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ga MER Saosin pporar o valor do significado social das formas ao programa de estudos da Sociolinguistica. Adicionamos, desse modo, mais um principio a nossa lista: "AS FORMAS DA LINGUA VEICULAM, ALEM DE SIGNIFICADOS REFERENCIAIS/ [REPRESENTACIONAIS, SIGNIFICADOS SOCIAIS Como veremos mais adiante, o prestigio ou o estigma que uma co- munidade associa a uma determinada variante tem 0 poder de acelerar ou de barrar uma mudanga na lingua, Essa nfo é uma afirmagio banal. Espe- ramos que ainda esteja fresca na sua meméria a breve historia dos estudos linguisticos que tragamos anteriormente. Até poucas décadas atrés, afirma- -va-se que a mudanca nao era passivel de estudo rigoroso, que nao era per- ceptivel, e muito menos se considerava importante buscar fora do sistema possiveis explicagdes para esse processo. Na abordagem sociolinguistica, ‘como podemos acompanhar, 0 quadro é justamente 0 oposto. Reconhecendo que ha julgamentos sociais conscientes ¢ inconscien- tes sobre a lingua, Labov formula trés categorias de significado social das formas em variagaio, baseadas no nivel de consciéncia que o falante tem sobre determinada variével: 1. _Estereétipas ~ Sao tragos socialmente marcados de forma consciente. Alguns eles podem ser estigmatizados socialmente, 0 que pode conduzir & mudanga linguistice ripida ea extingdo da forma estigmatizada, Outros podem ter um pres- tigio que varia de grupo para grupo, podendo ser postivo para alguns e negativo para outros. Os estereétipos so comumente explorados, com certo exagero, na ‘composigao de personagens de programas humoristicos, em piadas € mesmo em novelas e filmes. Exemplos de esterestipos sto as consoantes /d/e /Y pronun- iadas como [A] e [tJ (€ n80 como [43] ¢ [f}) diante de [i], como em ‘bom di, titia” — formas tipicas das variedades florianopolitana e recifense, por exemplo, 2 Mareadores — Sio tragos linguistcos socal e estlsticamente estratiicados, que podem ser diagnosticados em certos testes de avaliagdo. Os resultados de alguns tests tém mostrado que, apesar de os falantes reeitarem certas variantes, {sso nio significa que nto fazem uso delas:o julgamento social, assim como 0 uso, nem sempre é consciente. Um exemplo de marcadores € a variago entre 0s pronomes ‘tu’ e “vocé” em certas regides do Brasil, 0 uso desses pronomes, em gerald ¢ estigmatizado, mas esti correlacionado a varives estilisticas (grau de intimidade, por exemplo) esociais (como a faixa etria dos falantes) Aura arr o muta ngs 3. Indicadores ~ Sao elementos linguisticos sobre os quais ha pouca forga de avaliago, podendo haver diferenciagdo social de uso dessas formas corre lacionada & idade, & regio ou ao grupo social, mas nfo quanto a motiva- ‘es estilistcas. Em outras palavras, indicadores sio tragos nao sujeitos & ‘variago estilistca, com julgementos sociais inconscientes. Um exemplo de indicador é a monotongagio dos ditongos /ey/ ¢ fow! no portugués fala- do atual, em palavras como “peixe’/*pexe’, “fejdo'r feo’, ‘couve'/cove’, “eouro’/“coro’ isenta de valor sociale estilistico. ‘Vale salientar que, a depender da regiéio, uma variante pode ser inter- pretada tanto como marcador quanto como estereétipo. Exemplos disso so (além do uso pronominal mencionado) as construgdes “tu foi" e ‘vou ir’. No Rio Grande do Sul, essas formas comportam-se como marcadores e no como ‘esteredtipos, pois nao so estigmatizadas, constituindo-se em elementos carac- ‘erizadores de identidade local. Contudo, essa possivelmente nao & a situago ‘em outras localidades, que avaliam essas construges ds modo negativo A classificagaio de varidveis em esteredtipos, marcadores ¢ indicado- res é uma ferramenta relevante para a Sociolinguistica, pois nos auxilia a compreender, por exemplo, o proceso de mudanga linguistica e a escorre- gadia definigdio de comunidade de fala, como veremos neste capitulo. 23. A comunidade como /ocus do estudo da lingua Embora a TvM reconhega a dimensdo individual do uso da lingua, nao E este o seu interesse maior. Para essa teoria, a variagdo e a mudanga s6 se revelam em sua sistematicidade quando o pesquisador considera 0 contexto social em que @ lingua ¢ usada, analisando a estrutura e evolugto da lingua partir de sua interago com a sociedade. Na proposta laboviana, portanto, ‘D10CUS DO ESTUDO DA LINGUA E A COMUNIDADE DE FALA, NAO OINDIVIDUO. Em outras palavras, embora seja evidente que « individuo opera com regras e categorias gramaticais, a Sociolinguistica se preocupa essencialmente com a gramitica geral da comunidade de fala, e no com o sistema especifico de um ou outro individuo. Ora, se a comunidade de féla ocupa um papel tio central na proposta laboviana, cumpre, entdo, definirmos esse termo. Segundo Pla OOHECR Socata Labov, uma comunidade de fala no ¢ apenas um grupo de falantes que usa as mesmas formas da lingua, mas um grupo de falantes que, além disso, com- partitha as mesmas normas a respeito do uso dessa lingua ~ 0 que pode ser cobservado tanto em “comportamentos avaliativos explicitos” como “pela uni- formidade de padres abstratos de variagao” (Labov, 2008 [1972]: 150). Nesse caso, é preciso considerar que a uniformidade das normas compartilhadas pelo ‘grupo ocore quando a varidvel linguistica possui marcas sociais evidentes. Tso significa que muitas vezes os falantes tém consciéncia desses usos e s0 ccapazes de emitir juizos de valor sobre as formas linguisticas varidveis. Anogio de comunidade de fala suscitou alguns questionamentos, re- lacionados prineipalmente ao papel da avaliagao das formas variantes, que niio se dé apenas conscientemente (como nos esteredtipos), mas também inconscientemente (no caso dos marcadores ¢ indicadores) e & sua opera- jonaliza¢ao (por exemplo, existe um nimero determinado de formas lin- gufsticas varidveis frente is quais os fatantes teriam uma atitude uniforme que permita a identificago de uma comunidade de fala?) Reelaborando a concepgao laboviana de comunidade de fala, Gregory Guy (2001) propde uma definigao a partir de trés critérios: 1. Os falantes devem compartilhar tragos linguisticos que sejam diferentes de outros grupos; Devem ter uma frequéncia alta de comunicago entre si Devem ter as mesmas normas e atitudes em relago a0 uso da linguagem. ‘Além do conceito de comunidade de fala, ha pesquisadores que trabalham ‘com outros conceitos relacionados ao Jocus dos fendmenos linguisticos investi- sgados. Um desses pesquisadores ¢ Lesley Milroy, que situa seus falantes em re~ des sociais —redes de relacionamento dos individuos estabelecidas na vida coti- diana, que variam de um individuo para outro e so consttuidas por ligagdes de diferentes tipos, envolvendo graus de parentesco, amizade, ocupagao (ambiente de trabalho) etc. Quanto maior o niamero de pessoas que se conhecem umas 3s ‘outras numa certa rede, mais alta seré a densidade dessa rede. Uma anélise sociolinguistica baseada em redes sociais procura captar a dindmica dos comportamentos interacionais dos falantes © possi estudo de pequenos grupos sociais, como grupos étnicos minoritérios, mi- grantes, populagdes rurais etc., favorecendo a identificagio das dindmicas sociais que motivam @ mudanga linguistica. twa vate muta ic Convém mencionar ainda, brevemente, a nogo de comunidades de pritica como focus dos fendmenos lingufsticos. Essa nogio diz respeito a pri- ticas sociais compartilhadas por individuos que se retnem regularmente em tomo de uma meta comum, ¢ envolvem desde crengas e valores até formas de realizar certas atividades e de falar. Podem ser caracterizadas como comuni- dades de pritica reunides de pais e professores, rotinas familiares ¢ escolares, ‘comunidades de hackers, entrevistas médicas, comunidades de pescadores etc. Penelope Eckert propde que o estudo da variagao seja centrado nas co- munidades de prética, pois nelas as varianteslinguisticas assumiriam significa- ‘sdo social, havendo relago direta entre lingua e identidade. Nesse contexto, os estilos individuais, como marcas de identidades sociais, ocupariam um lugar central no estudo da variagao linguistica. Tal enfoque se aproxima do de redes sociais (ambos de nivel “micro” e mais qualitativo) em oposigo ao de comu- nidades de fala (de nivel “macro” e predominantemente quantitativo). ST As trés ondas da Sociolinguistica Uma das contribuigdes recentes de Eckert a drea & a pro- posta de dividir as priticas dos estudos sociclingufsticos a0 longo de sua historia em trés “ondas”. + A primeira onda trabalha com a variagio objetivando estabelecer correlagdes amplas entre categorias sociais ¢ variveis linguisticas. Um exemplo seria o estudo de Labov sobre o /t! pés-vocélico em lojas de departamento de Nova ‘York, discutido no capitulo anterior; + A segunda onda busca ir mais a fundo nas cetegorias sociais ‘envolvidas na variago, empregando métodos etnogrificos para desvendar quais processos locais constituem essas categorias maisamplas. Oestudode Labov nailha de Martha's Vineyard é um exemplo de andlise nessa perspectives + Aterceira onda busca olhar para a variacio como um sistema complexo de significados sociais em potencial dentro de ‘uma comunidade, que pode ser manipulado localmente pelos individuosnaconstrugio deestilos identtérios apresentaremos tum exemplo de estudo nessa onda no capitulo a seguir). Eckert nos alerta para que nao vejamos as trés ondas como estigios que se sucederam ao longo da historia da So- ciolinguistica. Ela defende que, embora os achados das duas PAA CCRC Soctgion primeiras ondas sejam fundamentais para a area, a manipula- ‘40 dos significados sociais da variagdo deve ocupar um lugar de destaque nas pesquisas da Sociolinguistia. Nota-se, portanto, que o sociolinguista pode situar seu estudo em do- inios diversos. A depender de seu objeto e de seus interesses de pesquisa, ‘ele pode considerar a atuagao da lingua em uma comunidade de fala, em redes sociais ou em comunidades de pritica. Essas opgdes nifo so mutua- mente excludentes: um mesmo fenémeno pode ser analisado, num primei: 0 momento, sob a ética da comunidade de fala, que permite um olhar mais amplo e panormico sobre 0 objeto, e, num momento posterior, ser anali- sado em redes sociais e/ou comunidades de pritica, permitindo uma visio ‘mais detalhada, mais “micro” do fendmeno. Apesar de terem caracteristi- cas diferentes ¢ de configurarem pesquisas com feigdes especificas, o que une todas essas abordagens é 0 foco na lingua em seu contexto social - no individual, como faziam as teorias apresentadas no inicio do capitulo. 24 As relagdes entre variagdo e mudanca Passamos a outro conjunto de principios e conceitos bisicos da TvM. Se até aqui nos concentramos em prinefpios mais relacionados a variagao linguistica, ao carter heterogéneo do sistema ¢ as relagdes entre lingua © sociedade, vamos nos voltar agora a outro grande interesse da teoria: a mudanga linguistica. ‘Como sabemos, cada estado da lingua ¢ resultado de um longo e con- ‘tinuo processo hist6rico. As mudangas ocorrem a todo momento, ainda que ‘nos sejam imperceptiveis. Como 0 inglés do século xv € diferente do inglés do século xx, 0 portugués do século xv também nao ¢ idéntico ao do século xx, Da mesma forma, 0 inglés e 0 portugués do futuro serao diferentes dos atuais. E isso ocorre com todas as linguas humanas. Poderiamos pensar que durante um processo de mudanga a estrutura das linguas fique comprometida, o que leva a seguinte questio: como é que ‘8 pessoas conseguem se entender enquanto a lingua muda? Essa é uma das grandes questdes discutidas por wii. A resposta dos autores foi que a mudanga nio afeta 0 cariter sistemético da lingua, isto , ela continua estruturada enquanto as mudangas vao ocorrendo. tata variant ng ara melhor compreender a proposta de WLM, vamos retomar uma das dicotomias postuladas por Saussure: a separagaio entre sincronia e diacro- nia, Para ele, enquanto a Linguistica sincrénica se ocupa das relagdes entre elementos simultaneos que “formam sistema” entre si a diacrdnica estuda as relagdes entre elementos sucessivos, ou seja, que se substituem uns aos ‘outros de maneira isolada, sem “formar sistema” enire si. Portanto, a pers- pectiva sincrénica ¢ estitica, aplicando-se a apenas um estado de lingua, a0 passo que a diacrdnica é mutdvel e dinémica. A ccitica feita por WL a essa concepgao é de que ela impede que se considerem fatores sociais agindo sobre a lingua e que se incorpore a ‘mudanga ao sistema linguistico — em outras palavras, a abordagem saussu- reana retira da lingua a sua dimensio historia. ara construir uma teoria que rompesse com 0 axioma da homogenei- dade e concebesse a lingua como um sistema dotado de heterogeneidade ‘ordenada, foi necessério que WLH neutralizassem a separagdo entre sineronia ‘ediacronia. Os autores precisavam explicar como a lingua, que é um sistema cestruturado, muda sem que as pessoas tenham problemas de comunicagdo. Eles apresentam sua hipstese nos seguintes termos (2006 [1968]: 35): ‘Nos parece bastante initil construir uma teoria de mudanga que aceite como seu input descrigbes desnevessariamenteidealizadas e inauténticas dos estados de lingua. Muito antes de se poder esbogar teorias preditivas| dda mudanga linguistica,seré necessério aprender a ver a lingua ~ seja de ‘um ponto de vista diaernico ou sincrénico — como um objeto constituido de heterogeneidade ordenada, Para wun, a lingua é heterogénea, ¢ essa heterogeneidade ¢ observa- da tanto na sincronia como na diacronia, ou seja, « lingua nfo passa por periodos menos sisteméticos, ainda que esteja em constante mudanga. Desse modo, retoma-se o principio de que a associagdo entre estrumura e homogeneidade é uma ilusdo. Basta pensarmos em como ocorre um processo de mudanga, Vimos que é possivel que, em seu repertério linguistico, um falante disponha de ‘mais de uma forma para expressar 0 mesmo significado — temos ai a varia- ‘20 linguistica. Ocorre que, dentro do repertério linguistico desse falante, pode acontecer, também, um desfavorecimento gradual da forma original

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