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A VIRTUDE DA FIDELIDADE

– É uma virtude exigida pelo amor, pela fé e pela vocação.

– O fundamento da fidelidade.

– Amor e fidelidade no pormenor.

I. A SAGRADA ESCRITURA fala-nos da virtude da fidelidade, da


necessidade de mantermos a promessa, o compromisso livremente aceito, o
empenho em acabar uma missão a que nos tenhamos comprometido. O
Senhor disse a Abraão: Anda na minha presença e sê fiel. Guarda o pacto que
faço contigo e com os teus descendentes por todas as gerações 1. A firmeza da
aliança com o Patriarca e com os seus descendentes será contínua fonte de
bênçãos e de felicidade; e, pelo contrário, a transgressão desse pacto por parte
de Israel será a causa dos seus males.

Deus pede fidelidade aos homens porque Ele próprio nos é sempre fiel,
apesar das nossas fraquezas e debilidades. Javé é o Deus da lealdade2, rico
em amor e fidelidade3, fiel em todas as suas palavras4, e a sua fidelidade
permanece para sempre5. Os que são fiéis são-lhe muito gratos6, e Ele lhes
promete um dom definitivo: quem for fiel até à morte receberá a coroa da vida7.

Jesus fala muitas vezes desta virtude ao longo do Evangelho: põe-nos


diante dos olhos o exemplo do servo fiel e prudente, do criado bom e leal, do
administrador honesto. A ideia da fidelidade penetrou tão fundo na vida dos
primeiros cristãos que o título de fiéis bastou para designar os discípulos de
Cristo8. São Paulo, que havia dirigido inúmeras exortações àquela primeira
geração para que vivesse esta virtude, quando sente próxima a sua morte
entoa um canto à fidelidade. Escreve a Timóteo: Combati o bom combate,
terminei a minha carreira, guardei a fé. Já me está preparada a coroa da
justiça, que naquele dia o Senhor, justo Juiz, me concederá, e não só a mim,
mas a todos os que amam a sua vinda9.

A fidelidade consiste em cumprir o que se prometeu, conformando assim as


palavras com os atos10. Somos fiéis se guardamos a palavra dada, se
mantemos firmemente os compromissos adquiridos, apesar dos obstáculos e
dificuldades. A perseverança está intimamente ligada a esta virtude e muitas
vezes identifica-se com ela.

O âmbito da fidelidade é muito vasto: com Deus, entre marido e mulher,


entre os amigos... É uma virtude essencial: sem ela, é impossível a
convivência. Referida à vida espiritual, relaciona-se estreitamente com o amor,
com a fé e com a vocação. “Faz-me tremer aquela passagem da segunda
epístola a Timóteo, quando o Apóstolo se dói de que Demas tenha fugido para
Tessalónica, atrás dos encantos deste mundo... Por uma bagatela, e por medo
das perseguições, atraiçoa a tarefa divina um homem que São Paulo cita, em
outras epístolas, entre os santos.

“Faz-me tremer, conhecendo a minha pequenez; e leva-me a exigir de mim


fidelidade ao Senhor até nos fatos que podem parecer indiferentes, porque, se
não me servem para unir-me mais a Ele, não os quero!” 11 Para que nos
servem, se não nos levam a Cristo?

Anda na minha presença e sê fiel. Guarda o pacto que faço contigo, diz-nos
Deus continuamente no íntimo do nosso coração.

II. A NOSSA ÉPOCA não se caracteriza pelo florescimento da virtude da


fidelidade. Talvez por isso o Senhor nos peça que saibamos apreciá-la mais,
tanto nos nossos compromissos de entrega livremente adquiridos com Deus,
como na vida humana, no relacionamento com os outros.

Muitos se perguntam: como pode o homem, que é mutável, fraco e instável,


comprometer-se por toda a vida? Pode!, porque a sua fidelidade é sustentada
por Aquele que não é mutável, nem fraco, nem instável; por Deus. Fiel é Javé
em todas as suas palavras12. É Ele quem sustenta essa disposição do homem
que quer ser leal aos seus compromissos, sobretudo ao mais importante de
todos: àquele que diz respeito a Deus – e aos homens por Deus –, como é o da
vocação para uma entrega plena, para a santidade. Toda a dádiva boa, todo o
dom perfeito vem do alto, desce do Pai das luzes, no qual não há mudança13.
“Cristo – diz João Paulo II – necessita de vós e vos chama para ajudardes
milhões de irmãos vossos a serem plenamente homens e a salvar-se. Vivei
com esses nobres ideais nas vossas almas [...]. Abri os vossos corações a
Cristo, à sua lei de amor, sem condicionar a disponibilidade, sem medo das
respostas definitivas, porque o amor e a amizade não têm fim”14, porque o
amor não envelhece.

São Tomás ensina que amamos alguém quando queremos o bem para ele;
se, no entanto, o procuramos para tirar algum proveito pessoal, porque nos
agrada ou nos é útil para alguma coisa, então não o amamos propriamente:
desejamo-lo15. Quando amamos, toda a nossa pessoa se entrega a esse amor,
para além dos gostos e dos estados de ânimo: “O pagamento, a diária do
amor, é receber mais amor”16.

Temos que pedir a Deus a firme persuasão de que o principal no amor não é
o sentimento, mas a vontade e as obras; e de que o amor exige esforço,
sacrifício e entrega. O sentimento não oferece base segura para construir algo
tão fundamental como a fidelidade. Esta virtude bebe a sua firmeza no amor
verdadeiro. Por isso, quando o amor – humano ou divino – já passou pelo
período de maior sentimento, o que resta não é o menos importante, mas o
essencial, o que dá sentido a tudo.

O Senhor tem para cada homem, para cada um em concreto, uma chamada,
um desígnio, uma vocação. Ele prometeu que sustentará essa chamada no
meio das variadas tentações e dificuldades pelas quais uma vida pode passar.
E para demonstrar-nos essa permanência da sua solicitude, emprega uma
comparação que todos entendemos bem: a do amor e dos cuidados que uma
mãe tem para com os seus filhos. Imaginem, diz-nos, uma mãe profundamente
mãe, não a mãe egoísta – se é que pode haver –, que anda metida nas suas
coisas. Como pode uma mãe assim esquecer-se do seu filho?17 Parece-nos
impossível, mas imaginemos contudo que se esquecesse do filho, que não se
importasse com ele. Mesmo nesse caso, Eu, diz-nos o Senhor, jamais me
esqueceria de ti, da tua tarefa na vida, do meu desígnio amoroso sobre ti, da
tua vocação. A fidelidade é a correspondência amorosa a esse amor de Deus.
Sem amor, não demoram a aparecer as gretas, as fissuras e, por fim, a
deserção.

III. O QUE PODEREI DAR a Javé por todos os benefícios que me fez?18
Todos podemos fazer o que está ao nosso alcance para assegurar a fidelidade.
A perseverança até o final da vida torna-se possível com a fidelidade nas
pequenas situações de cada dia e com o recomeçar sempre que tenha havido
algum passo em falso por fraqueza. Em muitos momentos da vida, a fidelidade
a Deus concretiza-se na fidelidade à vida de oração, a essas devoções e
costumes que nos mantêm bem junto do Senhor. Um homem ou mulher de
oração sabe sempre sair das ciladas que lhe armam as suas tendências
desordenadas, os seus desânimos ou as misérias próprias ou alheias. Porque
no colóquio silencioso com Deus, em que a alma se desnuda, esse homem ou
mulher fortalece ou recupera o critério claro e as energias para resistir. Sabe
que é uma loucura trocar uma prova de predilecção do Senhor – como é a
chamada para um compromisso por toda a vida – por um prato de lentilhas19,
isto é, pela miragem de um amorico que não tardará a desvanecer-se, por uma
mal-entendida liberdade que parece um libertar-se de vínculos e, a curto prazo,
se revela corrente que escraviza.

O amor “é o peso que me arrasta” 20, o centro de gravidade, o norte da nossa


alma na tarefa da fidelidade. Por isso, o amor a Deus, que não permite muros
nem divisões entre o homem e o seu Deus, leva à sinceridade, suporte seguro
da fidelidade. Sinceridade, em primeiro lugar, na intimidade da consciência:
reconhecer e chamar pelo seu nome os desejos, pensamentos, aspirações e
sonhos, mesmo quando ainda nem sequer tomaram corpo, mas já se percebe
que rumam para fora do próprio caminho. E, imediatamente, sinceridade com
Deus, uma sinceridade humilde que pede ajuda de verdade, não para justificar
a infidelidade com argumentos falazes, mas para perseverar até à morte; e
sinceridade com quem nos orienta espiritualmente a alma, manifestando-lhe
esses sintomas do egoísmo que tentam instalar-se no coração de qualquer
maneira. Assim sairemos sempre vencedores e mais fortes que nunca.

As virtudes da fidelidade e da lealdade devem informar todas as


manifestações da vida do cristão: relacionamento com Deus, com a Igreja, com
o próximo, no trabalho, nos deveres de estado... E vive-se a fidelidade em
todas as suas formas quando se é fiel à vocação recebida de Deus, porque
nela estão integrados todos os demais valores a que devemos lealdade e
fidelidade. Se faltasse a fidelidade a Deus, tudo se quebraria em mil pedaços e
a vida se transformaria em cascalho.

“O Coração de Jesus, o Coração humano de Deus-Homem, está abrasado


pela chama viva do Amor trinitário, que jamais se extingue”21 e é fiel no seu
amor pelos homens. Nós devemos aprender desse amor fiel. E também dirigir-
nos a Maria: Virgo fidelis, ora pro nobis, ora pro me – Virgem fiel, rogai por nós,
rogai por mim.

(1) Gn 17, 1-9; Primeira leitura da Missa da sexta-feira da décima segunda semana do TC, ano
ímpar; (2) Deut 3, 4; (3) Êx 34, 6-7; (4) Sl 144, 13; (5) Sl 116, 1-2; (6) cfr. Prov 12, 22; (7) cfr.
Apoc 2, 20; (8) At 10, 45; (9) 2 Tim 4, 7; (10) cfr. São Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 110, a. 3;
(11) Josemaría Escrivá, Sulco, n. 343; (12) Sl 144, 3; (13) Ti 1, 17; (14) João Paulo II, Discurso,
Xavier, Espanha, 6-XI-1982; (15) São Tomás, op. cit., I-II, q. 26, a. 4; (16) São João da Cruz,
Cântico espiritual, 9, 7; (17) cfr. Is 49, 15; (18) Sl 115, 21; (19) cfr. Gn 25, 29-34; (20) Santo
Agostinho, op. cit., 13, 9; (21) João Paulo II, Meditação dominical, 23-VI-1986.

(Fonte: Website de Francisco Fernández Carvajal AQUI)

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