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RIVISTA DI STUDI PORTOGHESI E BRASILIANI VII + 2005 + PISA - ROMA ISTITUTI EDITORIALI E POLIGRAFICI INTERNAZIONALI MMVI Rosa Maria MarTELO ‘OS POEBTAS FUTUROS COM MAQUINAS DE FILMAR NAS MAOS’: : RELAGOES ENTRE POESIA E CINEMA EM HERBERTO HELDER E MANUEL GUSMAO r pirfcrt separar a emergéncia e 0 devir das poéticas da modernidade pés-baudelairiana da forma como estas envolveram uma extensa experimentacao dos processos de ela- boracio discursiva de imagens perceptivas. Indissociavel do crescimento das grandes metrépoles, a modernidade trouxe para a poesia os efeitos de uma vivéncia essencialmente urbana, na qual a experiéncia anénima da multidao e do movimento citadino conduzia a novas formas de percepcao € a uma diferente valorizacao do olhar. Na segunda metade do século xrx, a0 mesmo tempo que se ensaiavam diferentes técnicas no dominio da projeccao de imagens em movimento e se abria caminho ao cinemat6grafo dos irmaos Lumiere, poetas como Baudelaire ou Cesirio Verde exploravam as relacées entre a experiéncia visual e a meméria, entre a per- cepcio do espaco ¢ a vivéncia do tempo. E procuravam uma linguagem nova, capaz de sugerir © impacto das imagens citadinas sobre um sujeito em movimento, simultaneamente isolado no seu tempo interior, rememorativo, e assaltado pelos inumerdveis estimulos visuais que a cidade Ihe oferecia. Mais tarde, o Modernismo viria a ser particularmente sensivel as potencialidades do cruzamento de imagens perceptivas, designadamente como forma de contengo expressiva e como estratégia de concrecdo da experiéncia emocional do mundo; e, 4 sua maneira, iria explorar a translagio das imagens, por vezes de formas provocatoriamente experimentalis- tas, como aconteceria nos poemas interseccionistas de Fernando Pessoa. Sensivelmente pela mesma altura em que Pessoa caracterizava a arte moderna como ‘arte do sonho’ e defendia que ‘o sonho € da vista geralmente’, definindo 0 poeta do sonho (0 poeta moderno) como ‘um visual estético’,’ Pound acentuava o facto de a imagem «apresenta[t] um complexo intelectual e emocional num instante de tempo».* Ndo muito depois, Eliot defenderia a importancia dos ‘correlativos objectivos’, vendo neles ‘o anico modo de expressar emocao na forma de arte’? (O cinema lancava-se, entretanto, na exploracdo da imagem em movimento e das técnicas de montagem. Mas, apesar deste interesse partilhado pela imagem e pelos processos da relaciona- ao das imagens, sera sobretudo ao longo da segunda metade do século xx, quando a industria Ginematogréfica ja se impusera decisivamente € quando o cinema passa a constituir uma das praticas culturais e artisticas mais divulgadas e acessiveis, que o didlogo mantido pela poesia com 0 cinema se fara sentir nitida e directamente. Dir-se-ia que, nesse momento, a memoria da imagem niio podia jé separar-se da meméria das imagens do cinema e do tratamento cine- matografico da imagem: A escrita nao substitui o cinema nem o imita, mas a técnica do cinema, enquanto oficio propiciatorio, snscita modos esferograficos de fazer e celebrar. Olhos contempladores ¢ pensadores, mao em maos seriais, movimento, montagem da sensibilidade, miisica vista (ougam também com os olhos!), oh, cami nhamos para a levitacao na lu: + FERNANDO Pessoa, Paginas sobre Literatura ¢ Estética, organizagao de Antonio Quadros, Lisboa, Publicagdes Europa-América, 1988, pp. 99-100. > 'A Few Dont's’, Poetry, 1 - 6, 1913, tetomado em ‘A retrospect’ (1918). Cf. Jow Coox (ed.) Poetry in Theory, An Anthology, 1900-2000, Blackwell, 2004, p. 84, 5 TS. Exior, Hamlet (1919), «Ensaios Escolhidos», Lisboa, Cotovia, 1992, p. 20. 50 ROSA MARIA MARTELO No contexto portugués, Herberto Helder, que acabo de citar,’ é provavelmente o poeta que mais cedo formulou, analisou ¢ explorou esta relacdo com sistematicidade; mas so muitos 08 didlogos mantidos pela poesia portuguesa da segunda metade do século xx com o cinema, quer ao nivel tematico, quer ao nivel de uma renovacio lexical que passa pela exploracao de vocabulos como ‘fotograma’, ‘écran’, cimara’,> quer através de uma reflexdo metapoética que toma o cinema como pohito de referéncia, quer, ainda, através de uma revisio do proprio entendimento da imagem. As reflexdes que se seguem nao pretendendo, de modo algum, dar conta de um quadro de relac&es tao vasto e complexe, trabalham no entanto no seu interior, e partem do estudo de dois poetas para os quais 0 cinema constitui uma referéncia importan- tissima: Herberto Helder e Manuel Gusmao. 1, HeRBERTO HELDER & aS TECNICAS DA ATENGAO ARDENTE Numa das actuais seccdes de Photomaton & Vox, num texto inicialmente integrado no livro Cobra, de 1977, onde funcionara como um predmbulo de teor metapoético, Herberto Helder recorre de maneira sistematica ao cinema para falar da poesia. O titulo do texto em questdo é (meméria, montagem)’,? ¢ € precisamente em funcdo dos dois conceitos assim destacados que sera desenvolvida uma minuciosa aproximacao entre a linguagem pottica ¢ a linguagem cinematogréfica. Herberto Helder nao pretende falar do cinema, mas antes dizer o que é, ou o que faz, a poesia. No entanto, é através do permanente cruzamento das duas artes ¢ através da memoria do cinema que 0 poeta chega a ‘montagem’ de um texto onde expoe uma relacio indissociavel entre a meméria € a imagem (perceptiva), ¢ entre estas a construcao do sentido, desenvol- vendo uma reflexdo na qual o espaco é apresentado como ‘metafora do tempo’, isto é, como condicao de dizibilidade e de presentificacao do tempo. «Nao existe outra metéfora que nao seja 0 espaco;» — afirma — «aquilo a que chamam metéforas so linhas de montagem narrativa, © decurso da alegoria, o espectéculo» (p. 148), E num dos pontos fulcrais do desenvolvimento deste mesmo texto podemos ainda ler: Qualquer poema é um filme, 0 tinico elemento que importa é 0 tempo, € o espaco & a metéfora do tempo, ¢ 0 que se narra é a ressurreicao do instante exactamente anterior 4 morte, a fulgurante agonia de um nervo que irrompe do poema e faz saltar a vida dentro da massa irreal do mundo. (p. 148). ‘Filme’ significa entao, neste contexto, a exposicao/visualizacdo/presentificagio do tempo através das imagens e de acordo com uma determinada montagem (seleccio e organizacio). «A poesia propée a histéria do mundo. / Temos entio 0 filme, 0 tempo», ira concluir Her- berto Helder; e é, de facto, em funcio de uma reflexdo orientada para a demonstragio da dizibilidade do tempo através da imagem na poesia que 0 poeta recorre & identificag4o poe- sia/cinema, ou, mais concretamente, poema/filme. O texto ‘(meméria, montagem)’ inclui uma espécie de brevissima histéria da poesia moder- na, ancorada na relacdo entre a meméria e a imagem perceptiva. Escreve ainda Herberto Helder: Eu penso que a meméria entra pelos olhos. Ha umas partes inflamaveis nas paisagens, as que regressam quando vemos a meméria a mover-se de fora para dentro. (p. 146). Na génese do poema estaria, assim, uma experiéncia selectiva do mundo ou das imagens \ Herararo Hetner, Cinemas, «Relimpago», n° 3, Outubro de 1998, p. 7. > Cf. Cantos ve Otivsina, Cinema, «Sobre o Lado Esquerdo», Obras, Lisboa, Caminho, 1992, pp. 219-221. > Heraerto HeLper, meméria, montagem, «Photomaton & Vox», 3*ed., Lisboa, Assirio & Alvim, 1995. Dado este fragmento de Phtomaton é Vox ser varias vezes referido na primeira parte deste estudo, as indicacdes de paginacio las no corpo do texto. *OS POBTAS FUTUROS COM MAQUINAS DE FILMAR NAS MAOS? 5I como ‘pontos luminosos’ (Pound), func&o de uma subjectividade que faz coincidir as ‘partes inflamdveis nas paisagens’ (isto 6, aquelas que por sua vez interpelam essa subjectividade) com ‘uma montagem, uma nocao narrativa propria’, como o poeta diré um pouco adiante. Sé atra- vés dessa montagem € possivel ‘ve[rJmos a memiéria mover-se de fora para dentro’, porquanto a memoria seria catapultada pela forca das imagens, mas agiria sobre clas simultaneamente, organizando-as através de uma coeréncia insidiosa.' Nessa medida, Herberto Helder substitui qualquer ambicao de representacéo por um tinico ‘intento’, ‘o da relacao, segundo uma forma basica, entre a intensidade pessoal e a intensidade do mundo’ ;? e descreve ‘os poetas futuros com méquinas de filmar nas mos’, isto é, como os realizadores do filme, como aqueles que fazem 0 tempo visivel/legivel. O poema, o poema-filme (mas também o filme-poema, j4 que a formulacao herbertiana também consente este sentido), seria, portanto, ‘um colar de pérolas as pérolas todas juntas’ (147), scleccdo ¢ organizacao, evidenciacio da vida (e da morte). Daf os exemplos recolhidos na histéria da pocsia - ‘Homero é cinematografico, Dante ¢ cinemato- grafico, Pound ¢ Eliot so cinematogréficos’ (p. 147) ~ exemplos que retinem poetas todos eles autores de poemas longos, narrativos, nos quais a meméria e as imagens perceptivas confluem para a evidenciacdo do tempo; poetas que, todos eles, embora de formas muito distintas, foram verdadeiros mestres na arte da montagem, Mas é precisamente neste ponto que a ideia de montagem ganha uma complexidade suple- mentar, levando-nos a reflectir sobre 0 proprio conceito em si mesmo e sobre o valor que lhe confere o texto herbertiano. Herberto Helder expde um conceito de montagem que atravessa a poesia, desde Homero até & contemporaneidade, sem todavia excluir aqueles momentos em que um desejo de contencio irradiante aparentemente inviabilizaria a sequencialidade narrativa e, muito pelo contratio, antes privilegiando esses momentos.’ A montagem que a poesia pro- cura nao identifica a presentificagao do tempo com a sequencialidade, embora nao possa deixar de se confrontar com ela, como, de resto, o demonstra a segunda parte do texto, dedicada as relagdes entre o ritmo e a imagem, e 4 pontuacéo como forma de ‘assinalar metaforicamente 0 tempo/no espaco’. Rimbaud, Cendrars, Apollinaire, juntamente com Godard e Orson Welles, so aproximados em fungio de ideias como as de paralelismo, irradiagdo, simultaneidade, inten- sidade, multiplicidade. E a imagem que nos aponta ‘os poetas futuros com maquinas de filmar nas mos’ orienta-nos, ento, para um outro conceito de cinematografia, no qual, como observado, ‘o tinico elemento que importa é 0 tempo, e 0 espaco é a metifora do tempo’. Sem exchuir aspectos como a organizacio, a seleccio e mesmo a dimensio narrativa ~ mas reformulando-os a uma outra luz ~, 0 que Herberto Helder verdadeiramente valoriza é a capacidade de irradiacao da imagem, o jogo de ecos e de replicagdes expansivas promovido pela coexisténcia das imagens, é a imagem capaz de ‘uma apresentacio directa do tempo’, isto 6, capaz de evidenciar o que Deleuze considerou um tempo crénico e nao cronolégico.* E é muito interessante verificar que, em “(meméria, montagem)’, a argumentacao de Herberto Helder tem varios pontos de contacto com a de Deleuze quando este distingue os conceitos de imagem-movimento e imagem-tempo. > Cf. Huxasero HELDER, guido, Photomaton & Vox», p. 143: «A coeréncia dos meus poemas é a coeréncia da ‘energia.»; « (..) 0 poema é uma coisa veemente e fragil. E no é frontal, mas insidioso.» > Inn, feixe de energia, «Photomaton & Vox», p. 138 3 Embora Herberto Helder nao o especifique, € facil compreender que, num certo momento, recorda a conhe- cida afirmagio de Poe, segundo a qual «“a long poem”, is simply a flat contradiction in terms», afirmagao que, até pelos exemplos aduzidos por Poe, em “The poetic principle’ (cft. Epcar ALLAN Pos, Selected Writings, Penguin, New York, 967, p. 449 sg), sugere que a montagem poética deveria evitar a narraco extensiva. Associando Poe ¢ Baudelaire, Herberto Helder faz, a propésito deste sltimo, um comentario que tem em mira as reservas de Poe perante o poema longo: «Baudelaire confundiu a sua meméria, a montagem, com as exigéncias de um certo cédigo narrativo» (p. 147), afirma, sugerindo assim que o seu conceito de montagem inclui a poesia de Baudelaire na exacta medida em que também exclui o tipo de montagem que este rejeitara * Cfi. Guts Duteuze, L'mage-temps, Paris, Minuit, 1985, p. 169. 5a ROSA MARIA MARTELO Em L’Image-temps (1985), Deleuze distingue dois regimes da imagem, um ‘regime organi- co’ € um ‘tegime cristalino’, associando o primeiro regime A nocao bergsoniana de imagem- movimento — anteriormente desenyolvida em L’Image-mouvement (1983), no quadro de uma espécie de hist6ria natural das imagens que explorava a evolugio do cinema anterior ao fim da Segunda Guerra Mundial —, e associando 0 segundo regime ao conceito de imagem-tempo, constituido posteriormente"em didlogo com a evolugao do cinema a partir do neo-realismo. O que seria proprio de um regime cristalino das imagens cinematograficas seria a construcao de uma ‘situagdo éptica pura’, implicando a crise da imagem-accao.’ Em ‘Sur L'Image-mouvement’ 0 fildsofo retoma resumidamente esta distingio chamando a atencdo para o caso de «uma personagem que se encontra numa situacdo, quotidiana ou extraordindria, que ultrapassa toda a ac¢ao possivel ou a deixa sem reaccao». E explica: «O elo sensorio-motor é cortado. Ela 4 no esté numa situacdo sensorio-motora, mas numa situacdo éptica ¢ sonora pura».* Este facto implicaria um outro entendimento do movimento e da relagdo entre 0 movimento e 0 tempo: «Nao que 0 movimento tenha cessado, mas a relacdo entre 0 movimento ¢ 0 tempo inverteu-se. O tempo deixa de decorrer da composigao de imagens-movimento (montagem) e, inversamente, é 0 movimento que decorre do tempo».’ A esta inverséo Deleuze acrescenta ainda duas alteracdes igualmente significativas: os elementos 6pticos e sonoros associados imagem tornar-se-iam ‘legiveis’, mais do que visiveis ou perceptiveis, e a imagem seria capaz de captar os mecanismos do pensamento. Recordada de forma muito resumida e inevitavelmente lacunar, a distingao deleuziana entre imagem-movimento e imagem-tempo permite-nos compreender um pouco melhor a perspectiva herbertiana. Regresso ao seu texto: Quanto mais subtil, furtiva, secreta, desentendida, complexa e ambigua for a montagem, mais penetran- te e irrefutdvel a sua forca hipnotica. Em Figures in a Landscape, de Losey, quase se nao d por nada. Mas é-se atingido em cheio. Percede-se tudo: a nossa mesma agonia. (p. 151). 1, portanto, o regime cristalino da imagem aquele que verdadeiramente interessa a Herber- to Helder quando recorre ao cinema para falar da poesia. Nao lhe interessa a montagem tal como ela ocorria no cinema quando este subordinava o tempo ao movimento (regime orga- nico); interessa-lhe, sim, esse outro regime em que o movimento devém ‘uma dependéncia do tempo’, e onde os cortes irracionais e os reencadeamentos se substituem aos cortes racionais e aos encadeamentos.’ Em sintese, 0 que o texto herbertiano verdadeiramente valoriza € “uma espécie de gangsterismo das imagens: /totalmente/méveis, da matéria, as mais puras’.* Para descrever este segundo regime, Deleuze fala ainda da imagem-cristal: ‘imaginar’ — escreve — «é fabricar imagens-cristal, fazer funcionar a imagem como um cristal.(....) O que vemos no cristal € 0 tempo tornado auténomo, independente do movimento, as relaces de tempo que nao cessam de engendrar o falso movimento.»’ Ora este regime da imagem, o scu regime cristalino, Deleuze observa-o também no Expressionismo, que Worringer preci- samente descrevera como um regime inorganico." E, de certa forma, 0 que acontece € que, ao proceder a esta distin¢do, Deleuze pode recordar o Expressionismo nas artes em geral, exactamente da mesma forma que Herberto Helder recorre ao cinema. E provavelmente pelas mesmas razdes. Porque o que esta em causa é um regime de presentificagao e asso- ciacdo das imagens que a poesia da modernidade vinha explorando de ha muito. Algo que Ines, Sur Umage-mouvement, «Pourparlers», Paris, Minuit, 1990, p. 74 > vi, p.7. Ip=M, Doutes sur Vimaginaire, p. 92. * Ii, p94, Herserto Henan, feixe de energia, «Photomaton & Vox», p. 139. Gites DeLevze, Doutes sur Vimaginaire, «Pourparlers», p. 94. * Ii, p. 95. ‘OS PORTAS FUTUROS COM MAQUINAS DE FILMAR NAS MAOS? 33 podemos associar, por exemplo, a experiéncia do choque, que Benjamin situou no cerne da poesia de Baudelaire. «Alguns poemas ja tinham ensinado uma sabedoria de olhar (...) e, pois, uma sabedoria de ver» ~ resume Herberto Helder em ‘Cinemas’. E continua: Certas montagens poemiéticas ditas espontdneas, inocentes (de que malicias dispée a inocéncia?), pro- cessos de transferir blocos da vista ~ aproximacGes, fusdes e extensdes, descontinuidades, contiguidades ¢ velocidades ~ transitaram de poemas para filmes ¢ circulam agora entre uns e outros, comandados por arroubos de eficdcia. (...) © poema, o cinema, sio inspirados porque se fundam na miniicia e rigor das técnicas da atencao ardente.* 11, MOVIMENTOS DA IMAGEM NA PORSIA DE ManuEL Gusmao. Herberto Helder fala dos poetas futuros com maquinas de filmar nas mfos’, numa formula- ¢&o que tanto se aplica aos cineastas que se aproximaram da poesia, quanto aos poctas que se aproximaram do cinema. Destes tiltimos, um deles é certamente Manuel Gusmio. Tentarei, entao, avancar um pouco mais neste breve estudo, recordando agora alguns aspectos do did- Jogo mantido por Migragées do Fogo com o cinema.’ © titulo do mais recente livro de poesia de Manuel Gusmao pée desde logo em evidéncia um principio de deslocac&o que, além de remeter para diferentes formas de movéncia que irao revelar-se essenciais no plano tematico, antecipa a presenga de um conjunto de estratégias de transposicao discursiva igualmente estruturantes, entre as quais se destacam o estabelecimen- to de relacGes intertextuais com uma vasta tradic&o poética, por um lado, e, por outro lado, © didlogo com outras artes, como a pintura, a musica e, acima de tudo, o cinema. E possivel reconhecer, ao longo deste livro, a presenca de fragmentos textuais que ‘migraram’ de Si de Miranda, de CamGes, de Wordsworth, de Cesario Verde, de Camilo Pessanha, de Rimbaud, ou de Eugénio de Andrade, entre outros, tal como so reconheciveis algumas relacées ecfrasticas com imagens vindas da pintura. Mas nenhuma arte é evocada de uma maneira tio forte quan- to 0 cinema. E compreende-se que assim seja, na medida em que este é um livro determinado pela experiéncia do tempo e pela exploracao da imagem e da narratividade. Migracées do Fogo impée muito rapidamente uma relagdo hermenéutica que convoca de maneira sistematica 0 conhecimento que 0 leitor tem do cinema, levando-o a ter sempre pre- sente a sua meméria de espectador. No entanto, esta condigéo de leitura decorre menos da frequente transposicao de planos ou sequéncias de filmes que o leitor poder eventualmente identificar do que do facto de se produzir e inquirir uma vasta rede de articulacées entre a linguagem poética e a linguagem cinematografica e, muito particularmente, entre a imagem pottica e a imagem cinematogrfica. Como ja foi referido, o leitor de Migragées do Fogo é solicitado a relacionar-se com este livro - que, convém dizé-lo desde j4, constitui um longo texto tinico, embora cada poema possa igualmente ser lido de forma autonoma - fazendo um constante apelo a sua meméria de espectador de cinema. A um nivel mais superficial, 0 estabelecimento desta espécie de contrato de leitura passa pela referéncia frequente a narrativa que de poema a poema se vai constituindo como se de um filme se tratasse: + WauTer Benjamin, Sur quelques thémes baudelairiens, Oeuvres ut, Paris, Gallimard / Folio, 2000, pp. 341-345. > Herenrro Hutper, Cinemas, «Relampago», n° 3, Outubro de 1998, pp. 7-8 * Manuet. Guswo, Migragdes do Fogo, Lisboa, Caminho, 2004. As indicacGes de paginacio referentes a este livro serdo incluidas no corpo do texto. +O conceito de ecfrasis é usado na sua acepcGo mais comum, que «claramente pressupde que uma arte, a poesia, define a sua funcio subordinando-a a fun¢do de uma outra arte ~ a pintura, a escultura, ou outrasy. Cf. Mornay Krascen, Ekphrasis ~The Ilusion of the Natural Sign, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1992, p6. 34 ROSA MARIA MARTELO (..) pagina a pagina abre-se um écran ¢ 0s ruidos desenham sob os versos o fragor do mar. Entdo, o filme varre o teu cérebro, langa o claro fogo a copa das suas arvores, e tu estremeces, coisa convulsa. (p. 26). E uma aproximacao primeira que gera outras, como a que identifica o espago com um écran (Aquele homem desmemoriado atravessa 0 écran’ (p. 16)) ou com a ‘sala escura’ (p. 17) de projeccdo, ou como a que associa a percepcao ¢ 0 esforco de compreensio ao acto de fil- mar: «(...) Tu /filmas o sofrimento estonteado a perplexidade a h-exit-accao intermitente» (p. 45). O cinema assim evocado é, porém, uma espécie de ‘cinema do sangue’ (p. 74). Assente no entendimento da experiéncia interior como precipitagdo de um acervo de imagens a que se associa uma vontade de sentido inseparavel da permanente alucinagao da memoria, este movimento discursivo faz pensar em Pasolini quando afirmava que «{tJodo o esforco de reconstrucao da meméria é uma “série de im-signos”, ou seja, [¢] de um modo primordial, uma sequéncia cinematogréfica».' No entanto, nfio devemos esquecer que artes como a pintura ¢ 0 cinema também pertencem a essa meméria das imagens, quer pelo modo como se integram na nossa experiéncia pessoal ou colectiva do mundo, quer por poderem ser formalmente estruturantes relativamente a ela, isto é, por procederem & sua cristalizagdo. Nessa medida, é dificil separar o filme interior de uma heranca em imagens onde se incluem a pintura ¢ 0 cinema. E nao admira que haja, em Migragdes do Fogo, uma repeticéo vocabular onde expres- sdes como ‘sala escura’, ‘olho mecanico’ ou ‘sair de campo’ e termos como ‘projectar’, ‘filme/ filmar’, ‘objectiva’, ‘imagem/imagens’, ‘écran/s’, ‘cinema’ s4o por diversas vezes utilizados, alguns deles de forma quase obsessiva, como acontece com as palavras ‘filme’ e ‘imagem’ que pontuam regularmente todo o livro.* 1.0 ‘filme’? Em Migragées do Fogo, 0 termo ‘filme’, embora possa ocorrer no seu sentido mais comum ¢ designar um filme propriamente dito, é normalmente utilizado num Ambito mais lato e figurado, ou como sinénimo de ‘narrativa’, ou como aluséo a um encadeamento das imagens que tende a confundir-se com um encadeamento de tempos, distintos mas tendencialmente sobreponiveis, dificultando uma visdo linear da temporalidade. B nesta iltima acepcao que a palavra se propée, quando a encontramos pela primeira vez: (..) Tudo se passa no filme que alguém estd a inventar na tua cabega que as labaredas alucinam: (p. 2). Repare-se, no entanto, que o ‘filme’ a que se faz referéncia nestes versos (isto é, a narrativa assim designada) fica a oscilar entre 0 que fora contado nos versos anteriores — para os quais © pronome indefinido ‘tudo’ remete - e 0 devir textual aberto pelos dois pontos que surgem. logo a seguir. Ora, se antes encontraramos esbogar da narrativa que ira desenvolver-se ao * usr Paoto Pasotint, O «Cinema de Poesia», «Empirismo Herege», trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Ass rio & Alvim, 1982, p. 438. Acrescente-se que, para Pasolini (Ivi, p. 99), um im-signo «forma-se através da presenca fisica, audiovisual, do protagonista, através da sua acco, através dele mesmo e em si proprio, onde a lingua se integra (...)». *"A titulo meramente exemplificativo, apresentam-se alguns indicadores dessa recorréncia, remetendo para as paginas onde ocorrem as expresses destacadas; o algarismo seguido do sinal x assinala o mimero de repetigdes na mesma pagina): ‘sala escura’ (17; 63); ‘projectar’ (17); filme (12; 13; 18; 20; 21; 26; 34; 35; 46; 48; 493 52; 63; 70- 2x); filmar (45); objectiva (19); ‘olho mecdnico’ (45); imagem[ns] (45; 213 243 26; 373 405 48; 49°3X; 523 56; 62-2%; 64; 69; 70-5x; 71-2x; 72; 74); Ecran[s] (26; 34; 40; 48; 65); cinema (30; 40; 59; 70-3x), ‘sair de campo’ (49); ‘méquinas de cena’ (73). ‘OS PORTAS FUTUROS COM MAQUINAS NF FILMAR NAS MROS? 8 longo de todo o livro, 0 que se segue aos dois pontos é j4 uma citacio, uma espécie de ree- laboraco ecfrastica de uma cena que pertence de facto a um filme, In the Mood for Love, de Wong Kar-Wai: Hé uma misica — cordas que vibram a folhagem nervosa do céu enquanto a percussio vinda do fundo chega alta ¢ devagar retira-se para que uma flauta se acenda ondulante e se interrompa breve : = urna mmiisica sem vor que ao siléncio desse uma lingua viva, uma musica que os danga na escuriddo densa do sangue ¢ na prodigiosa clegéncia em que se movem demasiado lentos a beira do amor ou da perfeita solidao, d beira da despedida, um de cada vez, um apés 0 outro, perdendo-se dangando. 22). Se atentarmos no uso do itilico, que sublinha a condicdo interdiscursiva deste segmento textual, autonomizando-o através de uma mancha grafica diferenciada, poderemos confirmar que mesmo o ‘filme que alguém esté a inventar’ passava jé por imagens retomadas de In the ‘Mood for Love, imagens de desencontro e promessa amorosa que tinham vindo entrelagar-se na descricdo inicial da movimentacao de alguém que se deslocava no interior de um labirinto, repetindo passos anteriores, seus ou alheios, ‘sempre a beira de cair’ (p. 11). E faco notar desde jd que a condicao eventualmente alheia do que assim se repete, em termos diegéticos, como trajecto pessoal (de ‘alguém’ que se move no interior de um labirinto, repetindo um trajecto que nao € necessariamente apenas seu) é extensivel a todas as formas de transtextualidade ou de traducao intersemidtica presentes no livro, também elas apropriacées e repetigbes de passos alheios, no que podemos incluir o processo de transposicao de imagens cinematograficas. Voltarei as imagens perceptivas provindas do filme de Wong Kar-Wai um pouco mais adian- te para tentar mostrar que, na sua origem, elas so essencialmente imagens-tempo, subordina- das ao que Deleuze definiu como ‘regime cristalino das imagens’. Mas, por agora, centrar-me- cia reelaboracio ecfréstica pela qual clas ‘migram’ para este poema, Embora a compreensio do texto nao dependa do reconhecimento desta relacao transdiscursiva, é importante observar que aquilo que 0 poema verbaliza é, de facto, um movimento essencialmente cinematogré- fico, que o leitor pode reconstituir como imagem mental. E nao € necessério que o leitor consiga identificar a sequéncia do filme sobre a qual o poema trabalha, isto é, no é forcoso que produza uma sintese dos dois textos para ser sensivel a uma linguagem que associa o encadeamento de metéforas densamente imagéticas com a sugest’io do movimento. No filme de Wong Kar-Wai, a simultinea possibilidade /impossibilidade do amor entre as duas personagens é sugerida pelo modo como estas se cruzam sobre uma distancia fisica em que ora esto muito préximas ora distantes (ao ponto de, num certo momento, o homem entrar no mesmo plano do qual a mulher acaba de sair), fazendo o mesmo percurso, numa mesma movimentacio ligeiramente desacelerada, enquanto ouvimos uma valsa plangente. Trata-se, ainda no filme, de produzir uma espécie de espacializasdo ou concrecdo imagética de uma vertigem temporal, onde o pasado que afasta as personagens emerge no presente, tal como nele reside todo o futuro enquanto possibilidade ¢ impossibilidade do amor ou da solidao. E 0 que gostaria de sublinhar ¢ que 0 poema ‘aprende’ com o cinema esta forma de concrecao tem- poral. Tal como no filme, também no poema a descricio da proximidade desencontrada das personagens espacializa uma vivéncia do tempo em que 0 real ¢ o possivel se cruzam indefinida- mente, E € nesse sentido que devemos entender que o poema diga, relativamente ao homem e 4 mulher, que ha ‘uma miisica que os danga na escuriddo densa do sangue’, tornando-os objecto do movimento e sugerindo que, mais do que moverem-se no tempo, eles so movidos pelo tempo. O que o filme mostrava na sequéncia correspondente era a espacializacao de uma experiéncia emocional em que todo o pasado, 0 presente ¢ o futuro das personagens se tornavam legiveis na relacao entre 0 som e a artificializacio do movimento contido na imagem. O poema capta 56 ROSA MARIA MARTELO essa rela¢do e conta-a, chamando-Ihe ‘“danga’, para sugerir a mesma sobreposicio de tempos, embora sem se fixar aie integrando estas imagens no contexto de uma experiéncia do tempo mais vasta. No poem, as personagens do filme (que o leitor nfo tem que identificar, até porque, no processo de traducio intersemidtica, elas sao reduzidas a subjectividades muito difusas’) pas- sam a mover-se num ...) péqueno mundo que a si proprio se contorce se desdobra e dobra’(p. 64), como iremos ler mais tarde - mundo que aqui é também o da linguagem. Estas duas per- sonagens juntam-se, assim, a todos quantos atravessam e continuarao a atravessar o labirinto apresentado no primeiro poema do livro e varias vezes retomado a seguir, vagas personagens que vio dando lugar a outros, de aluma maneira migrantes todos eles, todos apresentados de forma muito vaga, como posi¢es-stijeito indefinidas, casas vazias que podem ser ocupadas de maneiras diferentes: eu, tu, ele sio, neste e nos poemas seguintes, categorias intercambiaveis, do mesmo modo que 0 ‘filme’ do poema retoma outros filmes, outras narrativas, outras séries de imagens, de resto nem sempre cinematograficas: Dangam perdidos em Singapura ou em Bangkoque, em Hongkong, Taiwan, ou Manila, As imagens imigram de um outro filme, a invengao de um outro nas chamas da tua cabega que esfria. Nos dois personagens que assim continuam a dangar nao reconhecemos apenas a cena do filme de Wong Kar-Wai que acabo de referir. A énfase colocada na danca abre também uma possibilidade de didlogo intertextual que podera passar por um poema de Carlos de Oliveira, poema esse que, por sua vez, pode ser colocado em relacdo com uma passagem da segunda seccao de ‘Burnt Norton’, de Quatro Quartetos, de T. S. Eliot. Num e noutro caso, a danga é associada, como em Migracées do Fogo, & experiéncia do tempo e a uma espécie de paralisia temporal, a coincidir com uma convergéncia de tempos: «dancam agora dois a dois,/ recons- tituem a unidade/ cindida ha pouco; os pares/ mortais; a vocagéo/ de transformar o tempo em rostos;» — escreve Carlos de Oliveira. E um pouco adiante: «nao é a conjuncao dos astros/ que comanda tudo,/ mas a cor do céu; indecifrvel;». Encontramos 0 mesmo cardcter imperativo da danca, a mesma precipitac’o/suspensio incompreensivel do tempo, numa passagem de Quatro Quartetos: G) No ponto morto do mundo em rotag3o, Nem carne nem Espirito; Nem de nem para; no ponto morto, af esté a danca, Mas nem paragem nem movimento. E nao se chame a isso. Fixidez, Onde o passado e 0 futuro se reine. Nem movimento de Nem para, Nem ascensdo nem declinio. Se nao fosse 0 ponto, o ponto Motto, Nao haveria danga, e hé s6 a danga, Eu apenas posso dizer, estivemos ali: mas nao posso dizer onde E nao posso dizer por quanto tempo, pois seria situar isso no tempo. GP * Como resume ainda Murray Krieger: «(a] ecfrasis é, na verdade, um epigrama que nio se faz acompanhar do objecto correspondente; é, de facto, um epigrama sem qualquer objecto excepto o que verbalmente cria. A imagem visual que a ecfrasis procura traduzir em palavras perde-se na traducdo 4 medida que a representacdo verbal, no conduzindo a outra representacio, extratextual, tangivel, adquire a dimensio de uma entidade auté- noma» (op. cit., p. 16). > Cantos DF Oxiveina, «Tempo varivel», Entre Duas Memérias, Obras, Lisboa, Caminho, 1992, pp. 371-372. 3 TS. Exior, Quatro Quartetos, 3* ed., trad. de Maria Amélia Neto, Lisboa, Atica, 1983, p. 9. Note-se que a pri- meira edicdo desta traducio fora publicada pela Atica em 1963. ‘OS PORTAS FUTUROS COM MAQUINAS DE FILMAR NAS MiOS? 57 Ora é interessante notar que processo operado pela intertextualidade ¢ pelo didlogo inter- artes constitui, se bem que a um outro nivel de textualizacdo, um modo de actualizacéo desta mesma problematica temporal, pois também esses didlogos implicam a precipitagao de diferentes tempos, de diferentes vozes e de diferentes narrativas no presente transtemporal da enunciagao pottica, nela inscrevendo uma temporalidade complexa pela qual o passado se pre- cipita no presente e como presente. Por conseguinte, a inclusio de descricdes de imagens cine- matograficas nesta instavel narrativa que comecamos a acompanhar actua sobre o discurso em termos aproximaveis aos da movimentacio repetitiva do migrante (ou dos migrantes) que, em diversos poemas, se desloca (deslocam) num labirinto cuja configuracao é indissociavel da propria experiéncia da linguagem — ou das linguagens, se quisermos incluir aqui o cinema, a pintura e a misica, tal como so convocados em Migragdes do Fogo. Volto ao primeiro poema do livro, para recordar a estrofe de abertura Tudo parece ter outra vez comecado. Quando —a cabega encostada 4 morte que a perder de vista crescia ~ este homem estancado reconheceu 0 seu nome pelo vento desenhado com os gravetos pobres naquela que julgara ser a tiltima parede do labirinto ‘Ja ali estivera, Ouvia outra vez a linguagem: ‘A montanha; desde sempre a linguagem ~ e era um mar Nascendo no visivel do outro lado: o som do verde © que significa este labirinto em que alguém — que, como 0 poema faré notar, nem é Dae- dalus nem est acompanhado por Ariadne (p. 12) — se move regressando a onde ja estivera? Poderiamos seguir aqui as palavras do matemético e labirintélogo Pierre Rosenstieh] quando defende que «{o] labirinto nfo é uma arquitectura, uma rede no sentido de quem 0 projecta e concebe, mas o espaco que se desdobra diante do viajante que progride, sem mapa, na prépria rede».’ Nesta mesma perspectiva — que afasta a ideia de o labirinto ser uma construcio finita € logo controlavel, pelo menos para o seu arquitecto, preferindo identificé-lo com a prépria experiéncia de uma orientacdo restrita (ou ‘miope’) e com a impossibilidade de visio totali- zante daquele que © atravessa — deveremos entender os versos ‘O homem com 0 seu labirinto portatil chegou / ¢ carrega no interruptor do poema’, de ‘O cinema da noite’ (p. 30), ou a afirmagao que encontramos no poema seguinte: ‘O migrante: é ele o labirinto’ (p. 33) O labirinto, que em certos momentos ser identificado com o deserto (pp. 16, 34), é, neste poema, uma figuracdo, ou melhor, uma espacializacdo (uma concrecdo imagética) daquilo que, enquanto ensaista, Manuel Gusmao tem vindo a designar por ‘tempo constelado’, isto é, ‘a coalescéncia de varios tempos numa dada unidade de tempo’, ideia & qual associa a pluris- significago em literatura: (.) a plurissignificagao de um texto no vem apenas de podermos fazer um uso infinito de meios fini- tos e neste sentido nao & uma propriedade combinatéria, ela vem do modo como um texto transporta tempo e atravessa a temporalidade longa (de que falava Bakhtine) e as varias duracdes que nela se cons telam, Nao é necessirio supor que a historia tem um sentido, aquilo que pressuponho é que ela é uma instancia onde diferentes possiveis entram em confronto, que ela & justamente a condicdo de fazermos a experiéncia do sentido, do seu diferimento ou da sua auséncia (...) Na figuragio de um ‘tempo constelado’, o que procuro pensar é a coalescéncia de varios tempos numa dada unidade de tempo. certo que essa figura implica uma espacializacio do tempo; mas o que se pode esperar dela € que a violenta compressio dos tempos que a produz seja to intensa que torne evidente o seu outro necessirio, a temporalizacao do espaco.* * ProrRe RoseNsTIBHL, Labirinto, Enciclopédia Enaudi, vol. 13 (Légica/Combinatéria), Lisboa, 1N-cM, 1988, p. 251 > Manuet. Gusmio, O tempo da poesia: uma constelagdo precdria, Sobre uma antologia do século, «Inimigo Rumor», n° 14, 1° semestre de 2003, pp. 219-220. 58 ROSA MARIA MARTELO Retenhamos a ideia de ‘espacializacao do tempo’, como tentativa de produzir a sua inteligibi- lidade, articulando-a com a de que a hist6ria representa ‘a condico de fazermos a experiéncia do sentido’. Em termos fortes ou fracos, mais interpessoais ou mais intimistas, ficaremos sempre perante uma necessidade narrativa, isto é, perante o que neste livro se chama o ‘filme’: a precipitacdo de varios tempos numa unidade de tempo, espacializada sob a forma de um labirinto que simultaneamente representa uma vontade de sentido e a impossibilidade de o mapear fora do olhar miope daqueles que o percorrem, ou percorreram, sempre assaltados pela precipitagao dos tempos, que o mesmo é dizer das imagens enquanto formas de concre- ¢40 de tempo. Estamos agora em condicées de passar a segunda palavra reiteradamente pre- sente neste labirinto —a palavra ‘imagem’. fi ela que nos vai permitir articular a espacializacao do tempo (a concrecdo imagética) e a temporalizacio do espaco (a legibilidade dos elementos espaciais enquanto produtores de sentido). 2. Movimentos da imagem Uma das formas de presenca da imagem em Migragdes do Fogo decorre, como ja foi referido, de uma espécie de reelaboraco ecfrstica tendo por objecto sequéncias e planos extraidos de filmes ou, mais raramente, obras do campo da pintura. Além dos breves planos extraidos de In the Mood for Love anteriormente indicados, é possivel reconhecer outros planos ou sequéncias provindos de filmes como L’Atalante, de Jean Vigo, O Herdi Sacrilego, de Mizogushi, A Dama de Xangai, de Orson Welles, Rapsédia em Agosto, de Kurosawa, entre outros. Apesar de provirem de obras cinematogréficas muito distintas, as imagens retomadas e reelaboradas ao longo do livro tém um ponto em comum: o facto de pertencerem, maioritariamente, ao que Gilles Deleuze definiu como ‘regime cristalino das imagens’,’ isto é, o facto de serem ‘imagens-temapo directas’* Vejamos um exemplo, extraido do poema “Triplo sacrilégio’: (...) B é nos olhos opacos da mulher que sobreviveu que ele, o herdeiro da vit6ria insuportavel, vé a imagem dessa imagem que queima a meméria a fala o gesto: aquela que evaporou toda a 4gua dos seus olhos muito velhos até que eles so agora apenas um espelho cego onde a imagem decai poente, regressa e desce e se repete fixa E um olho selvagem, o selo de um sol alucinado, uma érvore radioactiva, a estrela de uranio e panico descendo entre as colinas onde toda a beleza do mundo congelou (p. 62), Para a compreensao do poema nfo é necessdrio o Jeitor reconhecer que nestes versos é reto- mado um momento essencial do filme Rapsédia em Agosto, de Kurosawa, que culmina com a chegada de um jovem americano de ascendéncia nipénica, vindo ao Japio para pedir desculpa a uma velha tia pelo lancamento da bomba atémica em Nagasaki, Mesmo sem estabelecer esta relaco, o leitor identificaré o tema da guerra, a violéncia, a relacdo entre vencedores vencidos, verd aquele que, herdeiro da vitéria, com ela herdou também a culpa, a mulher que teve de perdoar para poder viver sem poder esquecer. E metéforas densamente imageticas como “arvore radioactiva’, ‘a estrela de uranio € panico’ facilmente nos levarao a recordar Hiroshima e Nagasaki. Mas, acima de tudo, o leitor vera ‘(..) a imagem / dessa imagem que queima a meméria a fala 0 gesto (...)": 0 olho imenso que a sobrevivente da guerra descreve e que Kurosawa fazia descer entre as colinas que escondem Nagasaki — a mais impressiva das imagens do filme, aqui descrita nos uiltimos quatro versos que citei. * Gunes Dexsuze, Cinéma 2, «L'Image-temps», Paris, Minuit, 1985, p. 165. * Inem, Sur Vimage-mouvement, «Pourparlers», Paris, Minuit, 1990, p. 75. OS POFTAS FITHROS COM MAQUINAS DE FILMAR NAS MAOS’ 59 ‘Trata-se de uma imagem que fora antecipada um pouco atras como a imagem de uma imagem, isto , que fora apresentada como concrecio de uma imagem virtual ou mental, aquela que a velha tia nao poderia esquecer, ou, nos termos de Deleuze, como uma imagem desligada do quadro sequencial que definiria a acco, isto é, uma ‘imagem-tempo directa’, Acompanhemos um pouco o pensamento do filésofo, quando define a ‘imagem-tempo’ por contraponto a ‘imagem-movimento’: (... quando a percepcao advém éptica ¢ sonora pura, com que se relaciona ela, uma vez que deixa de relacionar-se com a acco? A imagem actual, separada do seu prolongamento motor, entra em relacdo com uma imagem virtual, imagem mental ou em espelho. (...) Em lugar de um prolongamento linear, temos um circuito onde as duas imagens nao param de correr uma atras da outra, em torno de um ponto de indistingao entre o real e o imaginério. Dirse-ia que a imagem actual e sua imagem virtual cristalizam. (...) © que vemos primeiro é 0 Tempo, as camadas de tempo, uma imagem-tempo directa." Estamos, pois, como esclarece ainda Deleuze, num regime onde o real e 0 imaginario, 0 actual € 0 virtual se tornam indiscerniveis, num campo situado fora da descrigo orginica, porquanto esta pressuporia ‘um regime de relagées localizaveis, de encadeamentos actuais, de conexdes legais, causais e légicas’.* Neste outro campo, o da poesia - que, como vimos, Herberto Helder define como ‘insidioso’? ~ 0 espaco esté ‘desconectado’ e nao pode ser entendido em termos puramente espaciais: Eles [os espacos] implicam relagdes nao localizéveis. Sao apresentagGes directas do tempo. Deixamos de ter uma imagem indirecta do tempo, decorrente do movimento, para termos uma imagem-tempo directa da qual o movimento decorre. Deixamos de ter um tempo cronol6gico que pode ser alterado por movimentos eventualmente anormais, para termos um tempo crénico, no cronolégico, que produz movimentos necessariamente ‘anormais’, essencialmente ‘falsos’.« Compreende-se que os fragmentos de filmes que podemos entrever citados em Migracées do Fogo correspondam a este ‘regime cristalino das imagens’. Compreende-se que a telacio estabelecida com o cinema prefira a transcodificacdo deste tipo de imagens e, acima de tudo, compreende-se que se trata de explorar 0 mesmo regime da imagem, pois ele corresponde ao que Manuel Gusmao chama a ‘temporalizagio do espaco’, produzindo um efeito que 0 torna denso de sentido e capaz de acompanbar 0 pensamento, para retomar os termos deleuzianos, ou seja, ‘o filme interior’. As imagens perceptivas que podemos construir enquanto leitores associam-se de tal forma (justamente por ndo ser a nivel sequencial que se associam) que a linearidade temporal é obstruida e, como lemos ainda no mesmo poema, ‘hé um intervalo no espaco que espera 0 tempo’ (p. 63). Nesse intervalo, cabe o que Manuel Gusmao classifica como sendo da ordem da promessa, o que ‘vai e vem no tempo’ € que apenas pode ser visto (ou dito) através de uma concrecdo imagética em que 0 tempo se espacializa, enquanto 0 espaco surge temporalizado, isto é, legivel, produtor de sentido. Ora, tal como fora ja observado no texto herbertiano, é essa a experiéncia do cinema que nos deixa mais proximo da poesia, e 6 aqui que, verdadeiramente, as duas artes entram em didlogo. Através de um proceso paralelo de concrecao imagética pelo qual induz a construcao de imagens perceptivas, a poesia pode, por exemplo, descrever 0 momento da projeccao de um filme, numa sala que escura escurece para yue iaivr seja 0 brilho da espada de luz que explode a cores na parede movente em frente ands como um leque vivo: as asas de uma borboleta (p. 63). Naturalmente, ‘o filme’ deste longo poema nunca poderia ser uma narrativa sequencial, mas * Iidem > Cf. Gmies Detevze, «L'Image-temps», p. 166. * Cf. supra, nota 7 “Wi, p. 169, 60 ROSA MARIA MARTELO antes algo que é da ordem da precipitacao de imagens poéticas que remetem para o funcio- namento das imagens-tempo cinematogréficas em termos perceptivos — 0 que é bastante curioso j4 que esse ‘registo cristalino das imagens’, ao reunir 0 actual ¢ o virtual é, ele mesmo, herdeiro do funcionamento semantico da imagem em poesia e daquilo a que Eliot chamou um correlativo objectivo. A precipitacao das imagens é, pois, indissociével da precipitacao dos tempos. Ou seja: onde a poesia mais se aproxima do cinema é onde, antes, a irnagem cinematografica mais se aproxi- mara do funcionamento da imagem na poesia. Ao refazer esta articulagao em sentido inverso, © poema adquire uma dimensao narrativa que ndo implica a sequencialidade c explora uma expe- riéncia do tempo que o cinema ajudou a formalizar. 3. Imagem, tempo, meméria © ‘filme’ de Migragdes do Fogo recai no ambito desse tempo crénico, no cronolégico, nao sequencial, de que falava Deleuze, evidenciando, também ele, essa ‘espécie de gangsterismo das imagens’, j4 obscrvada em Herberto Helder." A prdpria estrutura externa do livro assim o sugere. Trata-se de um longo poema, constituido por trés secgGes: ‘Alguém perdendo-se’, ‘Na noite das imagens’ e ‘Cancao ultima’. A primeira é constitufda por oito poemas, numerados de 1a vie a terceira por uma ‘Cancao tiltima’, e tinica, com a numeragio x. Todavia, na segunda secc&o, que se esperaria que fosse designada com o niimero 1x, no hd numeracdo alguma e os poemas tém maior autonomia entre si, o que destréi a sequencialidade introduzida pela numeracao, abrindo esta estrutura e fazendo dela um todo aberto, e mesmo potencialmente infinito.* Por outro lado, livro obedece ao estabelecimento de uma deriva permanente, em tudo semelhante aquela que é descrita por Manuel Gusmao num extenso ensaio no qual reflecte sobre a literatura enquanto condi¢ao histérica, numa sec¢do intitulada ‘Alguém escre- ve’, titulo que retomava e expandia nos termos seguintes E também alguém que leu, que Ié; que recorda e esquece patcialmente aquilo que Jeu. E escreve numa instancia de eu, aqui, agora, assim; a instancia de um presente que pode parecer absoluto, ou absoluta- mente singular. Mas essa instancia é uma configuracao complexa, em que cada um dos termos se desdo- bra ou pode desdobrar no mundo do texto (e no proprio processo da sua génese): 0 eu pode distribuir se por diferentes posig&es-sujeito; 0 aqui pode deslocar-se ou adquirir varios valores referenciais; 0 agora pode abrir-se numa determinada constelacéo de tempos; € 0 assim (deixis ¢ modalizacao) desdobra-se em inscricdio, mostracio e figuracio.? Em Migragées do Fogo, eu, aqui, agora, assim, sio instancias polarizadoras do discurso, mas também casas vazias que podem ser habitadas de modo variavel c instavel, o que impede uma leitura sequencial. J4 vimos que o labirinto 6 um aqui e um agora para o qual convergem dife- rentes tempos pessoais, ficcionais ou hist6ricos, diferentes situacdes subjectivas ou partilhadas como Historia, sempre numa espécie de busca de sentido localizada e restrita. Entre o “Tudo parece ter outra vez ter comecado’ que abre o livro ¢ o ‘tudo poder talvez recomecar’ que 0 fecha, varios so os que se perdem e desorientam num labirinto, todos ditos migrantes, no sentido de se moverem, como hoje nos movemos, num mundo global e também no sentido mais amplo de se moverem num espaco que nao pode separar-se do tempo, da meméria, das muitas imagens em que as artes cristalizam a memoria pessoal e colectiva ou expdem a capacidade humana de inventar o tempo que depois vird. Muitos desses migrantes vém de filmes, de pinturas que podemos reconhecer (de Balthus, por exemplo), dizem palavras que * Chi. supra, p. 7. * Sobre esta questdo cf. Manvet, Gusaio, O (re)comero da palavra, entrevista conduzida por Ricardo Paulouro, Manvet Gusmao, Da Literatura enquanto construgao historica, in Helena Buescu, Manuel Gusmao ¢ Joao Fer- reira Duarte, A Floresta Encantada, Lisboa, 2001, p. 202. (OS POETAS FUTUROS COM MAQUINAS DR PITMAR WAS Mins 6r sabemos terem pertencido a outros livros € a outros poemas. Todos tém um passado que invade o presente, so esse passado € sio esse presente, sao ainda todo o possivel. Neste livro, no ha espaco, nao ha sequer natureza, que se apresentem desligados da experiéncia bumana, da meméria humana. E por isso tudo surge gravado em imagens, como se assistis- semos a um filme interior, um filme que sistematicamente se partisse € se colasse a outro, ¢ a outro, indefinidamente, sempre a comecar in media res, sempre procurando a possibilidade de inventar a origem que justificasse o percurso assim empreendido, numa sucessiva construgo de mundos feitos a partir de outros mundos, de descrigGes feitas a partir de outras descricdes." Recorrentemente, coloca-se a possibilidade de uma ameaca e de uma espécie de vidéncia do apocalipse ¢ do que a ele se seguiria. Como no conhecido poema de Kavafis, espera-se a che- gada dos barbaros; e descobre-se que eles nao virdo — porque ja chegaram, porque somos nés os barbaros, porque eles convivem connosco. Porque barbaros séo precisamente aqueles que esqueceram as imagens, que as ignoram, que nao tém passado nem meméria. Em relacdo as artes, 0 que nos diz Manuel Gusmao é que elas cristalizam, numa temporalidade complexa, © que ha de mais humano no humano. E que se ndo o esquecermos, se ndo esquecermos o que as muitas linguagens que usamos em nés deixou gravado a fogo, talvez possamos ainda recomecar. § essa a ideia central de Migragées do Fogo: a de que s6 pela memoria, e portanto pela eterna migracao das imagens, o futuro é possivel. Fazendo inflectir num sentido novo a célebre sequéncia final de A Dama de Xangai, de Orson Welles, é isso o que nos diz a primeira estrofe de “O Piano das Agu: Outra migrago: uma imagem descreve no deserto na noite desertada da tua cabeca, um outro filme: uma ¢ outra vez os espelhos estoirando estilhagam € desmoronam as imagens congeladas desses trés, O terceiro, 0 sobrevivente, procura uma saida que dé para a vida. Vira ao longo da marginal sabendo sem olhar da longa auséncia do mar. E no entanto, é como se tudo pudesse ainda ser possivel... (p. 20). " Aproximo duas formulacées afins, a primeira de Nelson Goodman ¢ a segunda de Richard Rorty.

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