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ust Rettor Vice-retor ra ietor presidente Vice presidente Paltora-assitente Chefe Te. Div. Editorial, LUNIVERSIDADE DE SAO PAULO ‘Marco Antonio Zago ‘Vahan Agopyan EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Piinio Martins Filho ‘comissko eprrontat Rubens Ricopero Carlos Alberto Berboss Dantas (Chester Luiz Glvto Cesar Maria Angela Fagein Pereira Leite Mayana Zatz ‘Tinie Tomé Martin de Castro Valeria De Marco (Carla Fernanda Fontana Cristiane Sivestin Carlos Bnrique Ruiz Ferreira + Professor Oliveiros S. Ferreira K BRASIL, TEORIA POLITICA E RELAGOES INTERNACIONAIS EM SUA OBRA + be Coprght © 201 by Cras nrgee Ruz Fra (og) ‘Fuh atalogric brad plo Departament Teo dy Shee tga ode Stree aust. depend cforms nae de By See peter ese Aepala cote nomen de Bday Profesor Olives Serer: Bras Tela Politica e Relapse ‘sacionis em Sua Obse/Caros Freie Ruiz Ferreira, oxpalnagao ¢ spresentacto~ So Paulo: Editrs da Universidade de Sho Pala sons a4 pi tg x atm. {ll bloga, am 976-85 314 1590-6 2. Ferra, Olvelros da Sv 2. Ctacapoiic., RelagSe inter periodo de acalmia +> exercicio sélido da hegemonia C:1+ A =1-> inicio da crise de hegemonia C:1+A 1 -rcrisede hegemonia Assim, a solider do exercicio da hegemonia ocorre quando essa relagio é maior do que um (periodo de acalmia). Quando é igual a um, esté-se diante do inicio de uma crise de hegemonia, 85, Hem, biden, 86.ddem, p36. rem, p. 37, Quando € menor do que um, verifica-se a crise de hegemonia, momento em que as condutas conformadas so minoritirias em relagdo as inconformadas e aberrantes. Tal proposicao s6 ganha inteligibilidade quando compreen- demos ques crise de hegemonia correspondea uma “inadequacao das superestruturas organizadas 4s novas ideias, valores simbolos que surgem nos estratos mais profundos da vida social e encon- tram geupos que os organizam em novos tipos de solidariedade"™, © que poe em risco as estruturas determinadas pela posi¢do que individuos e grupos ocupam na escala de fruicéo da cultura e, do ponto de vista dos grupos com psigao politica alta, pode ameacar a coesto do todo social tal como ela deveria ser de ua perspectiva, Assim, o primeiro passo na ditesio da crise de hegemonia ocorre no momento em que a sociedade politica se separa da so- ciedade civil, isto é, quando deixa de haver a soldadura entre as di- ferentes experiéncias de vida dos subordinados (enfeixadas todas em uma mesma visio do mundo consoante com a concepgio do mundo que se pretendia vigente para toda a sociedade) e as dos dirigentes. Tal momento que pode ser caracterizado como 0 da distingio, que se registra no campo da ética, Neste passo, esté-se diante de uma fissura na proposigio hegemd- nica: é um grupo de subordinados que se distingue dos dirigentes ¢ dominantes. Ao distinguir-se, duvidando intelectualmente da ordem estabelecida e transpondo essa divide para a vigéncia das formas de apropriagao das posses afetivas, podem ter adquirido consciéncia dda desigual distribuigao do poder e do excedente, mas ainda nio sio ‘capazes de generalizar suas novas condutas ou por deficiéncia tedrica ‘ou impossibilidade pritica™ Assim, a fase da distinego é aquela em que hé uma fissura na dominacéo hegemdnica, mas as experiéncias de vida ainda nao se 88. idem, p39. 85. dem, p32 106 AQUEL KaTTScHt expressam de maneira conjunta em um feixe de agdes simbélicas (08 eu” ainda nao se amalgamaram num “N6s”). Nesse momento, © sujeito coletivo ainda nao se identificou consigo mesmo. O segundo momento da crise de hegemonia, 0 da separacao, decorre do aprofundamento desse primeiro e & marcado pela transformagao da daivida intelectual em uma certeza emocional, assagem que se dé como agucamento das crises individuais de consciéncia edas crises coletivas deidentidade (aqui,C:1+A=1)", Tal movimento se verifica quando um nimero suficiente de in- telectuais & capaz de produzir, por meio da oferta de novos me- canismos de interagio e organizacio, a fusto (ou soldadura) das experiéncias de vida em um novo feixe de ages simbélicas, Um rocesso que permite a “separagao ativa'dos irrequietos do gran- dentimero, criando os elementos de sua propria consciéncia gru- Pal”. O novo grupo agora se distingue dos dominantes ese separa dos subalternos. Por fim, 0 terceiro passo em direcio a crise de hegemonia, 0 ‘momento da cisio, em que as partes rompem sua solidariedade com o todo social, caracteriza-se pela transformacio desses novos feixes de agies simbélicas em uma concepcio de mundo estrutura- da.em forma de apropriagao das posses essenciais e organizada em torno de partidos funcionais com uma visio (ou espitito) estatal, 2 qual vai se confrontar diretamente com a antiga forma de domi- nacdo hegeménica (ou concepeao de mundo), com 0 objetivo de destrui-ta, tal como se lé quando Oliveiros S. Ferreira afirma que: (1a fase final do processo de autotransformacio da realidade e subs- Lituicéo de uma concepgio do mundo por outra sé se pode dar ~ num "universo de pensamento em que a hegemonia é um fato totalizador, para rio dizer totalitério, a agio hegemOnica uma relagao de hostilidade ~ quando a solidariedade do todo social com as partes se rompeu ¢ cada uma delas situa-se diante da outra como inimigos no campo de batatha*. 0. tem, pp. 324-326. 91 dem p. 329, gio meu. DE GRAMSCI A TEORIA DAS POSSES ESSENCTAIS, Ad A partir dessa visdo da transformagio da hegemonia fica cla- 10, portanto, que o rompimento com a concepgo de mundo vi- gente pode ser detectado nas novas condatas (inconformadas ¢ aberrantes). Entretanto, no é a sua manifestagao individual, isto é, 0 mero protesto individual, que nos permite registrar o mo- ‘mento da ruptura da hegemonia, jé que nio conduz a criagio de uma nova concep¢io de mundo, ¢ sim a apari¢ao de uma situacio coletivamente intoleravel", A preocupacio com esse momento de detecséo da ruptura conduz Oliveiros S. Ferreira® 4 andlise da arte e da. obra de arte, ja ‘qué, na sua Visio, a coeréncia enjre as formas e os estilos artisticos revela a compatibilidade das formas de organizar a vida social ou seu rompimento. Isso porque @ obra de arte reflete, no plano individual, o desencontro entre o que cada um de nds €¢ 0 meio social em que nos inserimos, ora transformando em coletivo 0 drama que ¢ pessoal, ora tornando pessoal aquilo que o artista é capaz de intuir ser coletivo, Por suas caracteristicas especificas e vinculagio especial com 08 valores simbélicos, base primeira da apropriagio das posses essenciais, a obra de arte pode servir para indicar a maior ou me- nor forga da coesio em toro das formas simbélicas, o que a torna potencialmente um elemento disruptivo do status quo, na medida em que é capaz de traduzir novos valores que exigem ser expressos em novas condutas. Vale aqui,no entanto, um alerta:@ obra dearte eo estilo artistico nao sio, de modo algum, o centro definidor da concepgao de mundo, papel que cabe exclusivamente as formas de apropriacéo das posses essenciais, Pelo contrario: apenas quan- do a autotransformacio da realidade, “somada aquela mudanca orientada pelos intelectuais organizadores da cultura, [..] foi ca- paz. de produzir comportamentos sociais aptos a exprimirem-se em formas artisticas, [..] acriagdo da nova cultura seré um fato”», ‘9. Idem p.a37 93 Idem, p.340. 94 Idem, p34, 95. Ide, tide 108 aquen xurtscs Quando a crise de hegemonia ocorre sem que haja um nticleo hegeménico insurgente capaz. de assumir as tarefas de organizar @ nova cultura, temos a falsa impressio de que a dominacdo se Perpetua por meio da primazia dos aparelhos coativos. £ preci- so, assim, reconhecer, com Gramsci, as dificuldades de organizar uma vontade coletiva. A ligdo, no entanto, pode ser aprendida pela historia de Os 45 Cavaleiros Hiingaros, que repoe a pergunta de Rousseau, explica Oliveiros S. Ferreira, anunciando 0 grand finale: “Por que prodigios 0 forte [o grande niimero] se dispés a Servir 0 fraco?", Porque o fraco era estrategicamente mais forte do que ele, responde ele, ¢ tinha compreendido que, sendo a domi- naco a esséncia do fato politico, ela s6 se mantém por meio da organizacio. Disso se conclui que “...] 86 0s organizados podem dominar; e para organizar ¢ preciso ter uma concepgao de mundo que solde as experiéncias de vida num projeto voltado a transfor- mar 0 mundo, ou conseryé-lo aparentemente como tal”. PEQUENO BALANGO PROVISORIO: OBSERVAGOES SOBRE 0 OLHAR Embora se tenba frisado mais de uma vez ao longo da exposico as miltiplas referénciase filiagdes de Oliveiros S. Ferreira a0 pen- samento politico cléssico, é preciso fazer jus também aos aspectos contempordneos de sua reflexéo, Em um certo sentido, talvez se possa dizer que nosso autor estava sintonizado com algumas te- ‘miticas bastante em voga na época em que foi escrito esse livro, especialmente no periodo em que foi terminado, nos anos de 1980, Chamo a atengio aqui para um ponto em particular: sua percep- a0 de que era preciso voltar-se para outros ambitos da experiéncia humana, além do econdmico e do politico, a fim de explicar ade- quadamente os fendmenos do poder, da dominagio’e do Estado. Ao procurar remeter para 0 campo da cultura parte da expli- cacao acerca da obediéncia politica e da dominagio na vida sob 96. Idem, pp 345-346 DE GRAMSCL A TEORIA DAS POSSES ESSENCIAIS. 109 um Estado, Oliveiros $. Ferreira acompanhava, de certo modo, 0 ‘movimento de uma “corrente” importante de pensadotes sociais ¢ politicos, que seriam identificados aos chamados cultural studies (estudos culturais) e que se agruparam cm torno do jé famoso Cen- tre for Contemporary Cultural Studies (cccs), fundadoem meados dos anos de 1960 e alocado na Universidade de Birmingham, no Reino Unido. Suas matrizes intelectuais remetem a Richard Hog- gart, Raymond Williams, Edward P. Thompson, entre outros no- mes importantes da “Nova Esquerda”. Trata-se de um micleo de pensadores que fez das nogdes de cultura, poder ¢ identidade (0 “triéngulo magico" alguns dos jemas centrais de sua investigacio™ Esses pensadores sociais e politicos, subsumidos sob a escola dos estudos culturais, apesar de bastante distintos entre si, tém ‘uma percepgao genérica a respeito do lugar do politico bastante semelhante a de Oliveiros, partindo da mesma constatacdo inicial: ade que, para explicar os fendmenos da politica, é preciso levar em conta a nogio de cultura e seu campo especifico, aquele dos valo- res eda producéo de sentidos e significados. O conceito de cultura serve, assim, aos estudos culturais como uma espécie de prisma or meio do qual se olha para o mundo c paraas condigées socials, € por meio do qual se procura descrever tais condicées sociais™, As interrogagdes tipicas dos estudos culturais so muito parecidas com as de Oliveiros S. Ferreira: seus autores também ‘vio se perguntar pela natureza do poder e vio se debrucar sobre as questdes da dominagio e da resisténcia, da hegemonia, da subalternidade, da reprodugao social de identidades etc. Stuart Hall, um dos grandes expoentes dessa vertente e cofundador do ces, descreve o projeto dos estudos culturais como uma dupla tentativa: de um lado, como o esforgo de determinar o significado “do politico” para a cultura; e, de outro, como a empreitada de procurar definir 0 significado “do cultural” para o politico, Diz 97. Cl. Christina Lutter ¢ Matkus Reisenleiner, Cultural Studies cine Kinfurang, 3008, P30 98. Oliver Marchart, Cultural studies, 2008, p54, 99. idemp. as, uo naquet KRItSci le: “Penso que a questio da politica da cultura ou da cuftura da Politica é[...] 0 que esté no centro dos estudos culturais"™*, Justamente nessa imbricagao do cultural com o politico esta- tia a especificidade dos estudos culturais, John Fiske" chama a atengao para o fato de que o termo “cultura” nos estudos culturais ndo tem caréter estético nem humanistico, e sim politico. De tal modo a ideia de cultura permearia as novas formulagdes desses autores que se pode afirmar ter esse movimento causado uma ver- dadeira ruptura epistémica (cultural turn), a qual colocou a nocéo de cultura no centro da investigacao acerca da transformacao his- térica e social™. Raymond Williams, um dos pais intelectuais do movimento, sustenta em muitos textos que a cultura era e é, especialmente na Inglaterra, um dos fatores por meio do qual se transmitem e se perpetuam diferengas de classe entre as pessoas". Por essa ra- 240, € preciso analisar de maneira mais detida a “cultara popular”, sustenta Stuart Hall, jé que nela se pode encontrar as ralzes do consentimento e da resisténcia em matéria de politica: A cultura popular é aquele local no qual se desenrola a lata em prol de ou contra uma cultura dos poderosos [..]. Ela ¢a arena do consenti- mento eda resistencia, Néo é uma esfera onde o socialismo, uma cultura socialista ~ ja plenamente formada — pode ser simplesmente expressa, Ela ¢— muito mais - um lugar, onde o socialismo poderia se constituit. E esta éa razio por que a cultura popular é importante, Como se pode notar, os estudos culturais constituem um pro- jeto teérico-politico com forte influencia marxista, semelhante a0 de Oliveiros S. Ferreira, e que, como ele, procura rever o marxis- mo luz de Gramsci. Para esses estudiosos, o fandamento para se too, Stuart Hall Critical Dialogues in Cultural Studies 2005, 9.396; tox. John Fiske, “Die Fabrkation des Populiren, 2001, p17 02, Oliver Marchart op-cit, 2008, ps6. 4es, Raymond Willams apud Olver Marchart, opi, 2008.30. ‘ot Stuart Hall “Notes on Deconstructing the Popular’ 98 p. 39, radu nossa. dab telroleet a eee EEE pensar as interagdes sociais consiste na recusa de enxergar a cul- {ura somentecomo um fendmeno da superestrutura, que seria de- terminada pelos processos econdmicos da base infraestrutural*, A importincia de Gramsci para os estudos culturais liga-se, as- sim, exatamente a sua critica ao determinismo econdmico. Entretanto, se a primeira geragao de representantes tinha ain- da no horizonte a ideia de uma reformulacio do socialismo, com a vinculagao dos estudos culturais aos chamados novos movinen- tos sociais (mulheres, negros, homossexuais etc.) ~ movimento que indica novas categorias analiticas, como “género” ou “etni- cidade” -, em um momento seguinte, o projeto politico de varios de seus expoentes passa a se organizar cada vez mais em torno da ideia de uma democracia e de uma democratizacio radicais, como declara Hall Isso porque o surgimento desses novos mo- vimentos sociais no permitia mais reduzir suas lutas sob a lupa das lutas de classes tradicionais. Era forcoso reconhecer a auto- nomia desses movimentos e de seu combate. Assim, a segunda geragao dos estudos culturais, dos anos de 1970 e de 1980, vai pro- curar se debrugar sobre a questo das identidades culturais, com © intuito de jogar luz sobre as relagdes de pode, as quals, segundo cesses autores, “tém sempre uma dimensio cultural”, 0 “triangulo magico” nos estudos culturais, que se traduz na articulacio das nogdes de cultura, poder e identidade, permite que se enxergue com clareza a (re)definigao que ganharam tais con- ceitos nos autores ligados & segunda geracio de pensadores*®, Se- gundo Marchart, os estudos culturais correspondem aquela pré- tica intelectual que investiga como a identidade social e politica é (te)produzida qua poder, no campo da cultura ~ e 0 nome desse “jogo’, como se sabe, é hegemonia. &, portanto, em forma de hutas por hegemonia — expressas em dominacao e subordinagio, inclu- sao e exclusdo de grupos sociais -, como ensinara Gramsci, que a 103, Oliver Marcha, op. cit, 2008,p. 32 406, Stuart Fall, op-c, 200 pp. 3-34 tox. Olivet Marchar, op. ct,2008, p36, 108, Tem p35 2 smaguel xasrsex identidade ¢fixada definida de maneira tempts nocampoda cultura. Segundo essa visio, portanto, as relgbes de poder sio reproduzidas “via 0 cultural” (in Medium des Kulurlen). Entretanto, as semelhangas entre o modelo de Oliveiros S. Ferreira ¢ 0 dos estudos culturais param por au, no ambito da constatagao de que: 2) cultura constitu! o principal campo da (re)podugio da hegemo- nia, da dominagéo ¢ da subordinacéo, bem camo cos valores que Sustentam as desigualdades eas hierarquias antoecondmicas quan- to de siatus, 2) Gramsci era um pensador critico que poderiafomecer uma base te6rica mais arejada e também um instrument proficuo para se Pensar a transformagdo socal radical a partic des imbricagio que se constata existir entre cultura e politica, Apesar das semelhancas na percepeio des wages entre poll- tica e cultura, os caminhos trilhados e as consequincias que cada luma das vertentes tebricas tiraram dessa vio 4s coisas ceriam bastante diferentes. Otiveiros S, Ferreira envereda, via Gramsci, Pela teoria das posses essenciais para explcar hegemonia e a construgao da acao hegeménica e da acéo politic. Em certo sen- tido, faz 0 oposto do que fariam os tedricos dos esudas culturais: rocura reinterpretar 0 aparato conceitual clisico para construir ‘uma nova interpretacio sistémica da realidade scale seus confli- tos, Nesse ponto, a influéncia de Talcott Parsonsialvez tena sido decisiva. Pois, como se pode ler em Os 45 Caves Hiingaras*, quando a adesio a forma de apropriagio asunida pelas posses essenciais é grande, a coesio social serécleada ea hegemonia adequada i concepcio de mundo do grupo dirigente 209, Pars Hall epud Oliver Marchar op. cit, 2008, p.24),poreenlaclturs é hori- 2onte dare do qual es identisdes socials ecom eas nbn seas de poder ¢ ‘shordiagi)sdo negoieds ao longo em cima de desma nae asee "pte que constitu marcadoreselaboradosnofndindacatar, ‘no. Oliveros. Perteita, op. ci, 1986 982. p. 79, Entretanto, havendo distingao e separago em relagdo a essa concep¢io de mundo vigente por parte de um grupo capaz de bem organizar-se e de propor uma nova fusio de experiéncias de vida em novos feixes de agdes simbélicas ~ 0 que pode dar origem 2uma nova concepgao de mundo capaz de gerara adesao do gran- de mimero -, abre-se a possibilidade da cisio em relagio a essa concepcio hegeménica. Essa cisio vai gerar uma nova solidarie- dade do todo com as partes, momento em que tera sido destruido © universo moral e social em que os individuos encontravam até entio os seus quadros de referéncia'. A proposta dos teéricos dos estudos culturais seré inversa: a chave do problema no é procurar como se constréi a coesio so- cial, ¢ sim enfatizar as diferencas e, em alguns casos, afirmar a sua itredutibilidade, mesmo reconhecendo-se a fiuidez ¢ o cardter dind- mico e processual de tais diferengas, pois tais autores partem de uma perspectiva distinta do poder, de matriz foucaultiana, segundo a qual este ndo pode ser localizado em lugar algum da sociedade (nem na policia nem na politica). Foucault™ rejeta a nogio de poder como tum objeto que pode ser possuido por certos sujeitos e/ou grupos, caracterizando-o como basicamente relacional. Uma perspectiva que nio permite definir 0 poder a partir da ordenagio das “formas de apropriagio assumidas pelas posses essenciais’, como faz Olivei- 10s S. Ferreira. Nesse sentido, a perspectiva dessa escola é aberta, antissistémica, opera com uma nogdo porosa € nao essencializada de cultura, até certo ponto mais préxima de uma perspectiva pés- estruturalista. O queaabardagem de Oliveiros definitivamente nao, © modelo proposto por ele na obra em questo opera coma ideia de coletividade e de cultura como uma totalidade, como um complexo social fechado, no horizonte da ideia de “Estado-na- 40°, 0 que autor deixa claro em varias passagens. Uma boa ilus- trasdo talver seja a que aparece na discussio sobre a relacio entre sociedade global e sociedade civil, quando afirma que a diferenca 1. Idem, pp. 79,2316 236 ‘ua. Michel Foucault, “The Subject and Power 108, 9p. 791-79% ug tliat centre ambas repousa justamente no fato de que a primeira néo tem condicdes de chegar ase constituir em “organizacio nacional ¢eficiente” para a consecugiio de um projeto sobre territério ju- idicamente definido pelo Estado. Ao paso que a sociedade civil €definida como a sociedade global com um “projeto de destino” que dé forma as relagoes entre os diferentes grupos e a estrutura de mancira coesa, integrando e “constrangendo os subordinados sob a direcao intelectual, cultural e politica dos dominates", Essa diferenga frontal entre a abordagem de Oliveiros 8, Fer- reirae a dos estudos cultura se dé, a meu ver, em razio da pers- ectiva de cadaum dos dois modelos, Oliveitos S, Ferreira é um peasador do nation-building, preocupa-o a construcao da na¢Go, Por isso mesmo, a sua dtica & a da insttucionalidade. Ble pensa Politica e cultura a partir da perspectiva do Estado e das necessi- dades do poder estatal, enquanto os te6ricos dos estudos culturais ‘enfatizam a resisténcia ao poder constituido e veem na constru- 40 da nacao um inimigo, um opressor nao sé da classe, mas tam- bém do género, das etnias etc. Nesse sentido, a perspectiva desses autores é a do oprimido, daqueles que nao tém voz nem influéncia diante do discurso hegeménico opressor ~ uma perspectiva anti ‘ou contrainstitucional bem demarcada, Nao sem razio 08 estudos culturais desembocaram, a0 longo dos anos de 1990, nos chamados “estudos pés-coloniais” tio em moda nos dias de hoje nos meios de esquerda, e, como obser- va Hofbauer, acentuaram a necessidade de se repensar os bi- nnarismos logocéntricos construidos pelo Ocidente colonialista - {que nao raro justficaram e justficam intervengées polticas que inclufam ¢ incluem 0 uso da violéncia -, descolonizando os cora- es, as mentes ¢ a imaginacio dos povos oprimidos ¢ recusan- do as identidades tradicionais por meio das quais o colonialismo pretendeu fixar “senhores” e “subjugados” 1s. Olivirs 8, Frseira, op cit 1986 [i982].p. 163. m4. Andreas Hofbauer, “Entre hares Antropoldgicose Perspectivas dos Estudos Cau ‘is ePés-coloniis p. xg, 2009, [ele halal ieee CELE EEE Por essa razi0, Homi Bhabha, um dos icones da. primeira ge- Tacdo de autores p6s-coloniais, por exemplo, sustenta que se deve investir em projetos contra-hegeménicos, atentando para “fran. jas" € “intersticios” socioculturais, “espacos” que permitiriam a0 sujeito colonizado iniciar processos de negociagioe de questiona- amentos nas fissuras do discurso dominante (ou “texto original”), Deve-se, pelo contrario, valorizar a “hibridacio do signo” isto &, aquele momento em que os signos sio deslocados de seu refe. rencial hegemdnico, mas ainda nao foram inscritos em um outro sistema de representaso totalizante, Em termos gramscianos, a cisio ndo deve conduzir a instauragao de uma nova concepgio de mundo hegeménica (reorganizada a partir da cultura), e sim a cultura deve ser tornada um lugar incerto de significacéo, aberta a interminaveis processos de (re)negociagdes contextuais. Dois caminhos e duas maneiras inteiramente distintas, como se pode notar, de revelar consequéncias tedricas e priticas de cons- {atasGes iniciais tao similares e de uma mesma heranga tebrica, a Bramsciana. Se os estudos culturaisjé apontam para a direcao de ‘umanova formulacao epistémics, que se materializaria,sobretudo, no pés estruturalismo em seus herdeiros, a engenhosa teoria po- Iitica produzida por Oliveitos S.Ferreira, por seu turno, permitiria reformular os termos os fundamentos da abordagem de matriz fancional-estruturalista, ainda tio influente em nossos dias. Um excelente exemplo da riqueza interpretativa e da fecundidade da imaginagio presentes no campo analitico das cincias humanas, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS »uabHi, Homi K. O Local da Cultura, Belo Horizonte, Editorada ura, 2007. avis, Helen. Understanding Stuart Hall. Londres, Sage, 2004, ¥85, Homi K.Bhabhs, O Local da Cultura, 2007 pp. 47-248 e504 16 Aida falettalelt FERREIRA, Oliveiros S. 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