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Joseph R. Srrayer AS ORIGENS MEDIEVAIS DO ESTADO MODERNO --vew yayuungue dominar uma provincia francesa, como fez Rollon na Normandia. Ca crescente estabilidade politica veio dar lugar ao aparecimento de uma das condigdes essenciais para a consti- tuig¢do do estado, a continuidade no espago e no tempo. Pelo simples facto de se manterem de pé, alguns reinos e principados comegaram a adquirir solidez. Certos povos, ocupando deter- minadas dreas, permaneceram, durante séculos, integrados num mesmo conjunto politico. Era de esperar que um reino que existia ha varias geragdes continuasse a existir; tal reino tinha 22 passado a fazer parte do panorama polftico. E os governantes de reinose principados que se mantinham no espago e no tempo tinham oportunidades e incentivos para desenvolver instituigdes permanentes. Ainda que apenas por interesses prdprios e egois- tas, esses.governantes desejavam assegurar a seguranga interna e a existéncia de lagos organizados entre as comunidades locais e as suas cortes. Uma seguranca maior e formas de controlo mais rigidas viriam incrementar, quase de certeza, os rendimen- tos do soberano, aumentar o seu prestigio e ampliar as suas possibilidades de transmitir 0 poder e as suas possessGes aos seus herdeiros. As ambicdes dos governantes coincidiam com as necessidades dos seus stbditos. Numa época de violéncia, a maioria dos homens desejava, acima de tudo, a paz e ‘a seguranga. Verificavam-se pressdes a todos os niveis para for- talecer goyernos débeis, de forma a permitir-lhes cumprir os seus deveres minimos de defesa, perante os perturbadores, internos e externos, da paz. Assim, em qualquer unidade poli- tica em que houvesse alguma estabilidade e continuidade era natural esperar que se fizessem esforgos no sentido de criar instituigdes judiciais, para consolidar a seguranga interna, e instituigdes financeiras capazes de fornecer os rendimentos ne- cessdrios para a defesa contra inimigos externos.) Curiosamente, ‘este movimento a favor de instituigdes judiciais e financeiras mais eficazes foi especialmente forte nalguns dos maiores senhorios feudais. O feudalismo tinha destruido o Império Franco, mas n4o acabara com todas as instituigdes sociopoliticas a ele devidas, e até o mais atrasado dos senhorios feudais constitufa uma unidade politica mais sofisticada do que uma primitiva tribo germanica. (Aqueles que desempenhavam papéis politicos encontravam-se clara- mente separados do resto da comunidade. A estrutura politica era uma criagao artificial — por exemplo, 0 condado, o cargo de conde, o tribunal condal — e podia ser alterada através de actos deliberadamente premeditados—por exemplo, a trans- feréncia de um tribunal, ou de parte da sua jurisdigdo, de um 23 senhor para outro. O governo era uma coisa distinta dos cos- tumes da comunidade e a consciéncia dessa diferenca foi essencial para a constituigao do estad ara além disso, o feudalismo veio eliminar o esforgo que répresentava Ppreservar unidades politicas invidveis, criando assim um clima de opiniao mais propicio 4 experimentacao politica. A efectiva unidade do governo feudal adequava-se bastante bem A unidade econd- mica e social que ja existia; os sibditos de um,mesmo senhor tinham geralmente muita coisa em comum. Em numerosos principados feudais desenvolveu-se um forte sentimento de lealdade em relagao ao senhor, coisa que tinha faltado quer no Baixo Império Romano, quer em muitos dos reinos germanicos. Por fim, o senhor feudal, como outros soberanos, contava com um forte estimulo para tentar melhorar os seus métodos de governo: o desejo de obter maiores rendimentos e maior segu- tanga, para si proprio e para os seus herdeiros. Assim, nalgumas zonas, nomeadamente no Norte da Franga, os senhores feudais mais capazes deram alguns dos primeiros passos para a consti- tuigao do estado, Segundo os critérios modernos, n4o parece possivel afirmar que tenha havido um notédvel incremento de estabilidade e de Seguranga no periodo que se seguiu ao ano 1000. No entanto, em comparagdo com as condigdes anteriores, o progresso foi inegvel e suficiente para permitir um impressionante ressur- gimento na maior parte da Europa ocidental. A produgdo agricola aumentou; 0 comércio entre zonas distantes aumentou; a populagao cresceu; os homens passaram a interessar-se mais pela religido e pela politica. Nem sempre foi facil harmonizar todos esses interesses; foi particularmente dificil conciliar o desejo de ter um governo mais forte e melhor com 0 desejo de reformar a Igreja e de viver de uma forma mais crista. Um exemplo da primeira época serve-nos para ilustrar este ponto. A Paz de Deus comegou a impor-se nas conflituosas Tegides da Franga central, no século X, como uma tentativa feita pela Igreja no sentido de organizar os camponeses e outros nfo 24 _ combatentes numa espécle de associac%o de vigilancia, com o objectivo de reprimir a violéncia e as pilhagens praticadas pelos senhores ae teve muito sucesso porque os senhores eram, em. geral, militarmente superiores aos exércitos, mal treinados e mal equipados, das associagdes de paz. Esse projecto foi também encarado com alguma desconfianga pelos leigos, e até pelo clero mais conservador, porque vinha envolver a Igreja em assuntos tdo seculares como a guerra e a justica criminal. Mas, quando aideia foi abragada por senhores poderosos, como o duque da Normandia, quando a Igreja acedeu a representar um papel secundario e a limitar-se a sancionar os esforgos de um governante laico, a Paz de Deus demonstrou a sua utilidade. Veio dar a duques e condes um pretexto para intervirem em assuntos locais e reprimirem os actos de violéncia que ameaga- vam a estapilidade politica’. : A longo prazo, os homens da Igreja e os leigos chegaram geralmente a acordo acerca dos métodos a usar para diminuir a incidéncia dos actos de violéncia. Mas00 longo do século XI, © seu desacordo quanto a uma questéo muito mais fundamen- tal —as relagdes entre a autoridade secular e a autoridade reli- giosa — foi-se tornando cada vez maior. Ambas tinham estado profundamente interligadas nos séculos anteriores. Os reis eram considerados personagens semi-religiosas e tinham uma pro- funda influéncia nos assuntos da Igreja. Designavam os abades, 8 L. Hubert, Studien zur Rechtsgeschichte der Gottesfrieden und Landes- frieden, Ansbach, 1892; Georges Molinié, L organization judiciaire, militaire et Financiére’des associations de la paix, Toulouse, 1912; L. C. Mackinney, «The People and Public Opinion in the Eleventh Century Peace Movement», in Speculum, V, 1930, pp. 181-206; Hartrunt Hoffman, Gottesfried und Truga Dei, Estugarda, 1964. ® No que diz respeito 4 Normandia, ver H. Prentont, «La tréve de Dieu en Normandie», in Mémoires de U'Académie de Caen, n. s. Vi, 1931, pp. 1-32; J. Yver, «L’interdiction de la guerre privée en Normandie», in Travaux de la semaine d'histoire de droit normand 1927, Caen, 1928, pp. 307-348, 25 a os bispos e, muitas vezes, os Papas; chegavam a intervir (como fez Carlos Magno) em questdes de doutrina!°, Os dirigentes teligiosos, por outro lado, desempenhavam um importante papel nos assuntos seculares como conselheiros dos reis, admi- nistradores e soberanos dos principados eclesidsticos. A nova orientagao que surgiu na Igreja no século XI limitou-se de inicio a procurar reformar o clero, Mas, gradualmente, tomou-se evidente que, para reformar o clero, a Igreja precisava de ser mais independente da autoridade secular e que, para conseguir preservar a sua independéncia, a Igreja tinha de estar centra- lizada sob a égide do papa. Uma Igreja reformada e fortemente centralizada estava destinada a ter uma larga influéncia nos assuntos seculares. Alguns reformadores pensavam até que a Igreja deveria deter a autoridade Suprema sobre todas as ques- toes de relacdo social e politica. Se se pretendia que a Europa fosse realmente crista, era necessdrio que, ela estivesse sob a autoridade dos dirigentes da cristandade!".} Este programa, muito energicamente enunciado pelo papa Gregério VII (1073-85), vinha destruir ‘partes essenciais da anterior estrutura politica da Europa. \Os soberanos laicos negaram-se a satisfazer as exigéncias da Igreja e 0 conflito que dai resultqu (a Questdo das Investiduras) prolongou-se por quase meio século. Essa luta enfraqueceu consideravelmente a antiga simbiose que existia entre as autoridades religiosas e seculares. Os reis perderam o cardcter semieclesidstico que tinham e parte da sua influéncia sobre a nomeacao dos cargos eclesidsticos. A Igreja obteve a lideranga, se ndo 0 dominio absoluto, da sociedade europeia. A Igreja tinha-se separado *° Kantorowicz, The King’s Two Bodies, cap. 3; J. W. Thompson, Feudal Germany, Chicago, 1928, caps. 1 ¢ 2;B. Amann e A. Dumas, L Exglise au pouvoir des liques, 888-1057, Paris, 1984, liv. 1, cap. 2, liv, caps. 2.¢ 3, liv. I, cap. 1. '" Gerd Tellenbach, Church, State and Christian Society at the Investiture Conflict, Oxford, 1940, pp. 147-161; Ullmann, Growth of Papal Government, Pp.272-299; A. Fliche, La réforme grégorienne, Paris, 1946, Pp. 55-64 ¢ 76-83, 26 nitidamente das autoridades politicas seculares; totalmente independente ao mais alto nivel, pode assim garantir um a sider4vel grau de autonomia nos niveis mais baixos. Os refor- madores ee tinham conseguido uma vit6ria, ainda que ja] 12. ae todas as vitérias, a vitéria da Igreja na Questao das Investiduras teve consequéncias imprevistas. Ao afirmar o seu cardcter singular, ao separar-se tao claramente dos governos seculares, a Igreja veio aperfeigoar, inconscientemente, Os con- ceitos acerca da natureza da autoridade secular. As definigdes € os argumentos podiam variar, mas mesmo os mais fervorosos gregorianos tinham de admitir que a Igreja nao podia desem- penhar todas as fungdes politicas.e que os soberanos laicos eram necessdrios, havendo uma esfera de acgdo que Ihes estava reservada. Podiam estar submetidos 4 conducao e as Tepreenses da Igreja, mas nao faziam parte da estrutura administrativa da mesma. Estavam 4 cabega de outro tipo de organizacao, para o qual no se tinha criado ainda um termo que genericamente ° identificasse. Em resumo, o conceito gregoriano de Igreja quase exigia a invengao do conceito de estado; e exigia-a com tal intensidade que é extremamente dificil para os modernos auto- tes evitarem descrever a Questo das Investiduras como uma jae o estado) = nes tentagdo seria errado, mas a reorganizagao da estrutura politica da Europa, durante e apés esse conflito, preparou de facto o caminho para o, aparecimento do estado. Por alguma coisa deixou de ser possivel levar a sério as aspira- gdes do ressuscitado Império Romano do Ocidente a exercer o dominio universal. Quando a Igreja e o Império colaboravam intimamente, como aconteceu no tempo de Carlos Magno e i G, Barraclough, The 12 Para além das obras mencionadas na nota 11, ver Origins of Modem Germany, Oxford, 1949, pp. 127-155, e N. Cantor, Church, Kingship and Lay Investiture in England, Princeton, 1958, caps. 1 € 5 Uf dos varios Otdos da dinastia de Otdo-o-Grande, a supremacia imperial podia ser admitida, pelo menos em teoria{mas a Ques- tao das Investiduras debilitou mais o Império do que qualquer outra organizacdo politica secular. Outros soberanos consegui- ram resolver as suas disputas com os reformadores de uma forma independente e em melhores termos do que o imperador. A Europa ocidental formava talvez uma unidade teligiosa, mas no era claramente uma unidade politica. Cada reino ou prin- cipado tinha de ser tratado como uma entidade separada; as bases para a criacdo de um sistema pluriestatal acabavam de ser langadas.| Ao mesmo tempo, a Questdo das Investiduras veio reforgar uma tendéncia que ja existia antes: a tendéncia para considerar o senhor laico, antes do mais, o garante e distribuidor da justiga. Os reformadores gregorianos acreditavam que A Igreja competia definir a justiga, mas até eles admitiam que, em condigdes normais, era dever dos senhores seculares velar para que os seus sibditos tivessem garantido o acesso a justica. Para os reis era ainda mais importante destacarem essa fungdo. Se j4 nao parti- Ihavam a responsabilidade pela condugo e pelo governo da Igreja, se tinham deixado de ser «bispos para os assuntos exter- nos», entdo a unica desculpa para a sua existéncia era a neces- sidade de fazerem respeitar a justiga. Mas, se era seu dever faze- tem respeitar a justiga, ent&o tinham de desenvolver os cédigos de leis e melhorar as instituig6es judiciais. Estas medidas sdo, sem divida, Uteis para a constituigdo do estado, mas nem sem- pre surgem tao cedo nem tém tanta importancia como aconte- ceu na Europa ocidental. O facto de, logo desde as origens dos estados da Europa ocidental, se atribuir uma tal importancia 4 lei ia ter uma pro- funda influéncia no seu desenvolvimento futuro. O estado baseava-se na lei e existia para a fazer cumprir. O soberano estava obrigado moralmente (e, muitas vezes, politicamente) pela lei e 0 direito europeu nao era meramente penal, como em muitas outras regides; regulava as relagdes familiares e comer- 28 ciais e a posse e o uso da propriedade. Em nenhum outro sis- tema polftico a lei era to irnportante; em nenhuma outra sociedade os juristas iriam desempenhar um papel tao funda- mental. Os estados europeus nem sempre conseguiam atingir ° seu ideal, que consistia em serem basicamente estados de direito, mas © facto de possuirem tal ideal representou um importante factor para conseguirem a lealdade e 0 apoio dos seus subditos. (Talvez o mais tardio dos estimulos que conduziram ao aparecimento do estado europeu tenha sido o rapido pues do nimero de homens instrufdos durante o século XIl"*. F dificil criar instituigdes impessoais permanentes sem se poder dispor de arquivos escritos e de documentos oficiais. De facto, © documento escrito constitui a melhor garantia de perdura- bilidade e o melhor isolador entre um administrador e as pres- sOes pessogis; é precisamente por isso que os cidadfos que pre- tendem fazer inclinar a lei a seu favor se escudam sempre num documento escrito quando se dirigem a pessoa que vai aplicar essa lei. Nos princfpios do século XU, 0 nimero de homens capazes de manter arquivos e elaborar documentos era muito reduzido e, por isso, o desenvolvimento das instituigdes era também limitado. Porém, o ressurgimento europeu ficou a dever-se, em parte, a um espantoso incremento do desejo de aprender. Milhares de jovens afluiram as escolas e, depois de formados, entraram ao servigo de funcionarios eclesidsticos seculares. No final do século xm, a falta de escriturdrios e contabilistas estava praticamente superada; cem anos mais tarde j4 havia provavelmente excedentes de pessoal capaz de realizar esse tipo de tarefas. i (Hé.um tipo de educagdo que merece uma men¢ao especial: ‘o estudo do Direito. A maior parte dos jovens limitava-se a 13 C,H. Haskins, Renaissance of the Twelth Century, Cambridge, Mass., 1927; G. Paré, A. Brunet e P. Tremblay, La renaissance du XITé siécle , Paris, 1933; D. Knowles, The Evolution of Medieval Thought, Londres, 1962, pp. 71-171;R. W. Southern, The Making of the Middle Ages, cap. 4. 29 estudar Artes, em que a maior énfase era dada ao uso correcto da linguagem e da légica. Daqueles que prosseguiam os estudos e frequentavam cursos superiores, a maior parte matriculava-se nas escolas de Leis. Aprendiam Direito Canénico, Direito Romano (segundo o Corpus Iuris Civilis, de Justiniano), ou ambos. Os professores dessas escolas eram famosos em toda a Europa e os seus alunos atingiam posigdes elevadas, especial- mente na Igreja. No entanto, a influéncia do estudo académico do Direito ndo deve ser exagerada. As primeiras instituicgdes de cardcter estatal j4 existiam antes de as escolas de Leis terem comegado a funcionar e o direito romano era de fraca utilidade imediata na maioria da Europa a norte dos Alpes. A Inglaterra, a Alemanha e o Norte da Franga regiam-se pelo direito consue- tudindrio, que nao se ensinava nas escolas; os especialistas nesse tipo de direito, com poucos ou nenhuns conhecimentos de direito romano, conseguiam resultados notdveis, A importancia do estudo do Direito Romano radicava no facto de esse estudo fornecer um conjunto de categorias, em que era possivel inte- grar as novas ideias e vocabuldrio para as definir. Assim, a dis- tingao feita pelos Romanos entre lei civil e lei penal foi muito util para os juizes ingleses, que entdo estavam a tentar reduzir a escrito o rapido desenvolvimento do direito consuetudindrio do seu pais'* A ideia de bem comum e o dever que o soberano tinha de velar por esse bem serviram para justificar inovagdes como a tributagdo universal **} Os Romanos nao tinham uma palavra que fosse exactamente/equivalente a «estado», mas os termos res publica, ou «coisa publicap, aproximavam-se-lhe bastante e formavam um nticleo em redor do qual a ideia de * Glanvill, De Legibus et Consuetudines Regni Angliae, ed. de G. E. Wood: bine, New Haven, 1932; nesta obra, escrita em 1187, Glanvill inicia a sua sdlida argumentag#o com esta afirmagdo: «Placitorum aliud criminale aliud civilen (.42). 5 Post, Studies, pp. 258-290. 30 estado podia cristalizar. Porém, nada disso teria passado de uma mera abstracg#o se na Europa ocidental nao se tivesse iniciado j4 0 processo de criagdo de instituigdes legais. Foi devido ao facto de ja possufrem normas de direito civil, impos- tos e até uma vaga ideia de estado que os Europeus do século XI puderam utilizar e entender conceitos romanos paralelos, cuja existéncia contribuiu, por certo, para aperfeigoar as defi- nigdes e clarificar 0 pensamento de juizes e administradores. A pratica de as discussdes de teoria politica utilizarem frequen- temente termos de direito romano veio reforgar a tendéncia, que j4 existia antes, para utilizar 0 direito como base e justifi- cacao da criagdo dos estados. Mas, se é verdade que o renascer do direito romano facilitou e acelerou, talvez, o processo de constituigdo do estado, esse renascimento no constitui decerto a sua caysa primeira, nem representou provavelmente uma con- digo necessaria para esse processo. : Estas considerages acerca da influéncia do direito romano afastaram-nos do nosso ponto de partida. Voltemos aos come- gos do século XII e passemos a analisar as estruturas politicas que entdo surgiram\ Podemos comegar por uma importante generalizacdo: as primeiras instituigdes permanentes que exis- tiram na Europa ocidental ocupavam-se de assuntos internos, e ndo de questdes internacionais. Os Supremos Tribunais de Justiga e os Departamentos do Tesouro surgiram muito antes dos Ministérios dos Negécios Estrangeiros e da Defesa. A prio- tidade concedida as instituigdes de cardcter interno foi, em muitos sentidos, benéfica. Essa prioridade era a que correspon- dia melhor aos ideais seculares dominantes da justiga e império da lei, faceis de aplicar aos problemas internos, mas que s6 com muita dificuldade se podiam aplicar as quest6es externas. A constituigdo de um sistema de tribunais eficaz trazia vanta- gens evidentes para todos; tornava-se, porém, mais dificil demonstrar os beneficios provenientes da existéncia de um exército regular. Finalmente, permitindo que os funciondrios mais competentes e inteligentes se especializassem, na sua 31 maioria, em assuntos internos, conseguia-se reduzir a pressfio sobre os escassos recursos humanos. A titulo de comparagao, basta pensarmos na inquietante situacdo dos estados contem- pordneos recentemente criados, que se véem forgados a empre- gar & seus quadros mais capazes na diplomacia ou no exército. ! As s razOes pelas quais se concedeu prioridade aos assuntos internos so Sbvias. A fragmentacdo da Europa e a debilidade das unidades polfticas que as constituiam nfo permitiam qual- quer accao continuada, ou a longo prazo, em matéria de assun- tos externos. Nenhum soberano era capaz de levantar um exército de mais de alguns milhares de homens, nem de manter esse exército para além de uns meses. A existéncia de exércitos regulares, ou de um corpo permanente de oficiais, era impen- sdvel. Na sua maioria, os soberanos preocupavam-se apenas com as relagdes com os seus vizinhos mais préximos.)A Ingla- terra tinha muito pouco a ver com Aragio, tal como a Franca com a Suécia. Mesmo entre vizinhos, havia uma tendéncia maior para resolver conflitos através de incursdes armadas e de accdes de represdlias do que pela via diplomatica; as tréguas © as pazes eram estabelecidas por acordos adhoc. Numa Europa sem estados nem fronteiras, 0 conceito de «negécios estrangei- Tos» nao tinha qualquer significado e, portanto, nao havia necessidade de uma méquina burocratica para tratar dessas questées. \Pelo contrério, precisamente pelo facto de o sistema poli- tico europeu ser tao fraco e fragmentério, os soberanos que pretendiam preservar a sua posi¢o e transmiti-la aos filhos tinham de fazer algum esforgo no sentido de constituir unida- des politicas coerentes a partir das terras dispersas e dos direi- tos de governo que possuiam. Isso implicava, primeiro e antes de mais nada, o aperfeigoamento da arte de governarem os seus dominios. Uma vez que a tributacdo universal era praticamente desconhecida, os rendimentos dos reis e dos principes provi- nham, na quase totalidade, das suas terras, dos direitos de por- tagem e de mercado e da parte que lhes cabia das multas apli- 32 oadas por determinados tribunais por.certos delitos!®. Porém, visto que as terras que possufam nunca eram contiguas e os proventos dos direitos de portagem e de justiga tinham de ser partilhados com membros da aristocracia, os reis sentiam grande dificuldade em conhecer com exactiddo o montante dos seus rendimentos e, quando o conheciam, enfrentavam dificuldades quase idénticas para cobrar esses rendimentos. Os primeiros funciondrios permanentes foram os administra- dores das terras senhoriais: os reeves e shire-reeves (sheriffs), em Inglaterra, os prévdts, em Franga, os ministeriais, na Alemanha. Esses funciondrios centralizavam as rendas dispersas dos seus territérios e colocavam-nas 4 disposi¢ao dos seus amos. Para isso tinham de registar de alguma forma essas Operagdes € submeter-se a um sistema qualquer de controlo contabilistico\ Esta evolugao foi muito mais répida em Ingla- terra do que em qualquer outro sitio, mas, na maioria dos paises, as instituigdes financeiras centrais tiveram origem no trabalho desses administradores. Os proventos da justiga constitufam uma parte apreciavel dos rendimentos locais (uma vez que a pena aplicada 4 maioria dos delitos consistia numa multa) e fazia parte das atribuicdes dos agentes locais do governo presidir aos tribunais que geravam tais rendimentos. Este sistema revelou-se satisfatorio, enquanto os tribunais se limitavam a julgar fundamentalmente conflitos entre camponeses, e as multas impostas eram fixas e represen- ‘© Mesmo no século xil, numa época em que jé se tinha iniciado o processo de constituigdo do estado, e até nas unidades politicas mais avangadas, como a Inglaterra, a Normandia ea Flandres, os rendimentos eram, na sua maioria, desse tipo. Ver, para o que diz. respeito aos rendimentos reais na Inglaterra em 1130: B. Lyon e A. E. Verhulst, Medieval Finances, Providence, 1967; L. Delisle, «Des revenus publics en Normandie au XIl¢ et XII sigcles», in Bibliotheque de l'Ecole des Chartes, x, XI, XM (1848-1849, 1852); Magnum rotulum, 31 Henry I ed. por J. Hunter, Londres, 1833, A Franga encontrava-se ainda nessa situagao em 1202; ver F. Lot e R. Fawtier, Le premier budget de la monarchie Srangaise: Le compte général de 1202-1203, Paris, 1932. 33 tavam, em geral, quantias pequenas. A relacdo entre a adminis- tragdo da justiga e a colecta dos rendimentos foi muito estreita durante toda a Idade Média e, mesmo quando surgiram grupos de juizes especializados, esses juizes foram muitas vezes utiliza- dos como cobradores de rendas!’, e os antigos funciondrios que se dedicavam a essa tarefa (sheriffs, prévots e similares) continuaram a julgar pequenos delitos. No entanto, os sobera- nos comegaram gradualmente a perceber que a justica ndo era s6 uma fonte de rendimentos, era também uma forma de afir- mar a autoridade e de aumentar o poder do rei e dos grandes senhores. Por conseguinte, os soberanos mais capazes trataram de alargar a competéncia dos seus tribunais. | Varios recursos podiam ser utilizados para ampliar a juris- digdo de um tribunal. O julgamento de crimes graves, como o assassinato, podia ser reservado para o tribunal do rei ( ou de um duque, ou de um conde). A reserva do julgamento desses casos — chamados casos da coroa (pleas of the crown) ou casos da espada (pleas of the sword) — permitia ao soberano intervir em territérios nos quais nao possuia terras, nem direitos locais de justica!®, Em casos de direito civil era possfvel instituir processos especiais que permitissem as partes em litigio ultra- passar o tribunal do senhor local e apresentar-se directamente perante um tribunal real (ou ducal, ou condal). Tais processos baseavam-se, em geral, em duas ideias que andavam ligadas: manter a paz e proteger a propriedade. Uma vez que as altera- gdes da propriedade, sem o devido processo legal, provocavam geralmente desordem, a insténcia superior podia intervir, 17 W. Stubbs, Select Charters, Oxford, 1921, pp. 251-257. Os juizes itinerantes ingleses tinham por fungdo ouvir todas as causas e também inquirir acerca de herangas que devessem reverter para o tesouro, tutelas e demais direi- tos reais, e cobrar impostos nas cidades do rei. 18 Glanvill, De Legibus, p. 42, caps. 1 e 2; Le trés ancien coutumier de Normandie, texte Latin, ed. por E. J. Tardif, Rudo, 1881, p. 43, cap. 53: «{...] de placitis ensis ad Ducem pertinentibus»; E. Perrot, Les cas royaux, Paris, 1910. 34 emitindo uma ordem judicial, para manter ou restabelecer 0 statu quo '*. Teoricamente, os tribunais inferiores (dos bardes) conservavam a sua jurisdi¢do; na prdtica, era uma decisdo do tribunal superior que geralmente resolvia o caso. Assim, os vassalos de nivel mais baixo podiam ser protegidos do seu suse- rano imediato pelo rei, pelo duque ou pelo conde e a sua leal- dade acabava por ir para o homem que os protegia. Finalmente, era dever de um rei velar por que se fizesse justiga em todo o seu reino. Se um tribunal inferior tomava uma decisao injusta, a Gnica forma de remediar a injustiga era a possibilidade de interpor recurso para o tribunal do suserano. Um senhor cujas decisdes podiam ser revogadas era um senhor que tinha perdido uma boa parte da sua autoridade 7°. Todos estes processos foram utilizados, em maior ou menor gr3u, pelos homens que edificaram estados nos séculos XII e XII. A intervengdo directa do rei foi mais frequente em Inglaterra do que em Franga; os recursos das decisdes dos tri- bunais menores para o tribunal do rei foram porém muito mais comuns em Franca do que na Inglaterra. Mas, em maior ou menor grau, a supremacia tedrica do rei foi-se impondo, em todos os pafses, década apés década e a distingao entre jurisdigdo directa de soberano e a dos bar6es foi-se atenuando. Quando este processo atingiu a sua conclusao natural, a geo- 19 Trata-se da protecgdo da posse, conceito fundamental do direito consue- tudindrio inglés; ver F. Pollock e F. W. Maitland, History of English Law, Cam- bridge, Inglaterra, 1923, 1, pp. 145-149. Esse conceito era também importante em Franga; ver L. Buisson, Kénig Ludwig IX, der Heilige, und das Recht, Fri- burgo, 1954, pp. 10-19 e 99-118. 20 0 direito de apelar para uma instancia superior foi especialmente impor- tante no processo de desenvolvimento do estado francés; ver F. Lot ¢ R. Fawtier, Histoire des institutions francaises au Moyen Age, vol. Ui, Institutions Royales, Paris, 1958, pp. 296-323. Um jurista do século Xu, Philippe de Beaumanoir, estabeleceu claramente esse principio na obra Coutumes de Beauvaisis, ed. por A. Salmon, Paris, 1899, pardgrafo n? 1043: «Et si n’i a nul si grant dessous li [o rei] qui ne puist estre tres en sa court pour defaute de droit ou pour faus jugement et pour tous les cas qui touchent le roi.» 35 grafia politica de um reino(ou de um principado) tinha sofrido drdsticas alteragdes As ilhas dispersas de poder politico, cada uma delas praticamente isolada das outras, tinham sido suplan- tadas pelo aparecimento de um sélido bloco territorial em que um soberano tnico detinha a autoridade suprema. Chegar a esse resultado levou séculos, mas os primeiros passos para a edificagdo de um sistema judicial contribuiram imenso para melhorar a posic¢ao daqueles que estavam 4 frente dos estados em formagao. Os senhores que pretendiam conquistar a inde- pendéncia s6 podiam alcangé-la através do aumento dos seus recursos militares e econdmicos, e esse aumento s6 podia, em geral, ser conseguido gragas 4 utilizacao da violéncia contra os seus vizinhos e a exigéncias sem precedentes feitas aos seus subordinados. Existindo um tribunal superior com condigdes para evitar as guerras locais, impondo solugGes pacificas aos conflitos, e para impedir que um senhor explorasse indevida- mente os seus stibditos, entio o estabelecimento de um novo principado aut6nomo tornar-se-ia mais dificil Em geral, a opinido piblica era favordvel ao estabeleci- mento de tribunais com uma efectiva autoridade. Como j4 vimos, a Igreja insistia em que a justica era o atributo essencial dos soberanos seculares. No acto da sua coroac4o, os reis jura- vam fazer justiga e os tedricos politicos sustentavam que um rei injusto no era um rei, mas um tirano?!. Os reis estavam perfeitamente dispostos a aceitar a ideia de que a justiga era importantissima, j4 que esta representava um sinal da sua autoridade e uma arma gragas 4 qual podiam alcangar a supre- macia nos seus reinos. Para 0 povo, e mesmo para muitos mem- 1 Carlyle, History of Politica aerate ae pee ae reunidos, com 0 titulo Kaiser, Kénige und Ppste. oO vol. teste garda (988) pp. 99-257, contém os seus estudos sobre as ceriménias oe . aos principios do século X; 0 volume Il (Estugarda, 1969), 1, 181-189 e 390-394, inclui alguns outros. i ie 36 ee bros da baixa nobreza, a justiga significava uma proteccao contra a violéncia e a possibilidade de perderem as suas terras. Por isso, os soberanos que se esforgavam por criar tribunais que funcionassem com regularidade tinham a certeza de receber uma aprovagdo quase universal. Os mais belicosos bardes ndo podiam opor-se 4 existéncia dos tribunais, ainda que s6 acatas- sem as suas decisdes com uma certa lentidao, Por todas essas razdes, as instituigdes judiciais permanentes desenvolveram-se quase tio cedo como as instituigdes financei- ras permanentes. As instituigdes eram um pouco mais especia- lizadas do que o seu pessoal. O mesmo homem podia ser simultaneamente juiz e cobrador de rendas; porém, quando actuava como juiz, utilizava determinados procedimentos ¢ formalidades que ndo era obrigado a respeitar quando recebia as rendas. [E, 3 medida que o tempo foi passando, as leis aplica- das nos tribunais foram-se tornando mais precisas, mais com- plexas e mais diffceis de interpretar sem uma preparagdo especifica. Por volta de 1200 foram escritos os primeiros tra- tados sobre o direito consuetudindrio da Inglaterra e da Nor- mandia??; a partir de 1250, os juizes comegaram a basear-se na jurisprudéncia para tomar as suas decisdes 7°. A competén- cia e a tramitagdo dos processos nos tribunais foram-se defi- nindo com maior precisdo, gragas a sucessivas geragdes de especialistas em leis. Por volta de 1300 jd havja homens que dedicavam quase todo o seu tempo a0 dieito os juizes dos tribunais centrais ingleses, no tempo de Eduardo I, conheciam to bem o Direito Consuetudindrio inglés ore um professor de Bolonha conhecia o Direito Romano. Os dois pilares em 22 Glanvill em Inglaterra; ver nota 14, O autor andnimo de Trés ancien coutumier, na Normandia; ver nota 18. 23 Bracton’s Note Book, ed. por F. W. Maitland, 3 vols., Londres, 1887. ‘Trata-se de uma colecgdo de notas sobre 0s primeiros casos apreciados por um famoso juiz inglés do século XIN, que escreveu um importante tratado de direito inglés. 37 que assentava o estado medieval eram o Tesouro e 0 Supremo Tribunal; nos finais do século XII, ambas as instituigdes esta- vam j4 nas maos de funciondrios experientes e com espirito profissional. s governos dos séculos XI ou XIN nfo utilizavam todos os seus funciondrios exclusivamente na administragao de terras, na administragao local e na administragao da justica. Tinha de existir também um organismo central que coordenasse o traba- Iho dos funciondrios encarregados de fungGes especiais, que distribufsse ordens aos cobradores de rendimentos e juizes e que pudesse tratar directamente com os prelados e os bardes, os quais mantinham considerdveis responsabilidades no que tespeita quer 4 manutencao da ordem interna quer a defesa contra as ameagas externas. Esse organismo, a Chancelaria, encarregava-se também de executar todas as tarefas que ainda nfo tinham sido confiadas a departamentos organizados, como a correspondéncia com o papae com os soberanos estrangeiros, O homem que dirigia esse organismo, o chanceler, era, no dizer de Stubbs, ministro de todas as pastas*. Era sempre um clérigo de elevada hierarquia — geralmente um bispo, no século XII, muitas vezes com experiéncia anterior de governo, em cargos menos importantes,)Mesmo nos casos em que o chanceler no dispunha dessa experiéncia, os homens que trabalhavam sob as suas ordens eram amanuenses competentes que souberam criar e manter processos burocraticos e administrativos regu- lares e formulas epistolares precisas e adequadas. Esses funcio- ndrios das chancelarias desempenharam um papel essencial no desenvolvimento dos estados medievais. A administragao central dependia da diligéncia com que realizavam o seu tra- balho ¢ da preciséo com que formulavam as suas ordens e instrugdes. O século XII assistiu a um notdvel Progresso do nfvel de qualificagéo profissional do pessoal da maioria das 24 W. Stubbs, Constitutional History of England, Oxford, 1891, 1, p. 381. 38 chancelarias, As frases vagas e genéricas foram substituidas por férmulas especificas que néo pudessem ser mal os tadas. A Chancelaria do papa estava muito mais eaten > que as outras e, em certa medida, serviu-lhes de mo - 0; porém, na época de Henrique TI (1154-89) a ee ria inglesa nao lhe ficava muito atrés. A Franga, que manifes' = um certo atraso, neste aspecto, em telagdo a Inglaterra, come: cava a evidenciar inconfundiveis sinais de melhoria da sua situagHo 75. Pelo século XII, nae os governos europeus i ‘a chancelaria eficiente. Am non solos que decorreram entre 1000 e a comegaram a surgir alguns dos elementos essenciais do estado moderno. As entidades politicas, cada uma das quais ae seu nucleo basico de gentes e de terras, adquiriram legitimi le pelo facto de se manterem ao longo de muitas oe la belecerant-se instituigdes permanentes para os assuntos sie ceiros e juridicos. Surgiram grupos de Se pro! Pd sionais. Tinha nascido um organismo central de coordenagio, a chancelaria, com uma equipa de funcionarios extremamente qualificados. Esses administradores profissionais ndo eram ainda muito numerosos e, por isso, ndo podiam ser altamente especializados. Tinham de ser auxiliados por aoe eventuais ou em tempo parcial homens que seguiam fun - mentalmente uma carreira eclesidstica, bardes de menor cate- goria, cavaleiros e burgueses ticos. Muitos deles estavam dispostos a trabalhar alguns anos, ou uma parte do ano, ae administradores de terras, agentes financeiros, administra lores locais ou juizes. Dessa forma podiam ganhar os favores reais e ique, Pati ; 1-764, 25 A. Gity, Manuel de diplomatique, Paris, 1925 pp 661 “704 4273 164, ra © que diz respeito as chancelarias do papa e los Capetos. - hie Bt glaterra ver 4 alntrodugao» de L. Delisle 4 sua obra Recueil des act : eae II, Paris, 1916, especialmente pp. 1 e 151, Embora essa aa one apenas actas relacionadas com 2s possessGes francesas de Henrique Il, as Gael referentes a chancelaria aplicam-se igualmente a Inglaterra. 39 aumentar os seus rendimentos, ainda que no estivesse nos seus planos ficarem ao servigo do governo toda a vida. Porém, em todo o lado havia homens que consagravam a maior parte da sua existéncia 4 profissio de administrador e o seu ndmero aumentou consideravelmente no século XI} Os elementos bdsicos do estado apareceram, em quase toda a Europa ocidental, durante os séculos XII e XIII, mas 0 seu nivel de desenvolvimento nao foi o mesmo em todas as tegides. Esse desenvolvimento foi mais répido em Inglaterra, na Franga e nos reinos hispanicos, muito mais lento na Alema- nha e répido, mas com distorgées, na Itélia. Os reinos hispani- Cos, ocupados com o seu problema muito especifico da con- quista e assimilagdo dos territ6rios mouros, tiveram pouca influéncia sobre as instituigdes do resto da Europa até finais do século xv. Os Alemaes nao cConseguiram constituir estados vastos e duradouros; a sua unidade politica tipica foi o princi- pado, em cujas instituigdes imitaram mais do que inovaram. Na Itdlia, a brilhante promessa que, no século XII, constituia © reino da Sicilia nado conseguiu sobreviver as catastrofes e erros politicos do século xt. As organizagSes politicas que em Itélia tiveram mais éxito, a partir de 1300, foram as cidades- -estado; porém, estas ndo tiveram de enfrentar os mesmos pro- blemas que os grandes reinos e muita da sua experiéncia ndo encontrava possibilidade de aplicacio a norte dos Alpes. Assim, a Inglaterra e a Franca desenvolveram, sem duvida, os modelos de estado europeu mais influentes; as suas ideias e instituigdes politicas foram mais largamente imitadas do que as de qualquer outro pais europeu. O seu exemplo foi particularmente impor- tante no periodo crucial de finais do século Xi e Principios do século XIV, época em que surgiu o conceito de soberania (se no mesmo a propria Palavra), época em que o sentimento de lealdade em relagdo a Igreja, 4 comunidade e a famflia foi definitivamente ultrapassado pelo \sentimento de lealdade a um estado que comegava a surgir.) Por conseguinte, temos todo o interesse em analisar com algum pormenor o processo. 40 de constituigfo do estado em Inglaterra e em Franga, entre —_ a ingleses tiveram menos dificuldades do que os seus primos franceses para alcancar a soberania interna. A Inglaterra era um reino pequeno, pouco maior do que alguns dos grandes ducados da Franga ou da Alemanha. Um rei activo podia visitar a maior parte do seu reino com alguma regulari- dade. Para além disso, uma vasta série de conquistas tinha impedido o aparecimento de senhores fortes ao nivel das pro- vincias, ou o desenvolvimento de instituigdes Provinciais profundamente enraizadas. As invasdes dinamarquesas tinham acabado com todas as antigas dinastias anglo-saxénicas, com excepgdo da Casa de Wessex. A lenta reconquista da Inglaterra central e do Norte, levada a cabo pelos reis da Casa de Wessex, eliminou, por seu turno, as familias reinantes dinamarquesas. Cada regiao continuava a manter os seus costumes proprios, mas tinha deixado de haver um rei de Kent, de Mercia ou de Danelaw*, que, com base nesses diferentes costumes, pudesse construir instituigdes duradouras. As instituigdes existentes eram idénticas em todo o pais —o tribunal do condado (shire- court), o tribunal de cantéo (hundred-court), 0 tribunal do municipio (borough-court). Os funciondrios locais —nobres (condes) e magistrados (reeves) — fepresentavam mais os inte- tresses do rei do que o das comunidades locais. E, quando, como resultado da segunda conquista dinamarquesa, no século XI, algumas grandes familias comegaram a ganhar taizes em certos condados, tais familias acabaram por ser tapidamente desalojadas por Guilherme-o-Conquistador. Embora Guilherme concedesse extensos poderes aos condes de certos condados fronteirigos, esses homens nao foram capazes de criar dinastias provinciais poderosas; de resto, a maioria deles nado receberam * Parte da Inglaterra submetida 4 jurisdigdo dinamarquesa a partir do Tra- tado de Wedmore (878). (N. do T:) 41 unidades territoriais compactas, mas apenas feudos e direitos de governo muito dispersos. A partir de 1100 tornou-se claro que nenhum conde nem nenhum bardo dispunham da con- centracdo de terras ou do poder necessdrios para criar uma administragdo provincial auténoma. Se a Inglaterra devia ter instituigdes permanentes, essas instituiges seriam insti- tuigdes reais. Também nisso a Inglaterra teve sorte. Devido ao facto de nenhuma zona ter sido monopolizada por nenhuma dinastia Provincial, o rei conservava ainda terras e direitos de justica em todas as partes do reino. Uma vez que as suas terras direi- tos se encontravam tao dispersos, o rei tinha de ter tepresen- tantes em toda a parte —xerifes ¢ bailios, alcaides ¢ adminis- tradores florestais. A necessidade de um departamento finan- ceiro central, que permitisse seguir a pista de rendimentos Provenientes de centenas de fontes diferentes, tornava-se evidente. Verificar a existéncia de uma caréncia e empreender qualquer acgo para a resolver sf evidentemente duas coisas muito diferentes, mas os tltimos reis anglo-saxénicos tinham Jé implementado importantes elementos de um sistema de contabilidade central. Guilherme e os seus sucessores desen- volveram muito esse sistema e no principio do século xu surgiu em Inglaterra a Tesouraria do Reino (Exchequer), instituicao que desempenhava fungdes varias, mas que tinha como atri- buigéo fundamental e mais organizada a responsabilidade de verificar as contas apresentadas pelos funcionérios teais de todas as partes do reino. O Exchequer mantinha registos meticulosamente pormenorizados e os seus funciondrios pos- suiam um elevado nivel profissional. Tornou-se uma institui- ¢40 to sdlida que conseguia funcionar mesmo em perfodos de guerra civil. Essa solidez tera sido, provavelmente, um pouco prematura. O Exchequer estava demasiado Ppreso pelas suas Proprias regras, que o podiam levar a gastar 10 libras para cobrar uma divida de 10 pence, mas foi, sem divida alguma, uma instituigfo unificadora e duradoura, cuja ac¢do veio 42 As mesmas circunstancias histéricas contribuem para expli- car o aparecimento de um sistema de tribunais reais que cobria todo o* pais. Guilherme nfo sé herdou extensos direitos de justiga dos seus antecessores anglo-saxdnicos, como aumentou imenso quer os seus problemas, quer os seus poderes, ao con- fiscar e redistribuir grande parte das terras do reino. Uma vez que todos os titulos eram outorgados ou confirmados pelo rei, era natural que este e a sua corte fossem chamados a resolver os conflitos que se levantavam a propésito da posse da terrae dos direitos que lhe estavam ligados. «Corte» é evidentemente um termo ambiguo. Originalmente designava apenas 0 con- junto dos homens de elevada posigao — bispos, bardes e fun- ciondrioy da casa real— que faziam parte do séquito do rei. Mas, j4 no século XI, alguns desses homens, pela sua competén- cia, eram chamados, com maior frequéncia do que outros, a resolver questées legais e, no século XI, um grupo de juizes reais fez a sua aparic¢do. O tribunal do soberano inglés era um tribunal muito ocupado —muito mais do que a maioria dos tribunais idénticos seus contemporaneos— e, por isso, come- cou a fixar regras e normas processuais para tratar dos casos mais frequentes. Essas normas tornaram o tribunal bastante mais eficiente e popular. Por volta de 1215, a opinigo dos bardes ingleses era favordvel 4 existéncia de um tribunal cen- tral e permanente, o qual consideravam necessétio ao bom governo da Inglaterra?”. i a O tribunal central, porém, destinava-se, de inicio, a jul- gar apenas os grandes senhores e os casos mais importantes. 26 Acerca do Exchequer ver R. L. Poole, The Exchequer in the Twelfth Century, Oxford, 1912; C. Johnson, Dialogus de Seaccario: The Course of the Exchequer, Londres, 1950; Lyon e Verhulst, Medieval Finance, pp. 57-71. 27 Magna Carta, artigo 17: «[...] communia placita non sequantur curiam nostram sed teneantur in aliquo loco certo.» 43 Nao podia resolver todas as questdes relacionadas com a posse de terras e ainda menos encarregar-se dos casos de crime —as- sassinato, fogo posto, violagdo, roubo —, que, em quase todo o pais, eram da exclusiva competéncia do tribunal do rei. No entanto, a justiga era uma fonte de rendimentos e constituia um sinal de poder; por isso, convinha ao rei que o seu tribunal ouvisse 0 maior numero de casos possivel. A solug&o desse problema consistia em enviar juizes —delegados do tribunal central — munidos de processos de actuacdo novos e eficazes. Esses juizes podiam aliviar os xerifes que estivessem sobre- carregados de trabalho de grande parte das suas obrigagdes judiciais, podendo encarregar-se também das causas que nao fossem da competéncia dos tribunais dos bardes feudais. Estes tribunais eram débeis e ineficazes; em geral, procuravam chegar a uma solugdo de compromisso e raramente conseguiam reme- diar com rapidez os casos de espoliagdo. Os juizes do rei nao competiam exactamente com os tribunais dos bardes; em geral. tomavam a seu cargo dreas em que estes ndo actuavam. As novas normas processuais dos tribunais do rei visavam encurtar Os Prazos e tomar decisdes, rapidas e facilmente aplicdveis, em casos dificeis. Tratava-se de uma tentativa deliberada de reduzir problemas complexos a perguntas simples, que pudessem ser respondidas por homens que tinham um escasso conhecimento da lei ou de acontecimentos remotos. Assim, em casos que envolviam a posse de terras, a pergunta mais frequente era: «Quem foi o seu ultimo ocupante pacifico?», e nao: «Quem possui o melhor titulo de propriedade?» Essa pergunta era res- pondida por um grupo de vizinhos escolhidos entre as pessoas respeitadoras da lei do distrito em que estivesse situada a pro- priedade. Davam uma resposta colectiva com base nos seus pr6prios conhecimentos e observagdes; nfo havia necessidade de testemunhas e as oportunidades para polémicas legais eram escassas. Este sistema rapidamente conduziu aos julgamentos feitos por um juri; as questdes postas ao juri tornaram-se mais variadas e complexas, até que, por fim, quase todos os litigios 44 relacionados com a terra ou com os direitos a ela ligados passaram a ser resolvidos pelo veredicto de um jari. Os juris eram também utilizados para reunir as acusagOes de crime, As gentes da vizinhanga davam conhecimento dos crimes as autoridades, através do seu jari de acusagdo (grand jury); os implicados eram presos ¢ julgados pelos juizes da cir- cunscricfo. Os funciondrios reais manifestavam maiores reti- céncias em aceitar o veredicto de um juri em casos de crime do que em questdes de direito civil, o que era perfeitamente natural, j4 que um erro acerca da propriedade de uma terra podia sempre ser remediado, 0 que ndo acontecia com uma condenagdo a morte. No entanto, a partir de meados do século XII, a maior parte dos casos de crime eram abertos com uma acusagdo formulada por um grand jury e concluidos com um julgamento levado a cabo por um jari. A existéncia de jaris compostos por jurados tornou possi- vel que os juizes ouvissem varios casos no mesmo dia. Como raramente havia mais de vinte juizes, essa era a nica forma de enfrentar o aumento continuo do trabalho dos tribunais. Além disso, os jurados contribufam para tornar popular a justiga do rei. Dadas as caracterfsticas das comunidades rurais, em geral muito unidas, um juri constituido por vizinhos conhecia normalmente os factos; isso representava um progresso em relagdo a processos irracionais anteriormente utilizados, como os juizos de Deus, ou ordélias. Uma vez que o juri falava em nome de toda a comunidade e proferia colectivamente 0 seu veredicto, estava menos sujeito a pressdes do que as testemu- nhas. Teoricamente, o sistema utilizado pela Igreja (posterior- mente adoptado pelos juizes franceses), € que consistia em interrogar as testemunhas uma a uma, era mais imparcial. Na realidade, porém, 0 homem medieval encarava os processos judiciais como uma mera continuagao do combate por outros meios e as testemunhas eram geralmente téo parciais que se tornava duvidoso que o seu testemunho se aproximasse mais da verdade do que um julgamento colectivo efectuado por um 45 Juri constitufdo por elementos da vizinhanga. Em qual caso, os cavaleiros, os pequenos terratenentes e ae a livres da Inglaterra consideravam que o juri lhes Sa alguma Protec¢do contra os ricos e os poderosos. Todos oe acorriam em massa aos tribunais do rei; no século XI, todos os casos com alguma importancia e muitos outros sem img ortan. cia nenhuma eram levados aos tribunais reais. O governo. do rei tinha conseguido envolver quase todos os homens livres di pais na actividade dos tribunais, quer na qualidade de liti . tes, quer na qualidade de jurados 7° 4 O desenvolvimento do Exchequer e dos tribunais reais teve como consequéncia secunddria o desenvolvimento da Chancelaria. Uma contabilidade precisa exigia nao s6 relaté- tios correctos dos xerifes, mas também um registo meticuloso e uma formulagdo precisa das ordens que os autorizavam a Pagar certas somas, ou a receber outras, em troca de terras ou de direitos alienados pelo rei. O sistema inglés de ‘justi também dependia bastante do trabalho dos funcionstios ta Chancelaria. Todas as acgSes se iniciavam com um mandat: emanado da Chancelaria, no qual se definiam as questées i litigio € © procedimento a seguir. Os mandatos ingleses de finais do século XI sd documentos admirdveis, concisos claros e enérgicos. Nao podiam ser mal interpretados e. ' isso, as hipdteses de nao serem cumpridos tornavam-se al De uma forma mais geral, nos finais do século XIU, todos Os ramos do governo inglés mantinham cuidadosos arg juivos. Oo Exchequer Conservava os relatérios dos xerifes; os jufaes possuiam arquivos das suas decisdes; a chancelaria mantinha Tegistos de todas as cartas que enviava. A abundancia de ar- 28 No que respei i peita ao desenvolvimento dos tribunais inj le leses é x ie Pollok e Maitland, History of English Law, 1, pp. ri10 : 36193, - S. Holdsworth, History of English Law, Boston, 1922, 1, pp. 32-54; T. F Plucknett, A Concise Histor 6 Phicknett, 4c ry of the Common Law, Boston, 1956, pp. 101- 46 quivos velo contribuir para uma répida consolidagao das ins- tituigdes nascentes. Havia formulas estereotipadas para quase todas as ocasides, 0 que poupava uma grande quantidade de tempo e deixava os administradores livres para tratarem das questdes no rotineiras. Tornava-se facil consultar os antecedentes de qualquer assunto, de forma que a ac¢do do governo se revelava coerente e previsivel. De facto, as instituigdes inglesas estavam tao bem implantadas que 0 governo podia funcionar por si s6, sem necessidade de grandes intervengdes do trono, como se tornou evidente, durante os dez anos do reinado de Eduardo I (1189- 99), dos quais 0 soberano apenas passou no pais alguns meses. A Inglaterra, por volta de 1200, contava, pois, com insti- tuigdes permanentes, dirigidas por funciondrios profissionais ou semipyofissionais, ¢ assistiu também ao estabelecimento de duas medidas que mais tarde seriam naturalmente entendidas como afirmag6es de soberania. Uma dessas medidas foi a for- mulagdo de uma norma segundo a qual nenhum processo referente 4 posse de terras podia ser aberto sem um mandato do tribunal do rei2%, A outra foi a introdugao dos impostos directos em todo o reino®®. A norma que impunha a existén- cia de um mandato real para a abertura dos processos inspira- va-se, naturalmente, na doutrina segundo a qual todas as terras e direitos que estavam nas mos de homens livres dependiam, directa ou indirectamente, do rei e, portanto, este constitufa © garante de toda a propriedade legitima. O direito de langar impostos encontrava a sua origem no direito, que 0 suserano j4 anteriormente detinha, de pedir ajuda financeira aos seus vassalos em casos de emergéncia. Houve imensos casos desse 29 Glanvill, De Legibus, cap. 25: «{...] nemo tenetur respondere in curia domini suo sine praecepto domini regis vel eius capitales justitiae.» Ver comen- tério acerca desta norma na edigdo de Woodbine, p. 273 30S K, Mitchell, Taxation in Medieval England, New Haven, 1951, pp- 156-195. 47 Os. ee tipo nos finais do século XI —a Terceira Cruzada, o resgate do rei Ricardo do seu cativeiro na Alemanha, a longa guerra com Filipe Augusto de Franga— e € provavel que o auxilio pres. tado pelos vassalos nao fosse suficiente Para cobrir as neces- sidades do rei. O sistema tinha, pois, de ser ampliado e trans- formado num sistema de tributagao geral. Esses dois actos de afirmag4o da autoridade real encontravam-se, portanto, justi- ficados pelo facto de constituirem extensdes Toaicas de doutrinas que estavam implicitas nas relagdes feudais, ja que € pouco provavel que alguém pensasse, nessa época Le ea de soberania. Mas, uma vez que a teoria do feudalismo se desenvolveu até ao ponto de permitir ao rei controlar por completo a justic¢a e impor tributo a toda a populacdo, a suse ranla comegava a aproximar-se bastante da soberania O rei tinha, indiscutivelmente, a autoridade final em todas as lues- toes legais; como diz Glanvill, as decisdes tomadas pelo ai e pelo seu conselho eram tao vinculativas como as leges dos imperadores romanos**. Além disso, era também a supr autoridade em matéria financeira. Nao podia Pasa ein exigir tributos de uma forma discricionaria, embora fosse muito dificil opor-lhe uma recusa total quando pedia ajuda financeira. De qualquer maneira, uma vez que se teeta a concluso de que se tornava necessdrio determinado imposto era 0 rei que determinava a natureza do mesmo, o processo de cobranga e as isengdes permitidas 7. Talvez ainda mais impor- tante do que isso é 0 facto de ninguém mais, em todo o ‘tat poder impor nada parecido com um imposto sem uma auto- tizagao real. Um bardo que pretendesse teceber a escudagem 1 i a on De Legis, «Pr6logo», p. 24 da edigdo de Woodbine: «Leges Anglicanas licet non scriptas leges appellari non vid , [...] eas scilicet quas super dubiis in coneili iend, procerum aadn : eet q concilio definiendis, proc i Sonsilio et principis accedente auctoritate constat esse omuaes = Ver exemplos em Stubbs, Select Charters, pp. 277, 348, 351, 356 e 358 48 (scutage) dos seus homens, ou uma cidade que desejasse reparar as suas muralhas, necessitavam, para isso, de um mandato real prévio °°. O século xml fez um excelente uso destes precedentes. Os tribunais reais ampliaram a-sua jurisdi¢ao e os impostos passaram a recair sobre os bens de todos os habitantes do reino. A partir de 1300, o rei de Inglaterra no s6 possuia muitos dos atributos da soberania, como tinha, e sabia que tinha, o poder ‘soberano. Promulgava leis de um modo formal e delibe- rado —leis que afectavam nao s6 o processo judicial, mas também a propria esséncia das normas que regulavam a pro- priedade das terras— e essas leis eram vinculativas para todos os habitantes do reino**. Impunha tributos aos seus sibditos laicos, directa e repetidamente, e afirmava também o seu direito dg tributar o clero sem consentimento do papa>s. Preferia, sem divida alguma, obter a concordancia do seu povo perante tais medidas, quando mais nao fosse, para facilitar a aplicagdo das leis e a cobranga dos impostos; mas os meios utilizados para obter essa concordancia demonstram que a Inglaterra era um estado unificado, com um soberano reconhe- cido e detentor da suprema autoridade. O rei podia pedir a opinido ou o acordo da corte, do seu conselho ou dos seus bardes. A partir de 1260 passou a consultar, com uma frequén- cia cada vez maior, o Parlamento, assembleia constituida pelos grandes senhores, pelos cavaleiros eleitos pelos condados e pelos representantes dos municipios. Mas era a vontade do rei que conferia autoridade as decisGes tomadas na corte, no Con- 33 No que respeita 4 scutage ver Poolock e Maitland, History of English Law, 1, p. 274, e T. Madox, History of the Exchequer, Londres, 1711, pp. 469-474. No que diz respeito A capacidade das cidades para langarem impostos, Pollock ¢ Maitland, 1, pp. 662-663. 34 Statutes of the Realm, 1, pp. 71 ¢ 106. No que respeita a legislacao de Eduardo ver T. F.T. Plucknett, Legislation of Edward I, Oxford, 1949, pp. 2-10. 35 W. Stubbs, Constitutional History of England, Oxford, 1906, Il, pp. 135-136, 140, 144-145 e 147. 49 selho e no Parlamento, que era, no fundo e simultaneamente, um Conselho alargado e 0 Supremo Tribunal. S6 devido ao facto de a Inglaterra ser um estado com um forte sentido de identidade propria é que algumas centenas de homens reunidos no Parlamento podiam permitir-se sancionar qualquer decisdo em nome de toda a comunidade. E s6 devido ao poder sobe- rano do rei a posi¢ao assumida pelo Parlamento adquiria algum significado. Tal como Bracton dissera, duas geragdes antes, 0 tei detinha todos os direitos correspondentes ao poder secular € a0 governo do reino*®. Por ultimo, e este aspecto é particularmente significativo, tornou-se claro, durante o século XIII, que a lealdade funda- mental do povo inglés (ou, pelo menos, daqueles que eram politicamente activos) tinha passado da familia, da comunidade e da Igreja para o estado®’. As antigas fidelidades nao tinham desaparecido: os homens continuavam a trabalhar em prol da tiqueza e do poder da sua familia; procuravam obter ou con- servar privilégios pessoais ou comunitarios; e obedeciam, em muitos aspectos, aos preceitos do clero e as decisdes dos tribu- nais eclesidsticos. Porém, todas essas lealdades menores coexis- tiam dentro do quadro geral do estado inglés e estavam subor- dinadas sua continuidade e prosperidade. Assim, quando os barGes se revoltavam, como fizeram em 1215 ou em 1258, ou conspiravam nesse sentido, como em 1297, néo era com a intengado de destruir a unidade da Inglaterra, nem a continui- dade das instituigdes inglesas. Quando consideravam que a politica do governo central era errada ou injusta, procuravam remedia-la, apoderando-se do poder necessdrio, para utilizar °© Post, Studies, p. 342: 0 rei tem «omnia iura [...] quae ad coronam et laicalem pertinent potestatem et materialem gladium qui pertinet ad regni gubernaculum». Ver Helen Cam, «The Mediaeval English Franchise», in Spe- culum, XXXII, 1957, p, 440. °” J. R, Strayer, «Laicization of French and English Society in the Thir- teenth Century», in Speculum, XV, 1940, pp. 76-86. 50 esse mesmo governo central no sentido de reparar os erros cometidos*®. Esperavam que os tribunais reais, devidamente instrufdos, protegessem os seus direitos e que 0 conselho real, convenientemente apoiado pelos bardes, anulasse as decisdes erradas. As suas esperancas nao se viram frustradas: obtiveram uma grande parte do que pretendiam recorrendo 4s instituig6es existentes, e estas funcionavam tao bem sob 0 controlo dos bardes como sob o controlo do rei. Para sublinhar este ponto basta dizermos que os protestos do unico grupo privilegiado que nado se manteve integrado no quadro do estado inglés — 0 clero — encontraram muito menos eco. Com efeito, 0 clero tinha de reconhecer duas soberanias: a eclesidstica, encarnada pelo papa, ¢ a temporal, representada pelo rei. Quando ambas estavam de acordo, o clero encontra- va-se indefeso. O clero nao estava totalmente integrado na estrutura do governo inglés e nao podia recorrer a instituigdes puramente nacionais para se defender das instituigdes da igreja universal. O reie o papa podiam estabelecer acordos para repar- tir os tributos impostos ao clero, acordos aos quais este nao se podia opor. Quando os dois soberanos se encontravam em desacordo, como aconteceu em 1297, quando Eduardo I pre- tendeu cobrar tributos aos clérigos sem o consentimento do papa, o clero via-se igualmente indefeso. A Igreja nao tinha condigdes para proteger os seus clérigos do poder temporal do ‘rei. As suas propriedades foram confiscadas; a proteccao dos tribunais reais estava-lhes explicitamente negada e o rei conse- guiu receber quase tudo o que pretendia. O clero nao recolheu praticamente qualquer apoio das outras classes e muitos dos proprios clérigos pareciam nao estar Esai convictos do seu direito de recusar pagar tributo ao rei °°. O principio segundo 38 melhor exposigdo acerca desta situagdo encontra-se em R. F. Tre- harne, The Baronial Plan of Reform, Manchester, 1932. 3° Ver nota 35 e F. M. Powicke, The Tirteenth Century, Oxford, 1953, pp. 674-678 jl 0 qual o rej tinha direito a cobrar os fundos necessérios paraa defesa do reino e esse direito se sobrepunha a todas as outras obrigagées ficou plenamente estabelecido e acabou por ser aceite pelo papa*®. Convém notar que a precedéncia desse direito ndo poderia ter sido reconhecida se no tivesse ocor- rido primeiro uma alteragéo na escala das varias lealdades, O primeiro dever de todo o subdito era agora o de concorrer para a preservacdo e a prosperidade do estado. A Inglaterra atravessou os primeiros est4dios da consti- tuig¢do do estado com uma rapidez consideravel. Essa veloci- dade, por seu turno, tornou possivel a existéncia de um grau pouco corrente de uniformidade na estrutura institucional inglesa. Os privilégios e costumes locais ndo tiveram tempo para se consolidar em instituigdes que viessem a gerar divi- sionismos. Os sistemas judicial e financeiro criados nos sé- culos XI e XII puderam funcionar uniformemente em todo o pais. A auséncia de instituigdes provinciais profundamente enraizadas contribuiu para aumentar a eficiéncia do governo inglés e para reduzir o niimero de administradores profissionais necessdrios. Tornou-se desnecessdria a existéncia de uma hie- rarquia de tribunais, com um sistema elaborado de recursos que remetesse das autoridades distritais para as autoridades provinciais e destas para as autoridades centrais. Os juizes do rei, sedentérios ou itinerantes, podiam proferir uma sentenga definitiva de imediato e em qualquer lugar. Nao se tornavam necessdrias complicadas negocia¢Ges individuais com cente- nas de senhores e de comunidades locais quando se pretendia aumentar um imposto, j4 que o Conselho e, mais tarde, o Parlamento podiam falar em nome de todo o reino Assim, a Inglaterra pode dispensar um vasto aparelho burocrdtico que controlasse provincias semiauténomas e funcionasse como um “° Registres de Boniface Vill, n? 2354; a bula Etsi de statu permitia que 0 clero fosse tributado quando tal se tornasse necessério para a defesa, 52 elo de ligagfo entre as autoridades provinciais e centrais. Por exemplo, raros foram os momentos em que, durante 0 século XI, houve mais de vinte ou vinte e cinco juizes reais em toda a Inglaterra*!. Uma simples provincia francesa necessitava de muito thais homens*?. O govern inglés, pelo contririo, podia recorrer gratuitamente aos servigos dos notaveis locais (cava- leiros, proprietdrios, magistrados municipais) para a realizagdo .de uma grande parte do trabalho de administragio local. As energias que noutros paises eram desperdicadas na defesa de privilégios locais podiam, em Inglaterra, ser empregadas para auxiliar o governo central a levar a cabo a sua politica. A confianga depositada pelo governo nas personalidades locais foi evidente desde os primeiros passos da edificagdo do estado inglés e constituiu até ao século XIX uma caracteristica tipica da Inglaterra. A absoluta singularidade da experiéncia inglesa converteu-a, contudo, num mau modelo. Poucos paises puderam evoluir tao rapidamente ou estavam tao pouco divididos como a Inglaterra. Como ja dissemos, a Inglaterra assemelhava-se mais auma vasta provincia francesa do que a um reino do continente. A Franga, dividida em provincias com instituigdes extremamente diferen- ciadas, era muito mais representativa da realidade politica euro- peia. E, como a Franga foi o primeiro pafs a resolver 0 pro- blema, quase universal, da criagdo de um estado a partir de provincias virtualmente independentes, o modelo francés aca- bou por se impor na Europa. A maior parte dos estados euro- peus dos fins da Idade Média e do principio da época moderna seguiu, pois, com maior ou menor rigor, 0 modelo francés. Em Franga, como na Inglaterra, os dois dominios essen- ** P, Palgrave, Parliamentary Writs, Londres, 1827, 1, p. 382: em 1278 havia trés juizes no Tribunal do Rei (King’s Bench), cinco no Tribunal de Recursos Comuns (Court of Common Pleas) ¢ doze juizes itinerantes. #2 Ver o meu estudo Les gens de justice du Languedoc, Toulouse, 1970. Nos finais do século XII havia uns quarenta juizes reais s6 no Languedoc. 53 ciais de toda essa evolugdo foram a justica e as finangas. Os reis franceses, porém, viram-se obrigados a proceder com uma certa lentidao, e as suas primeiras instituigdes eram muito mais sim- ples e menos formalizadas do que as da Inglaterra. Por exemplo, embora existisse uma espécie de sistema de revisdo central de contas em fins do século XII, nada havia que se parecesse com os métodos especializados praticados pelo Exchequer. O tribu- nal real francés, em 1200, era muito mais activo e possuia um prestigio muito maior do que em 1100, mas nao dispunha nem da ampla jurisdi¢#o nem das formas legais estabelecidas com que funcionavam os tribunais da Inglaterra. A Chancelaria francesa nfo era to activa nas suas relagdes com as autoridades locais, nem tao precisa na sua linguagem e nos seus métodos, como a Chancelaria inglesa. Até ao ano de 1200, as instituigdes reais francesas s6 foram plenamente eficazes no interior do dominio real da Ie de France, zona em que o rei detinha o senhorio sobre a quase totalidade das terras. O rei nado recebia praticamente nenhum rendimento proveniente de fora do seu dominio e os litigantes que nao viviam na Ile de France sé Taras vezes recorriam ao seu tribunal. Em grande parte do pais, a autoridade suprema nfo era o rei, mas sim o duque, 0 conde ou o senhor que dominava um principado feudal. No entanto, o estabelecimento de instituigdes cujo funcio- namento efectivo se limitava essencialmente ao territério sob 0 seu dominio pessoal veio aumentar os rendimentos, o poder e€ o prestigio do rei. Por volta de 1200, o soberano era ja sufi- cientemente forte para atacar e vencer o mais poderoso dos chefes provinciais, o rei de Inglaterra, que ocupava a maior parte da Franga ocidental. As provincias da Normandia, do Anju e do Poitou foram tomadas pelo rei de Franca e, assim, ini- ciou-se um processo de anexacdo que se prolongou durante todo o século seguinte. Através de guerras, casamentos e herangas, quase todas as provincias mais importantes se foram juntando ao dominio real. S6 a Bretanha, a Guyenne, a Borgo- nha e a Flandres escaparam. 34 il a Esta série de anexacdes veio levantar grandes problemas ao governo francés. As instituigdes, relativamente simples, que se tinham revelado adequadas para reger um pequeno dominio real tinham evidentemente de ser ampliadas e aperfeicoadas para se encarregarem do governo de uma area e de uma popula- ¢%o muito maiores que passavam a estar sob o dominio do rei. ‘As novas provincias possuiam as suas instituigdes e 08 seus costumes proprios que, muitas vezes, eram mais sofisticados e especializados do que os do governo real. Era perigoso tentar alterar ou suprimir essas instituigdes. Porém, como poderia o governo central funcionar, quando cada administragao local se regia por normas diferentes? O direito consuetudindrio de Paris era muito distinto do da Normandia e as disparidades existentes entre as leis e os costumes do Norte e do Sul, o qual estava fortemente influenciado pelo direito romano, eram ainda maiores. ' A solugao basica para todos estes problemas foi descoberta por Filipe Augusto (1180-1223), rei que foi o verdadeiro fundador do estado francés. Filipe Augusto permitiu a cada provincia conservar os seus costumes € instituigdes, mas mandou de Paris homens para preencherem todos os cargos provinciais importantes. Assim, os tribunais normandos continuaram a aplicar a lei normanda, mas os funciondrios que os presidiam no eram normandos, mas sim agentes do rei vindos, na sua imaioria, do antigo dominio do monarca 43_ Aplacando assim © orgulho das varias provincias, 0 rei conseguia exercer, simul- taneamente, um efectivo controlo sobre as suas novas posses- sdes. ‘ Essa formula era engenhosa e veio tornar possivel unir firmemente as novas provincias ao reino, por mais peculiares que fossem as suas instituigdes € por mais arraigadas que esti- 43, JR. Strayer, The Administration of Normandy under St. Louis, Cambridge, Mass., 1932, pp. 91-99; «Notmandy and Languedoc», in Specu- lum, XLIV, 1969, pp. 1-12. 55 vessem. Tal técnica continuou a demonstrar a sua utilidade até ao século XVII, época em que a Franga adquiriu a Alsdcia. O estado inglés, pelo contrdrio, ao privilegiar a uniformidade das instituigdes e das leis, experimentou grandes dificuldades para assimilar regides com uma tradi¢fo politica diferente, como, por exemplo, o principado de Gales e os pequenos teinos da Irlanda. Mas o jovem estado francés teve de pagar um. alto prego pela sua flexibilidade. Os chefes locais estavam fundamentalmente interessados em manter os seus costumes e privilégios e nao confiavam no governo central, tal como este no confiava neles. Ndo podiam, pois, ser aproveitados na administracao local. Com efeito, 0 principio bdsico da admi- nistragao francesa era o principio segundo o qual ninguém devia exercer qualquer cargo na sua provincia natal**. O rei teve de criar um aparelho burocratico para se encarregar da administra- ¢40 das provincias, aparelho que se desenvolveu rapidamente durante 0 perfodo de formagao do estado francés. Para além disso, embora o governo francés estivesse disposto a tolerar um amplo grau de diversidade de prdticas locais, tinha de haver alguma uniformidade em matérias como os impostos, alguma forma de conciliar interesses locais em conflito e algum meio de afirmar a autoridade definitiva do rei. Assim, a Franga viu-se levada a criar e desenvolver uma estrutura administrativa “* Ord, \, pp. 67-75; nem os bailios, nem os senescais podiam adquiri propriedades, para si proprios ou para a sua familia, na regio em que desem. Penhavam os seus cargos (ordenago de 1254, muitas vezes repetida). Archives de la Ville de Montpeliier, ed. por F. Castets e J. Berthelé, 1895, 1, p. 51: em 1317, Filipe V demitiu o presidente do tribunal da sénéchaussée de Beaucaire- Nimes porque era natural desse lugar ¢ as ordenagdes reais proibiam quem quer que fosse de desempenhar as fungdes de juiz no distrito de que era natural, Em Inglaterra, pelo contrdrio, um xerife tinha de possuir terras no condado que administrava; ver Rot. Parl, 1, pp. 282, 353 ¢ 465; Statutes of the Realm, 1, pp. 160 © 174; Cal. Fine Rolls, WV, pp. 463 ¢ 467-468: um xerife com muita expe. rigneia, que tinha servido em Wiltshire de 1330 a 1332 e em Dorsetshire de 1333 a 1335, ndo foi autorizado a ocupar o lugar de xerife de Devonshire, em 1335, Porque ndo possufa terras nesse condado. 56 hierarquizada, Os funcionérios locais dependiam de funcioné- rios provinciais, que dependiam de funciondrios regionais, que, por sua vez, eram supervisionados por conselhos, tribunais e camaras com sede em Paris. Havia um fluxo constante de ordens, repreensdes, decisOes judiciais e pedidos de See das autoridades centrais para as locais e um outro fluxo, igual- mente constante, de protestos, recursos, desculpas ¢ explicagdes no sentido inverso. A complexidade do sistema administrativo francés foi particularmente prejudicial numa época de comuni- cages lentas e impediu o governo central de fazer a — utilizagao possivel dos seus meios materiais e humanos. A ngla- terra, com uma populagdo inferior a um quinto da populagao francesa e dispondo, provavelmente, de muito menos de oe quarto das riquezas da Franga, foi muitas vezes capaz de i ; ie opor, homem a homem e libra a libra, em épocas de con! i 0. Isto nao significa que o sistema francés tenha constituido um fracasso. Dadas as condigdes existentes, era mesmo 0 Unico com possibilidades de funcionar. A Franga era um estado-mo- saico, constituido por muitas pegas, e a burocracia o cimento que mantinha essas forgas unidas. Por vezes, esse cimento tornava-se t&o espesso que ocultava os objectivos do governo, mas, apesar disso, era melhor do que permitir que 0 estado se desagregasse por causa de o cimento ser demasiado fluido. Os métodos franceses tornaram possivel a uiagdo de um estado a partir de provincias e regides com caracteristicas de ‘uma enorme diversidade. Ora, uma vez que a maioria dos esta- dos criados na Europa eram, como a Franga, estados-mosaicos, a sua tendéncia foi seguirem o modelo francés. ‘A soberania do rei de Franga estabeleceu-se claramente a0 jongo do século Xi. No exterior, quase todos . soberanos, incluindo o papa, reconheceram que ele ndo tinha nenhum superior no plano temporal*®. 45 Decr, Greg., IX, pp. 4, 17 ¢ 13; em 1202, Inocéncio III afirmava que 0 rei de Franga «superiorem in temporalibus minime recognoscit» ; essa afirmagdo 57 No plano interno, o rei proclamava-se juiz supremo de todas as causas. Fossem quais fossem a importancia dos direi- tos e a extensdo dos privilégios de uma provincia ou de um senhor, todos os recursos deviam subir, em ultima instancia, ao tribunal do rei, em Paris. Na tealidade, esse direito de pro- ferir 0 veredicto final era o tnico que se mantinha constan- temente em vigor em regides em que 0 rei, de resto, tinha pouco poder, como o ducado da Aquitania ou’ o condado da Flan- dres*®. Igualmente extenso em teoria, mas mais restrito na Pratica, era o direito que cabia ao rei de fazer ordenagdes tendo em vista o bem comum4”. As ordenagGes reais podiam nao ser respeitadas com muito zelo em todo o territério do teino, mas era dificil negar a sua validade. Da mesma forma, © direito do rei de impor tributos, sobretudo quando se desti- navam a defesa do reino, era geralmente reconhecido4®, converteu-se em doutrina oficial da Igreja. Um pouco mais tarde, alguém for- mulou a frase: «rex [o rei de Franga] est imperator in TegNO suo», isto é, o rei Possuia o poder temporal supremo. Esta interpretacdo foi posta em questdo Por F. Calasso, J Glossatori e la teoria della sovranita, Milfo, 1951; ver porém a Posigo contraria de Sergio Mochi Onory, Fonti Canonistiche deil’idea moderna dello stato, Milo, 1951, e Post, Studies, pp. 453-480. “© Olim, 11, pp. 142-244 e 300, Flandres, P. 284, Il, pp. 94, 97, 138, 148 e 236 (Aquitinia). Otim, u, pp. 3-8: uma convocagao feita a Fduardo I para com. Parecer perante o Parlamento foi a desculpa para a ocupagdo da Gasconha, em 1294; ibid., pp. 394-396: 0 Parlamento, ao intervir nas cidades flamengas em 1295, debilitou acorte e abriu o caminho para a posterior ocupagto da Flandres. *7 A referéncia essencial encontra-se em Beaumanoir, Coutumes de Beau- vaisis, paragrafos 1512-1515:0 rei pode fazer establissemens todos Ihes devem obediéncia; 0 rei pode punir quem os in! establissemens devem ser feitos com uma causa razodvel ¢ Até 1300, a legislagdo francesa foi menos significativa do que a inglesa, mas a autoridade da uma ordenacdo real era to grande como a de um statute em Inglaterra; por exemplo, os embargos que recaiam sobre a exportagao de cavalos ¢ Btmas exam respeitados, mesmo nas provineias mais remotas (Ord , Xt, p. 353: Champollion-Figeao, Lettres de rois, Paris, 1839, 1, pp. 285 ¢ 298). “8 Para uma visto de conjunto ler 0 meu artigo «Consent to Taxation under Philip the Fair», in J. R. Strayer e C. H. Taylor, Studies in Early French 58 para o bem comum; fringir; mas os novos «par grant conseil». _—_ Na pratica, podia haver algum regateio acerca das ~ : ap car, alguma partilha do seu noes uate = pee impossivel rect i ae ee ee tal como em Inglaterra, que © principal objecto da lealdade das gentes passou ae rei. Tal como em Inglaterra, © papa ngo oe a ane apoio popular quando — ent supeat 2 oe to verificava-se a ¢: er ties oa ao clero, devido a sua falta de bina gGo nas despesas efectuadas com a defesa do reino, s mento tao intenso que preocupava pana an oes ns resolvida a questdo dos impostos a cont Bee Pe trovérsia acerca do direito que assistia as autori lad Dela prenderem e julgarem um bispo ite ae Na guerra, de propaganda que se seguiu, 0 papa pea mente por baixo. As acusagGes que faziadcoroa ie e euea qualquer efeito visivel em nenhum sector da pop fe rane = Os agentes do rei, por outro lado, Coates 0 ap zeae dos os grupos politicamente significativos do ae . quando produziram as acusag6es mais fantdsticas id ortodoxia e da moralidade do papa. A nobreza, as ida ise quase todo o clero aprovaram be Lena Si a i ja e julgar o papa”. bre eee auton correspondia, sem divida, aos seus ic idge, Mass., 1939. Para uma anélise mais pormenorizada, Hist. Patcoalgsis Pierre Jame, legista de Montpellier que = tinha grande estima por Filipe-o-Belo, reconhecia que o rei podia impor s utos, fae a sentimento de ninguém, para a defesa do reino. Jame nfo faa ie ’ ae repetir 0 que j4 Bonifacio VIII tinha reconhecido em 1297 « eg. Boni Vi n9 2354): 0 rei podia tributar inclusivamente o clero para a de . jo reino. 49 P. Dupuy, Histoire du différend, Paris, 1655, rewres,p 26. 5° Os principais documentos estfio editados em G. P a nee relatifs aux Etats Généraux et Assemblées retinis sous Philippe le Bel, Paris, 1901. 59 verdadeiros sentimentos; acreditavam com toda a honestidade que © papa se propunha destruir a Franga e sentiam-se na obri- ga¢do de defendero reino, mesmo contra o herdeiro de S. Pedro. O clero encontrava-se indubitavelmente sujeito a fortes presses, mas deve ter tido muitas dividas quanto a validade das acusa- ges de que o papa era alvo. Mas, se os membros do clero nfo eram partiddrios muito entusiastas do rei, também nao demons- traram possuir um grande zelo pela causa do papa. Nao houve miértires e nem sequer houve criticas da sua parte a politica do rei. Aparentemente, 0 clero considerava mais importante Preservar a harmonia e a unidade da Franga do que defender a reputacado do papa. Na crise final, quando o rei enviou um grupo armado para prender 0 pontifice e este motrreu, em con- sequéncia do choque e dos maus tratos sofridos, nao se verifi- cou nenhuma onda de indignagdo em Franga, nem sequer entre 0s membros do clero. Os papas que se seguiram ndo consegui- ram reavivar qualquer interesse pelo caso. Por fim, 0 rei foi completamente ilibado de qualquer culpa e os seus agentes viram-se condenados a penas relativamente leves (penas que nunca cumpriram)*!. Do ponto de vista pratico, tornou-se evidente que era mais seguro ser leal ao rei do que ao papa. Contudo, outras causas entraram em jogo, para além da Seguranga pessoal e do desejo de Progresso. Alguns homens —na sua maioria homens de leis e funciondrios reais — come- gavam a idealizar o estado. H4 muito que havia em Franca um culto pelo rei, 0 tnico monarca europeu que se podia vangloriar de ter sido ungido com éleos vindos directamente dos céus, o herdeiro de Carlos Magno, a esperancga dos doen- tes*?, Por volta de 1300 Passou a prestar-se culto ao reino de Franga. A Franca era uma terra santa, onde floresciam a 3 R. Holtzmam, Wilhelm von Nogaret, Friburgo, i. B., 1898), caps. 4e 7, *? Existem duas excelentes obras sobre este tema: M. Bloch, Les rois thaumaturges, Paris, 1961, ¢ P. E. Schramm, Der Kénig von Frankreich, Veimar, 1939, caps. 5-8, 60 piedade, a justica ¢ o saber. Como antigamente os Israelitas, os Franceses constitufam um povo eleito, merecedor 8 objecto do favor divino. Proteger a Franga era servir a Deus °°. Ame- dida que estas ideias se foram espalhando —e pouco depois de 1400 chegaram ao conhecimento de uma jovem camponesa que vivia na extrema fronteira oriental do reino— a lealdade ao estado tornou-se mais do que uma necessidade ou uma conveniéncia; passou a ser, desde ento, uma virtude. 3 J, R. Strayer, «France: The Holy Land, the Chosen People, and The Most Christian King», Action and Conviction in Early Modern Europe, ed. T.K. Rabbe J. E. Siegel, Princeton, 1969, pp. 3-16. 61

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