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REGIMES AUTORITARIOS NO BRASIL REPUBLICANO, ‘Membros da Comissdo Julgadora 0 refinamento da historiografia brasileira nos iltimos 30 anos tem permitido um entendimento mais sofisticado de alguns dos temas mais controvertidos da Histéria do Brasil. Esse é 0 caso do Estado Novo ¢ do period dos governos militares, regimes autoritérios do Brasil Republicano que cocuparam quase 1/3 da historia brasileira no século XX, cuja comparagdo desejo propor neste ‘momento, Alguns dos aspectos do regime militar que tenho estudado, como a propaganda politica, a censura, a repressdo ¢ os préprios militares ganham um alcance maior quando comparados com seus correlatos no Estado Novo, razio pela qual me parece oportuna essa comparagdo, Certamente no quero sugerir que haja uma identidade entre os dois momentos, pois sdo flagrantes as especificidades daquelas conjunturas histéricas tio distintas, marcadas, uma, pela realidade quente da II Guerra Mundial - episédio-chave do século XX —e a outra pela dramaticidade “teatral” da Guerra Fria, que, além do front europeu, passou a ter um paleo secundério na América Latina a partir da Revolugao Cubana. Afora isso, temos as singularidades internas, as etapas histéricas to diferentes da Era Vargas, nos anos 1930 —com 0 sempre lembrado processo de construgao institucional e o langamento das bases da industrializacdo brasileira -, ¢ do regime militar, que aprofundou algumas das opgdes do Estado Novo, mas durou quase trés vezes mais ¢, na medida em que foi muito mais repressive, demandou ‘uma transigdio para a democracia que se estendeu por muitos anos. Apesar de tais diferengas, parece-me itil a comparagdo, Nao apenas porque 0 Estado Novo ¢ 0 regime militar sejam os momentos culminantes daquilo que Francisco Iglésias designou como “melancélica trajetéria nacional brasileira” — por causa da supressio da liberdade, dos direitos politicos —! mas também porque a anilise de ambos os processos histéricos nos desafia continuamente em fungao da coincidéncia entre autoritarismo ¢ modemnizagao, esta Ultima sempre IGLESIAS, Francisco, Molaneélica trajt6ria nacional, Jornal do Brasil. 23 mer, 1994, Primeiro cademo,p. 11 vista em uma clave positiva, paradoxo que intrigou quase todos os analistas dos dois periodos.” 0 desenvolvimento que a historiografia sobre o Estado Novo experimentou a partir dos anos 1980 coincidiu com 0 perfodo da abertura.” Parecia indispensdvel um retomo ao “outro” regime autoritério para se entender o regime militar ¢ a ansiada transigdo para a democracia. Consolidou-se, assim, o entendimento que sustenta a comparagio que aqui se faz: as bases do autoritarismo brasileiro deviam ser buscadas no Estado Novo e nos pensadores que elaboraram a proposta de um governo centralizador, um Executivo forte ¢ um Estado intervencionista ¢ planejador. Havia também um componente politico nessa historiografia que nao se pode desconsiderar: a0 estudar e criticar a ditadura de Getilio Vargas, marcava- ¢ posigdo contra o regime militar. Os anos 1970 e 80 também corresponderam a uma fase de intensas modificagdes no campo da ptdpria Histéria, cujo alcance Jevou alguns autores a falar em “crise da Histéria”. Havia o surgimento da Nouvelle Histoire e, mais importante para os propésitos desta fala, vivia-se uma etapa de criticas intensas ao marxismo, cuja crise teérica e politica anunciava-se havia algum tempo € se consolidaria justamente nos anos 1980. Isso ensejou 0 questionamento de enfoques cristalizados do marxismo, especialmente as teses que vinculavam classes sociais a designios histéricos. A critica do determinismo economicista também possibilitou a revalorizagao da Historia Politica, que vinha de longo perfodo de ostracismo, e que, no Brasil, também se beneficiou do ja mencionado contexto da abertura politica: afinal, como entender as questdes daquele momento sem analisar temas que se impunham, como os partidos politicos e os préprios militares? Assim, a repisada tese da “fragilidade dos partidos brasileiros” foi contestada; do mesmo modo, os militares, ausentes da historiografia apesar de sua dbvia importincia, passaram a ser estudados.’ Foi, igualmente, um movimento importante de superagio de preconceitos académicos, pois os que estudavam a politica ou os militares, até entdo, eram vistos como reaciondrios ou acusados de abordar temas irrelevantes. 1c 0 Estado Novo Essa imbricagdo com a politica é uma marca da Histéria do Tempo Presente. ® Ver, entre outros, VIANNA, Luiz Wemeck. O Estado Novo © a “ autoritéria da Repiblica. fn CARVALHO, Maria Alice Rezende de, Repiblica no Catete, Rio de Janeiro: Museu da Repiblice, 2001. p. 118 ¢ CHACON, Vamireh. Estado Novo ¢ povo no Brasil. As experiéncias do Estado Novo e da democracia populist: 1937/1964, Rio de Iancio: José Olympio, 1977. p. 72 ° Ver entre outros, GOMES, Angela de Castro. Politica: histria, 1996, p. 65. “SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estados e partidos politicos no Brasil (1930 a 1064). Sio Paulo: Alfe-Omega, 1976, CARVALHO, José Murilo de. As Forgas Armadas na Primeira Repiblica: 0 poder desestailizador, In FAUSTO, Boris (Dir, O Brasil republicano: sociedade e instituigdes. Histdria Geral da Civilizagda Brasileira, Tomo Il, vol. 2. 2.04, Sto Paulo: Difel, 1978. i, cultura ete. Estudos Histérieos, vol. 9, 8. 17, 3 passou a ser estudado para se compreender a atualidade do regime militar, ele se impunha também como um campo de disputas em termos de meméria, por causa da duplicidade da nogdo de “autoritarismo modernizador”, interagindo, assim, com a historiografia de entio, que desse modo caracterizava-se como Histéria do Tempo Presente, ou seja, a histéria que intervém na politica do seu tempo. Afinal, se o Bstado Novo havia sido um regime modernizador, isso ndo seria uma leitura benevolente, que justificaria o autoritarismo? Seria “oportuno” relativizar 0 autoritarismo, justamente naquela fase em que se discutia uma saida do regime militar? Nao se estaria dessa maneira relativizando igualmente a reptessdo ¢ 0 arbitrio do mais recente regime autoritério, 0 militar, que, afinal, também foi modernizador? é Roberto do Amaral Lapa chamara na Assim, a partir dos anos 1980, rompendo com aquilo que Jo: década anterior de “conspiragio anticontempordnea” (pois eram raras as pesquisas sobre a hist6ria recente do Brasil),’ avolumou-se a historiografia sobre o periodo republicano e, especialmente, sobre o que seria o “tempo presente brasileiro”, como assinalou Angela de Castro Gomes, isto é, 0 periodo pés-1930,° Essa articulago temporal, que toma os passados presentes, foi essencial para os estudos sobre o Estado Novo, mas foi igualmente decisiva para a abordagem de certos temas tabu do regime militar, notadamente o problema da violencia, j4 que a repressdo assumiu contornos mais draméticos nos anos 1960 ¢ 1970, se comparada com a repressio dos anos 1930, Do lado da esquerda, a peo pela Tuta armada nos anos de chumbo tomar-se-ia um problema de disputa de meméria presente até hoje. Evidentemente, nao estou propondo uma equivaléncia entre repressao e “guerrilha”, pois o regime militar tinha condi 's de reprimir a luta armada sem apelar para a tortura, jou apenas me referindo as tensdes temporais que marcam esses temas, Sintomaticamente, a principal negociago do pacto basico da transigao — a Lei da Anistia de 1979 — situou, de um lado, o perdao aos torturadores e, de outro, a paulatina incluso na anistia dos militantes de esquerda entio excluidos, aqueles que estavam presos pelo que os militares chamavam de “crimes de sangue”. Foi a partir de entio, como sintetizou Daniel Aardo Reis, que houve um “deslocamento de sentido”, na medida em que a perspectiva ofensiva da opgdo revolucionéria pela luta armada passou a ser vista, pela propria esquerda, como mera resisténcia democritica ao endurecimento do regime.’ O distanciamento histérico © © recuo temporal permitem que esses delicados temas possam ser abordados. E, na verdade, ainda estamos as voltas com a questio, neste momento em que se discute a criagdo de uma 5 LAPA, José Roberto do Amaral, Historiografia brasileira conlempordnea: a historia em questio, 2. ed. Petrépolis: ‘Vozes, 1981. A segunda ediga0 modificou bastante a primeira, originalmente publicads em 1976, "GOMES, Angele de Castro, Politica: histiria, eiéncia, cultura etc. Extudos Histérieos, vol. 9,3. 17, 1996. p. 6S. REIS FILHO, Daniel Aardo. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahat, 2000. p. 70. Comissio da Verdade, PROPAGANDA POLITICA ‘Ao estudar a propaganda politica dos governos militares, também enfrentei a problemitica temporal ea critica de perspectivas marxistas limitadoras.* Quando localizei os comerciais que eram exibidos na TV a partir dos anos 1970, percebi que eles se amparavam em um material histérico de longa durag2o, a transecular tépica do otimismo, com os temas recorrentes do pais do futuro, da exuberdincia natural e da singularidade do povo brasileiro. Assim, embora se tratasse de explicar um episédio tio delimitado no tempo, era indispensivel fazer referéncia a constituigao histérica da t6pica do otimismo. Por outro lado, parecia-me que o conceito de ideologia, sempre utilizado para a andlise da propaganda politica, era limitado, por causa de sua énfase na questdo do falseamento da realidade, da manipulagdo das consciéneias.’ Apesar de a questdo ideolégica estar sempre presente quando se trata de propaganda politica, sua andlise nio é suficiente para o entendimento do fenémeno, nao porque estejam ausentes as pretensdes manipulatérias, esséncia de qualquer propaganda politica, ‘mas porque a critica ideoldgica ndo dé conta da recepgao da propaganda. A propaganda ndo é pura intengdo, pois ela somente se realiza plenamente no ato da recepedo. E pode ser bem aceita, algo que a concepeao ideolégica ndo alcanga. Ao amparar-se em um material histérico pré-existente © assentado no imaginério social brasileiro, a propaganda dos dois regimes péde atingir uma eficécia que ultrapassou a dimensio manipulatéria, Isso aconteceu especialmente no Estado Novo, mas também se verificou no regime militar. Ideologia ¢ imagindrio ndo sao ambitos antagénicos: eles se interpenetram, Os autores que estudaram a propaganda do Estado Novo também buscaram novas perspectivas a fim de ultrapassar a leitura ideoldgico-manipulatoria. Para eles, © mito de Vargas ndo pode ser visto como um simples derivative da propaganda,'° embora seja preciso reconhecer que 0 DIP promoveu ‘0, Carlos. Reinventando o ofimismo: ditadura, propaganda ¢ imaginirio social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundagl0 lio Vargas, 1997. "ara exemplos desse enfogue ver GARCIA, Nélson Jake. Sadismo, sedusdo e siléncio: propaganda e controle ideol6gico no Brasil: 1964-1980. So Paulo: Loyola, 1990 e GALLETTI, Maria Luiza Mendonca. Propaganda e legitimasao do poder. Brasil: 1970/1978. Brasilia, (1981). Dissertagio de mestrado epresentada so Departamento de Comunicagio da Universidade de Brasilia, "para um exemplo de letura marxsta, ver GARCIA, Nelson Jahr. O Estado Novo: ideologta e propaganda politica, A legitimagio do Estado autoritrio perante as classes subalteras. Sio Paulo: Loyola, 1982. Para leituras criicas consultar CAPELATO, Maria Helena Rolim. Estado Novo: novas historias. In FREITAS, Marcos César de (Org). Historiografa brasileira em perspectiva. Sio Paulo: Contexto, 1998 e FERREIRA, Jorge. Trabathadares do Brasil: 0 maginério popular (1930-45). Rio de Janeiro: FGV, 1997, 5 uma das mais bem-sucedidas campanhas, tendo Vargas como seu personagem central,'' eficécia que pode ser medida com 0 movimento do “queremismo” e com a fixagdo da imagem de “pai dos pobres” em seu segundo governo."? Portanto, se os governos militares perderam a “batalha da imagem" — como admitem os préprios militares -, Vargas saiu-se melhor, o que talvez se explique justamente pela propaganda personalista, que ndo houve no regime militar, e pela boa aceitagao da legislagao social e trabalhista, que nos governos militares teve apenas pequenos acréscimos, 0 tema do Brasil “grande poténcia” foi marcante na propaganda do regime militar e os tépicos da grandeza também estiveram presentes no Estado Novo. Mas a propaganda do Estado Novo apoiou- se muito mais na valorizagdo de eventos e heréis do que no binémio “terra bela/pitria grande”, de que falava Antonio Candido.'? Os responsdveis pela propaganda politi do regime militar claramente aprenderam com a do Estado Novo: eles evitaram © personalismo ¢ as mensagens ostensivamente civicas, grandiloquentes, tentando ndo parecer oficialistas. Tudo fizeram para diferenciarem-se do DIP. ‘A suposigao de ineditismo e superioridade esteve presente nos dois casos, pois era frequente, no Estado Novo, a afirmagdo de que nunca antes se fizera tanto pelo Brasil, nem em “dois reinados”, nem em “quarenta anos de Reptiblica”."* Analogamente, a propaganda dos militares excedeu-se na ideia de “maior” do mundo, maior ponte; estrada cujo tragado se podia ver da Lua. Também esteve presente nos dois momentos a concepgdo de um povo singular, especial, consolidando os mitos da democracia racial, do congragamento das trés ragas como fundamento da nacionalidade, algo que ja fora mencionado por autores anteriores a Gilberto Freyre,'® mas que definitivamente se instalou, desde Casa-Grande & Senzala, como leitura oficial dos dois regimes autoritérios no processo que Carlos Guilherme Mota identificou espirituosamente como ilbertizagao” do Brasil. Do mesmo modo, em ambos os regimes foi frequente o recurso a outros mitos constantes do imagindrio brasileiro: a historia incruenta,"* a forga da nacionalidade localizada " GOMES, ® CARY, 2008. p. 125. ® CANDIDO, Antonio. Literatura ¢ subdesenvolvimento. In CANDIDO, Antonio. 4 educagdo pela noite & outros censaios. S20 Paulo: Atica, 1989 © CARVALHO, José Murilo de. O motivo edénico no imaginério social brasileiro. Revista Brasileira de Ciéncias Sociais, 13 (38): 63-79, outidez, 1998. "GARCIA, Nelson Jabr. Op. cit p.93 MATTOS, Hebe. A exeravidio como histéria do tempo presente. In AZEVEDO, Cecilia e outros (Orgs). Cultura politica, memariae hstoriagrafia. Rio de Janciro: FGV, 2009. p. 146. **'VELLOSO, Ménica Pimenta. Cultura e poder politico: uma configuragao do campo intelectual. fn OLIVEIRA, Lucia Lippi, VELLOSO, Méniea Pimenta, GOMES, Angela Maria de Castro Gomes. Estado Novo: idcologia e poder. Rio de Janeiro: Zaher, 1982. p85 Angela de Castro. 4 invengdo do trabathismo, Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988. p. 238. 10, José Murilo de, Cidadania no Brasil: 0 longo eaminho. 11 ed. Rio de Janeiro: Civilizagdo Brasileire, no interior,"” a benquerenga do povo brasileiro e assim por diante. Mas ha diferengas significativas. Algumas decorrem apenas do desenvolvimento das tecnologias: 0 radio prevaleceu nos anos 1930,"* assim como a TV seria a base da propaganda do regime militar. ‘Na propaganda dos anos 1970 ndo houve o personalismo do regime de Vargas,'” nao sé porque os militares queriam evitar comparagées com © DIP ~ estigmatizado por causa de sua inspiragdo nazista -,"" mas também porque aos generais faltava qualquer carisma, diferentemente de Vargas, que podia apresentar-se de maneira multifacetada, como “pai dos pobres”, como homem simpitico © bonachao, como politico esperto, que dava rasteira nos adversérios, como lider tolerante, que ria das piadas a seu respeito.”! Tampouco houve nos governos militares as grandes manifestagdes que marearam o Estado Novo, pois os generais se ocultavam.? Um aspecto curioso é que o regime militar negava fazer propaganda, apenas “relagdes piblicas”, simples campanhas de utilidade publica e de congragamento, j que a propaganda, naquele momento, era encarada com desconfianga. O Estado Novo, ao contririo, beneficiou-se do contexto da guerra, pois era frequente © recurso & propaganda em outros paises, 0 que conferia certa legitimidade & iniciativa do Estado Novo nesse campo. Mas a principal diferenga tem a ver com aquilo que poderiamos chamar de leitmotiv da Era Vargas, a questdo do trabalho: a eficdcia do discurso do Estado Novo, como diz Angela de Castro Gomes, repousa em sua capacidade de, a0 mesmo tempo, mobilizar ¢ obscurecer a meméria operaria, na medida em que ressignificou as demandas operérias do pré-1930: ao invés de uma conquista, a legislagao social e trabalhista foi propagandeada como um beneficio, uma concessio.”* A anilise da propaganda é importante porque ela expressa 0 que eu tenho chamado de “dimensto pedagégica” do projeto autoritério do regime militar.” Segundo meu ponto de vista, havia uma espécie de “amdélgama ideoligico” que unia os militares de diversas tendéncias (duros, moderados, nacionalistas, cosmopolitas), bem como articulava as varias instdncias repressivas do regime, como "" CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidées em cena: propaganda politica no Varguismo e no Peronismo. 2 ed. Sto Paulo: UNESP, 2009 p, 240, GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda ¢ censura no Estado Nove. Sio Paulo: Marco Zero, 1990, p. 19 © CAPELATO, Maria Helena Rolim. Estado Novo: novas histras. In FREITAS, Marcos César de (Ore, Op. cit. 208 " CANCELL, Elizabeth, O mundo da violencia: a polcia da era Vargas, 2, ed Brass: Editora Unb, 1994, p. 56 ®° CAPELATO, Maria Helena Rolim. Estado Novo: novas hist6rias. In FREITAS, Marcos César de (Org.). Op. cit. p. 203, 2B GARCIA, Nelson Ja. Op it. 91-2 GOMES, Angela de Casto, Op. ct. p. 253 * GOMES, Angela de Castro. Estado Novo: ambiguidades ¢ h gptido pela autora 2 FICO, Carlos. Represién durante la dictadura militar brasileia (1964-1985): violencia y pretensién pedagégica Revista de Estudios Latinoamericano, v, p7-41, 2008. ;angas do autoritarismo no Brasil (mimeo). Gentilmente 1 a repressio propriamente dita, a propaganda, a censura e a espionagem. Flas muitas vezes divergiam entre si. Quando usamos a metéfora “pordes da ditadura”, tendemos a homogeneizar essas instincias, que, analisadas com cuidado, mostram diferengas significativas, Por exemplo, apesar do indiscutivel sucesso da propaganda militar feita por moderados, a linha dura a via como algo piegas, “uma perfumaria”.* Este “amalgama ideolégico” seria 0 que tenho chamado de “utopia autoritiria”,”* e aqui a palavra utopia comparece no no sentido generoso de horizonte de felicidade, mas de projeto isrealizavel. Segundo essa utopia, seria possivel transformar o Brasil em uma poténeia mundial caso alguns “obstéculos” fossem eliminados. Trata-se de uma espécie de recepedo rarefeita da Doutrina de Seguranga Nacional, cujo cardter sistémico e concepgdo complexa nem sempre se verificavam no cotidiano dos militares que manejavam aquelas instancias repressivas.”” ‘A maneira pela qual os diversos militares aderiram a essa utopia distinguiu-se, pelo menos, em dois tipos: podemos chamar o primeiro de “saneador” e 0 segundo, “pedagdgico”. Para alguns militares mais radicalizados, era necessério eliminat, literalmente, os obstaculos identificados com 0 comunismo, com a “subversio” € com a “demagogia dos politicos”. Para outros, os brasileiros eram “despreparados”, ndo sabiam votar, deixavam-se convencer pelos lideres populistas, no tinham conhecimento da realidade nacional, ndo possufam, nem ao menos, nogdes bisicas de higiene ou de civilidade urbana, Portanto, era necessério educé-los. Para os primeiros, a solugdo seria uma grande “operagio limpeza”, capaz de prender, exilar e até mesmo matar os inimigos daquela “utopia autoritéria”. Para os segundos, cabia aos militares desenvolver um projeto que suprise as “defi cias de formagio” da sociedade © a protegesse de “idcologias exéticas” ou de outras formas de corrupgao do espirito. ‘A dimensio “saneadora” da “utopia autoritéria” previa ages dristicas de repressio, sendo esta a razio que explica a utilizagdo de instrumentos que os militares classificavam de “revoluciondtios”, no sentido de serem excepcionais (a possibilidade de prender sem mandado judicial, interrogar violentamente, torturar ¢ até matar o “inimigo”). Esses instrumentos eram ocultados da sociedade ¢ a sua existéncia, negada enquanto foi possivel fazé-lo. FICO, Carlos. Reinventando 0 otimismo; ditadura, propagand Fundagio Getilio Vargas, 1997. p. 76 2 4 expresso foi inicialmente proposte por Maria Celina D’Araujo, Celso Castro e Gliucio Ary Dillon D’ARAUIO, Maria Celina et al. (Int ¢ Org). Visdes do goipe: a meméria militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume- Dumars, 1994, p. 9 FICO, Carlos. Conservadorisono durante a ditadura militar In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (Org.) Diciandvia critica do pensamento da direita: ideas, instiruigdes e personagens. Rio de Janeito: FAPERJ/Mauad, 2000, p. 99. ¢ imagindrio social no Brasil, Rio de Janeiro: ares. Ver A dimensio “pedagégica” da “utopia autoritéria”, ao contritio, era orgulhosamente assumida pelo regime: ensinava os brasileiros a usar automéveis com seguranga, a serem limpos — diferentemente do “Sujismundo” — ¢ cuidava para que eles nao sofressem “atentados a moral e aos bons costumes”. Essa segunda dimensdo era “legalizada” (nao eta “revoluciondria”) e, portanto, praticada sem pudores pelos governos militares, Algo assemelhado ocorreu no Estado Novo: tal como no regime militar, esse projeto de educar 0 povo, visto como despreparado, nio se limitou & propaganda politica. Por exemplo, o Instituto Nacional de Cigncia Politica tinha como propésito “congregar as elites para orientar o povo; esclarecer a opiniio da nagdo”. Na revista Ciéncia Politica, que o Instituto editava desde 1940, temas como educago sexual, alcoolismo e higiene passaram a ser abordados com essa perspectiva educativa.”* O DIP buscava valorizar as manifestagdes populares, mas tinha um claro propésito de burild-las, de “elevar o gosto popular”.”” Do mesmo modo — para mencionarmos a tematica central do periodo — os agentes do Ministério do Trabalho viam os trabalhadores como seres infantilizados, atrasados ¢ até mesmo etnicamente degradados —° o que mostra, como ja disse, que os regimes autoritérios ndo séo univocos, pois outras agéncias do mesmo governo buscavam valorizar a miscigenay CENSURA [As dimensdes pedagégica e saneadora atuam em conjunto. Essa percepedo ajuda a entender a dindmica desses regimes autoritirios. Nao hi uma contradigo entre a face repressiva do Estado Novo ¢ a imagem benevolente de Gettlio Vargas. Do mesmo modo, também ndo hé contradigo no fato de o regime militar ter se empenhado em negar a pratica da censura politica, embora a censura moral fosse piblica e notéria, Por isso, tenho enfatizado a existéncia ndo de uma, mas de duas censuras durante o regime militar”! A censura da imprensa, depois do AI-S, implicava uma atividade didria e frenética de interdigdes. Era feita previamente por censores ou através de avisos telefGnicos ou por escrito ~ os “bilhetinhos”. Exercia-se de maneira encoberta e o grande piiblico no a conhecia em detalhes. Era feita por um érgdo sigiloso, cuja denominagio ¢ vinculagées s6 foram estabelecidas recentemente.? Chamava-se SIGAB (Setor de Imprensa do Gabinete) & °* VELLOSO, Ménica Pimenta. Cultura e poder politico: uma configuragio do campo intelectual. In OLIVEIRA, Lucia Lipri, VELOSO, Ménica Pimenta, GOMES, Angela Meria de Castro Gomes. Op. cit. pp. 76690 * GOULART, Silvana. Op. cit p.27 ® DUTRA, Eliana. O ardil totalitério: imaginério politico no Brasil dos enos 30. Rio de Janciro: Belo Horizonte, UFR; UPMG, 1997. p.326 * FICO, Carlos, A pluralidade das censuras e das propagandas da ditadura. Anais do Semindrio 1964-2004: 40 Anos do Golpe. Ditadura Militar e Rsistoncia no Brasil. Rio de Jascro: Tetras; FAPERJ, 2004 * MARCELINO, Douglas Attila. Salvando a pdtria da pornografia ¢ da subversdo: a censura de livros e diversdes 9 vinculava-se Policia Federal, O regime, durante algum tempo, tentou negar a existéncia da censura politica, farsa que veio por terra quando o jomal Opinido provou, no Supremo, em 1973, que era vitima de censura — 0 que obrigou o governo de Médici a admitir sua pritica com base no ALS ~ em termos “revolucionérios”, excepcionais, fora do quadro legal. A censura de diversdes piiblicas, ao contrério, era amplamente conhecida do piiblico, j4 que os certificados de autorizagao eram exibidos na TV e nos cinemas. A classe teatral estava familiarizada com a atividade, desde 0 Estado Novo, pois era tradicional a figura do censor checando a “moralidade” dos espeticulos, nos quais a improvisag&o era proibida por Ici.** Tratava-se de um Srgio piblico, com funciondrios de carreira e enderego conhecido, diferentemente da censura politica, encoberta. Tanto que a sociedade interagia com a Divisio de Censura enviando tas para pedir mais censura.* Consolidou-se precisamente no Estado Novo, mas nos govemos militares, apés 0 AL-S, a censura moral cresceu e teve de atuar em areas novas, como a TV. Mas a legislagio era.a mesma; a maneira de agir e de ser ndo diferiam do que ocorrera no Estado Novo. ‘A censura de diversdes piiblicas visava especialmente s questdes morais, mas é claro que a politica também era atingida, embora fosse cuidada centralmente pelo mencionado SIGAB. Portanto, essa especializagio, essa divisio de tarefas, indica alguma diferenca entre os dois regimes autoritarios, jé que o DIP cuidava de tudo, da propaganda, da censura do teatro, da censura da imprensa, que foi 0 setor mais atingido:** a Agéncia Nacional do Estado Novo gerava noticias ¢ a chegava ao requinte de determinar a diagramagao das paginas."* DISCURSO ANTICORRUPGAO. Essa tipologia de instancias pedagégicas ¢ saneadoras permite uma abordagem detalhada desses Por ter sido a problematica central dos anos 1930, a questo do trabalho marcou a represso do Estado Novo, na medida em que © combateu tanto o “subversive” quanto o “malandro”, instaurando-se como contravengdo penal, em 1941, a pritica da “vadiagem". O trabalhador, mesmo sendo pobre, era um “homem digno”, merecia a protegio do Estado:** “ ‘quem tem oficio, tem beneficio”. Mas contra quem nao trabalhava estabeleceu-se uma suspeigdo moral: no mesmo movimento através do qual se constituiu 0 “cidaddo-trabalhador”, destituiu-se 0 desocupado, que assim passou a ser perseguido pela repressao,”” pritica que atravessou o regime militar e perdura até hoje. MILITARES A importéncia dos militares em todo esse percurso histérico nos obriga a fazer uma referéncia especifica a eles. Para considerar os vinculos que se podem estabelecer entre o Estado Novo e 0 regime militar, ¢ indispensével pensé-los como personagens centrais. A prépria denominagao dos dois regimes depende da posigio em que os situemos: no caso do regime militar, tem-se discutido se 64 foi um golpe militar ou um golpe “civil-militar”, um debate que expressa o desejo da historiografia de sublinhar apoio civil ao golpe. Parece-me que o golpe de 64 pode realmente ser caracterizado assim. De fato tivemos a conspirago dos empresérios, as marchas da familia, o papel preponderante dos governadores da UDN, além do apoio da grande imprensa e da Igreja catélica. Entretanto, se ¢ legitimo caracterizarmos 0 golpe de 64 como “civil-militar”, 0 regime foi indubitavelmente militar. As pretensdes de lideranga de Lacerda, por exemplo, foram logo afastadas pelo general Costa e Silva, nos primeiros dias apés 0 golpe.** Foi um regime militar: além dos 5 SOLA, Lourdes. O golpe de 37 ¢ 0 Estado Novo. MOTA, Carlos Guilherme (Org). Brasil em perspectiva. 13. ed ‘io Paulo: Difel, 1982, p. 259 © CAMARGO, Aspisia e outros, O golpe silencioso: as origens de Repablice orporativa, Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989. p. 54 5 YARAUIO, Maria Celina. O Estado Novo. Rio de Jansiro: Zahar, 2000, p. 17. % GOMES, Angela Maria de Castro. A construggo do homem novo: 0 tabalhador brasileiro. In OLIVEIRA, Lucie Lippi, VELOSO, Ménica Pimenta, GOMES, Angela Maria de Castro Gomes. Op. ct. 164 S'DUARTE, Adriano Luiz. Cidadania e exclusdo: Brasil 1937-1945, Floriandpolis: UFSC, 1999. p. 324 hitpsiwww.gedm.ifes. uf br/upload documentos’67 pat 15 presidentes serem marechais e generais,"* a repressio foi conduzida pelo Exéreito, que a assumiu diretamente depois de 1968, como vimos. No que se refere ao Estado Novo, podemos falar de um regime civil tutelado pelos militares. Aliés, sobre os nomes, ndo deixa de ser curioso notar que a designagao proposta em 37 pelos préprios autores do golpe “pegou”, enquanto que a expressio “Revolugdo de 64” foi muito contestada.® 37 seria um “golpe militar sob roupagem civil”," mas a relagio entre Vargas e os militares nio & simples de estabelecer em termos da proeminéncia desses atores: “Vargas conseguiu usi-los ¢ conté-los”,” mas cles tinham grande importancia, no apenas por terem proclamado a Repiiblica, mas também porque 1937 € 9 momento de realizagtio de um projeto de unificago ow nacionalizago militar. Dai a sem-ceriménia do manifesto do general Dutra, quando da instauraglo do Estado Novo, que dizia: “a patria e 0 regime repousario sob nossa guarda”. A “politica do Exército”, como jé foi estabelecido por estudos famosos, deveu muito ao general Géis Monteiro, que teve papel essencial ao estabelecer as diretrizes que Vargas encamparia no Estado Novo: 1m Exército unificado, organizado, pacificado em relagdo aos conffitos internos — que vinham desde o tenentismo —, uma instituigdo que deveria ver-se como agente superior as elites ie de civis no que diz respeito & capacidade de entendimento dos problemas nacionais. Uma esp “poder moderador”, que, para se realizar plenamente, precisava fortalecer-se, 0 que se dew com o alistamento universal, o crescimento do contingente,®* mas também com o controle das forgas estaduais, pois alguns estados contavam com policias militares que punham em xeque o cardter nacional do poderio militar." Com a Constituisio de 1937, as policias militarizadas tormaram-se forgas auxiliares do Exército, situag%o que perduraria também cm todo o regime militar.” Como se vé, 0 fundamental das diretrizes militares que prevaleceram em 1937, por inspiragdo de Castelo Branco e Costa Silva foram promovidos ao posto de merechal logo que passaram pare @ reserva a fim de assumirem a presidéncia da Republica © GOMES, Angela de Castro. Estado Novo: ambiguidades ¢ herangas do autoritarismo no Brasil (mimeo). p. 1 Geatilmente cedido pela autora, ®" CAMARGO, Aspisia e outros. O golpe silencioso: as origens da Replica comporativa, Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989. p13. © CARVALIIO, José Musilo de. Cidadania no Brasil: 0 longo caminho. 11 ed. Rio de Janeiro: Civilizagio 2008. p. 158. © SILVA, Helio. Todos os gopes de parecem. Rio de Janeiro: CivilizagBo Brasileira, 1970. p. 469. © CARVALHO, José Musilo de. Forgas Armadase politica no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zaher, 2008, pp. 92, 96 € 108. © CARVALHO, José Murilo de. As Forgas Armadas na Primeira Repiiblics: 0 poder éesestabilizador. In FAUSTO, Boris (Dir). © Brasil republicano: sociedade e instituigdes. Mistéria Geral da Civlizagdo Brasileira, Tomo Ill, vol. 2. 2. ed. Sto Paulo: Difel, 1978. p. 214 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Op. cit. p. 102. © CARVALHO, José Mutilo de. Forgas Armadas ¢ politica no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 96. ira, 16 Géis Monteiro, persistiram no regime militar, neste caso a partir das elaboragdes da Escola Superior de Guerra, 0 que José Murilo de Carvalho sintetizou ao caracterizar a ESG como 0 “Géis coletivo”.“ Foram fortalecidos os prinefpios da hierarquia, os militares viram-se cada vez mais como guardides do Brasil, em tudo superiores aos civis, e a politica partidéria continuow desprezada, Os dois golpes foram bastante diferentes, jé que em 1937 se tratava de manter Vargas no poder e, na verdade, desde os episédios de 1935 nao havia muita divida sobre os desenvolvimentos futuros. A conspiragao para derrubar Goulart, entretanto, foi encoberta, embora tenha sido um desdobramento da campanha ostensiva de desestabilizagao que se iniciara desde sua posse tumultuada, A diferenga fumdamental & conhecida: em 64 os militares no atuaram como simples “poder ‘moderador”, assumiram diretamente 0 governo, fundamentalmente porque havia o risco de divisdes ideolégicas nas Forgas Armadas em fungdo da presenga de oficiais nacionalistas ¢ populistas.” Os militares haviam se afastado de Vargas no final do Estado Novo em fungio do apoio dos comunistas, 0 que tomou o trabalhismo uma fonte permanente de desconfianga. Assim, Jodo Goulart seria derrubado em 1964 por uma facgo militar que reunia antigos aliados do Estado Novo ¢ oficiais antigetulistas que se opunham a corrente militar populista.”” LEGADO [Apesar dessa diferenga, as semelhangas entre os dois regimes sio realmente grandes, 0 que nos autoriza a falar de um legado do Estado Novo que atravessou todo 0 period democritico sobreviveu ¢ aprofundou-se no regime militar. Entretanto, essa “permanéncia” ndo se expressou apenas como uma continuidade, pois o Estado Novo serviu de referéncia negativa para os governos militares: eles tentaram distinguir-se do que era malvisto na ditadura varguista, por isso evitaram falar em propaganda politica, bem como tentaram ocultar a censura, como ja vimos. Talvez seja este também o motivo do envolvimento direto dos militares na repressio: a fama negativa de Filinto Miller tormou impossivel uma policia politica tradicional, civil, no regime militar. Do mesmo modo, podemos considerar que esse “aprendizado” funcionou no que diz respeito a uma das grandes diferengas entre 0 Estado Novo ¢ o regime militar: 0 funcionamento, neste iiltimo, dos partidos politic e da vida parlamentar, apesar de todas as conhecidas restrigdes impostas pelos dem. 134, © CARVALHO, José Murilo de, Cidadania no Brasil: 0 longo caminho. 11 ed. Rio de Janeiro: Civilizagdo Brasileira, 2008. p. 159. * CARVALHO, José Murilo de. Vargas e os militares. In PANDOLFI, Dulee (Org). Op. cit.p. 344. 17 militares, Se 0 Estado Novo pretendeu substituir os partidos pelas cdmaras ou setores da produgao,”’ os militares de 64 evitaram implantar um modelo corporativista explicit, embora desprezassem claramente a vida partidiria e parlamentar e tivessem reforgado, na pritica, os mecanismos corporativos. A supremacia do Executivo sobre 0 Legislative, embora nfo seja um fenémeno apenas brasileiro, impés-se no Estado Novo, agravou-se no regime militar” ¢ situa-se, ainda hoje, como uma das grandes fragilidades institucionais da democracia brasileira: 0 Congresso simplesmente nao legisla por conta prépria. Um dos grandes legados foi a continuidade da legisla jo trabalhista, da Justiga do Trabalho. A longevidade da contribuigio sindical & surpreendente: criada em 1940 para tomar os sindicatos “atraentes”, com r ‘ursos para realizar plenamente o projeto varguista de tutel , & contribuigdo tomou os sindicatos, na pritica, “sucursais do poder piblico”.”* O regime militar sé mexeu no imposto” sindical para corrigir seu nome, que passou a se chamar “contribuigo”, mas na ocasio reconheceu que ela era fundamental para a “paz social”.”* No mais, tudo foi mantido, apenas se incorporando os trabalhadores rurais © as empregadas domésticas nos anos 1970, Mas também se deve sublinhar que essa legislagdo, além de ser percebida pela maioria dos representantes dos trabalhadores como um legado positive, ndo foi obsticulo ao projeto repressive do regime militar, justamente porque mantinha os sindicatos sob tutela.”® Em muitos campos, o legado do Estado Novo simplesmente se incorporou, sem nenhuma fricgo, a0 regime militar. Esse € 0 caso do patrimonialismo de perfil corporativo, que se expressou em ambos os regimes através da presenga dos ricos nos conselhos que definiam o destino dos recursos piblicos.”* O que se viu no Consetho Federal de Comércio Exterior nos anos 1930 — érgao que teve ‘um papel essencial na destinagao de recursos e no planejamento da economia, inclusive em termos da legislag’o econémica -,”’ agravou-se no regime militar. As reunides do Conselho Monetério Nacional, nos anos 1970/1980, eram quase que a materializagdo da nogdo de patrimonialismo. O Conselho foi um érgio que praticamente substituiu o Congresso no que diz respeito ao orgamento & * DARAUIO, Maria Celina, O Estado Novo. Rio de Janeiro: Zaha, 2000, p. 11 ” DINIZ, Bl, Reforma do Estado e regime police: o Estado Novo ¢ os governos militares Rio de Jancio: UERS, 2000 (Fextos para Discuss, 439) pp. 11 e 16. CAMARGO, Aspisiae outos. © golpesilencios: as oigens da Repiblice orporativa, Rio de Jancro: Rio Fundo, 1989, p, 259, * VIANNA, Luiz Wemeck. © Estado Novo ¢ a “ampliagdo” autoritiria da Repiblica. In CARVALHO, Maria Alice Rezende de, Replica no Catee, Rio de Janeiro: Museu da Replica 2001 pp. 136-13 "* Decreto-Lei n. 27, de 14 de novembro de 1966, citado por VIANNA, Luiz Werneck. O Estado Novo e a “ampliagdo” auoritiria de Repiblica, In CARVALHO, Mara Alice Rezende de. Repiblica no Catete, Rio de Janeiro: Museu da epblica, 2001. pp. 136-137 D’ARAUIO, Maria Celina, Estado, classe trabalhadora ¢poltcas sociais, In FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lit de Almeida Neves. Op cit pp. 225,231 6234 ”* DINIZ, Eli, Engenharia institucional e politicas pablicas: dos conselhos técnicos as cmaras setoriais. In PANDOLFI, Dulce (Org). Op. ct. p. 29 *” SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Op. cit. p. 101. CHACON, Vamireh. Op. cit. p. 117. 18 as decisdes de gastos. Os banqueiros, industriais, grandes comerciantes, exportadores, fazendeiros decidiam quanto seria emprestado a eles préprios, quais subsidios beneficiariam a eles mesmos, quanto de isengo fiscal favoreceria aos seus: “Ali, instalados no coragdo da emissio priméria de moeda, 0s ricos contratavam a inflagao, que os enriqueceria ainda mais”.”* ABERTURA ‘Membros da Comissio Julgadora, Es a tentativa de cotejamento poderia prosseguir abordando muitos outros aspectos — como ¢ 0 caso das relagdes intemacionais ou da participago dos intelectuais, apenas para citar duas das mais interessantes possibilidades de comparagdo entre os dois regimes. Entretanto, devo encaminhar-me para a conclusio e nfo poderia deixar de mencionar o fim dos dois regimes autoritirios, Ha semelhangas nos dois processos de transigo para a democracia: em ambos, ndo houve ruptura, como se vé pela mamutengao do legado do Fstado Novo ¢ pela transigdo através do Colégio Eleitoral no regime militar.” Vargas continuaria um interlocutor fundamental, tanto quanto na Nova Repiiblica alguns dos lideres civis do regime militar permaneceram influentes.“’ No tocante aos militares hé diferengas: em 1945 eles permaneceram atores preponderantes, embora as divisdes ideolégicas que incomodavam Géis Monteiro se reinstalassem ¢ fossem decisivas para o desfecho de 64.*! Ao contrario, no final do regime militar eles praticamente sairam de cena, deixando de ser 08 atores decisivos que haviam sido por quase cem anos. A estratégia da abertura nos dois casos foi bastante assemethada: flexibilizagio da censura & imprensa, seguida de anistia ¢ do restabelecimento ou reconfiguragao da vida partidéria, Terd havido, também nesse caso, uma inspiragdo direta do regime militar no Estado Novo? Creio que sim, Apesar de antigetulistas, & visivel que Geisel e Golbery tiveram em conta a experiéncia do Estado Novo quando planejaram a transigdo “lenta, gradual e segura”, 0 talento de Vargas ao criar © PSD ¢ 0 PTB & conhecido. Golbery, em 1979, claramente tentou implodir a forga crescente do MDB conjugando a Lei da Anistia ¢ a reforma partidéria, Ele esperava que os Iideres exilados que retornariam eriassem partidos que dividissem as forgas oposicionistas, o que de fato aconteceu, ® LEITAO, Miriam. Saga brasileira: a longa luta de um povo por sus moeda. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 84 D'ARAUIO, Maria Celina, O Estado Novo. Rio de Jancito: Zahar, 2000, p. 57 © GOMES, Angele de Castro, Estado ‘Novo: ambiguidades e herangas do autortatismo no Brasil (mimeo). Gentilmente cedido pela autora, p. 22. * SOUZA, Maria do Carmo Campello de, Op. cit.p. 108 ™ SKIDMORE, Thomas, Brasil: de Geulio a Castelo. 13 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p. 78. CARVALHO, José Murilo de. Forcas Armadas e politica no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zaher, 2005. p. 134. 19 0 texto da lei de anistia, preparado ainda por Geisel e Golbery, mas aprovado nos primeiros meses do governo Figueiredo, ecoa muitissimo 0 do decreto-lei de 1945 — aspecto que ainda ndo foi devidamente assinalado. A anistia de 1945 perdoou os crimes politicos, mas exeluiu os “crimes ‘comuns no conexos com os politicos”.? Dificil nao ver, ai, a inspiragao para a formula utilizada por Golbery para consagrar aquela que foi a principal cléusula da transigdo democratica dos anos 1980: 0 perdio a todos os militares no apenas aos torturadores, como comumente se diz, Com a anistia de 1979, foram perdoados os crimes politicos ¢ os “conexos com estes”, erimes de qualquer naturezi * nesse caso ndo uma exclusdo dos crimes comuns, como em 1945, mas um perddo ao arbitrio de qualquer natureza praticado pelos responsdveis pelos governos militares. A Lei de 1979 foi uma lei de ponto final, preocupagio que ndo houve no Estado Novo. No final do regime militar, os militares teriam aceitado qualquer coisa, menos sentarem-se no banco dos réus. passivo deixado pelo regime militar foi muito maior que 0 do Estado Novo, nao sé porque 0 tltimo regime autoritétio foi mais violento, mas também porque a questo da meméria se impés com muita forga, apés a II Guerra Mundial, da qual o Estado Novo foi coetaneo. ‘A comparagao dos regimes autoritirios do Brasil republicano — que aqui tracei apenas em termos gerais, dada a exiguidade do tempo disponivel — enseja, naturalmente, uma reflexdo politica, jé que nossas investigagdes nao tém alcance apenas académico. Talvez nao seja abusivo afirmar que hoje no Brasil hi uma adestio maciga aos valores da democracia, capaz de afastar a possibitidade de uma evivescéncia autoritéria, Do mesmo modo, espero nao ser ingenuamente otimista ao sustentar que se amplia no Brasil a consciéncia da urgente necessidade de superagao das ainda terriveis desigualdades sociais, Se compararmos os dois regimes autoritérios ¢ o momento atual da histéria brasileira, a principal conclusdo a que se pode chegar ¢ que a combinago de democracia, crescimento econémico € incluso social sdo as condigdes basicas para o definitivo abandono do autoritarismo © da modernizagao conservadora, em busca da verdadeira modernizaco, que poderiamos chamar de modemizagao progressista Obrigado, Decreto-lein. 7.474, de 18 de abril de 1945. Lei 6.683 de 28 de agosto do 1979,

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