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AANUCGIC IAEA ral oa ene [ELOW “P sayuo0g Saar @| SAY HENRI BERGSON AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIAO NOTA DE APRESENTAGAO LUIS ANTONIO UMBELINO ASSISTENTE DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA ‘TRADUCAO MIGUEL SERRAS PEREIRA w ALMEDINA AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELICIAG enn HERON aaoueao raed at elttre@ainecnanet Tioga ccconltten be comin, Los produolaraliedeeumbe Soret JANEIRO 205 (© frome Unveiled Fane 938 (Os dictos dn dig to exelent eservados Amen enti Mando Le ‘ce Rann NOTA DE APRESENTAGAO Se € verdade que “quando se trata do pensamento (..) é tanto maior a obra feita ~ que nao coincide de modo algum com aextensio eo ruimero dos escritos ~ quanto mats rico for, nessa obra, o impensado,isto€, que através dessa obra e somente através dela vem até nés como nunca antes pensado”', a obra de Henri Bergson (18/10/1859 ~ 03/01/1942) deve ser procurada entre as maiores. De facto, sob os diversos esquecimentos, in- compreensoes e siléncios de que fot alvo a sua filosofia (tanto mais estri- dentes quanto viva fot a presenga de Bergson na vida intelectual do seu tempo), nunca esta deixou de ser palavra viva. Prova-o, por exemplo, © inicio da publicacao dos Ewudes bergsoniennes sete anos apés a sua morte (primeiro na editora Albin Michel, depois na PU), a realizacio do Coléquio Internacional “Bergson et nous” em 1959 (comemorando 0 cen- do seu nascimento},o texto de Deleuze de 1966 * (confirmando vida insoldvel, 0 reconhecimento da sua influéncia por parte das ciéncias cognitivas,o interesse da neuro-filosofia 3, aleitura da fenomeno- Jogia contemporanea que o reclama como mestre #, ou. a meditacao her- mengutica de P. Ricoeur que, reconhecendo a impossibilidade de pensar ™ As teferincias ao texto de Les Deur sources de la morale et def religion seguiréo, naturalments, 2 tadugao portuguesa que agora ve spresenta, Quando citrmics directa mente recorrecemos a0 itilcoe inrodusiremos no texto entre paréntess, ondiero da pigina Pata o mais citaremos em rodap " MERLEAU-PONTY, M. «Le Bhilosopheet son ombrer in ID Eloge defo philosophic et autres essais, ed. Gallimard, Paris, 1971, pig. 243. Merleat:Ponty ita uma expressio eM. Heidegger. * Referimo-nos naturalmente a DELEUZE, G. Le Bergsonisme, PUR, Pats, 1966. 9 CE GALLOIS, Ph. E FORZY,G, Bergson et es neuroclences, enti Sythelabo, 1997 “ Refirase, por exemplo, porque resume uma leitura que atravessa a “feromenolo- fia francesa’, o texto do BARBARAS, R, Le Desir et la distance. Introduction @ une hénoménelogie dela perception, Vein, Pais, 1999, AAS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIAO 6 tempo ¢ a sua estrutura narrativa no esquecimento da textura funda dora da meméria’, regressa a Bergson para poder pensar a meméria, a historia eo esquecimento. Este regresso tornara claro a que ponto numa 6poca de crise profunda da memoria, patente na obliteracao das vivencias significativas, no depauperamento da curiosidade espiritual e na incom- preensio da diferenca, chama a pensar, com renovado vigor, a meditacio desse “jude ilustre’, para quem “a nossa relacao com a verdade passa pelos outros" e se forja na emogao vivida da plenitude do tempo reen- contrado. Embora seja sempre dificil identificar todos os fios de uma linhagem de pensamento, é importante referir que Bergson inicia a sua formacao filoséfica num ambiente onde se entrecruzam 0 pensamento de Kant, 0 espiritualismo francés e 0 evolucionismo de Spencer. De facto, na Ecole Normale Supérieure ouve as aulas de Boutroux e Lachelier sobre Kant, segue o ensino de OlléLaprune inspirado na tradigao espiritualista, de que era figura de referéncia Félix Ravaisson, ¢ deixa-se influenciar pela sintese evolucionista das ciéncias proposta por Spencer ~ onde primeiro vera a possibilidade de pensar a vida de acordo com os avancos da biolo gia, mas que depois criticaré por ter permanecido presa a uma concepcio de tempo herdada da mecanica e da fisica, logo, incapaz de promover a conversao do pensar indispensivel a meditagao de uma realidade atra vessada pela duracao. Deste ambiente guardara Bergson influéncias que admitira decisivas. A Gilbert Maire, por exemplo, confessaré nao ter divida profunda senao para com dois ou trés filésofos: Plotino, Maine de Biran e Ravaisson’; em carta a Xavier Léon, datada do mesmo ano em que publica Les Dews sources, atirma ter conservado ao longo de toda a sua carreira, “uma admiracao fervorosa ao mesmo tempo que um pro- 5 RICOEUR, P, 1a Mémoire, histoire, Youbl, Seu, Pars, 2000, p&g. 1, passim © MERLEAU-FONTY, M, Eloge dela philesopht in 1b, loge de la phlsophie et utres essai Gallimard pct pig 39, Nesta refeincia no podemon eaqueceracdlsbre passagem do sev testamento onde declars"Mesréflexionsnvont amené de plus en plas pres du catholicisme one vois Facheverent complet du judaisme. Je me seals convert si je navais vu se préparce depuis des années la formidable vague d'atisémitime qui ‘vatdferlersurle monde, vou restr parmi ceux qu seront demain des prsécutés CE WORMS, F.ergon Chronologiein Magazine Liteaire, avril 2000 (386), pg. 2223. 2 Cf Janicaud, D, Une généalogie du sprituaisme francais Martinus Nihort, La Haye, 1969, pg 67. 8 NOTA DE APRESENTAGAO. fundo reconhecimento”* para com Lachelier (a quem dedicaré o seu pr: meito livro). E, de facto, quando em L'Evolution creatrice escreve que devesnos ‘procurar no fundo de nés proprios o ponto onde nos sentimos mais interiores a nossa propria vida’, nao podemos deixar de evocar 0 sentido da leitura kantiana de Lachelier orientada para uma reflexao inte- rior & consciéncia, Nesta orientacio, entrecruza-se a meditagao filosofica bergsoniana com o horizonte de um ‘espiritualismo mais profundo e mais completo’: aquele que “consiste em crer que o pensamento inconsciente que trabalha na prépria natureza é 0 mesmo que se torna consciente em 1nés,¢ que ela ndo trabalha sende pata cleyar « pruducit anti ungauistu «que Ihe permita passar da forma inconsciente a forma consciente"”. No entanto, estas referéncias ~ onde se vislumbra a presenca de Ravais- son € a mediacio ainda de Lachelier — s6 ganharao sentido pleno na me- dida em que permitirem ler em Bergson um novo espiritualismo °: aquele que se impée através do vigor da sua concepgao de espirito, rredutivel a qualquer forma substancial enquanto forea de accio, liberdade, energia que pode ser dita tanto da consciéncia como da matéria e da vida; espicito que uma reatidade capaz dese enriquecer a partir de dentro, de se criar ‘ourecriar sem cessar, e que é essencialmente refractaria a medida porque jamais inteiramente determinada, jamais feita, mas sempre actuante” Podemos afirmar, num certo sentido, que esta possibilidade se descobre ‘em varios e diferentes nés reflexivos. De entre eles, o nao menos impor- tante funda-se no desajuste entre o tempo medido da mecanica eo tempo da evolucdo verdadeira, aquela que “preserva a radical novidade e impre- visihilidade do que chega"™ # merece, por isco, 0 epiteta de criadora: mas também na consciéncia que, sendo capaz de auto-conservar os sens dados imediatos, ¢estnaturalmente durée credutivel a determinagoes exte- © In Mélanges, BU, Pars, 1972, pig. 1503 9 LALANDE, A. Vocabulaire technique et critique dé la philosophic, Pars, 1962, ct. in Encyclopedie Philosophique Universe Towme 2 ~ Les Notions Philosophiques, PUE, 3950, Pag. 2447. "CE BELOT, G, Un nouveau spirimatisme, in Revue philosophique, 1987; MADI- NIBR, G, Conscience et mouvement, etude sur la phulasophiefrongaise de Condillc a Bergson, lean, Pats, 1936. "CL Letire de Joseph Lotte Camille Quoniam, 21 aril, 191, in BERGSON, Mélan ges (Ouvres RUE, Fars, 1972, pig. 359 " GOUHIER, Hen, Ineduction in BERGSON, H. Ouvres, ition du Contenairo, PUR, Pats, 1959, ig. XXV. [AS DUAS FONTES DA MORAL DA RELIGIAO riores, também na meméria, pela qual tacteamos um passado que coexiste ‘no nosso presente, também no corpo, que imagem entre imagens topo grafa virtualmente o mundo enquanto faz verdadeiramente parte das coisas, éuma mesma evidéncia que se pode entrever: no momento em que a experiéncia se torna “propriamente experiéncia humana” encontra 0 saber de uma ineréncia ao interior da vida, ineréncia que se aprofunda e dilata ao redobrar 0 movimento, élan,criagio que a preenche e transborda. ‘A ideia de “criagio”é para Bergson importante e, como poucas, mot ‘vaasua reflexao. Em fungao do que fica dito, devemos situa-la num triplo movimento’ a criagSo cata presente, primeieo, no préprio centro da expe riencia individual, naqueles cuja intensidade de accao ultrapassaa huma- nidade instaurando uma histéria outra; ao mesmo tempo é urna proprie- dade da vida e, em derradeira andlise, descobre-se no proprio acto criador aque ¢ de Deus senao o proprio Deus. Esse ‘acto de onde brota a vida e ao quala consciéncia regressa” *, tomara finalmente clara a necessidade de meditar @ experiéncia mistica, enquanto esta alberga um significado metafisico incontornavel da propria humanidade (inredutivel a facto pst: col6gico ou curiosidade hist6rica), ao representar a ideialimite de uma coincidéncia parcial com o proprio mistério da accao criadora. 2 Les Deux sources de la morale et de la religion, @ obra de que agora se presenta traducéo portuguesa, é tiltima das quatro grandes obras "em torno das quais se organiza a meditacao filosofica de H. Bergson. A pti meira 6 Essai sur les données immédiates de la conscience de 1889. que retoma a sua tese de Doutoramento apresentada um ano antes; Matiére ‘et mémoire é publicada sete anos depois, em 1896, € LEvolution créatrice ‘em 1907. Les Deux sources é publicada em 1932. Bergson tem setenta e ttés anos e demorou vinte e cinco anos a preparar este livro. Como em. © 1D,op ait, xxv, estas obras juntam 0 textos (onde Rergeon procura aplicar algumas das suas ideias a problemas expecifcos) Le Rire de 1900 e Durée et simultanéité de 1922, bem como duas compilazoes de artigos (que explcitam alguns pontos das obras que ‘os peecelem) inttuladas respectivamente Energie spirituelle (1914) ¢ La Pensée et le ‘movant (1934). Anote se ainda publicagao da Cours de Bergson, sob a direeqio de Henri Hude, na PU-E Para completar a informacio bibliografica cf. GUNTER, Pete, Henri Bergson a Bibliography, vevised second edition, Bowling Green, Ohio, 1986 [NOTA DE APRESENTACAO qualquer um dos seus textos, honrard pois os seus leitores com a humil dade de apenas propor como obra um trabalho no mais elevado grau de precisao, rigor e maturacao; e, num mesmo movimento, como sempre ‘mostrara a que ponto é exigente o tempo da filosofia e ardua a tarefa do pensador. Quando‘em 191 J. Lotte o visita e Ihe pergunta pelo seu fivro de moral, a reacgao do filésofo é, a este respeito, significativa: “perante esta pergunta inesperada ~ conta J, Lotte -, Bergson passou de um ar sor- ridente a um ar sério,o set rosto ganhou uma expressao de desinimo, de desalento; sem saber, tinha tocado num ponto sensivel, para nao dizer doloroso, ~ 0 meu livrol... oh! nao)... Nao sei .. ndo sei para onde vou. Sao-me precisos anos para escrever urn livto .. imagine quantos anos separam cada um dos meus livros... Trabalho muito... Informacio acurnu- lada, reflexao acumulada ... e quando o livro esta escrito ha nele tanto lixo ...E assim, abro uma avenida, sem saber onde vai dat. E depois, quan- do descubro o ponto de convergéncia, o livro esta pronto, Nao se escreve tum livro, nao se pode escrever um livro, € necessario que ele se escreva, que ele se mostre”*. E quando finalmente é publicado, surpreende antes cde mais em Les Deux sources a aparente autonomia de cada um dos seus momentos. O primeiro capitulo, dedicado a obriga¢do moral, facilmente poderia ser lido de modo auténomo; o segundo e terceiro capitulos, res- pectivamente dedicados a religido estdtica e a religido dindmica formam ‘em conjunto um novo ponto de configuracéo bem delineada; o tltimo capitulo intitulado Consideracdes finais. Mecdnica e Mistica encerra 0 livro.com um terceito momento bem marcado. E, noentanto, é um mesmo tecido que estes fios de reflexio conseguem urdir, o da decifracio labo rosa da vida e da humanidade que nao se pode dizer no esquecimento do proprio homem. "Leute de Joseph Lotte d Camille Quoniam, 21 avril, 1911, in Mélanges, op. cit, pp. 880883, Neste mesmo sentido, é sempre referida a passagem do seu testamento ‘onde escreve: «Done jinterdis formellement la publication de tout manuscrit, ou de toute portion de manuserit de moi, que on pourrait trouver dans mes paplets ou alles. Finterdis I publication de tout Cours, de toute legon, de toute conférence qu’on aurait pu prendre en note ou dont jaurais pris note moi méme.'interdis également la publica tion de mas lettres, .).Jeprie ma femme et ma fille de poursuivre devant les tibunaux quiconque passerait outre aux interdictions que je viens de formuler. Elles devraient réclamer la suppression immédiate de ce qui aucait été publiés, CE HUDE, Henri, Les CCoura de Bergan», in AAV, «Bergeon. Naissance d'une Philosophie», Actes du coll ‘que de Clermont Ferrand, 17 18 novembre 1989, PUE, Paris, 1990, pag. 26 [AS DUAS FONTES DA MORAL # DA RELIGIAO 0 primeiro ea ulo do liveo é dedicado & questao da “obrigagao’, que 6 possivel resumir na pergunta"O que pode levar uma consciencia livre ~ logo nao determinada pela necessidade — a agir?".A resposta de Bergson a esta problematica moral é clara: a esséncia da obrigagao nao é 0 dever racional, mas a pressio social que emana das regras instituidas e refor¢a- das pelo habito. A orientacdo moral assim estabelecida revestese entio da forma de um constrangimento, respeitado e seguido por forca da reali dade social do homem que assume varios rostos e predisposicdes, nomea damente, 0 da conformagao a um grupo de pertenca. Esta conformacio ‘a0 grupo social é condicao elementar da sobrevivéntcia, ao mesmo tempo, de cada individuo e da propria espécie. Logo, a obrigacao moral estabele- cida pela sociedade, em derradeira analise, ¢0 que obrige “naturalmente cada individuo a agir do modo que permite manter a coesio dessa socie- dade essencial ao homnem, A moral assim estabelecida sera inevitavel: ‘mente uma moral de pressio, fechada e consubstanciada pela apreensao estitica da vida, na medida em que representa a tesposta da natureza a inevitavel pergunta que a inteligéncia sempre se coloca: a que devo obe- decer? 0 que devo fazer? Nao estando determinada pela necessidade do instinto, como a formiga no formigueiro ou a abelha na colmeia, a acca hhumana ¢ conformada pela necessidade da regra que Ihe é imposta (para sua prépria proteccio) sob a forma de obrigacdo natural ante as normas, sociais. Referimo-nos aqui ao todo da obrigacao (39) que sustenta a socie- dade fechada (41), ou seja, ao proprio instinto primitivo de pertenca a um grupo e representacao de uma organizacdo que nao visa senao con- sorvar.se Aquola que se desvia da norma serd, neste eontexta, vista cama anormal, o estrangeiro como ameaca € 0 criminoso, que poe em risco 0 estado de bem-estar individual e social, como anti-natural ou “monstro” De facto, se a obrigacao & a forma que assume a necessidade no dominio da vida quando ela a exige, se tem entao a sua razéo de ser na préptia estrutura da natureza humana, a sua transgressao , para a inteligencia ‘humana impregnada de um sistema de normas e habitos preparados pela natureza, entendida como ameaca, O todo da obrigacdo sera, pois, alicer: ‘ado numa moral fechada que é a tnica capaz de fundar e preservar os lacos, vinculos € regras ~ tanto mais perfeitos quanto impessoais — que ‘compensam no homem a rebeldia da inteligéncia em relagao a necessi- dade instintiva, NOTA OF APRESENTACKO ‘Mas se é verdade que as regras sociais, constituindo a resposta da vida 4 satisfagao das necessidades vitais do homem, conduzem 0 agir 6, nto.o menos 0 facto de, na historia da humanidade, contra esta su social, terem surgido outros ertérios para obedecer, outros prin a acrao. Explica-se tal facto com a evidéncia de que, sendo embora 0 homem um “ser socializado’, move a inteligencia humana igualmente a aspiracao. Como tal, além da natureza estatica e fechada da sociedade servida por uma moral de pressao, & possivel encontrar na historia, e mais especificamente no exemplo de alguns homens extraordindtios, um prinefpio dinamico, aberto, um principio de entusiasmo capaz de nortea 4 acyo, Forgos0 se tora, entéo, meditaro aleance de uma moral de azpira ‘Gio ou moral aberta, Paca tal, € 0 exemplo dessas personalidades privile giadas que devemos interrogar, uma vez que é a elas que sempre recorre- mos para ter esta moralidade completa que melhor poderiamos dizer absolute (43) por tepresentar, em relagao a moral fechada, uma diferenca de natureza. E serdo essas personalidades que seguiremos, jé néo por cedermos a uma pressio mas guiados por uma emocao que muitos, é certo, hesitardo admitir, mas cujo apelo todos sentem como familiar. Este apelo, que é anuincio de uma vida nova, sentimoto langado do fundo de uma experiéncia individual que nos envolve e que, por isso, nao tem sendo que existir. Porque, de facto, a sua existencia ¢ ja incarnacao do excesso que transborda os limites do comum e da moral social, capaz portanto de transformar a inteligencia e mover a vontade. Essa experién: cia individual, que tem a forca necesséria para promover a obrigacdo sem pressio, 6 a da alma aberta dos santos, dos herdis, dos seja,éa experincia daqueles que, criandda as suas proprias possibilidades, tornam a humanidade mais auténtica. {Ao contrario de todos os que defendem que a moral se pode fundar na logica e que a especulacao € suficiente para calar o egofsmo e a paixio, 0 contrério também de Kant", para quem é a razio que se deve pedie 0 comando de uma vontade imperfeita, Bergson mostra que a accao pode ser motivada por um apelo improvavel que inunda como uma melodia, © GE LEMOINE, Mad, Remarques sur la métaphore de Torganisme en politique: les Principes de la philosophie du droit et Les Deus sources dela morale et de a tligion, in Les Etudes philosophiques, 2001, PLE, pag. 479 © seg ” CE-CASTILLO, Monique, Lobligation morale: le débat de Bergson avec Kant, in Les tudes Philosophiques, op. it, pig. 439 seg, B [AS DUAS FONTES DA MORALE DA RELIGIAO De facto, esses homens excepcionais, aparentados aos artistas, nao comu. nicam maximas morais, nao falam de nenhum idolo, antes nos trans- portam para a proximidade de um Ser que estando fora de nés, ao mes ‘mo tempo nos atinge interiormente € nos convoca, ja nao a explicar a vida como sujeito, masa decifré-a como poeta, a absorvé-la como miisico E nesse sentimento de proximidade na distancia com o esforco gerador da vida (58) que se pode cummprir 0 homem como ex-sistente avancan- do da solidariedade social 4 fraternidade humana, num movimento que triunfa sobre a natureza sem a abandonar; porque do que se trata € tio s6 de denotar o que na historia da humanidade é possibilidade de novo, ou seja, do que para além do impessoal, do estatico e do fechado, é noticia e presenga de uma natureza naturante. E, reversivelmente, tudo se passa como se, de algum modo, se tratasse aqui de uma natureza que, nesses homens de excepeao, se confirma ou se chega a saber a si propria como possibilidade de diferenca, forca transfiguradora, evolucao criadora, Um primeiro momento de andlise esta terminado: é quando a inteli sgéncia humana se questiona sobre as condicées de vida que so as suas, inevitavelmente procura responder as exigéncias da ac¢ao, que a questao da obrigagao se coloca ¢ a moral revela a sua dupla fonte, Mas imediata- ‘mente um outro passo da reflexao se anuncia: a inteligéncia humana nao tem por tnico mester a consideragao dos critérios de acgao; 0 seu desen- volvimento fez:do homem o tinico ser capaz de se representar, ao mesmo tempo, a sua propria capacidade de inovacao, a sua finitude ¢ os efeitos esperados por cada acyio realizada. Ora, entregue a si mesma e a estas representagées, a inteligencia facilmente colocaria em risco os equilibrios que conservam e sustentam a vida individual e social. De facto, defendera Bergson, entregue @ inteligéncia, e nao zo Instinto que 0 conformaria sonamblamente a trabalhar para aespécie, o homem facilmente comeca- tiaa centrar-se de modo egoista sobre si mesmo, fascinado pelo seu poder de descoberta; sem controlo, tal tendéncia colocaria em risco a ordem social. Do mesmo modo, ¢ porque ¢ 0 nico animal capaz de reflexao ¢, consequentemente,o nico capaz de antevera inevitabilidade da propria ‘morte, o homem facilmente se deixaria enredar na forca deprimente da inteligéncia que, sem controlo, o levaria a perder o respeito pelas normas sociais e o apego a vida. Mais, além de se saber pendurado no tragico, 0 homem € o tinico ser que se sabe no meio de um mar de contingéncia e, por isso, 60 ‘inico que sempre espera que algo venha até ele ajudando a NOTA DE APRESENTAGAO concretizacao das suas expectativas, entregue a si mesma, facilmente a inteligéncia empobreceria a forga de agir, a0 reconhecer como inevitével tum desajuste entre os resultados desejados ¢ aqueles que a probabilidade pode permitir alcancar. Assim, a vida tem que promover, contra o poder dissolvente da inteligéncia (110), contra a representacao, pela inteligencia, da inevitabilidade da morte (118), contra a margem desencorajadora de imprevisto entre a iniciativa tomada e o efeito desejado (124), uma tripla reacgao defensiva. Nio poder4 recorrer ao instinto, sob pena de destruir a inteligéncia humana que é também sua criagéo. A solucao deve inclu -la ou passar por ela de algum modo. Seré uma virtualidade de instineo, tum residuo de instinto que subsiste em redor da inteligéncia que a natureza escolher’ como instrumento apropriado a esta tarefa defensiva, Utilizaré o poder de representagio da inteligncia para opor esta tltima ao proprio trabalho intelectual: uma imaginacdo fértil, uma funcdo fabuladora capaz de compensar a esquematizacao intelectual (que, alheia aos detalhes ines- perados, nem sempre antecipa o perigo), capaz de produzir a ideia de uma vida para além da morte ¢ de um mand ou forca espalhada pelo universo (a convocar por uma magia eficaz (154) ", apta aauxiliar acco humana a concretizarse, quando as possibilidades de tal nao acontecer suspendessem a inteligéncia). De que outro modo poderia ter trabalhado anatureza ante a necessidade de algo que restabelecesse 0 equilibrio em seu favor, algo como uma representacio intelectual capaz de manter a inteligencia apegada a vida? Essa representacio reequilibradora é de ordem religiosa, Melhor, é da ordem de uma religido estatica, aquela que promove uma moral fechada e contribui para a manutencao da sociedatle (echudle através da dupla fungao de conservagao da sociedade e de estabilizacio da vida. A religido estatica é, entao, a resposta da natureza que prende o homem a vida para aquém da sua inteligéncia, consolidando e disciplinando a propria impli- cago reciproca entre sociedade e individuo. A religido estatica, resumira por isso Bergson, pode ser entendida como a reacedo defensiva da natu- reza contra o que poderia haver de deprimente para o individuo e de dis: solvente para a sociedade, no exercicio da inteligéncia (175). © EE MOORE, FC-T, Magicin MULLARKEY, |. (ed) The New Bergson, Manchester University Press, 1999, pp-135-144. © artigo em questio retoma partes de Bergson: Thinking Backorards, Cambridge University Pres, Cambridge, 1996 5 [AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIAO E, no entanto, religiéo é um nome que nao podemos atribuir apenas a essa reacrao da natureza ao triplo problema que the coloca a inteligencia consciente do seu poder, da sua finitude e das possibilidades da sua acgao. Na histéria da humanidade uma religido outra foi possivel. Porque, de facto, os homens extraordinarios que sao a vida feita moral aberta, a0 incorporarem a aspiracao e a santidade, sao aqueles onde chegou a deta star, preciosa improbabilidade, um misticismo completo; ¢ este, precisa ‘mente, obriga a meditar a religiao no caminho que dista de uma religio estética a uma religido dindmica (154), ou seja, no cruzamento de uma rcligido que contribui para a manutencao da ordem social e de uma reli {140 que revela o hiorizonte mais auténtico do destino dos homens. © misticismo irrompe em personalidades individuais onde a humani dade ¢ transbordante e a vida, extravasando os limites habituais da sua organizacao, parece predispor a alma a ser lugar de inscricao ou de refle xao de um Ser que rodeia e trespassa, que embarga e desapossa apenas para sublinhar depois cada personalidade. Neste sentido, a experiencia mistica € 0 topos da invasao vivida de algo que pode imensamente mais do que nés; nao é pois sinénimo de fuséo, mas quando muito de coin cidéncia parcial com 0 esforco criador que a vida manifesta, esforco que € de Deus, sendo o préprio Deus (187)"?. Do mistico deve, por isso, afr imarsse ser aquele que primeiro sente o apelo de uma relacio obsessiva de cumplicidade com uma realidade que, sem deixar de ser transcendente, 0 toca na raiz do seu ser como acedo, criagdo, amor (191), éelebracio do apego a vida forjado na fraternidade. Assim, 0 Deus do misticismo com pleto é bem em Bergson, como viu Merleau-Ponty “o elemento da ale- gria ou o elementy dy ainur ny seutidy ent que « agua © o fogo sav ele- menos". Fara Bergson, o Deus do mistcismo completo € o “Cristo dos Evangelhos”¢ a experincia msticaparadigmaticamente exemplified pelos misticos ctstos Vejase 4 obra clssiea de GOUBLER, H, Bergson et le Chest des Evangiles, ed, Fayard, Pais, 1961 MERLEAU PONTY, M, Hergson se foisant in ID, Eloge de la philosophie et autres essais,op-cit, pag. 305. Vojase também, nomeadamente na mesma edit o indispen sivel loge dele pilesophie, p. 979, cj leitaraabre camino a andlise do capitulo Interrogation et Intuition de Le Visible et Fiewisible, (Gallimard, Pati, 1964, p&g. 142 ¢ seg) no qual Metleau Ponty faré um balango do seu projecto onto fenomenclogicn ‘num dislogo com Hussel e Bergson 6 [NOTA DE APRESENTACAO © mistico que, no dom completo de si, se retoma nesse elemento de alegria e amor, longe de poder ser confundido com um louco é, a0 con: twario, quem comprova em acto que ver € sempre igualmente ter sido visto, emocionarse sempre igualmente ter sido tocado, agir sempre ja ter sido “agido’; comprovaco por uma superabundiincia de vitalidade e, ‘a0 mesmo tempo, de humildade, por um desejo de dar testemunho e, a0 mesmo tempo, pela angistia de nao poder dizer o indizivel; comprovao ainda por um exemplo de fraternidade que nao ¢ ideal ou conceito, mas amor que religa ao interior do élan da vida. Assim se rasga na historia da humanidade a possibilidade de uma religiao nova cuja verdade se sabe apenas no seu exercicio, que nao se esgota na letra porque habita 0 espi- Fito, que nao se fixa numa forma mas se deixa literalmente inspirar pelo elemento de amor. A esta teligido devemos atribuir o adjectivo dindmica, para distinguir da religiao estatica que, ainda assiin, nao é substituida mas atravessada pelo poder de irradiar que procura aqueles que (predis- postos a universalidade) o desejam ja encontrar. Compreendem 0 mistico e sabem ser verdadeira esta religiio dina mica, por exemplo, aqueles que jf viveram a intensidade da criacao artis tica ou aqueles que viveram o sentimento de viagem consubstanciado no ‘conhecimento de uma lingua diferente; e compreendem-no porque tam- bém aqueles conhecem o novo ¢o defendem sob todas as formas, porque também estes recebem o estrangeiro numa fronteira que é lugar de encon- to € nao de estranheza. Uns ¢ outros véem, pois, que as possibilidades comprovadas por essas persomalidades excepcionais nos falam a todos, na medida em que se fundam no abalo ou emocao que chega do proprio undo das coisas. & essa experiéncia que inclusivamente a filosofia deve interrogar se quiser saber mais sobre o homeme sobrea vida que se sabe na nao coincidencia consigo propria, Aqui chegados, poderia suporse completa a tarefa de meditar as duas fontes da moral ¢ da religido: num primeiro momento, esclareceram-se as duas fontes da moral e, num segundo momento, as duas fontes da religido, No entanto, Les Deux sources contém ainda um terceiro momento correspondendo 2o tiltimo capitulo do livro, capitulo que muitos comen- tadores ja consideraram meramente circunstancial, mas que de facto & ja anunciado, logo exigido, ao longo do texto. Podertamos introduc este derradeiro momento da obra nos seguin tes termos: na sua propria historia, a humanidade promove mitltiplas 7 7 [AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIAO nao-coincidéncias com a sua natureza; ora, nessa histéria um dado novo tc incontornavel, que ocupa jé 0 momento politico actual, obriga a recolo- ‘car sobre bases renovadas a questao da obrigacao, da aspiragao, enfin, a questao das varias fontes do apego a vida. Esse dado novo é 0 desenvolvi- ‘mento de uma técnica mecéniica que, nos anos trinta do século XX, mos tra jé claramente a sua figura de Jano: por um lado, serve a imagem do ‘aumento de bem estar material proporcionado pelo desenvolvimento ver- tiginoso de novas maquinas (que da saude aos transportes pasando pelo lazer, prometem um futuro radioso); por outro, sustenta um horizonte onde se inscrevem as gritos das vitimas da Primeira Grande Guerra, a fragilidade das organizagSes internacionais protectoras da paz e o dese- rho, ameacador e com rosto de holocausto, de uma nova alianca entre téenice, sangue, raga e morte. Para Bergson, a meditacao sobre a morale a religido nio poderia con siderar se terminada sem a explicitacao de um conjunto de problemas ‘que, tendo permanecido em laténcia ao longo da meditacao empreendida, agora importa trazer luz. Tal ser possivel através de uma reflexdo alicer- «ada om trés passos diferentes: 0 primeiro percorrerd a opasicio entre a sociedade natutal, virada para a guerra, ¢0 ideal democratico enquanto indissociavel de um projecto de paz internacional; o segundo seguiré a oposigio entre os dois rostos da mecinica que tanto serve a guerra como ‘paz; e, finalmente, chegaremes & andlise da oposis#o, que engloba € resolve todas as outras, entre mecanica e mistica. Num primeiro momento, em coeréncia com as reflexdes anteriores, Bergson apresenta a oposigdo entre duas formas de sociedade e de regi- mes politicos. Primeiro,é caracterizada a sociedade humana natural, cujo esquema a natureza cuidou de nos fornecer de antemdo e podemos iden- tificar nas tendéncias para o ensimesmamento (que se faz defesa do grupo ptoximo e inimizade em relagdo a todos os outros), para a coesio (que VE ho desmembramento da sociedade perigo supremo que implicaré a morte de cada um), para o respeito pela hierarquia ou autoridade absolu- ta do chefe (reflexo do espirito de comandar e obedecer que, embora presente em todos os homens, é predominante de modo muito desigual) para a protecao da propriedade. A sociedade humana natural funda-se, pois, em mecanismos e prineipios de auto-proteccéo, Logo, facil se toma cconcluir que da estrutura de uma sociedade assim faz parte a vocacao bélica e resulta necessariamente a guerra. Se acaso fosse necessario acres- 18 NOTA DE APRESENTAGAO, centar alguma demonstragio a evidéncia, facilmente a encontrariamos na futilidade das raz6es que despoletaram a maior patte dos contlitos aumados: ndo raras vezes a guerra a razao das queztlias endo as que a rario da guerra Mas nada ¢ capaz de se opor & guerra? Nao se vislumbra na historia sino, que 0 conhecimenio do outro dissolve 0 ddio cego, que 0 conheci- mento da lingua, da literatura e cultura de um povo, impede que 0 veja- ‘mos como inimigo. Logo, nao podera contestarse que s6 um regime politico capaz de inscrever na historia a liberdade ea igualdade, de consi- derar toda a humanidade como a sua saciedade, de acolher o estrangeiro como igual, sera capaz de se opor & guerra. Falamos aqui de uma ideia de sociedade que estaria o mais afastada da natureza. E podestamos, pelo menos em parte, vislumbré-la no idedrio das democracias modemnas eno espirito que anima as Organizagoes Internacionais que procuram a preservacio da paz, organizacées onde a inteligencia humana (inspireda ‘numa moral aberta) pode chegar a assumir a fungao de mediadora de si propria Esta dicotomia é no entanto, parcial. Ultrapassa-a e corrige-a um dado ovo, inaugurado na historia da humaniade pelo desenvolvimento do ‘mecanismo da era industrial Falamos aqui, mais precisamente, do desen- volvimento de uma técnica que, em si mesma neutra, é pelo homem apli- cada (segundo uma lei de dicatomia ¢ uma lei de duplo frenesim) & prossecucao tanto dos prineipios da sociedade natural voeacionada para a guerra, como da democracia e do seu ideal de paz. Ao servigo da guerra, o grau de complexidade e perfetcao das realtzagdes humanas ~anteci- para Bergson com clarividéncia - em breve legard ao instinto bélico 0 poder de aniquilamento do adversério, quando desvendar o segredo, mantido reservado, que permite libertar a forca que representa, conden- sada, a mais pequena parcela de matéria ponderdvel (258). Mas se este poder oculto na capacidade humana de inventar se aproxima assim da bomba atémica, no podemos esquecer que também se colocou ao lado do ideal de igualdade e dignidade social e material para todos, através de tum conjunto de novas méquinas capares de aumentar o conforto, a segu- ranga eo bermestar; de facto, a sociedade aberta apotou-se na mecainica Mas tambéin aqui ha algo que no podemos esquecer: 0 resultados ini cialmente prometedores desta alianca (que assim se estabelece, no fundo, 1% [AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIAG com 0 mesmo poder de invengao que parece agravar o sistema natural \evitavelmente ligado a guerra) rapidamente conduziram a resultados perversos:ilusdo de um progresso ilimitado, corrida desenfreada ao bem. estar, vicio do supérfluo, procura do luxo. A igualdade e dignidade como direito prometide a todos é,entao, frustrada quando a mecanica cria uma ‘multidao de exclufdos que comprovam que o espirito de invencdo nem ‘sempre se exerceu segundo os melhores interesses da humanidade e que nao se preocupou o bastante com assegurar & maioria, a todos se possivel, a satisfaao das antigas necessidades (253). Esquecew-se, pois, que na sua origem foi a mistica que reclamou a mecdnica. E assim esquecida do ‘seu inicio, a técnica que dilata 0 poder do corpo nao foi capaz de engran- decer a alma numa mesma proporcéo: aos olhos que viam mais longe, as ios que tocavam mais recdndito, continuot a corresponder 0 mesmo sentido de orientago, Consequentemente, & preocupacao pela realizacao de todos os possiveis foi correspondendo, progressivamente, a peniiria do sentido de caminho. © homem transformado por essas suas possibilidades de inven 6, portanto, ainda e sempre aquele que, mesmo no centro do aparente sucesso das suas realizagées, sente a caréncia e, por isso, lama por um ssuplemento de alma, testemunhando assim que a mecinica exige uma mistica ‘A dicotomia entre sociedade natural e democracia deve, deste mado, ser retomada num nivel mais profundo de anilise, precisamente aquele {que se rasga no lugar onde se bordeja uma realizacio técnica assente no ‘esquecimento de que o seu principio ¢ um impulso de vida, ¢ uma reali- zagao técnica que, na consciéncia do vazio criado, reclama a necessidade de novas energias morais, A escolha que deve ser feita entre mecdnica e ‘mistica, entre uma realizagao humana com rosto de morte ou com rosto de humanidade, concretiza-se finalmente: se quisermos ~ em nome de uma sociedade aberta onde invencio técnica e politica sao alternativa a sociedade natural ~ evitar que a hist6ria da humanidade seja o agrava- ‘mento pela inteligéncia da barbarie natural”, é necessario seguir wma ‘istica anténtica; melhor, é imperioso que o génio mistico surja para de- volver ao espirito e a accao a capacidade perdida de orientar os instru- ‘CE WORMS, F, Introduction @ Matidce et mémoire de Bergson. Suivi dune bréve introduction aux autres livres de Bergson, ed RUE, Pati, 1997, pag 302 we. NOTA DE APRESENTAGAO mentos que tanto ampliam 0 corpo. O seu apelo nem todos e 0s 0 sequire ‘mos; mas em todos ressoaré, na contraluz de uma humanidade que geme sob 0 peso dos progressos que fez, 0 sentimento de que o deveriamos fazer, como se s6 assim pudéssemos chegara ser improviveis attifices do Tempo. Coimbra, Maio de 2004. Luls Awrowto UstpEuino CAPITULO I ‘A OBRIGAGAO MORAL A recordacao do fruto proibido é0 que ha de mais antigo na meméria de cada um de nés, como na da humanidade. Aperceber-nos-iamos de que assim € se essa recordacao nao estivesse encoberta por outras, as quais preferimos reportar-nos. 0 que nao teria sido a nossa infancia se nos tivessem dado rédea soltal Teriamos voado de prazer em prazer. Mas eis, que, nem visivel nem tangivel, um obstaculo surgia: uma interdigao. Porque obedectamos? A questo quase nao se puna; tomaramos 0 habito de escutar os nossos pais © os nossos mestres, Todavia sentiamos bem que isso se devia ao facto de eles serem os nossos pais, de eles serem os nossos mestres. Portanto, aos nossos olhos, a sua autoridade vinha menos doles mesmos do que da sua situagao perante nés. Ocupavam um certo lugar: era dai que partia, com uma forca de penetracao que nao teria se tivesse sido lancado de outro lugar, o mandamento. Por outras palavras, pais e mestres pareciam agir por delegacao. Nao nos davamos bem conta, mas por tras dos nossos pais e dos nossos mestres adivinhévamos qualquer coisa de enorme ou antes de indefinido, que fazia pesar sobre 16s, por intermédio deles, toda a sua massa. Mais tarde, diriamos tratar- -se da sociedade. Filosofando entao sobre esta ltima, comparé-la-famos ‘um organismo, cujas celulas, umidas por lagos tnvisivets, se entcontram subordinadas umas as outras numa sabia hierarquia e se vergam natural- mente, em vista do bem maior do todo, a uma disciplina que podera exigir 0 sactificio da parte. O que nao passara, de resto, de uma com: paracao, porque uma coisa é um organismo submetido a leis necessérias, ¢ outra, uma sociedade constituida por vontades livres. Mas, a partir do momento em que estas vontades esto organizadas, imitam um orga- nismo; e neste organismo mais ou menos artificial o hébito desempenha ‘o mesmo papel que a necessidade nas obras da natureza. Deste primeiro ponto de vista, a vida social surge-nos como um sistema de habitos mais, “A presente traducdo inci, nas margens do texto, a paginagao da edigao original francesa de 1932, . 23 ¥ ou menos fortemente enraizados que dao resposta as necessidades da comunidade. Alguns de entre eles sao habitos de comando, a maior parte sao habitos de obediéncia, ou porque obedegamios a uma pessoa que comanda em virtude de uma delegacao social, ou porque da propria soci dade, confusamente percebida ou sentida, emane uma ordem impessoal Cada um destes habitos de obediéncia exerce uma pressao sobre a nossa vontade. Podemos subtrair-nos a ela, mas contintamos entao a ser puxa dos por ela, reconduzidos a ela, como o péndulo ao desviar-se da vertical, Foi perturbada uma certa ordem, e essa ordem deveria set restabelecida Em suma, como através de todo o habito acontece, sentimo-nos obrigados. Mas trata-se de uma obrigacio incomparavelmente mais forte. Quando ‘uma grandeza-é superior a outra a tal ponto que a segunda se torna negli: genciavel em relacao a ela, os matematicos dizem que essa grandeza ¢ de ‘uma outra ordem. E 0 que se passa com a obrigacao social. A sua pressao, comparada com a dos outros habitos, 6 tal que a diferenca de grau equi vale a uma diferenca de natureza, Observemos, com efeito, que todos os habitos deste género se prestam apoio miituo. Bem podemos nao especular sobre a sua esséncia e a sua origem, sentimos que ha uma relacio entre eles, na medida em que nos si reclamados pelos que imediatamente nos rodeiam, ou pelo que rodeia os que nos rodeiam, ou pelo que rodeia 0 que rodeia os que nos rodeiam, ¢ assim por diante até esse limite extremo, que seria a sociedade. Cada um deles responde, directa ou indirectamente, a uma exigéncia social; e conse- quentemente todos se ligam, formam um bloco. Muitos seriam apenas pequenas obrigacées se se apresentassem isoladamente. Mas sao parte in- tegrante da obrigagao em geral eeste todo, que deve 0 ser 0 que € a0 con- tributo das suas partes, confere a cada um deles, em contrapartida, a autor dade global do conjunto. 0 colectivo vem assim reforgar o singular, € a formula “é o dever” triunfa das hesitagdes que poderiamos ter diante de ‘um dever isolado. Para dizer a verdade, nao pensamnos explicitamente numa ‘massa de obrigagées parciais, adicionadas, que comporiam uma obrigacao total. Talvez nio haja sequer aqui verdadeira composicao de partes. A forca que uma obrigacao extrai de todas as outras é antes comparével ao sopro de vida que cada uma das células aspira, indivisfvel e completo, do fundo do organismo do qual é um elemento. A sociedade, imanente a cada um dos seus membros, tem exigéncias que, grandes ou pequenas, nem por isso ‘exprimem menos, cada uma delas, 0 todo da sua vitalidade. Mas repitamos 4 A OBRIGAGAO MORAL que se trata apenas de uma comparacdo. Uma sociedade humana é um conjunto de seres livres. As obrigagdes que impée, e que lhe permitem subsistir, ntroduzem nela uma regularidade que tem simplesmente uma analogia com a ordem inflexivel dos fenémenos da vida ‘Tudo concorre, todavia, para nos fazer crer que esta regularidade é assi milavel @ da natureza. Nao falo apenas da unanimidade que os homens poem em louvar certos actos e reprovar outros. O que quero dizer é que, até mesmo nos casos em que os preceitos morais implicados pelos juizos de valor nao sao observados, se arranja maneira de fazer parecer que o so. Do mesmo modo que nao vemos a doenca quando passeamos na rua, néo medimos o que pode haver de iasutalidade por as dat fachada que a hu- manidade nos mostra. Demoraria muito a tornarse misantropo quem se ativesse a observacao de outrein, £ notando as nossas proprias fraquezas que acabamos por lamentar ou por desprezar o homem. A humanidade da qual nos afastamos entao & a que descobrimos no fundo de nos. O mal escondese tao bem, 0 segredo € tao universalmente guardado, que cada tum de nés € aqui vitima do logro de todos: por mais severamente que pretendamos julgar os outros homens, cremo-los, no fundo, melhores do que nds. E sobre esta feliz ilusdo que assenta uma boa parte da vida social. E natural que a sociedade faca tudo por encorajé-la. As leis que edita, e que mantém a ordem social, assemelham-se alias sob certos aspectos as leis da natureza. Aprovo perfeitamente que a diferenca seja radical aos, olhos do filésofo. Uma coisa, diz este, 6a lei que constata, outra, a lei que ordena. A segunda podemos subtrait-nos; obriga, mas nao torna neces- satio. A primeira 6, pelo contririo, inelutavel, porque se algum facto se afastasse dela, seria erroneamente que a terfamos tomado por uma lei; haveria uma outra, em seu lugar, que seria a verdadeira, que enunciaria mos de maneira a exprimir tudo que observamos, e com a qual o facto refractario, como os demais, se conformaria entao. ~ Sem divida; mas a distingao esta longe de ser tao nitida para a maior parte dos homens. Lei fisica, lei social ou moral, toda a lei €aos seus olhos um mandamento. H4 uma certa ordem da natureza, ordem que se traduz por leis: os factos “obedeceriam’ a estas leis para se conformarem com essa ordem. O pro- prio cientista mal pode impedir se de crer que a lei “preside” aos factos e Por conseguinte os precede, semelhante a Ideia platénica pela qual as coisas teriam de se regular. Quanto mais alto sobe na escala das genera- lizagdes, mais tende, de bom ou mau-grado, a dotar as leis deste cardcter 25 [AS DUAS FONTES DA MORALE DA RELIGIAO imperativo: temos de lutar deveras contra n6s mesmos para nos repre- sentarmos 0s prineipios da mecanica de outro modo, que nao inscritos desde todaa eternidade em tabuas transcendentes que a ciéncia moderna teria ido buscar a um outro Sinai. Mas se a lei fisica tende a assumir na ‘nossa imaginacao a forma de um mandamento sempre que acede a uma certa generalidade, reciprocamente umn imperativo que se endereca a toda a gente parece:nos ser um pouco como uma lei da natureza. Encontrando- ‘se no nosso espirito, as duas ideias contagiam-e. A lei toma do manda ‘mento o que este tem de imperioso; 0 mandamento recebe da lei o que a lei tem de inelutavel. Uma infraccao da ordem social reveste-se assim de um cardcter antinatural: ainda que se repita com freyueuia, indaz em nds 0 efeito de uma excepcao que estaria para a sociedade como um ‘monstro esta para a natureza. Que se passard, entio, se nos apercebermos por trés do imperativo social de um mandamento religioso? Pouco importa a relagao entre 05 dois termos. Quer interpretemos a religido de uma maneira ou de outra, {quer ela seja social por esséncia ou por acidente, um ponto é certo: de- sempenhou sempre um papel social. Este papel é, alias, complexo; varia segundo os tempos e segundo os lugares; mas, em sociedades como as nossas, a religido tem por primeio efeito sustentar e reforcat as exi cias da sociedade. Pode ir muito mais longe, mas vai sempre pelo menos até ai, A sociedade institui penas que podem ferir inocentes, poupar cul- pados; pouco recompensa; vé grosseiramente e contenta-se com pouco: onde esté a balanga humana que pese como deveria ser as recompensase {as penas? Mas, do mesmo modo que as Ideias platénicas nos revelam, perfeita ¢ wupleta, a realidade da qual nio percebemos mais que imi tagoes grosseiras, assim também a religigo nos introduz numa cidade da qual as nossas instituicoes, as nossas leis ¢ 0s nossos costumes assinalam quando muito, de longe em longe, os pontos mais salientes. Aqui em baixo, a ordem 6 simplesmente aproximativa e mais ou menos artificial mente obtida pelos homens; la no alto, ¢ perfeita, ¢ realizase por si s. A religiao vem pois completar aos nossos olhos a reducao do intervalo, {4 atenuado pelos habitos do senso comum, entre um mandamento da sociedade e uma lei da natureza. ‘Somos assim remetidos sempre para a mesma comparacao, defettuosa ‘sob muitos aspectos, mas aceitavel acerca do ponto que aqui nos interessa. (Os membros da cidade conjugam-se como as células de um organismo. 26 AOBRIGAGAO MORAL Ohabito, servido pela inteligéncia e pela imaginacio, introduz entre eles tuma disciplina que imita de longe, através da solidariedade que estabe- lece entre as individualidades distintas, a unidade de um organismo de células anastomosadas Tudo concorte, uma vez mais, para fazer da ordem social uma imi- tacdo da ordem observada nas coisas. Cada um de nds, quando se volta para si mesmo, se sente evidentemente livre de seguir 0 seu gosto, 0 seu. desejo ou 0 seu capricho, e de nao pensar nos outros homens. Mas esta veleidade mal chegou ainda a desenharse e jé uma forca antagénica sobre vém, feita de todas as forcas sociais acumuladas: diferentemente dos ‘mébeis individuais, que puxam cada um para o seu lado, essa torca acede- ria a uma ordem que nao deixaria de ter analogia com a dos fenémenos naturais, A célula componente de um organismo, que se tornasse por um, instante consciente, mal teria esbogado a intengdo de se emancipar e jaa necessidade a recapturaria. 0 individuo que faz parte da sociedade pode inflectir e até mesmo quebrar uma necessidade que imita aquela, para cuja ctiacao contribuiu um pouco, mas que sobretudo softe: 0 senti- mento dessa necessidade, acompanhado pela consciéncia de se lhe poder subtrair, nem por isso é menos aquilo a que ele chama obrigacao. As encarada, e tomada na sua acepcio mais comum, a obrigacao esta para a necessidade como o habito esta para a natureza. Nao vem, portanto, precisamente do exterior. Cada um de nds pertence sociedade, tanto quanto a si mesmo. Se a sua consciéncia, trabalhando em profundidade, the revela, a medida que mergulha, uma personalidade cada vez mais original, incomensurdvel com as outras € de resto inex- plimitvel, cada unt Ue iG, pela sua propria supetficie, esté eu continu dade com as outras pessoas, € semelhante a elas, une-selhes por uma isciplina que cria entre elas e nds uma dependéncia reciproca. Instalar- -se nesta parte socializada de si mesmo, nao sera, para o nosso eu, 0 tinico meio de se ligar a qualquer coisa de sélido? Sé-lo-ia, se no pudéssemos de outra maneira subtrairnos a uma vida de impulsos, de capricho e de arrependimento. Mas no mais profundo de nés mesmos, se soubermos procurélo, descobriremos talvez um equilibrio de um outro género, mais desejavel ainda que 0 equilibrio superficial. As plantas aquaticas, que sobem a superficie, sio incessantemente agitadas pela corrente; as suas folhas, que se juntam a tona de agua, dao-hes, a superficie, estabilidade, entrelagando-se. Mas mais estaveis ainda so as raizes, solidamente plan- a7 [AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIAO tadas na terra, que por baixo as sustentam. Todavia, nao estamos de mo- mento a falar do esforco por meio do qual cada um de nés escavaria até a0 fundo de si mesmo. Trata-se de algo possivel, mas excepcional; e é a ‘superficie, no seu ponto de insergao no tecido das outras personalidades cexteriorizadas, que o nosso eu comummente descobre a que se enlagar: a sua solidez esta nesta solidariedade. Mas, no ponto onde se enlaca, ele proprio é um eu socializado. A obrigacio, que nos representamos como tum laco entre os homens, comeca por ligar cada um de nds a si mesmo. Seria, pois, um erro acusarmos uma moral puramente social de negli: genciar os deveres individuais. Ainda que, teoricamente, s6 perante os ‘outros homens estivéssemos obrigados, estilo-famos, de facto, perante nds mesmos, uma vez que a solidariedade social s6 existe a partir do momento em que um ett social se acrescenta em cada um de nés 20 eu individual. Cultivar este “eu social” € o essencial da nossa obrigacao perante a sociedade. Sem qualquer coisa dela em nds, a sociedade nao teri sobre nés preensio alguma; e nds, mal temos também necessidade de nos dirigirmos a ela, bastamo-nos a nés mesmos, na medida em que a descobrimos presente em nés. A sua presenca é mais ou menos marcada segundo os homens; mas nenhum de nds se poderia isolar dela em abso- Into. Nao 0 quereria fazer, porque sente bem que a maior parte da sua forga vem dela, ¢ que deve as exigéncias incessantemente renovadas da vida social essa tensdo ininterrupta da sua energia, essa constancia de direccao no esforco, que assegura a sua actividade o mais elevado rendi- mento. Mas nao o poderia também fazer, ainda que o quisesse, porque a sua meméria e a sua imaginacao viver do que a sociedade pos nelas, porque a alma da sociedade ¢ 1manente a linguagem que fala, © porque, ainda que ninguém mais esteja presente, ainda que se limite a pensar, continua a falar de si para consigo. Em vao tentariamos representarmo- “nos um individuo desprendido de toda a vida social. Até mesmo mate- rialmente, Robinson na sua ila permanece em contacto com os outros homens, porque os objectos manufacturados que salvou do naufrégio, € sem os quais nao poderia arranjarse, o mantém na civilizacao e, por con- seguinte, na sociedade, Mas um contacto moral éIhe ainda mais neces- sdrio, porque em breve se deixaria desencorajar se nao pudesse apor a dificuldades que renascem sem cessar mais do que uma forca individual ceujos limites experimenta, Extrai energias da sociedade a que permanece idealmente ligado; ele pode nao a ver, masela, pelo seu lado, esté presente 8 2 A OBRIGAGAO MORAL, © veo a ele: se 0 eu individual conservar vivo e presente © eu social, far isolado, 0 que faria com 0 encorajam (0 € até mesmo o apoio da sociedade inteira. Os que as circunstancias por um tempo condenam a solidao e nao enconteam em si mesmos os recursos da vida interior pro- funda, sabem o preco que representaria “deixarem-se ir’ quer dizer, nao fixarem o eu individual no nivel prescrito pelo eu social. Cuidarao pois de alimentar este tltimo, para que ele em nada afrouxe a sua severidade em relacao ao outro. Caso seja necessario, procurarao para ele um ponto de apoio material e artificial. Todos estaremos lembrados do guarda-flo restal de Kipling, isolado no seu casinhoto no meio de uma floresta da India. Todas a noites veste um ato preto completo antes de jantar, “a fim de nao perder, no seu isolamento, 0 respeito por si mesmo" Nao iremosa ponto de dizer que este eu social sejao“espectador impar- cial” de Adam Smith, que se torne necessirio identificé-lo com a cons- ciéncia moral, que cada um de nés se sinta satisfeito ou descontente con- sigo segundo esse seu eu seja bem ou mal impressionado. Descobriremos para os sentimentos morais fontes mais profundas. A linguagem reGne aqui sob 0 mesmo nome coisas muito diferentes: 0 que ha de comum entre 0 remorso de um assassino e aquele que podemos experimentar, tenaz e torturante, por termos ferido um amor-préprio ou sido injustos para com uma crianga? Enganar a confianga de uma alma inocente que se abre para a vida é um dos piores actos possiveis aos olhos de uma certa consciéncia que parece nao ter o sentido das proporgdes, justamente porque nao toma de empréstimo a sociedade os seus padrdes, 05 seus instrumentos, os seus métodos de medida. Mas nao é essa a consciéncia que as mais day veces se exetee, © Watase, de resto, de uma wousciencia ‘mais ou menos delicada segundo as pessoas que consideremos. Em geral, o veredicto da consciéncia é aquele que o eu social pronunciaria, Em geral também, a angéstia moral é uma perturbacao das relagoes entre este eu social e 0 eu individual. Analisemos 0 sentimento do remorso na alma do grande criminoso. Poderemos de inicio confundilo com 0 medo do castigo, atendendo as suas precaugoes extremamente ‘minuciosas, completadas e renovadas sem parar, que se destinam a escon- der o crime ou a fazer com que nao o tomem por culpado; atendendo a ideia, que a todos os instantes o angustia, de ter esquecido um pormenor * Kipling, In the Rukh, na colectineaintitulada Many Inventions. rn n [AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIAG ce de ver a justiga descobrit esse indicio revelador. Mas olhemorlo de mais perto: nao se trata tanto para o nosso homem de evitar 0 castigo como de pagar o passado ede fazer de conta que o crime nao foi cometido, Quan. do ninguém sabe que uma coisa aconteceu, é poco mais ou menos como se nao tivesse acontecido. £, portanto,o seu proprio crime que 0 eriminoso gostaria de anular, suprimindo todo 0 conhecimento que dele possa ter ‘uma consciéncia humana. Mas o seu proprio conhecimento do crime subsiste, ¢ eis que o rejeita cada ver mais para o exterior dessa sociedade ‘em que ele esperava manterse apagando 0s tracos do seu crime. Porque 4 mesma estima continua a ser concedida ao homem que ele era, 20 homem que ele deixou de ser; nao é a ele, portanto, que a soctedade se dirige: € a um outro que fala. Ele, que sabe aquilo que é, sente-se entre os homens mais isolado do que se sentiria numa ilha deserta; porque na solidao transportaria consigo, rodeando-o e sustentando-o, a imagem da sociedade, ao passo que, doravante, ei-o cortado tanto da imagem como da coisa. Reintegrarse-ia na sociedade confessando o seu crime: seria assim tratado como merece, mas seria bem a ele que entao se ditigiriam. Retomaria a sua colaboracao com os outros homens. Seria castigado por cles, mas, tendo-se posto do seu lado, seria um pouco o proprio autor da sua condena¢ao; ¢ uma parte da sua pessoa, a melhor, escaparia assim & pena. Tal é a forca que impelira o criminoso a denunciarse. Por vezes, sem ir tao longe, confessar-se-4 a um amigo, ou a qualquer outro homem de bem. Regressando desse modo a verdade, senao aos olhos de todos, pelo menos aos de alguém, volta a ligar-se a sociedade nesse ponto, por meio de um fio; se nao se reintegra nela, esta pelo menos ao lado dela, perto dela; deixa de Ihe ser estrantio; em tov v cacy, sai da sua rupture ‘completa com ela e com tudo aquilo que dela traz dentro de si mesmo. E necesséria uma ruptura semelhante, violenta, para que « adesio do individuo a sociedade se revele claramente. Em tempos comuns, agimos ‘em conformidade com as nossas obrigages, mais do que pensamos nelas. Se tivéssemes em todos os casos de evocar a sta ideia, de enunciar a sua formula, seria muito mais fatigante cumpricmos o dever. Mas o habito é suficiente e as mais das vezes basta que nos deixemos ir para darmos & sociedade o que ela espera de nés. E, alias, a sociedade facilitou singular- mente as coisas intercalando intermediérios entre nds ¢ ela: temos uma familia, exercemos um oficio ou uma profissdo; pertencemos & nossa ‘comuna, a nossa circunscri¢ao, ao nosso departamento; ¢, a onde ainser 30 A OBRIGAGAO MORAL cao do grupo na sociedade ¢ perfeita, basta-nos, em rigor, preenchermos as nossas obrigagdes para com o grupo para estarmos ern ordem com a sociedade, Esta ocupa a periferia; 0 individuo esta no centro. Do centro paraa periferia dispdem-se como outros tantos circulos concéntricos cada vex mais largos, os diversos agrupamentos a que o individuo pertence. Da periferia para o centro, a medida que o circulo diminui, as obrigacoes somam-se as obrigagdes € 0 individuo acaba por verse perante o seu con: junto. A obrigagao aumenta assim so avangar; mas, quanto mais compli- cada se torna, menos abstracta 6, e mais facilmente tendemos a aceité-la Quando se torna plenamente conereta, coincide com uma tendéncia, tio heLitual quea achamos natural; no sentide de desempenharmos na socie- dade o papel que nela o nosso lugar nos atribui. Enquanto nos abandona- ‘mos a essa tendéncia, mal a sentimos. $6 se mostra imperiosa, como todo ohabito profundo, quando nos afastamos dela. Ea sociedade que traca ao individuo o programa da sua existéncia quotidiana, Ninguém pode viver em familia, exercer a sua profissdo, tra- tar dos mil e um assuntos da vida de todos os dias, ir &s compras, passear pela rua ou sequer ficar em casa, sem obedecer a prescrigdes e sem se vergar a obrigagdes. A todo o instante, uma escolha se impde; optamos. naturalmente pela conformidade com a regra. Mal temos con: disso; nao fazemos esforco algum. Foi tracado um caminho pela socie- dade; encontramo-lo aberto & nossa frente ¢ seguimo-lo; ser-nos-ia necessério um pouco mais de iniciativa para andarmos pelo meio dos campos. 0 dever, assim entendido, ¢ quase automaticamente que se cumpre; ¢ a obediéncia ao dever, se nos ativéssemos ao caso mais fre- quente, definirse-ia por wm deivarandar ot um abandona. O que far entéo com que essa obediéncia surja, pelo contrério, como um estado de tenséo, € 0 proprio dever como uma coisa rigida e dura? f evidente- ‘mente 0 facto de se apresentarem casos em que a obediéncia exige de cada um de nés um esforco sobre si mesmo. Sao casos excepcionais; mas damo-nos conta deles, porque os acompanha uma consciéncia intensa, como acontece sempre que ha hesitacao; para dizer a verdade, a cons- iencia € essa hesitacéo mesma, o acto que se desencadeia por si s6 € passa pouco mais ou menos desapercebido. Entao, devido a solidarie- dade das nossas obrigagoes entre elas, ¢ porque o todo da obrigacto 6 imanente a cada uma das suas partes, todos os deveres assurmem a colora- ‘30 que excepcionalmente este ou aquele de entre eles tomou. Do ponto 2 3 6 [AS DUAS FONTES DA MORALE DA RELIGIAO de vista prtico, noha inconveniente algum, hd até mesmo certas vanta gens em encarar assim as coisas. Por mais naturalmente, com efeito, que facamos o nosso dever, poclemos encontrar resistencia em nés; é itil con- tar com isso,e nd ter por adquirido que seja facil continuar a serse bom esposo, bom cidadio, trabalhaclor consciencioso, enfim homem de bem. Hi, alias, uma forte parte de verdade nesta opiniao; porque se ¢ rela tivamente fécil a cada um de nés manter-se no interior do quadro social, é nos necessirio antes inseritmo-nos nele, ¢ a insercao exige um esforco. ‘Aindisciplina natural da crianga, a necessidade da educacao, provam-no bbem, E de justiga que levemos em conta no individuo 0 consentimento virtualmente por ele concedido av wujuuty dao suas vbrigacies, ainda aque jé no precise de se eonsultar acerca de cada uma dela. Ao cavaleiro basta deixarse transportar; mas teve de comecar por montar. O mesmo se passa com o individuo perante a sociedade. Em certo sentido seria falso seria em todos os sentidos perigoso dizermos que o dever se pode cummprit automaticamente. Erijamos pois em maxima pratica que @ obediencia 2o dever é uma resisténcia de cada um de nés a si mesmo Mas uma recomendagio é uma coisa, euma explicacgo, outra. Quando, pata dar conta da obrigacdo, da sua esséncia e da sua origem, se afirma {que a obediéncia ao dever € acima de tudo um esforco de cada um sobre si mesmo, um estado de tensfo ou de contraccdo, comete-se um erro psi- col6gico que viciou muitas teorias morais. Surgiram assim dificuldades attificiais, problemas que dividem os filésofos e que veremos desvanece rem-se quando analisarmos 0s seus termos. A obrigagao nd é de maneira nenhuma um facto tnico, incomensurdvel com os outros, erguendo se tcima deles como uma aparigae misteriora. Se bom ntimera de ilisnfos, fem particular os que se ligam a Kant, a encararam assim, é que con- fundiram o sentimento da obrigagio, estado tranquilo e aparentado com a inclinacao, com 0 abalo que por vezes nos impomos para quebrar 0 que se lle oporia 'No final de uma crise reumatica, podemos experimentar desconforto, senao dor, quando movemos os nossos mésculos ¢ articulagoes. Trata-se da sensagao global de uma resistencia que os Orgdos opoem. Diminul ‘pouco a pouco,¢ acaba por se perder na corisciéncia que temas dos nossos movimentos quando passamos bem. Podemos, alias, admitir que conti- nua entao presente em estado nascente, ou antes evanescente, a espera apenas de uma ocasio para se intensificar; quem sofre de reumatismo 3 A OMRIGAGAO MORAL deve, com efeito, contar com a ocorréncia de crises. Que ditfamos, no entanio, de alguem que nao visse no nosso sentimento habitual do movi mento dos bragos e das pernas mais que a atenuagao de uma dor, defi niindo assim a nossa faculdade locomotora por um esforco de resistencia a0 mal-estar reumatico? Quem o fizesse comecaria por renunciar a dat conta dos habitos motores; cada um destes implica de facto uma com- binagao particular de movimentos, 36 através dela se pode compreender. AA faculdade geral de andar, de correr, de mover 0 corpo, nao é mais que a soma desses habitos elementares, cada um dos quais descobre a sua expli- cacio propria nos movimentos especiais que envolve. Mas, se tal facul- dade for apenas globalmente encarade, ¢ olém diszo crigida em forga posta a uma resisténcia, faremos necessariamente surgit a par dela 0 reumatismo enquanto entidade independente. Dirse-ia que um erro do mesmo género tem sido cometido pot muitos dos que especularam sobre a obrigacdo. Temos mil obrigacdes especiais, e cada uma delas reclama a sua explicacao propria. € natural, ou mais precisamente habitual, que Ihes obedezamos a todas. Por excepeao, afastar-nos-emos de uma de entre clas resistirTheemos: sendo que a resistencia aessa resistencia produzira tum estado de tensao ou de contracrao, Tal € a rigidez que exteriorizamos quando atribuimos ao dever um aspecto tao severo. E nela do mesmo modo que pensam os filésofos quando acreditam. resolver a obrigacéo em elementos racionais. Para resistirmos a resistén- ia, para nos mantermos no caminho certo quando o desejo, a paixdo ou o interesse nos afastam dele, teremos necessariamente de nos darmos razoes a nés mesmos. Ainda que tenhamos oposto ao desejo ilicito outro desejo, este tltimo, suscitado pela vontade, s6 tera podido surgir do apelo de uma ideia, Em suma, um ser inteligente age sobre si mesmo por inter- médio da inteligéncia, Mas, do facto de ser através de vias racionais que chegamos & obrigacao, nao se segue que a obrigacao tenha sido de ordem racional. Insistiremos adiante neste ponto; de momento nao entendemos discutir ainda as teorias morais. Digamos simplesmente que uma coisa € uma tendéncia, natural ou adquirida, e outra coisa o método necessaria- mente racional que, para Ihe conferir a sua forga e para combater 0 que a ela se ope, um ser razodvel empregard. Neste dltimo caso, a tendéncia eclipsada pode reaparecer; ¢ tudo entao se passa sem dtivida como se através desse metodo tivéssemos conseguido reconstituir a tendencia. Na tealidade, limitamo-nos a afastar 0 que a perturbava ou detinha, Con- 3

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