Você está na página 1de 7
Aleida Assmann ESPAGOS DA RECORDAGAO FORMAS E TRANSFORMAGOES Se DA MEMORIA CULTURAL Usivenstoane Eetamuat nz Cases Reker Fesnanno Frnazina Costa \Coondenador Ger a Universidade Eocan SatvapostDr Dncea RADUGKO Paulo Soethe (coord.) oko Abouro Hanten -Eneax De Daca ! ‘Uteramo Bezzana tx Maneeet~ Francisco Foor HARDMAN ESPAGOS DA RECORDAGAO. Nos casos aqui apresentados, pretendi falar das simulagées da meméria. As -virias instalagbes expdem midias paradigméticas da meméri biblioteca, mas também mapas de cidades, plantas baixas ¢ reliqui armazenam nada por si préprias, porém expoem o significado de armazenamento « arquivamento individuaise culturais. A nova arte sobre a meméria, que desen- de recordagio no modo do “como se prende sob o signo de uma desmaterializago ubiqua de todos os dados. Em uma cultura que nao se lembra mais do seu passado e que também jé esqueceu a sua falta de lembranga, os artistas pdem atengéo reforgada sobre a meméria, & medida que tornam visiveisas fungbes perdidas, por meio de simulagdesestéticas, A arte, pode-se dizer, lembra 4 cultura o fato de que ela nao se lembra mais de coisa alguma. Iv Meméria como um tesouro de softimentos formula “meméria como tesouro de sofrimentos" (Leidschats] tornow- A importante para os artistas das iltimas décadas. Ela vem de Aby fatburg, historiador de arte e Fundador da Biblioteca Warburg da Gitncia da Culeura. Com essa biblioteca e com um circulo de amigos, Warburg {naugurou, na primeira década do século XX, uma linha de pesquisa que se con- trapunha a limitagGes das disciplinas estanques e colocava no centro da dis- cussio questées bisicas da cultura e de sua transmissio. O proprio Warburg romava como ponto de partida a existéncia de um fundo de experiéncias primor- diais intensas, comuns a toda a humanidade. Nessa camada arcaica da alma, ele especula sobre a perpécua energia de operagio da culeura humana, Esse “capital inicial” psiquico era, para ele, perigosamente ambivalente, pois poderia tanto se descarregar na forma deafeigdes destrutivas quanto ser sublimado em realizagées artistcas ou cientficas de ponta. Warburg examinou obras de arte individuais sob a luz dessa “doutrina energética” e localizou suas ligagdes com os “entalhes? «em “regides meio subrerrineas” da alma. Warburg tomou de Richard Semon a terminologia para esse projeto de uma ciéncia cultural fundada psiquicamente. Richard Semon emprestou dignidade cientifica a0 conceito de “vestigio” Asitagbes fortes — Warburg aprendeu de Semon — depositam-se na “substincia excitivel do organismo” como um vestigio, um engrama, Segundo Semon, eais ‘ragos io armazenados porlongo tempo sob aconsciénciae podem ser reativados « descarregados em alguma oportunidade posterior. Warburg transpés esse ‘modelo para a histéria da cultura, na qual, em sua opinio, as agitagoes sao armazenadas em forma de “energia mnémica’, Paracle aepitome dessas agicagées foram os estados de excitagio coletiva propagados tanto em cultos arcaicos quanto em cenas de multidao das festividades renascentistas, Contudo tanto ex- periéncias orgiésticas quanto traumaticas — uma opiniao que Warburg com> ESFAGOS DA RECORDAGAO ava com Freud e que transpés paraa culeura — no podem ser nem lem- bradas nem esquecidas pela coletividade afetada por elas. Elas se inserem no inconsciente coletivo ou, mais precisamente, elas constroem 0 substrato ou 0 trago duradouro de uma mneme social que pode ser reativada em constelasées historicas modificadas. A essa meméria da humanidade que registra as agitagées migico-febicas eas paixdes ciltico-orgidsticas Warburg dew o nome de “tesouro de sofrimentos da humanidade” Fica evidente que Warburg, para afirmar tal coisa, inspirou-se novas pesquisas emolégicas ou nos cos da arte que rravam lado sombrio da cultura antiga no decorrer do século XIX (desde Creuzer, Bachofen e Nictasche até Usener ¢ Rohde). Avarte est segundo Warburg, ligada a essa motricidade do inconsciente cul- tural, A frase abaixo, de gramécica enrolada, desereve de que maneita isso ocorre «20 mesmo tempo, revela algo do esforgo de dar a meandros de pensamento de tal forma desprotegidos a marca distintiva de um dado cientifico: [Na regio da emosio orgistica de massa deve-se procuraroentalhador que martla sna meméria as formas de expressio da méxima emocionalidade interna de tal forma {que — conquanto essa meméria se pertita expt cengramas de experiéncias “de paixio doloross come herangassegu obrevivern queamio Em Warburg o simbolo surge como um “reservador de energia” para a me- méria coletiva da cultura’, O mesmo efeito ¢ atribuido as “férmulas do pathos”, Asquaisnnosreferimos acima no contexto dasimagens disparadoras de lembrangas wird humaner Beste" [© tesouro de sofrimentos da umano). Aby Warburg. anotaco feta quando de uma cde Hamburgo em 10 de abril de 1928. Londres, The te, mimero de arquivo 12.27. Ver também: Werner Hofmann; Georg Frankfurt, 1980; Horst Bredeksn tien des intcrnationalen Ay Warbu Hamburgo 2 Apud EH. Gombrich, by Warburg. p.245. 3. A féemula"Reservador de energia — simbolo se encontra no caderno de notas de 1929, 215 apd idem, opt p. 327 7 MEMORIA COMO UM TESOURO DE SOFRIMENTOS intensiva e a suspendem na imagem, Séo transformadores de energia culeural . que podem cer as polaridades invertidas semanticamente em vi- ), sem perde- do tapos pilido da “sobrevivéncia do antigo” criou-se, em Warburg, uma ciéncia cultural ener. rem.com isso o contato com a camada formativa inferior. A part {tica, para nao dizer uma demonologia pesquisada por ele nos termos de uma teoria do inconsciente culeuraP. Os trabalhos do “meméria’ cle compreende toda ah permedvel & meméria individual: ‘Meu trabalho sempre es porém, &.como um tesour, Sarkis tomou de Aby Warburg, que se entendia como o administrador da heranga di memeéria europeia, o conceito de “tesouro de sofrimentos”, Enquanto para Warburg esse conceito compreendia uma energia arcaica primordial, impregnada de determinadas formulas imagéticas e reativaveis, Sarkis pensa mais com relagio a0 momento cumulative de um inventério material. ‘Com esse conccito eu tinha, de repente, a sensagio de esbarrar no empilhamento sno da memériaenolamento por essa meméria, de esbarrar naquilo que se empilhow smente. Porém, para que algo possaser emplhado, ess algo deve assumir alguma Wolfgang Kemp (em seu artigo “Walter Benjamin und die 2 Wale: Benjamin und Aby Warburg’ [W. Bean da ate che Berichte, 3, pp.2-25; 0 trecho ctado est nap. 24, 0.45) falou, com relagio a Warburg, de um “medo racionaliade de imagens”. Ese aspect spe irador da ate judeu,ndo aprofundado, pois ao medo de 0 que denoca tio somente 0 pats especifio em termos im Konrad Hoffmann, “Angst und Methode nach [Medo e método segundo Warburg: recordasio ¢ Alten, pp. 2617 in Bredekamp ct. 5 Warburgusso conc 3: mic difun sealogiae, da -sragos DA RECORDAGAO forma; alguma forma deve se criada para que urna meméria, um tesouro poss surgi. E énnesse sentido que esteéum trabalho doloroso, Lidar com sof sempre significa desenvolver uma energa, encontrar uma forma de lidar com a meméria da dor Artistas como Heiner Milller ou Jochen Gerz também se referem a0 tesouro coletivo dos sofrimentos como base para seus trabalhos. Para Mil de lembranga ¢ de lamentagio funciona por meio de choques". Simplesmente cexpressi-los verbalmente traz em sio perigo de uma perda, pois o que ainda nio foi verbalizado permanece ainda no estado de energia pura. O softimento tam- bém é um tesouro que a lingua nos rouba. Essa opiniéo se coaduna com a teoria supracitada de Lyotard, que quer preservar o trauma irrepresentavel no status de ‘uma tal energia virulenta. No que se segue discutiremos dois artistas cujas obras devem ser vistas como trabalhos sobre 0 “tesouro dos sofrimentos’, especial e concretamente sobre 0 tesouro dos sofrimentos da historia que est ligado ao Holocausto. 1. Christian Boltanski — “A casa ausente” Para Christian Boltanski, nascido em 1944 em Patis,o conhecimento sobre o Holocausto ¢ 0 choque inicial que inerva seu trabalho artistico, mesmo que seja ‘aro referi-se diretamenteaesse acontecimento, Um tema central para Boltanski é a perda: perda de objetos como os instalados em estantes cheias de achados ¢ perdidos: perda de lembrangas, como em uma sala forrada até 0 tetocom grandes focografias em preto ¢ branco ¢iluminada com luz crepuscular; perda de conhe- cimento, como nos estretos corredores formados por latas prateadas empilhadas a0 longo de um arquivo: por fim, a perda de corpos, como nos quartos com camas ¢ catres vazios. Em alguns de seus trabalhos o processo do esquecimento coloca-se em primero plano, como um embagamento progressivo, enquanto em ‘outros, cépsulas vazias e restos sio visualizados depois que a vida e a atividade humana se retiraram deles. Sao salas compostas de modo minimalista, nas quais, ‘0s visitantes entram com um certo estado de espirito e nas quais se levam a cabo cexperiéncias subjetivas de esquecimento, perda e morte. idem, 8 “Verwaleungsakte produzieren keine Erinnerungen® [Atos de viléncia nio geram recor dagdes], entrevista com Hendrik Werner em 7 de maia de 1995. Vee tambérn: Michal Roth Cage. Memory, Trauma and the Construsion of History. Colrmbia Universicy | | | MUEMORtA COMO UM TESOURO DE SOPRIMENTOS © trabalho de Boltanski a ser apresentado aqui tem algo da tentativa de tornar visivel quem esté ausente. O problema paradoxal da apresentagio ai dda presenca de uma auséncia nao é tema novo, mas foi reconduzido a discussio 1 inicio dos tempos modernos. Como contexto, temos um escrito de Francis Bacon sobre o progresso da ciéncia, no qual ele criticou a mente humana em sua fotma “instintiva’. Sem uma diseiplina metédica especial, essa mente seria um nfidvel ¢ distorcido e, por isso, incapaz de lidar meio de conhecimento nao com averdade, Pois a mente humana é por natureza qualquer outra coisa que no um espelho impido plano, no qual osraiosemanados dascosas se refltamdemodocortespondente Focmas verdadeira. Pelo contrtio: e ela ndo for dsciplinada e mantida i rédea vai se tornar um espelho magico cheio de superstigGes e malabatismos’, is Bacon oferece um exemplo para a deformagio antropocentrica da realidade de especial interesse em nosso contexto. Ele pretende provar com esse exemplo ue 0 espirito humano esté ajustado de maneira desproporcionalmente mais intensa no lado positivo ¢ ativo do que no lado negativo e ausente. O espirito hhumano é, na verdade, absoluramente insensfvel 4 negatividade, Por isso, por meio de um traque da mente, o que estéausente sempre seria obstruido por algo que esteja presente: “de tal forma que pouca percepcio positiva obstrui com frequéncia a experiéncia da falta e da auséncia” [So that a few times hitting or presence, countervailsof-times failing or absence], Essa incapacidade da mente humana com relagdo a lacunas ¢ espagos vazios é provada por Bacon com a histéria de Didgoras, a quem foram mostradas, no templo de Netuno, as vitias imagens daqueles que sofreram um nauftigio ¢ que agradeciam pelo seu sal ‘vamento em placas dedicatérias. Quando perguntado sc, 20 ver tais sinais de salvagio, nio acreditava na efetividade de oragées, Didgoras teria respondido: “Tudo muito belo ¢ bem, mas, por favor, onde estio as imagens dos que se afo- garam?" O que Bacon afirma com relagio & mente humana também se aplica a ‘meméria humans. E descompassadamente mais dificil armazenar lacunas, es- pcos vazioseauséncias do que armazenar a experiéneia de uma presengs. Desde ‘© exterminio de seis milhoes de judeus e outras vitimas pelo regime nazista, 0 9 Original em inglés: "For far from the nature ofa clear and equal glass, wherein the beams of things cotding to their tueincidencesn Tike an enchanted glass, fl rion and imposture, i reduced” Francis Bacon, The Advancement of Learning (1605) and New Atlantis ed. Thomas Cate. Lon 10 “Yea, bat” h Diagorss) “where are they painted tha ate drowned ibidem, ESPAGOS DA RECORDAGAO ‘peso dos ausentes se tornou poderosissimo, ¢ coloca'e a pergunta: com que :meios a meméria cultural pode pegar, trabalhar, conservar e passar essa lacuna & posteridade? © problema d Holocausto consiste na quantidade absurda de assassinados e desaparecidos. Iso leva ao perigo de recalque da lacuna por meio de representagbes abst concretas, como descrito vividamente por Bacon. E atribuida aos artistas que se encarregam do doloroso trabalho de lembranga desse tesouro de softimentos a tarefa de assegurar rastros, marcar lacunas € puxara atengio para os mecanis- ‘mos da lembranga, exatamente no mesmo sentido da anedota descrita por Bacon, Pode-se ver no trabalho de Boltanski inticulado “A casa ausente” qual aapa- réncia da marcagio de uma lacuna, ou como a auséncia € rornada conereta sem ser reconvertida em presena enganadora. Em 1990 o senado de Berlim convi- dou artistasa se manifestarem sobre a situacio da capital entio recém-unificada, [No espago entre duas construgées datadas da Segunda Guerra, na parte leste da cidade, Boltanski instalou sua “casa ausente” ocupando com placas as paredes & prova de fogo dos prédios vizinhos. Por meio de trabalho dedicado em arquivos, ‘nos quais seus colaboradores vasculharam livros de enderego, relatos de bom egistros de posses, registros de incéndios, registros de deportagio eas Arvores gencal6gicas do registro de familias do Reich, puderam ser reconstruidos ‘0s nomes dos antigos moradores, suas profisées ¢ uma parte de suas hist6ri Boltanskiafixou na aleura do teto original placas com os nomes das pessoas.e das familias que moraram nessa casa antes ¢ durante a guerra. Nas «stava indicado por quanto tempo cada pessoa alugou cada mor esse teto, até sua destruigéo por uma bomba. Enquanto a permaneceu na casa até 1945, duas delas — o Funcionério piblico J. Schnapp 0 inhao R. Jaroszewski — deixaram-na entre os anos de 1939 ¢ rabalho com a meméria em relagio 20 trabalho com o ‘motorista de ca 1943, Nesse periodo nao havia boas razées para mudar de uma casa alugada em Berlim. Emigracio forgada ou deportagio era o que dissolvia moradias ber- linenses na época. Esse fato, amplamente conhecido, adquire uma outra carac- quando é reconectado a nomes ¢ enderegos concretos. Com seu trabalho Boleanski converteu um pedago de cho desprezivel, que servia meramente de passagem, em um local histérico. Com o teri cagées ele conseguin fazer com que as marcas nassem legiveis novamente. Ao mesmo temy haver recordagio sem conhecimento. Recordasio se torna um procedimento de busca realizado em livros e em arquivos. Interligando dados arqui ‘com 0 local concreto, surgem, a partir de dados abstratos em papel, bre individuos inconfundiveis ¢ suas correspondents historias. © trabalho de bENOnra coMO UM TESOURO DE Boltanski mostra essas historias pessoais na regito de intersecgao com a historia do nacional-socialismo, a qual envolveu, deformou e amputou varias biografias. xo trabalho tem como tema “o corpo ausente e perdido”, criow com “A casa ausente” um espago no qual — exatamente no sentido da anedota de Diigoras — o que desapareceu se torna visivel: “A inscrigio com os nomes designa um espago para os ausentes que permanece, porém, desocupado. [.] A ‘ocupagio do espaco vazio pelos nomes faz que o hiato da forga do lugar se vorne matéria. A presenca do ausente e do deseruido é, dessa forma, inescapavel”", 2. Ciclo fotografico “Evidéncias”, de Naomi Tereza Salmon “Vocé nao precisa mais ir até [4° escuto um visitante alemdo dizer para sua acompanhante em um dormi ragio Auschwitz, “li s6 ‘em mais sapatos”. Essa frase, irrefletidamente implacével, chama a atencio para tum problema que os visitantes de Auschwitz tém com um lugar que é,a0 mesmo ‘empo, museu, cena de rimee memorial. Com que sentimentose pré-disposigées se entra nesse lugar? Que priticas visuais sio apropriadas ow néo para-aquele Jagat? Como se pode estar bem como vistante nesse local complexo? Sabemos que os setes humanos se armam previamente de estratégis de fix idar com um ambiente extremamente complex. Talvcz a pessoas rio pudessem sobreviver se nao se valessem da chamada “arte de abreviamento do mundo”, sobre a qual se baseia toda a pritica de criagio de simbolos. Em ‘nosso sistema de reconhecimento temos, profundamente arraigadas, esquemati- ages culturais que nos permitem (mais profundamente do que tcmos reconhecer o todo na parte, a sequéncia no exemplo, o geral no es- se 0 restante com facilidade, Pode-se, entio, pouparse de ver esse resto? Tais pprocessos de abreviagio da mente humana, em outros casos absolutamente Sb- vios, tornam-se problemsticos em Auschwicz. A generalizagio abreviadora afi- 0, um procedimento eticamente insustentivel, uma vex que cada aponta para um viver e mor- somos sobrecarregados com a sala cujo corredor central é ladeado por paredes de vidro & esquerda e& direca,atris das quas inescrutiveis montanhas de sapatos 11 Monika Wagn ich Material.." pp. 23-39; oxechocitado esti nap. 27 ESPAGOS DA RECORDAGAO se acumulam, Nossa capacidade de compreensio mental espiritual & sobre- ‘carregada de forma impiedosa por essa exposigao. ‘A série de imagens de Naomi Tereza Salmon, intitulada “Evidencias’, vai ao encontro das limitagées ¢ convengdes de nossos habitos visuals. O que para essa fotdgrafa, uma jovem israelita da terceira geragio, comecou como uma tarefa técnica — ela tinha que forogeafar, para fins de registro, uma série de objetos, advindos do Arquivo do Holocaustoem Yad Va Shem, Jerusalém — amadureceu secteta e imperceptivelmente como uma pritica da rememoragio, como um ato de reveréncia por meio da forografia. As dimensoes experienciais do campo de morte como cena de crime, muscu ¢ memorial entrecruzam-se na sua sclegao dos objetos. Enquanto achados arqucolbgicos estabelec material dizeto com um mundo do passado, as reliquias forografadas em Yad Va Shem, Buchenwald ¢ Auschwitz sio marcadas com a burocracia da morte. Os paupérrimos resquicios das posses das vitimas, como pentes, escovas de dente ou pincéis de barbear, estio dispostos lado a lado com reliquias dos assassinos, na ‘aioria delas insignias da SS. Porém a palavra “posses” € um exagcro, pois os ‘objetos pessoas das vitimas foram tomados pelos assassinos como butim. Com aamesma eficiéncia desvaieada com que se eliminavam vidas humanas nos campos de morte, procedeu-se &coleta, organizagio e catalogagio de posses materiais. A frugalidade mesquinha que parecia querer que se reutilizasse todo ¢ qualquer ‘objeto — neutralizado como matéria-prima — contrasta paradoxalmente como desperdicio excessive dominante no exterminio de vidas humanas. Ambas 2s coisas — a febre da produgio ca da destruigio — mostram-se como duas facetas cde uma logica pervertida. Essa efcigncia aparentemente tio racional e objetiva estava permeada de es tratégias simbélicas fandticas, sobretudo. O reprocessamento material era feito com objetivos profanadores, como quando, por exemplo, rolos da Tord eram transformados em carteiras, envelopes de despacho ¢ roupas, quando néo em palmilhas, caso em que a escritura sagrada, que segundo a lei cerimonialju- daica, nao poderia tocar o solo, era literalmente pisada por pés, Assim, 0 repro- cessamento material se tornou ato simbélico do exterminio por exceléncia & medida que a destruigio foi substicuida por produgio, de tal forma que os tragos materiais das vitimas se diluiam em novos produtos e com isso podiam ser apagados completamente. O exterminio psiquico, por um lado, fora refor- gado € seu resultado tornou-se irreversivel. © exterminio simbélico, por sua ver, pode ser desfeito retroativamente, pelo menos um pouco, a medida que se pode devolver aos objetos desgragados a sua dignidade, mesmo sem obscurecer os eragos do crime. via de regra, um contato E justamente isso que fazem as forografias de Naomi Salmon. Suas imagens sio, assim como as lipides, testemunhas mudas do crime. Essa mudez nio éame- nizada por nenhum pathos nem por gestos subjetivos.O olharincorruptivelmente registrador bloqueia uma forma de observacio compassiva. Ele se distingue agudamente do olhar de testemunhas oculares ou de observadores posteriores. (Com um clemento subjetivo qualquer também se apagam 0 tempo ¢ 0 espago do motivo, que esté congelado ¢fixo em um espago de presente constante. O feito ddas imagens esté nessa objetivagio, da qual ninguém consegue desviar o olhar. Mais do que em uma encenagio, a repeticio lacénica dos temas se incrusta de ‘maneira mais profunda na meméria, ‘Com acura implacivel os objetos estio dispostos & nossa frente como ele- ‘mentos que nao se permite conectara nenhuma narrativa. O enfileiramento dos objetos no remove a sua vultosa idiossincrasia nem seu isolamento. Esse prin cipio de ordenagio se contrapSe a uma compassividade e a uma aproximacio pessoais. Sua forga de lembranga corresponde & técnica de armazenamento €x- terna ¢ objetiva do arquivo. Nesse sentido, as sequéncias de imagens formam ‘uma meméria tecnicamente precisa em contraposigio ao apagamento de tragos espetuata plonseninon Os conenes dex djeton leeds wx desert defronte a um fundo branco. O pano de fundo assépticosela, mudo, a destruigio dos contextos de vida dos quais a reliquias foram arrancadas. Assim, cle marca a tabula rasa que a maquinaria de morte nos deixou. Essas imagens néo dio «espago para o vazio desse calar. Da mesma forma, elas evitam qualquer erago de estetizagio. Estdo dispostas com uma preocupagio pela limpeza clinica da documentagio e mostram cada objeto especifico como “coisa-em-si, em uma concregio inacessivel. Essas imagens produzem, porém, uma mnemotécnica _pr6pria, brigando-nosa observar com muita precisio. Cada uma delas, com sua fidelidade de detalhes, nao € somente um indi ctiminalistico conera a ne- gasio ¢ 0 esquecimento, mas também um veto artistico contra um pasos eu femistico ¢ contra Fuga aliviadoras para denteo da abscragao. Naomi Terea Salmon, “Evidénia

Você também pode gostar