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Bost, 4. Gc, Informe 50, Abca, 1988 A interpretagio da obra literiiria (io, De antiques torn ane pan) Se os sinais gréficos que desenham a superficie do texto literdrio fossem (ransparentes, seo olho que neles batessevisse de chofre o sentido ali presente, entdo nao haveria forma sim- béliea, nem se farla necessrio esse trabalho tenaz que se cha- ma interpretagao. ‘Acontece, porém, que as palavras ndo sfo diéfanas. Ain- dda quando miméticas Ou fortemente expressivas, elas slo den ‘sas al€o limite da opacidade, Esse fendmeno ¢ estrutural. O focesso em que se gesta a esctta percorre campos de forca con- traditorios, em parte subtraldos & luz de uma conscigneta vii ante e sempre dona de si propri 'Na invengdo do texto enfrentam-se pulsdes vita profun- das (que nomeamos com of Lermos aproximativos de desejo e ‘medo, principio do prazer e principio de morte) ccorrentes cul- turais do menos ativas que orientam os valores ideol6gicos, 6 padres de gosto e os modelos de desempenho formal. "A cultura, porque € trabalho e projeto, transforma, con- servando, 0 Impeto que levaria & efusio imediata dos afetos. ‘Assim sendo, como poderia ser translicido o resultado de um ercurso cuja natureza lembra menos a rola batida que 0 la- birinto? 'A palavra que eu Ieio (lego: colho) na sa ingrata ren «ia sobre a pagina do livro, desafia-me como a pergunta da Es- finge. A resposta pode variar ao infinito, mas o;nigma é sempre ‘o mesmo: 0.que eu quero dizer? Ler & colher tudo quanto vem escrito. Mas interpretar & cleger(ex-legere: escolher), na messe das possiblidades semi ticas, apenas aquelas que se movem no encalgo da questdo cx cial: 0 que 0 texto quer dizer? [Nao foi por acago que o uso consagrou um verbo to for- te eto incisivo: querer dizer. como se alinguagem atribuls- ‘8 matriz do discurso uma poténcia simbolizante, uma vontade, imersae difusa na zona pré-consciente dos seres, eque, apesar dda sua forga incocreivel, mitiea, capaz de transmi homens ¢ & sociedade. Entre o querer-dizer eo texto ultimado hé a distancia que separa (eafinal, une) o evento aberto ea forma que o encerra. ‘A forma, nos casos de éxito, serdo claro enigma que o pocta Carlos Drummond de Andrade escolheu como nome justo pa- aa sua palavra. CConvémm repetir os termos: evento ¢ forma. Ambos foram. Juminosamentevistos por um f6sofo italiano, de formagdo clés- sica, Carlo Diano, cujo optisculo, Linee per una fenomenolo- tia dell arte, mereceria leitura atenta de nossos estudiosos de Titeratura. ‘Uma das vantagens tebricas da sua abordagem & deixar de lado a palavra contedida, tradicionalmente atada & palavra ‘forma, epreferir outra, mais rca ecomplexa, evento. Entende-se por evento todo acontecer vivido da existéncia que motiva as ‘perapdes textuais,nelas penettanclo como temporalidade esub- jtividade. Diz Carlo Diano: Evento éfomado ao latin e tradu 0 grego tyche. Evento «portant, no qulegud evnit tudo aguilo que acontece), mas ta quod cuique évenit, 6 1 gignetal ekdsto (aguilo que acontece ‘para alguém), como esereve o poeta Flémon glosando Arist {eles. Que alguma coisa acontera,ndo basta para prodicir wnt ‘eventos para que haja um evento &necessério que ese aconte- ‘ere o zinta como wm aconecer para mir. No entanto, se10- {do evento.se abre consiéncia como acontecimento, nem todo ‘acontecimento ¢ evento (op. cit p12). Nao desdobrarei aqui os nexos entre “evento”, “destino” « “epifenia do divino”, que o filésofo aponta como inerentes 8 historia da palavra tyche na tradigio helénica. ‘As notagoes seguintes aclaram 0 significado de evento, Em primeio lugar, quanto & sua subjetividade radical: “De evento iio se pode falar senao em relagdo com um determina- do sujcto © a parti do ambito deste sujet”. Depois, quanto a inerEncia das coisas no evento: [Nao sb os acontecimentos podem ser senidos como even 40s, mas também o que nds chamamos “eo.sas”, no ato pelo ‘qua oomem adverteaexséncia delas como algima coisa que ‘evista para ele ndo para st mesma. Fatos ¢ coisas, nfo em si préprios, mas fatos-verbos © coisas-nomes, formam a trama {ntima do evento para a cons: céncia que 0 vive, que o contempla e o plasma na linguagem, Enfim, quanto a estrutura espacio-temporal do evento: ‘Como aquilo que sobrevém (ou aparece, produ se, di se: outros modas de lr &veit) a alguém, o evento ésompre bic et nune. Uni rio golpeou uma drvore durante a noite, mas eu 60 velo pela manhd. Ofeto, caso venhaaconsttuir para mim lum evento, 0 0 serd quando 0 que “aconteceu” $e fier atual como.um “acontece"s sea drvorendo fr apenas wm dos mul- 10s pontos no espayo, mas 9 mew “opora"™(p. 13). Em outras palavras: o infinito suceder edsmico e hist6ri 0, que nos precede, nos envolve e nos habita, sempre, © em toda parte, do nascer ao morrer, $6 se torna um evento para © sujeito quando este o situa no seu aqui e o temporaliza no seu agora; enfim, quando osujeto 0 concebe sob um certo pont de vista ¢ 0 acolhe dentro de uma certa tonalidade afetiva. Em torno do evento subjetivado, na sua imensa e claro- escura periferia, vem e vai inesgotavel, “i gran mar dell esse- re de que fala Dante. O grande mar do ser, que a consciénc ‘podtica 56 consegue penetrar quando Ihe édado sob as especies do evento. (© evento, aquilo que me sobrevém, a mim ¢ em mim, consttui-se como uma experiénciasignificativa do sujeito, vi véncia aberta e miltpla, e que a forma s6 aparentemente en- cetra nos seus signos e simbolos. ‘A forma estaria para 0 evento assim como © nome Identidade de um homem est para a existéncia, plural e Nui- dda, sua vida pessoal. A forma do poema ¢ 0 nome do sujcto: ibos; ambos aparéncia e problema. ao intérprete decifrar essa relagdo de aberturae fe- chamento, tantas vezes misteriosa, que a palavra escita entre- tém com @ ndo-esctto intérpreteé, por exceléncia, um mediador. Ble trabalha, rente ao texto, mas com os olhos postos em um procesto for- ‘mativo relativamente distante da letra. “Interpres chamavam 0s romanos aquele que servia de agen {cintermedidrio entre as partes em ltigi. Com o tempo, inter- pres assumiu também a fungi de traducor: 0 que transporta © significado da sua forma original para outra; de um e6digo primeiro para um eédigo segundo; o que pretende dizer a mes- ‘ma mensagem, mas de modo diferente. A interpretagdo opera ‘mesmo, servindo-se curso préprio do hermeneuta, ‘Nao usei ligeiramente 0s verbos pretender e ambicionar {quando me referi ao projeto do intérprete. De fato, 0 que este deseja € tocar um alvo dificil: elaborar um discurso de com- preensdo. E segurat com a sua palavra o que jé é, em si, are sultante formalizada de operagdes complexas de projeqdo, deslocamento, condensagao, sublimaglo, degradagao, masca Famento, desmascaramento, harmonizagao, ideologizasio... (© intérprete prope para uma comUnidade ideal de leita res (Lodos, intérpretes vituais) um sentido intligiel, que or- ‘ne universal o teor de um texto recebido na experiencia singular ia sua leitura. Para tanto, ele precisa sondar com amorosa aten- 40 05 virios estratos do querer-dizer. Na linguagem de Carlo Diano, o intérprete deveria resgatar para oleitor aque evento ccomplexo, subjetivo e histérico, ao qual o poeta deu uma for- rma. E por isso que a interpretacdo literdvia nfo pode deixar de ser um projeto cultural aberto. Apoiada no exame de algumas estruturas textuais con- textuas, a interpretagdo tentarecompor aquele movimento para tum sentido que atravessou o discurso a ser lido. F 0 felos que iimanta e dé coeréacia aos dados colhidos a respeito da genese psiquica e social do texto, ‘A origem, por sua vez, nfo € determinagio absoluta. 0 alo de interpretar, enquanto mediador entre a forma eo even- to, ndo quer submieter a esrita a uma “explicagia" onipoten- te da sue génese, pois essa atitude causalista acaba reduzindo € injustigando a dindmica das conotagOes e das associagoes que © trabalho formal propicia ao poeta no momento inventivo do Tazer literati. ‘O intérprete std diante do efeito verbal cestlizado de um. processo que € sinuoso e, nfo raro, obscuro para o seu préprio Eriador. E preciso que ele respeite esse cardter de mobilidade, incerteza, surpresa, polivalénciae, até certo ponto, indetermi nnagio, que toda fala implica mesmo quando tudo nela parega ‘gun de rocha ¢ cristal sem jaca. Ha sempre o riseo de fabricar hermenéuticas ticas do que 0 texto-fonte, ‘Se a obra se apresenta, na riqueza concreta das suas figu- ras, eruzada por um sistema ideol6gico ou mitico (ou por em bos), 0 intérprete cuidard de nfo aperté-la com as tenazes de tum modelo monocausal,cujo uso prético fard regredir as rela (oes méveis entre forma e evento @ uma s6 e hipotética “or Gem’. Ao contrério, o mediador se esforca para reconstituir €, se possivel, reviver em si aquele movimento plural de sent ddo que faz jus ndo s6 as regularidades do poema como as suas fraturas e contradigdes. ‘A forma reflee 0 evento, mas, como sugere Mallarmé, prismatizando-o. ishermé- Perspectiva e tom hd grande texto artistico que nao tenha sido gerado 3 de uma dialética de lembranca pura © meméria so- Cal; de fantasia criadorae visio ideol6giea da Hist6ria; de per- ‘cepeio singular das coisas e cadéncias estilisticas herdadas no frato com pessoas livros. ‘Como ignorar esas interagdes, que afinal co-exister em ‘um poema, romance ou drama? E como garantir sempre o.uso ‘daguele salutar discernimento pelo qual prestamos atengdo &s ‘arias forgas em presenga, mas Sem perder de vista aquelas que, 2 rigor, sobredeferminaram o texto dando-Ihe a perspectiva € (6 tom afetivo dominante? erspectiva e tom #40 os conceltos mediadores dessa me- dliagdo por exceléncia que & a tarefa do intérprete. ‘So a perspectiva eo tom que unificam a letura de modo compreensivel. E 0 conhecimento de ambos que impede a ato- ‘mizago pela qual certas andlises mectnicas nos fazem perder ‘visio da floresta contando as nervuras das folhas. E 0 exame ‘deambos que matiza aquelas reduces vilentas que se fecham na explicagio causal "A petspectiva, que Erwin Panofsky, em um estudo revo- luciondtio para a histOria da estética, chamou de forma simba- fica, nos 4 0 intligivel cultural da mensagem artstica. Si ‘porque o sujeito para o qual se abre o evento sigific Sujet que sente, pensa eescreve, nfo um eu abstrato, posto fora ou acima da histéria concreta dos seus semelhantes. Ele perecbe ejulga as situagSes e os objetos através de um prisma ‘Que foi construido elapidado ao longo de anos e anos de expe~ ‘Héncia social, com fodas as constantes e surpresas que esse pro- essa velo manifestando. ‘se nto atentarmos para a extrema importancia que tem a perspectiva na formagao da escrita, a nossa leitura resvalard pata toda sorte de énfasesarbitrrias neste ou naquele dado.co- Thido ad libitum no meio do text ‘Junto com a qualificapo socal e cultural da drica da es rita (perspectivaaristocratica, ou burguesa, ou popula; pers pectivarligiosa ou liga; baroca, ou neocéstica, ou romdntica, ‘ut expressionista..; determinista ou indeterminista...), tem 0 Imaior interesse a caracterizagio do seu fom dominant. ‘0 termo fom, que na linguagem da masica adquisiu um. sentido preciso, ¢ até matemtico (tons maiores e menores), de- signa em literatura as modalidades afetivas da expressio. O seu Jugar na retSrica antiga € ocupado pelasreflexDes que Atist6- {eles dedica ao pathos € ao ethas dos discursos. O romano Quin- tiliano, ao retomar as distingdes dos gregos, traduz pathos por ‘affects eo considera um sentimento forte, mas temporério, 120 passo que ethos se reservaria para dizer uma disposiglo cons tante da alma (Instituio oratoria, 6, 8, 2) Ocethos de uma obra seria algo como. seu cardter, 0 qual, por sua ver, pode passar por diversas madulapese lex de pathos. ‘As classficagbes dos géneros e subgéneras literdrios guar- ‘dam uma base tonal. Tom patético, tom eleglaco, tom satrt- ‘co, tom finebre, tom festive, tom ‘dlico, tom heréico, tom ‘pico, tom grave, tom burlesco, tom sapiencial, tom irdnico ete. Se 0 leitor conseguir dar, em voz alta, o tom justo ao poema, etd feito uma boa interpretago, isto &, uma leitura “afi- com o espirito do texto. Mediante a perspectiva,atrama da cultura entea na esc ta, Pelo tom €0 sujeito que se revela e faz a letra falar. Anilise e interpretagao: a série e 0 circulo + 0 exame da forma litera tem sido o objeto prioritério da operacdo analitca [Nao cabe aqui discorrer sobre as dispares esucessivas mo- dalidades de andlise. Gramatical e ret6rica nas escola de fil 40 neoclissica. Esilistica, sob a égide do intuicionismo e do Culluralismo. Estrutural e neo-retérica a partir do ascenso da lingiistica nos anos de 60. Enfim, semioldgica e “corporal” ao longo dos 70. Para todas, existe uma realidade palpavel e susceptivl de descricdo: essa “‘matéria” se apanha no trato com as formas da linguagem escrita, A sintaxe, as figuras, as éenl- fas de estilo, os procedimentas de consirucio e de tlocugio; em sua, a ira dossigneats 0 campo onde se move © labor analitic. ‘Sintomaticamente, foi do intesior de filosofias totaizan- tes como o hegeliano-marxismo, o historicismo e o idealismo {que provieram aqueles concetos compreensivos de “perspecti- va" (Lukées, Panofsky, Auerbach) e “tom” ou “motivo do- minante” (Croce, Vossler, Spitzer), capazes de construirem pontes de dupla mao entre aestrutura textual eo processo for- fmador, abrindo assim uma estrada real para a ciéncia da in pretagao. Nao se pode esquecer, porém, que uma das tendéncias mais fortes de pensamento no segundo apés-guerra,afim a0 neaca pitalismo e & corrida tecnoldgica, foi a do empirismo légico, ‘neopositivsta, que rotula a palavra como “protocolo" de fa: tos ede situagbes, coisa verbal feita de coisa fsicas (sons, le- tras). Ora cosas arrolam-se costs contam-se, coisas medem-se, diferentemente de expressdes, que se interpretam. Se conduzo um estudo de expresses como quem faz uma, ‘enumeragdo de coisas, nlo obtenho resultados hermenéuticos. am ‘A eaterioridade separa a coisa-l da coisa-2; e, enquanto ex- terioridade, nfo pode substtuir as relagdes de afinidade, res- soniincia ou implicago mitua que atam a expresso expres- slo y. Eenst Cassiter viu com nitides a diferenga que corre ete ‘ambas as realidades em Sobre a Idgica das ciéncas da cultura (1942). A linguagem & energia, é produsao intersubjetiva, na ual se enlagam e se traduzem as vozes do “eu” ¢ do “tu", em contraste com o mundo dos objetosithados nos seus lini (es Fisica, Se a andliselitedria € uma leitura de expresses, e no um recorte de segmentos materais, ea ndo pode separar-se do tra- balho da interpretacdo. ‘A chamada fase de “Ievantamento de dados" no deve nfiante em que a simples verificagHo de um certo esquema (bindrio ou ternério; linear ou circular), ou o mero pingamento de recorréncias (fonéticas, morfoldgicas, sintai- ‘ou ainda o destaque desta ou daquela figura retérica [posta render, por sis6, muito mais do que uma coleta de su- estes, ou de hipsteses de trabalho, que a compreensfo do texto ‘como ima totalidade de sentido afiaal deverd sempre testa. A divisio em “etapa de andlise” e “etapa de interpreta 40", que tantas vezes propomos em nome da boa ordem es- colar, deve softer uma severa eritica epistemolégica. Ela da ‘margem a um preconeeito bastante antiquado (pré-gestdtico e préfenomenol6gico), segundo 0 qual $6 chegaremos a coni- preender o todo se 0 dividirmos em elementos e descrevermos ‘cada um deles. A verdade, porém, exige outra teoria. O senti- ddo para onde se move um poema nao é obtido pela soina de fonemas e morfemas inclufdos serialmente no texto. A hipéte- seo cculo filoldgico, elaborada por Leo Spitzer’, na esteira ‘equivoco dessa téc- nica rudimentar e recomendava um ir-e-vir do todo &s partes, € das partes ao todo: uma prética intelectual que solda na mies: mma operagdo as tarefas do an cxprete, ‘Nesse contexto de ise a questo da importan- cia a ser conferida ao pormenor. Quando lido estruturalmen- Le Sper, Ligne Nori tera, M te, de tal Forma que acare e matize a compreensio do processo cexpressivo inteiro, o dado particular &extremamente revelador. Mas, elido avulsamente, o seu significado oscia afinal pen- deed do arbitrio de quem o retirou do contexto. Ahipestrofia do segmento, a hiperanslise das partes, pro- picia curiosamente uma visio ultra-simbolizante de cada ele- ‘mento, ou de cada procedimento isolado, técnica sedutora € pparadoxal que conjuga a retérica formalista com fantasias pes soais do intérprete. O testo sal, do raro, solicitado a dizer 0 ‘que no quer dizer e, por isso, destespeitado, ‘Se alribuimos, por exemplo, & presenca de repetigdes so- nnoras ou de rimas femininas, em certo poema, um peso e um valor mitico ou ideolSgico que, em si, tas fendmenos no po- ‘dem conter (pois acham-e integrados em um regime simbélico {do texto, que 0s motiva e os transcende), forgaremos a nota ‘de uma deeifracao arbtrdria do todo. Dai vem uma das pou- ‘eas regras dureas que ¢razodvel ditar& interpretagao literéria: nenhum elemento lingistico traz, em si mesmo, um poder de intelgibilidade para a compreensdo de um texto, O maximo que tuma observagao isolada nos fornece & a abertura de pistas que 0 circulo hermen@utico ied percorrer, mediante o recurso a ou- {tos indicios ministrados pelo contexto. Entéo, 0 caminho de volta do conjunto as partes faré o teste de casa hipétese que ‘© caminho de ida foi aventando. ‘Quando leio o soneto * ‘que comera pela invocagao sg6rio de Matos, Triste Bahia, « suponko (isto & interpreta, por hipétese) que 0 adjetivo iis- {eal signifique nao tanto “niclancélico” quanto “‘culpado” e, por iss, “‘allito”, devo recorterletura dos demais versos para ‘confirmar, ot n80, 2 minha suspeita. E verifico que, de fato, 1 vor do poeta nao 86 lastima, em tom patético, como acusa condena, em tom satroo e moralista, a leviandade da sua terra eda sua gente, A Bahia, “abelhuda™, entregou o seu ‘agtcar excelente” em troca de ‘drogas initeis” trazidas pelo negociante ‘strangero, 0 “sagaz Brichote”, emt sua ‘*méquina mercante”.. Eo soneto se fecha com uma imprecagdo, na qual se fundem a tristeza e 0 desejo de corrgir os males que a motivaram: “Oh se quisera Deus que de repente/ Um dia amanheceras to sist- dda/ Que fora de algodio o teu eapote! £ claro que sem a sondagem do nexo fntimo entre forma {éxiea (“triste”) ¢ 0 evento na sua complexidade (um inomento dda histria social da Bahia subjetivado pelo poeta), a anotacto ddo pormienor seméntico se perderia no desnorte das conjectu ras. A afinagio do tom e 2 busea da perspectiva exatailuml nam os dados particulares. A escrita da compreensio {14 faz um sfeulo que o historcismo alemo opés 0 “ex- pleat das citncias naturais ao ‘‘compreender”” das ciéncias fhumanas. A obra capital deDilthey, que props a distingo (In- trodupdo ds ciéncias do espirito), saiu em 1883. Explcar um fto seria rettito 2s sas casas meine sm na fisica ena quimica. ‘Compreender um fendmeno seria conhecer a estrut seus significados ea dinfimica dos seus valor ‘goes subjetivas (Erlebnis: “vivéncia") peculiares as ciéncias do Homem. Essa dstingo deve ser mantida, reificada, superada? A. esposta é um desafio ainda presente & epistemologia ¢ escapa tvidentemente a este trabalho”. Aceitamos, provisoriamente, ‘ocariter especifico da compreensao. Giambatista Vico dizi, fem polemica com Descartes, que ndo é dado ao homem conhe- er do mesmo modo e com a mesma certeza 0 mundo natu ‘@0 mundo histOrico: s6 este dltimo pode serinternamente rev ‘ido pela meméria, porque € 0 homem que faz a Histéria, 20 passo que no fol o homem que fez a Natureza. ‘Os homens podem compreender 0 fruto de suas ayies © a gesta dos seus antepassados. A obra, o ue foi feito factum) Converte-se em conceito e em verdade. Verum et factum con- vertuntur. O “verdadeiro” € 0 que foi produzido ao longo dos ‘séculos alimentam-se reciprocamente. O conhecimento da pa- favra hist6riea, a flologia, se transforma em compreensto do agit edo pensar dos homens, flo-soffa. Os testemunos pedem 7 pctcms Cetentaopadamene por Kas Oo Apel em Anarchy logue ond te Gta, Dore Dn, D. Réel 187 a erica; a critica remete aos testemunhos. O elreulo que vai dda teoria ds fontese das fontes& teoria €filoligico e é herme- néutico. A andlise mostra efeitos de realidade, cuja verdade s6 se desvenda pela interpretasao. ‘Quanto & explicagdo causal, na mesma medida em que & redutora, nfo tolera concorréncia: ou uma causa fundamen- fal, ou outra. O esquema tebrico das explanagdes positivastende a enibir dicotomias cortantes. Assim, umm ato humano ou deti- vada vontade individual, ou & efeito de ama causa social de- rminada. Tertius non datur. Unis emoyao ou & resultado dé ‘movimentos hormonais cuja base bioquimica pode set apura- dda em exames de Laboratorio; ou fo! motivada por uma inter ‘40 conflituosa que fatalmente produziria aqnele comporta- ‘mento. Assim se explicam as convengdes, as regras de paren- 38 mitos, os valores morais ¢ as mais diversas ‘manifestagdes simbélicas. Visto que os “sistemas” para os quais apela o reducionis- imo so fechados e se aticulam em categoria fixas Ginstinto, hereitariedade, sexo, classe, estrato cultural, ideologia de grupo tc.) duas explicagdes para o mesmo fato acabant-se excluin- ddo mutuamente. Quando muito, tolera-se a coexisténcia de fa- ‘ores, segundo o jargio determinista, ou de veridvels, numa linguagem mais modema, de cunho éstatistico. Mas a légica interna da razio positiva compele escolha de um fator domi nnante, pesado, que aparece como a explicasdo wltima do fato. ‘A compreensao, & medida que se debruca sobre 0 fend ‘meno simbélico, ndo'secontenta com um diseurso monolltico. Postula o principio de que a forma verbal do signo € aparente, mas ndo transparent. E 0 simbolo ao mesmo tempo exprime € supde, revelae oculta; expicita, mas traz implicito um pro- cess0 stbjetivo e histérico que o funds ¢ o ultrapassa. ‘Compreender um fendmeno é tomar conhecimento dos seus “perfis" (lermo caro a Hussrl), que 0 miltiplos,&s ve- 2es opostos, endo podem ser substituldos por dados exteriores ‘a0 fenémeno tal como este se nos dé. ‘A compreensio valoriza sempre o modo de aparecer do simbolo, a sua epiphania, porque essa constelardo de perfis, ‘ou de aparigdes, tem a ver com os modos de ser do universo. simbolizado. E preciso, portanto, descrever a aparéncia de um fexto, a sua forma literdria, endo em vista o sentido, a inten- cfonalidade que o significant alcanga trabalharlingsticamente, A compreensio nao impde critéros explicativos absol {os excludentes. O mesmo complexo simbélico, por exemplo ‘um romance polifénico, Os irmdos Karamazov de Dostoievs- i, exprime poderosas tensdes de ordem existencial (nas falas ‘enas apBes das personagens),revela conflits socais cortantes {nas situagdes de classe ou de grupo vividas ao longo da ti ‘ma), articula correntes ideoldgicas “'russas” e “europeizantes"” (nos julzos de valor pelos quais © Autor dé a conhecer a sua visio de mundo), além de perfazer, pela sua elaborada cons- trugdo, moldes romanescos e estilisicos que 0 constituem co: ‘mo obra ficeional e como prosa de arte. Para um romance polif@nico, uma andlise-interpretagao plual ‘A eserita vai dando corpo significante a eventos (na acep 10 forte de Carlo Diano); € os eventos se articulam em um Iu {gar que nao € 0 esparo natural, mas espaco-tempo habitado pelo sujeito pottico, narrative ou dramético Ao trabalhar com relagdes coexistentes na escrita, a her ‘menéutica tem pela frente um problema de linguagem: Como dizer 0 processo, que vai da arché 20 telos da obra, da of ‘20 sentido, ¢ se articula nas operagdes propriamente liter ‘da composigao e do estilo? ‘Como falar, metapoeticamente, de uma formagio simbs- lica que é Utica? Como falar, metanarrativamente, de uma for- magdo simbética que € romanesea? Como falar, metadrama- ticamente, de uma formagao simbélica que €trégica? Estas 0 as pergunlas a que a interpretagao do texto precisa responder, ‘Go uma vez por todas, pois o risco de um a priori normative seria grave, mas cada vez que o enigma do simbolo se prope ido a decifré-lo, ar uma resposta entre empirica e ind tiva pensando nos grandes modelos de interpretaco que a téria da critica nos presenta. Mas seria cair no real ‘mo total. Cada época tem seus médulos de interpretagao, ¢ & ppor demais evidente que Sainte-Beuve lendo Paseal nio é De ‘Sancti lendo Dante, nem Croce lendo Ariosto, nem Lukées len- do Thomas Mann, nem Heidegger lendo Hoelderlin, nem Hen: in lendo Baudelaire, nem Auerbach lendo Homero, nem Spitzer lendo o Quixote, nem Sartre lendo Flaubert, nem Bakh- tin lendo Dostoievski, nem Barthes lendo Balzac... Eneste fim de sbculo XX os caminhos a escolher seriam de uma dispersd0 desnorteante, fo. Prefiro entrar na matéria pela sua porta central, metodo- Logica. Se o intérprete & acima de tudo, um mediador, a sua Jinguagem lembraa do tradutor de uma lingua para outra, ov, nelhor ainda, a de um midsico que de ppor melodias de um instrumento 7 ‘A ambivalencia parece ser estrutural e inerente a0 estilo, do intérprete, que transita do texto alleio para o seu propri Ele nfo iré duplicar o poema, porque o mediador no repete da lirica ndo & uma critica lirica); mas ‘0 seu projeto de transformar 0 mesmo em outro cédigo obriga.o ‘a manter em estado de alerta as antenas para captar as vibi 50e5 € 0 tom da obra. Este € 0 primeiro passo, endo hi intér- prete de garra que nao o tenha dado*, Depois, umm olha intenso, tum olhar demorado, que procure discenir, dentro e no meio, das frases e das palavras, aluta expressiva, isto & aqueles mo- menos diversos, mas coexstentes, de motivagdo pessoal e con- vensdo suprapessoal (ideolézica,literdria) que fundam o texto como polissenso. ‘Quanto mais denso ¢ belo € o poema, tanto mais entra- ‘nhado estard em seu corpo formal o “mundo"” que se abriu no evento e se fechou no claro-escuro dos signos. ‘O centro vivo da texto serd sempre “um complexo dei ‘gens © um sentimento que o anima”, para lembrar a definigo ‘simples mas inexaurivel que de todo poema deu Benedetto Cro- ce, No entanto, essa concepedo idealista no basta ao leitordi- Iético, Imagens” e "‘afetos”, “figuras” 'sentimentos" nfo so entidades puras nem subst@ncias metafisicas. Trazem em si significados e valores que s6 pacientes escavaeSes no Sujeito cena HistSria vo aclarar. O discurso do hermeneuta conserva ‘calor que as ondas da escrta Ihe comunicaram, mas a mesma fidelidade ao texto leva-o a apartar-se do efeitoimediato da tura, ea fazer perguntas sobre o sentido daquelas figuras que no eessam de atra-lo para o seu efrculo magico. ‘Como efetuar, mediante a linguagem da interprtaglo, esse distanciamento que nfo seja alienante nem reificador? Ou co- no evitar que o texto artistico nos possua eturve a nossa cons- cinciahistériea? Ou ainda, como impedir que o leitor ertico, eno" (Quester queen? em Rein, Pal et al. Hormone nd Dae Tektie, Tebigen 3 de medo de ser dominado, domine, por sua vez, 0 objeto, Aestruindo-o com os seus intrumentos de explicago? Eas, as questdes que 0 **método hermenéutico” de Hans: Georg Gadamer e de Paul Ricoeur pretende responder supe: rando o velho e renascente dilema, Huminismo ou Romantis: ‘mo, que ainda hoje ronda a quantos aspiram a um discurso compreensivo e, acima de tudo, verdadeiro. "A certa altura de Verdade ¢ mésodo, Gadamer convida & pritica do didlogo do letor com o texto-fonte para desfazer 0 Conflto entre afastamento e participacio®. O fato de a inter- pretagio manter-serente ao processo da escrita nao the tra a Tiberdade enquanto consciéncia hist6rica e critica. Para dizé- To, Gadamertecorre ao conceito de rememoragao (Erinnerun), pelo qual Hegel descrevia a acto do Espirito humano que, na {ua busca infinita de autoconscigncia, &eapaz de acolher ereu- hir em si as mais diversas imagens do passado. ‘Refazer a experiénciasimbélica do outro cavando-a no cer ne de um pensamento que € teu e€ meu, por isso universal, eis ‘2 exigncia mais rigorosa da interpretagio. “Gates, Verda y modo, ea. ep. Seaman, Signe 197626

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