moralidade é neces- séria para constituir a sociedade, Cidadao dos dois mundos (0 natural ¢ 0 social), 0 ho- mem precisa defender-se no primeiro e afirmar-se no segundo. Para Durkheim, a condigéo da possibilidade da moralidade € a sociedade. Isso Pressupée a obediéncia do sujeito e sua subordinacdo as leis da sociedade vigente. Durkheim exige a dissolugdo do sujeito no social. A sociologia positivista elimina o sujeito (moral e epistémico), suprime a razdo prética e socializa a razao te6rica. Elimina assim a idéia da factibilidade do mundo social e instaura a hegemonia da razio social estabelecida. A sociologia, uma entre varias ciéncias, conhece 0 mundo social com os mesmos instrumentos com que a fisica ¢ a matemética conhecem o mundo natural. O re- ducionismo pos ista de Durkheim é fatal para a questao da moralidade, representando um retrocesso em relacio ao que foi pensado por Kant, porquanto dissolve as fronteiras por ele cuidadosamente delimitadas, transformando a questéo da moralidade em uma questéo cientifica e educacional. Exorcizados os elementos perturbadores — sujeitos dotados de razio pritica e vontade de agir, imersos em um mundo factivel — 0 mundo social € reduzido ao status quo, que se postula como expresso maxima da moral. Para © bem ou para o mal, via educagéo ou punicdo, os individuos so coagidos a subordi- nar-se a lei geral (moral), & qual € conferido estatuto de lei natural. A consciéncia moral do individuo é 0 reflexo da consciéncia coletiva. A acéo moral traduz 0 modo de sentir ¢ agir da coletividade. Apesar desse reducionismo, Durkheim apontou para um aspecto importante da questo da moralidade: sua materializagao nas estruturas societérias, sob a forma do direito, Se Kant enfatizou o sujeito, Durkheim enfatizou a sociedade. Sem o sujeito, a moralidade nao existe; sem a sociedade, ela ndo é necesséria. A condicao da possibilidade da moralidade para o estruturalismo genético é a au- tonomia moral, isto &, a faculdade do sujeito de autonomizar-se das leis e normas que orientam a acdo do grupo e de agir ¢ julgar segundo um principio interior ideal. Este principio nao € dado a priori, fora da experiéncia, mas € 0 resultado de um longo pro- cesso genético. A formagao da consciéncia moral auténoma em Piaget nao € o reflexo, no sujeito, de leis sociais, mas um padrao moral construido e reconstrufdo ativamente pela crianga em sua interagao permanente com 0 grupo. A autonomia moral é 0 resulta- do de uma psicogénese bem sucedida do sujeito. Para alcangé-la, s0 mobilizados pro- cessos internos de maturago e equilibragdo e processos extemnos de transmissio cultu- ral e educativa. A autonomia moral resulta da experiéncia vivida e reorganizada perma- nentemente no interior da estrutura mental. Ao mesmo tempo que se forjam os instru- mentos de julgamento, sao construfdos os principios ideais, destilados das regras sociais que regulamentam a vida quotidiana no grupo. A condi¢ao da possibilidade da “*ética discursiva” a inter-subjetividade — a inte- racao mediatizada pela linguagem. A moralidade de Habermas € dialdgica em contraste FREITAG, Barbara, A questo da moralidade: da razio prética de Kant a ética discursiva de Habermas. 43 ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. com a de Kant, monolégica. A moralidade habermasiana € negociada no contexto da Lebenswelt (mundo vivido) em oposigao & heteronomia imposta pelo sistema social de Durkheim; é 0 fruto de uma interagdo comunicativa que visa & autonomia da espécie, complementando a moralidade piagetiana, em que a autonomia resulta da psicogénese. Se, por um lado, a ““ética discursiva” se define no contraste com a teoria da moralidade de Kant, Durkheim e Piaget, ela pode, por outro lado, ser interpretada como um esforgo de sintese dessas trés teorias: € Kantiana ao aceitar a autonomia e a dignidade do ho- mem como ‘élos da moralidade, 6 durkheimiana quando reconhece a importincia do so- cial ¢ € piagetiana quando admite que os prinefpios que orientam a ago moral néo so inatos, mas objeto de uma construco psicogenética. FREITAG, Barbara, The question of morality: from Kant's practical reason to Habermas's discoursive ethics. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, Sfo Paulo, 1(2): - , 2.sem. 1989. ABSTRACT: Morality as a guiding principle for action allows for various approaches, thus suggesting an interdisciplinary treatment of the problem. This essay focus on four of such approaches: the philosophical (Kant’s), the sociological (Durkheim's), the psychogenetic (Kohlberg's) and the discoursive (Habermas's) ones. The cleavage that orients this selection and defines the themes for analysis is Piaget's genetic structuralism, which provides the necessary elements to adequately grasp the problem as a whole. Genetic structuralism is based on reason, includes society in the reflexive process, recreates the genesis of judgement and considers discourse as a fundamental clement. Thus Piaget finds support in Kant, takes Durkheim into account, sets the ground for Kohlberg and antecipates Habermas's theorization, UNITERMS: Morality: the philosophical, the sociological, the psychogenetic and the discoursive approaches. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS DURKHEIM, Emile (1895). Les régles de la méthode sociologique. Paris, PUF, 1973. (1893). De la division du travail social. Paris, PUF, 1973. (1912). Les formes élémentaires de la vie réligieuse. Paris, PUF, 1968. (1925). Education morale. Paris, PUF, 1963. (1924). Sociologie et philosophie. Paris, PUF, 1967. FREITAG, Barbara. Piaget: encontros e desencontros. Rio de Janciro, Tempo Brasileiro, 1985. 44 FREITAG, Barbara. A questio da moralidade: da razio prética de Kant a ética discursiva de Habermas. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 7-44, 2.sem. 1989. HABERMAS, Jurgen. Theorie des kommunikativen Handeins, FrankfuryM, Subrkamp Verlag, 1981-83, 3v. Moralbewusstsein und kommunikatives Handein. Frankfurt/M, Suhrkamp Verlag, 1983. Moralitit und Sittlichkeit. Treffen Hegels Einwande gegen Kant auch auf iskursethik zu? In: KULMANN, Wolfgang, org. Moralitdt und Sittlichkeit, Das Problem Hegels und die Diskursethik. Frankfurt/M, Suhrkamp Verlag, 1986. KANT, Immanuel (1788). Kritik der praktischen Vernunft. Frankfurt/M, Suhtkamp Verlag, 1977a, Werkausgabe VII. (1786). Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Prankfurt/M, Suhrkamp Verlag, 1977b, Werkausgabe VII. KOHLBERG, Lawrence. Stage and sequence: the cognitive-developmental approach to socialization. In: GOSLIN, D.A. Handbook of socialization theory and research. Chicago, Rand MeNally College Publishing Co., 1969 Moral stages: a current formulation and a response to critics. New York, S. Karger, 1983. KOHLBERG, Lawrence & COLBY, Anne et alii, The measurement of moral judgement. London, Cambridge University Press, 1987, 2v. PIAGET, Jean (1923). Langage et pensée chez enfant. Neuchatel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1976. (1924). Le jugement et le raisonnement chez Cenfant. Neuch&tel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1971. (1926). La réprésentation du monde chez enfant. Paris, PUF, 1976. (1932). Le jugement moral chez Cenfant. Paris, PUF, 1973a. (1937). La naissance de intelligence chez enfant. Neuchitel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1973b. PIAGET, Jean & SZEMINSKA, A. La génése du nombre chez Penfant. Neuchatel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1962. PIAGET, Jean & INHELDER, B. La génése des structures logiques élémentaires. Classifications et sériations. Neuchatel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1959. Le dévelopment des quanttés physiques chez Tenfant. Neuchatel-Paris, Delachaux et Niestlé, 1941 PIAGET, Jean. Nature et méthodes de l’épistémologie. In: PIAGET, Jean, org. Logique et connaissance scientifique. Paris, Gallimard Pléiade, 1967.

Você também pode gostar