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“UM LIVRO ILUMINADOR” a) et) Marilia Fiorillo O Deus exilado Breve historia de uma heresia cyan COPYRIGHT © 2008, nails CAPA E ENCARTE Hennigue Sapors fr IMAGEM DE CAPA Albuonay-mages ElectaLainstack PROJETO GRAFICO DE MiOLO Evelyn Grumach a Joso de Soveza Leite CUPERAGIL. CATALOGuCAD-Na-FONTE SINDICATONACIONAL DOSEDTTORES DE LIVROS, Rl. iia de uma hess Maria iio = es 3088 ISIN ore as-200 08304 1 Gocwicine 2. Gross ~Reages~ Citas, 3 Smb# oes rptes~ Goosen 4. Chey eee sepia ~ His ~ gra pina ca M60 Teale C00 - zee 932 neat? bu =a Todos os direitos reservados. Proibida a TeprodugSo, armazenamento ou transmisto de partes deste vz através de quatgucr char om rege ausorizagi6 por escrito, oe net Diteitos desta edigio EDITORS CIVILIZACAO BRASILEIRA Selo EDITORA RECORD LTDA. Rut Argentina 171 ~ 20821.380 — Rio de Jancico, Rf = Tel: 2585-2000 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL, ‘Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, KJ 20922-970 Impresto no Brasil 2008 Agradecimentos A Roberto Sonto, Aos pro acolheu a tese de doutarado que per la Zingoni, Marco Anronio de Rezende e Mdnica Falcone, pelas sugestOes, conversas, tusiasmos pelo Bes Mew muito 1s-Boas, que equa- cionou 0 livro em sua justa medida ¢ artedondou a idéia, nigncia como ao seu destino. 2. A gnose nda se faz por procuragio; € um proceso: estritamente pessoal, que permitiria ao individuo |i bertar-se do dominio do mal, isto € do mundo ma- terial de vicissitudes. Essas duas premissas cobriam toda 0 “campo de possi- veis alternativas para a mente gnéstica”,™ sem excogau? Se~ gundo Jonas, sim — ¢ a clas se acrescentaria uma terceira exigéncia, 0 estilo, Pois outra condigao indispensavel para caracterizar um fendmeno como gndstico ¢ que ele possa ser reconhecide “de ouvide, musicalmente, como foi". Parece subjerivo, ¢ . Em se tratando de gnosticismo, mais vale urna intuigao que dizias de abstraghes. ‘Coneeitos como dualismo, gnose ou busca individual nio bastam por si s6 para destindar a charada gnéstica. Tem de haver uma outra qualidade: a insoléncia, $6 com esta ultima é que a definigao se completa, pois 0 gnosticisme tem um humor, ou mefhor, um mau humor peeulia S6 existe gnosticismo onde heuver imp: temperamento voluntarioso, irreveréncia e, sobretudo, mu ta imaginagdo. E por isso que 0 orfisme classico do século V 3.C., comhecido de Plato, esti fora— ele pode antecipar & gosto pelo secreta e 0 dualismo aseétiea do gnosticismo, mas Ihe falta completamente o humor gndstico. Idem quanto aos cultos de mistério tio profusos na Antiguidade tardia, como os descritos em O.asxo de owro, de Apuleio, que também va- usadia ¢ rebeldia. E por isso, também, que a co- munidade de Quinran, des Manuseritos do Mar Morto, no ia, rebel O Ewiama crdsrico tem nada de gndstica, apesar das aparéncias: os essénios sio piedosos demais, devotos demais, amantes demais de regras parase candidatarem 4 insoléncia gndstica, Por mais dualista ‘que seja sua doutrina, ou por mais profunda que tenha sido sua ruptura com 0 judatsmo oficial, os essénios cram essen- almente dogmticos; queriam volrar as antigas prescrigdes, ngo tumultué-Ias. Foram ultraconscrvadores, 0 avesso do espirico petulante ¢ demolidor da mente gnéstica. A retorica crista propriamente dita nasee em meados do século IL Antes disso nfo havia uma preacupagio particular com a sofisticada arte de persuadir. Os primeiros padres da Igreja cram pescadores de almmas, ¢ estavam mais ocupados em inveetivar do que em embelezar a imagem da nova reli- sido parao piblico culta. Queriam evangelizar, répido-e sem ‘musita hucubragio. $6 mais tarde, quando o cristianismo per- cebe que é imporrante aliciar 05 paderosos, é que a retrica se torna capital. © eristianismo encorpow reologicamente quando comecou a copiar mais e mais idéias ¢ sintaxes gre+ i588, para atrair as camaduas letradas da populagdo, Essa solis- ticagio do discurso alcangard o auge na Alexandria da século II, na obea de Clemente ¢ Origenes,” que produzirie um amilgama incomum de placonismo ¢ barbarisme, Sophia e Pistis, intelecto ¢ f€ — um ajuste que nao se repeticd mais dentro da Tpreia, Antes, porém, os evangelhos haviam langado o gener rerério das “boas-novas”. Come género, deviam alge ao pas- sado, tanto helenistico — as vidas dos imperadores ¢ os escritos de Plutareo—, quanto judaico —a parabola. Outro empréstimo da culeura grega tinha sido o “entimema”, tru- sque retdrice em forma de silogisme com duas premissas, em (© DEUS OULADO — BREVE HISTORIA DE UIA NLAESIA vez de trés. AristOteles considerava o entimema menos ci goreso de que o silogisme clissico, mas, séculos depois e destinado.a uma audiéncia predominancemente popular, o en timema devia ser mais convincente que a légica cerrada de certos silogismos. Muias figuras da retérica cristi, alids, fo- ram inspiradas na culturs helen{stica, como o recorremte t6- pico da elewagdio da alma ou o do mundo como palca de marionetes que se tomam por homens, mas na realidade s40 meras sombras do “homem interior”, este sima verdadeira ¢ substancial pessoa.” A pregacio cristd nao ¢ persuaséo (come o discurso de sum senador romano), mas proclamagio. E no busea sua fun damentagio em provas extertas ou na cocréncia interna, mas se basela na.autoridade de quem fala e na capacidade de quem ‘uve. Agostinho de Hipona dizia que um bom ouvinte cris- tao acalenta seu interesse no texto nao tanto ao analisi-lo cuidadosamente, mas a0 promuncié-lo energicamente. Paulo de Tarso, quando criticado como um simplista filoséfico pe- los dissiclentes cristios de Corinto, respondeu parecido: “Os judeus pedem sinais [a validagao da tradigio], os gregos bus- cain.a sabedoria [a validag3o do intelecto] mas nés pregamos (kerussomen, proclamar) 0 Cristo crucificado.” Fssa substi- tuigdo da logica pela comogio, ¢ do arrazoade pelo ardor, tera sua culminancia nos textos gnésticos. Foi com eles que a revalugio estilistica se completou ¢ criow-se uma nova e pro= lixa sintaxe, inflada de neologismos, sobrecarregada de meronimias, um dilivio de imagens ¢ pardfrascs, Por ser exortagio, e nao deliberagio, a tetérica cristi é basicamente uma questao de clogtiéneia, pouco importande a consisténcia das provas externas a0 discurso, ou a cocsio do raciocinia, Sea ret6rica helenistica dependia acimade tado O eMIGMa GNSSTICO dias habilidades do orador, na retdrica crist o que vale € a sintonia do ouvinte. A validade daquilo que é dito depende muito de quem ouve. Pois as palaveas, enim, pertencem a Dens, e nio cabe ao homem persuadir, mas se deixar con- vencer. Dai a incessante reperigio, em todo evangelho, apé- srifo ou candnica, da férmula “aquele que tem ouvides, que ouga”, A comprovagdo da eficdeia de um texto eabe a audién- cia, que pode ou nfo ter sido tocada pela graga, A qualidade do diseurso, curiosamente, é um dom do ouvinte: INSOLENCIA E [MAGINAGAG. Ossante ascético ¢ 0 sibio desapaixonado ni sao seres huma- nos complecos. Um pequeno niimero deles poders enriquecer uma com morreria de tédio. jdade, mas um mundo composto de rais criaturas ‘DeRERAND RUSSELL, Por que ro sow cristo Desordenada, tumultuada, mitica, lieica, a dicgle gnésticaé mais rica e conturbada que a canOnica, Nela, do ¢ mexafo- rae nada é literal. Enquanto © Novo Testamento traz hist rias cam comego, meio e fim, os textos da Biblioreca de Nag Hammadi sfo, em sua maioria, desafios de decifragio. Nao: témentrecho,, quando chegam perto de ter, o enredoé brus- camente interrompido para dar passagem a algum cdntico ow consetho que as autores acharam apropriada sem intriga, cunhadas sem muita preocupagio com co coerente. Un breve dia, no Didlogo do Salvador, si cternidade, ¢ a eternidade, no Evangelho de Tomé, quer di er aqui e agora. 5 © GELS EXILADO — BREVE HISTORIA DE UMA WERESIA Em vez da cadéncia suave do Novo Testamento, 08 testa- mentos de Nag Hammadi so uma provocagao sintética € mental; os textos teanspiram uma espécie de estado febril. E nesta febre —a musicalidade de Jonas — que esti o elo en- te tratados tao diferentes como o Evangelho de Tomé e 0 Eyangelho da Verdade. © tom é sempre de incitamento, € jamais se d a menor imporcincia aos fatos da histéria, Nao se diz nada, também, da vida ou da obra.do fundador, Jesus. Ele sé interessa — c sem divida ele é o interesse primordial — pelo que falou, nao pelo que fez. E um Jesus atemporal, de ensinamentos atemporais. Como nasceu, viveu ou mor reu é secundirio. A sua época, os gndsticos se consideravam os Gnicos © verdadeiros cristios, em contraste com os falsos crentes ¢ ilu- didos adoradores de um Deus menor, os ertodoxes. O rer mo “pecado", do grego hamavtia, que significa errar o alvo, era, para cles, algo diariamente cometido pelos oriadoxos, que tinham perdido de vista a mera original dos dizeres de Jesus. Bo ponto de vista dos valentinianos e marcionitas, foi a Igreja, e ndo seus dissicentes, que derurpou 2 mensages legitima do cristianismo, desperdicando os ensinamentos. E por isto que boa parte da literatura gaéstica ¢ arquitetada como maximas de sabedoria, os ogo’ sophon. E essa recupe- ragio da sabedoria, na Biblioteca de Nag Hammadi, veri sem- pre acompanhada de teatralidade. © recurso mais freqience 0 do paradoxo, para criar intensidade dramética. Abusa-se também da emphasis, que em autores helenisticos seria desa- provada (porque a clareza ¢ a vierde fundamental}. & Sobs- curidade" é uma virtude cristd do estilo, porque sugere que, nas sombras das entrelinlas, fi sempre mais do que aquilo que foi dito, Os gndsticossio campedes da obscuridadc, mas 90 © ENIGMA onostico sla ndo ¢ uma exclusividade deles. A abercura do Evangello de Joao, por exemplo, é um caso de empirasis canénic: prineipio era o Verbor ¢ @ Verbo estava com Deus! ¢ 0 Verbo era Deus”, ela expde trés sentidas aparentemente contradi- térios: o da preexisténcia (era), o da confluéneia (estava) ¢ 9 da personificagio (era). Com 95 gndsticos, esses paradoxose énfases serio ainda mais estridentes, Convencer é sempre uma questio de circunstincias, como lembrava Aristételes, 2 “faculdade de descobrir evn cada caso ‘os mcios de persuasio4 disposi¢do”. No caso dos gnésticos, os meios cram os de uma fantasia ilimitada e de uma inven- tividade incontrolivel. Ecom muita paixao. © pathos ganha de longe do lagos quando se trata de gndsticos. Veja-se a sen= ‘tenga 2 do Evangellho de Tomé: 2, Jesus diz: “Que aquele que procusa continue procus vando até encontrar Quavde encontrar, se perturbard. Quan- do se porturbar, se pasmard e reinard sobre 0 Todo.” Perturbar, pasmar, maravilhar-se. Esse pathos permite que ‘o-que esta sendo dito nao precise de justificativas, mas exija, sim, a garancia de uma consecugao imediata, Pouca explica io ¢ muita amplificagdo. Tada que se diz: nos textos gndsticos € urgence. Como no Novo Testamento, presume-se que as mensagens tenham validade eterna; mas aqui elas tém uma pressa extra cde se materializar. Q apelo sensorial cerca o lei- tor por todos os lados: hipérboles, metiforas, meronimias, rorrenciais imagens, Eo tempo mencionado nos textos € ge- ralmente um temporem suspensio, nem passado, nem futuro, mas um presente alargado. A recompensa est num horizon- te vizinho, ¢ © modo pritico de obté-la, embora um tanto velado, munca é perdido de visea. Enquanto o pathas do Novo ‘Testamento € 6 de sofredor passivo, © da Biblioteca de Nag ”

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