Você está na página 1de 37
Comunicasdo organizadora: Marla Immacolata Vassallo de Lopes Fadl Fuentes Navarro ¢ Eduardo Duarte © Lucrécia D'Alessio Ferrara * Luiz C. Martino * José Marques de Melo * Ida Regina Stumpf ¢ Maria Helena Weber * José Luiz Aidar Prado © Aluizio R. Trinta ¢ Luis Carlos Lopes * Rousiley C. M. Maia e Vera V. Frangae Alberto Efendy Maldonado ¢ Laan Mendes de Barros e Jacques A. Wainberg ¢ Giovandro Marcus Ferreira ° Maria Immacolata Vassallo de Lopes Fernando Passos * Muniz Sodré * Wilson Gomes * Octavio lanni Vu. comunicacgao © Sigal neh sig sions re Cape contemporanea Apresentacado Parte 1 As epistemologias contemporaneas ®@ 0 lugar da Comunicacao La produccién social de sentido sobre la produccién social de sentido: hacia la construccién de un marco epistemoldgico para los estudios de la comunicacién Raul Fuentes Navarro Por uma epistemologia da Comunicagao Eduardo Duarte Epistemologia da Comunicacao: além do Sujeito e aquém do objeto Lucrécia D'Alessio Ferrara As epistemologias contemporaneas 0 lugar da Comunicagao Luiz C. Martino Parte 2 Atravessando frontelras: gs interfaces da Comunicagao Midiologia Brasileira: 0 resgate das ontes paradigmaticas José Marques de Melo 5 4l 69 105 Comunicacao e Informacao: conflitos e convergéncias. Ida Regina Stumpf, Maria Helena Weber O campo da comunicagao e a comunicagao entre os campos na era da globalizacao José Luiz Aidar Prado A Comunicagao e(m) seus limiares Aluizio R, Trinta Parte 3 Teorlas e metodologias no campo da Comunica¢cdo Hermenéutica, teorias da representacao e da argumentagao no campo da Comunicagao Luis Carlos Lopes A comunidade e a conformagaéo de uma abordagem comunicacional dos fendmenos Rousiley C. M. Maia, Vera V. Franca Exploragées sobre a problematica epistemolégica no campo das ciéncias da Comunicacao Alberto Efendy Maldonado Para que pesquisar? Comunicacao: uma ciéncia social aplicada Laan Mendes de Barros Parte 4 A disciplinarizagado da Comunicagao Geopolitica como disciplina comunicacional Jacques A. Wainberg Em busca da disciplinarizacaéo da Comunicacao: da no¢gao de campo aos dominios de pesquisa Giovandro Marcus Ferreira Sobre o estatuto disciplinar do campo da Comunicagao Maria Immacolata Vassallo de Lopes 121 35 155 63 187 205 227 245 253 277 Arte, Comunicagaio e Ciéncia — A questao da linguagem Fernando Passos Parte 5 © futuro do campo da Comunicagdo. Ciéncia e método em Comunicagao Muniz Sodré O estranho caso de certos discursos epistemolégicos que visitam a drea de Comunicagao Wilson Gomes Asociedade mundial e 0 retorno da grande teoria Octavio lanni 295 305 313 331 As epistemologias contemporaneas e o lugar da Comunica¢do Luiz C. Martino Professor do Programa de Pés-Graduagao ‘em Comunicagao da UnB Introducao: o debate Popper/Adorno HA pouco mais de quarenta anos, em torno de uma questo seme- lhante a proposta a esta mesa, uma associagao nacional de socidlo- gos se reuniu para discutir a relagdo dessa ciéncia coma epistemo- logia. Com esse objetivo convidou-se o ilustre prof. K. Popper, que resumindo e apresentando seu trabalho em 27 teses propunha uma “formulacdo programatica da tarefa das ciéncias sociais tericas” . Por si sO ja seria bastante interessante ver como Popper, cujo essencial de sua obra se volta para uma reflexao sobre as ciéncias da natureza, ajustaria suas teses para pensar uma ciéncia social, mas a isto tam- bém se acrescenta o fato de que sua fala seria seguida dos comen- tarios de um outro professor nao menos ilustre, o prof. T.W. Adorno’. A frustragao, no entanto, foi tao inevitavel quanto a distancia que se- para os dois pensadores. Incapazes de superar as contradigoes que se instauravam entre eles, o esperado debate de idéias simplesmente nao aconteceu. Pelo menos n4o no plano das idéias epistemolégicas, como previsto inicialmente no objetivo daquela reuniao anual. Devemos estar atentos as razdes desse malogro, pois elas con- tinuam presentes € se apresentam toda vez que se tenta, como nés neste momento, discutir algumas questées de epistemologia 4. Cf, ADORNO, A.; POPPER, K. De Vienne a Francfort: la querelle allemande des sciences sociales. Complexe. Bruxelles, 1979. 70 EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAGAQ. Em sintese, podemos dizer que as criticas de Adorno desloca- ram o debate para fora do problema epistemoldgico, arrastando to- das as intervengdes nesta mesma diregao. Ele alega que a produgao do conhecimento se encontra intrinsecamente determinada pelo con- flito de interesses sociais, e, conseqlientemente, o conhecimento se- ria apenas uma extens4o e um desdobramento dos interesses af pre- sentes. Rejeita a produgao do conhecimento enquanto tal, denun- ciando-a como efeito do jogo do poder, e, por conseguinte, nega ao conhecimento cientifico qualquer autonomia em relacao ao cmnflito de interesses sociais. Dai o enquadramento das contribuigdes tedri- cas de Popper como um posicionamento politico, o qual ele denun- cia e passa a criticar. Aimpossibilidade de levar as Ultimas conseqtiéncias a posigaéo de Adorno, a inviabilidade de tirar todas as implicagoes de sua tese, é uma das raz6es que autoriza a instauracao da ciéncia e a possibili- dade de que uma reflexAo epistemoldgica venha a se instaurar. Nao quero dizer com isso que a posigao de Popper e dos que defendem a ciéncia seja mais bem fundamentada, ela também tera suas bre- chas, seus pontos de inflexao e obscuridade, apenas quero frisar que o ponto de vista adotado por Adorno permanece um ponto de vista, e como tal ele nao pode desautorizar ou desqualificar a perspectiva de uma ciéncia objetiva. Porém, o mais importante a destacar é que 0 fato mesmo de en- gajar-se num debate epistemolégico significa aceitar certos pressu- postos e adotar um posicionamento neste debate filosdfico de fundo. E justamente esse ponto que toca a questao desta mesa e nos inte- ressa ressaltar. Penso que nao ha nada mais urgente hoje, para um. seminario de epistemologia em nossa area, que zelar para que as condigdes de um debate epistemoldgico sejam possiveis. Porque antes de mais nada, discutir epistemologia é necessariamente uma tomada de posigao. Significa aceitar certos pressupostos que sao aqueles mesmos sobre os quais se funda a ciéncia: a possibilidade de conhecer 0 real a partir de certos critérios de investigagao, entre os quais a reflexao critica, a objetividade, a produ¢ao da verdade pela argumentagao e comprovagao. Conceitos que ganham um sig- nificado completamente diferente na fala de Adorno’. A discussao 2. Ffeito de posicionamentos ontolégicos muito diversos. Cf. a interven- cao de Popper. AS EPISTEMOLOGIAS CONTEMPORANEAS E © LUGAR DA COMUNICAGAO, n epistemoldgica pressupée, portanto, aquilo que Quine chamou de engajamento ontoldgico, um certo posicionamento em relagao a al- guns problemas filosdficos de fundo, justamente como 0 real ea ob- jetividade. A discussao epistemolégica comeg¢a a partir da problema- tizagao dessa investigagao objetiva do real, mas ndo pode recuar nes- tes pressupostos sem colocar em risco a propria condigao de possi- bilidade de um saber de tipo cientifico, ou sem que haja uma dissolu- ¢&o da questao epistemoldgica no universo mais vasto da filosofia. E é praticamente isso que Popper, ao contrario de discutir suas 27 te- ses, acaba tendo de lembrar a seu interlocutor. Longe de avan¢ar nos problemas, ele se vé obrigado a recuar até as condig6es de possibili- dade de um debate epistemolégico, as condigdes em que ha sentido falar de epistemologia. Nosso objetivo aqui é mostrar como, numa larga medida, a pro- dugao epistemoldgica em nossa area se encontra em situacao ana- loga. Sem se posicionar em relacao a este engajamento, todo debate epistemoldégico se vé privado de sentido e, de antem&o, condenado a recuar a seus pressupostos elementares, sem realmente poder avan- car em nosso verdadeiro objetivo: a fundamentacao de um saber co- municacional. Quais seriam as questoes tipicas que caracterizam 0 trabalho epis- temoldgico e como elas seriam aplicadas ao saber comunicacional? Acredito que essas duas quest6es podem nos ajudar a enfrentar o grande desatio do tema desta mesa de debate: “As Epistemologias Contempor&neas e o Lugar da Comunicacao”, de forma mais apro- priada as dimensGes e aos propésitos deste encontro. Primeiramente, tentaremos mostrar que a epistemologia se ca- racteriza por certas questOes especificas € ndo por toda e qualquer relacao ao conhecimento. Nesse sentido recordaremos algumas dis- tincdes importantes entre a epistemologia e outras disciplinas que se ocupam da questdo do conhecimento, tais como a filosofia das ciéncias, a gnosiologia, a historia, a psicologia ea sociologia das cién- cias. A seguir, na segunda parte desta intervencao passaremos em revista alguns pontos significativos da produgao epistemoldgica do saber comunicacional Aprincfpio, o tema desta mesa sugere de forma muito clara uma tarefa aparentemente bem definida: levantar as principais correntes do pensamento epistemoldgico atual para af situar os trabalhos de 72 EPISIEMOLOGIA DA COMUNICAGAO. epistemologia da Comunicagao. Entretanto, sua execugao nao se mos- tra tao facil: poder indicar o lugar da Comunicagao no espa¢o das epis- temologias contemporaneas é uma tarefa que pressup6e resolvidas duas questées prévias para as quais nem os comunicélogos, nem os especialistas em epistemologia estariam em condigdes de dar uma resposta decisiva: 1) Quais sao as correntes representativas do tra- balho epistemoldgico?; 2) Como caracterizar o trabalho epistemol6- gico desenvolvido na area de comunica¢ao? Sao as respostas a ques- tOes Como essas que nos permitiriam reunir as condi¢des de realizar os objetivos propostos por esta mesa de debates, ou seja, situar as tendéncias epistemoldgicas dos comunicélogos em relacao aquelas de uma epistemologia global. 1. As correntes representativas do trabalho epistemolégico Comecemos pela epistemologia geral. Mesmo restringindo bas- tante o campo da epistemologia apenas ao do conhecimento cienti- fico (mais adiante discutiremos este recorte), a tarefa de fornecer um panorama das epistemologias contemporaneas de certo nos coloca- ria frente a uma tarefa cuja realizagao nao poderia ser apontada se- nao como temeraria. Hibrido da ciéncia e da filosofia, a epistemologia guarda uma importante caracteristica dessa ultima: nenhum panorama da filo- sofia, nenhuma tentativa de levantar e discutir as tradi¢6es de pen- samento que se formam em torno de certos problemas fundadores, pode dar conta de realizar essa tarefa sem imediatamente inscre- ver-se nesse quadro. Em outras palavras, uma viséo sobre 0 con- junto da filosofia nao pode ser alcangada a partir da exterioridade da tradic4o filosdfica, pois nado ha visdo da filosofia sem ser ela mesma filosofica, entao, parte integrante dessa tradigao e de uma corrente de pensamento. Toda discussdo e visdo do campo filos@- fico significa uma tomada de posigdo em relacao as outras correntes que compéem a tradicao filoséfica. De modo que toda doutrina € simultaneamente a parte e 0 todo da reflexao filos6fica. Ela é parte porque nao é, nem pode ser, 0 tinico posicionamento possivel; el é parte porque sé pode inserir-se de modo parcial (tomando para- do por certos principios e verdades iniciais, selecionando seus pra blemas, fazendo opcoes por certos procedimentos de resolugao das ‘AS EPISTEMOLOGIAS CONTEMPORANEAS E O LUGAR DA COMUNICAGAO 73 problemas etc.). Mas nenhuma delas pode realmente se posicionar sem produzir um conhecimento do todo, de modo que a filosofia s6 existe a partir de um posicionamento e 0 todo. da filosofia s6 pode aparecer a partir de uma de suas partes, ou seja, a partir de uma de suas correntes. Com a epistemologia nao é diferente Poderiamos dizer, por exemplo, junto com Hilton Japiassu, em sua obra Introdugao ao pen- samento epistemolégico’, que as principais correntes do pensamento epistemoldgico seriam: a arqueologia de M. Foucault, a epistemo- logia genética de Jean Piaget, a epistemologia historica de Bache- lard, o refutacionismo elaborado por K. Popper. Evidentemente que muitas outras referéncias esto ai omitidas, e que nem todos os ci- tados se deixam classificar por esses termos (Bachelard, por exem- plo, talvez fosse melhor pelo seu “racionalismo aplicado”). De ou- tra parte, tal classificagéo tem o mérito de nos informar sobre 0 trabalho de certas correntes dentro do pensamento epistemolégi- co, e poderfamos tentar justificar dizendo que ai talvez estejam con- tidas algumas das principais ou das mais representativas correntes desse dominio. No entanto um tal panorama, por maior que sejaa boa vontade que demonstre em nos informar, por mais modesto. que seja na avaliacao de seus objetivos (fornecer uma introduc¢ao), nao resistiria muito tempo aos ataques da critica. Ele nao poderia, por exemplo, justificar de modo convincente o porqué dessas es- colhas e nao de outras (qual o critério usado para a selecao dessas correntes?). Ou qual a definigdo de epistemologia empregada?, ja que hd uma nftida heterogencidade dos problemas trabalhados por cada uma delas. Sem um esclarecimento da parte do autor, parece-nos que Ja- piassu procura fornecer esse panorama a partir do destaque e da re percussdo que certas escolas alcangaram, ou pela notoriedade de seus artifices. © que evidentemente nao é um procedimento dos mais con- vincentes, ao menos nao se constitui num critério epistemologicamente valido, j4 que nao opera no nivel do conhecimento, mas claramente a partir de uma otica e de procedimentos exteriores a ele. Nesse sentido este tipo de abordagem deve ser contrastado com a que nos fornece, por exemplo, Gilles-Gaston Granger, que 3. Francisco Alves. Rio de Janeiro, 1979. 74 EPISIEMOLOGIA DA COMUNICACAQ. aborda o tema a partir de trés tipos de epistemologia: pds-carte- siana, pés-kantiana e pés-russeriana*. Cada uma correspondendo a um tipo de problema, ou a um tipo de tratamento da questao do conhecimento por certos autores-chave (0 prefixo “pés” nao signi- fica ultrapassar, mas assinalar esses autores como grandes refe- réncias). Assim temos diferentes concepgdes do conhecimento se- gundo o tomarmos em referéncia a suas fontes, a suas condigées de possibilidade ou a seus fundamentos ldgicos. Também poderiamos abordar o campo epistemolégico segundo as distingdes dos sabe- res cientificos e falar de uma epistemologia das ciéncias da nature- za, das ciéncias bioldgicas ou das ciéncias humanas; ou ainda, em vez de seus objetos, propor um recorte e classificagaéo por meio de seus métodos: saberes de tipo nomotéticos, dialéticos, estrutura- listas, empiricos... Nos damos conta, entaéo, que 9 panorama proporcionado por Japiassu é uma entre outras tantas maneiras possiveis de apresen- tar 0 campo epistemoldgico e que o autor realmente nos apresenta nada mais que uma colegao de correntes epistemoldgicas, cujo cri- tério de selecaéo permanece obscuro e se encontra encoberto pelo proprio ato da proposi¢ao das correntes. Adotando uma atitude opos- ta, a abordagem de Granger opta por uma representagao bastante esquemiatica dessas correntes, sem dissimular sua intervencgdo. Ao contrario da visio proposta por Japiassu, nao é mais um critério clan- destino que norteia a selegdo, mas um diferencial propriamente epis- temolégico: os tipos de epistemologia sao estabelecidos como tipos de problemas epistemoldgicos, que fundam os grandes movimen- tos desse ramo da filosofia. As correntes, portanto, sdo selecionadas e classificadas a partir de um critério interno ao pensamento episte- moldgico, 0 que permite dizer que nao é mais o caso de propor uma representacao neutra do campo epistemoldgico, como se este fosse perfeitamente transparente ao olhar do observador, ou ainda com- posto por elementos imediatamente disponiveis, dados que se co- Them aqui e ali como elementos naturais. Acomparacao desses dois autores nado somente langa a suspeita de que a representacao do panorama das correntes do pensamento 4. GRANGER, Gilles-Gaston. “Epistémologie”. In Encyclopédie Universa- lis, 1984. AS EPISTEMOLOGIAS CONTEMPORANEAS E © LUGAR DA COMUNICAGAO, 75 epistemolégico pode variar segundo os pontos de vista, mas tam- bém que ela pode ser uma tarefa muito mais dificil do que se poderia imaginar a primeira vista. Mesmo porque, como observa Granger, uma histéria da epistemologia se confunde coma historia da filosofia e com o estado em que se encontraa ciéncia. Além disso, o contraste desses dois autores permite as diferengas de abordagem do proble- ma do conhecimento, que nao podem ser desconsideradas. Diferen- cas muito mais amplas que simplesmente aquelas que encontramos entre as correntes no interior de uma mesma disciplina. E é sobre esse ponto que gostariamos de voltar agora nossa atengao. A epistemologia diante das outras abordagens do problema do conhecimento Ora, sea epistemologia nao é tinica, ela tampouco éa tinica manei- ra de abordar o problema do conhecimento. A prdpria diferenga de critérios que aparece na comparacao acima ja € um reflexo dessa cons- tatagao. Dai anecessidade, se quisermos realmente entrar na discus- sao epistemolégica, de termos em conta certas distingOes entre: a gnosiologia ou a teoria do conhecimento; a filosofia das ciéncias. E de outro lado entre: ' a psicologia das ciéncias; — a historia das ciéncias; a sociologia da ciéncia. Para além das conveng6es terminoldgicas, essa variedade se apdia em uma base muito concreta, que é a propria diversidade de abordagens possiveis do problema do conhecimento. SAo orienta- ¢6es muito diversas, que apontam para problemas e campos de in- vestigagdo bastante especificos. Mas se cada uma dessas discipli- nas indica uma relag4o particular com o estudo do conhecimento, qual seria a diferenca entre a epistemologia e as outras abordagens? Como situd-la nesses dois blocos? Uma observagao inicial é que 0 primeiro bloco situa o problema no interior da filosofia, enquanto o segundo diz respeito a produgao 76 EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAGAQ- de conhecimento cientifico tomada como objeto de disciplinas de tipo cientifico. Vejamos, rapidamente, alguns problemas das disci- plinas desse ultimo bloco. Historia da ciéncia A historia da ciéncia toma como objeto um problema bastante especifico, a evolugao do pensamento cientifico. Duas grandes vias af se apresentam: a primeira toma a ciéncia como uma instituicao que se transforma no tempo, em fungao das relagdes que estabele- ce com outras instituigdes sociais ou com a cultura (como faz, por exemplo, M. Foucault). Eo modo tipico do historiador. Outro modo de abordar o mesmo problema é tratar de aspectos estritamente ine- rentes e internos ao conhecimento cientifico. Nesse aspecto a his- toria da ciéncia se confunde com uma das vias e métodos do pen- samento epistemolégico, que busca na historicidade do conheci- mento cientifico um parametro da variabilidade possivel para a abor- dagem e o tratamento de certas questées apresentadas ao pensa- mento cientifico (é neste sentido que os trabalhos de A. Koyré e de T. Khun sao aproveitados e discutidos pelos epistemélogos). Contudo, o primeiro sentido revela uma certa autonomia em relacao as ques- tdes propriamente epistemoldgicas e nesta medida constituem um campo particular de investigagao. Psicologia da ciéncia Outra disciplina que se destaca é a psicologia da ciéncia, que mesmo pouco desenvolvida traz importantes contribuigGes. A mais conhecida é a de Jean Piaget, com sua epistemologia genética. Trata- se de superar certos modos de tratamento da questao do conheci- mento orientados pela filosofia classica (tal como a questao da pri- mazia do sujeito ou do objeto), deslocando a questao para 0 conceito de ac4o. O que se propde é um modelo de evolugao ontoldgica, e propriamente psicolégica do conhecimento, como uma dinamica de estruturagdes sucessivas e mais complexas. Essa linha de pes- quisa encontra seu campo de investiga¢ao sobretudo na evolugao ontogenética, no acompanhamento da evolugao da crianga, ou seja, ela se concentra na formagao das estruturas psicolégicas respon- AS EPISTEMOLOGIAS CONTEMPORANEAS E O LUGAR DA COMUNICAGAO 71 saveis pela aquisigdo do conhecimento. Embora nao esteja dirigi- da para a questao do conhecimento cientifico, a epistemologia ge- nética acaba trazendo algumas contribuig6es importantes para a epistemologia. Sociologia da ciéncia Por fim destaquemos a sociologia da ciéncia, que toma como ponto de partida o fato de a producdo do conhecimento cientifico encontrar-se condicionada pela sociedade. Nenhum conhecimento é fato isolado, produto de um ato individual, mas sim relativo a uma comunidade, que, como outra qualquer, se encontra sujeita a fen6- menos de coletividade que a sociologia estuda. Por exemplo, se 0 trabalho cientifico passa pelo reconhecimento e aprovagao dos pa- res, 0 socidlogo se interessa pela influéncia dos fatores sociais ai pre- sentes. A sociologia da ciéncia se volta ent&o para a analise das ins- tituigdes de pesquisa, onde sao desenvolvidos os conhecimentos ci- entificos, procurando analisar a interferéncia dos fatores coletivos. De certa forma ela completa a historia da ciéncia, pois além de negar uma autonomia do conhecimento em relagao ao social, metodologi- camente aborda a ciéncia enquanto uma pratica social, sujeita por- tanto as determinacées tipicas dessa ordem, tais como os proble- mas de sociologia das profissdes, de condicionamentos culturais, de disputas partiddrias, de correntes ideoldgicas, de lutas de poder pelo controle institucional, em fim, tudo o que liga o conhecimento ao poder e a cultura de modo geral. De forma resumida, podemos dizer que os socidlogos da ciéncia dirigem suas investigagdes para as bases “materiais”, ou sociais, do trabalho cientifico®. 5. £ interessante notar que, a principio, a ciéncia deveria poder aparecer como objeto de todas as disciplinas cientificas, mas ndo é 0 que de fato acon- tece. A rigor nao ha uma disciplina como “direito da ciéncia”, mesmo se po- demos constatar estudos especializados nas questdes legais originadas pe- las instituig6es ou atividades cientificas (erros médicos, por exemplo). Se isto nao acontece é porque uma tal disciplina nao chega a ganhar importancia para uma discussao do conhecimento cientifico, j4 que permanece muito exterior a ele. Na pratica apenas um pequeno conjunto das disciplinas das cién- cias humanas acaba ganhando um interesse particular ¢ as principais sdo as citadas acima. 78 EPISTEMOLOGIA DA COMUNICACAO F facil perceber que essas disciplinas tomam a ciéncia como ob- jetono sentido de analisar as condig6es que cercam 0 trabalho cien- tifico. Elas nao se ocupam, entao, da investigagao cientifica propria- mente dita, mas de aspectos exteriores ligados ao conhecimento e que determinam o desenvolvimento do trabalho dos cientistas. E tipico desse bloco o deslocamento da atengao, de modo que seu ob- jeto nao €a ciéncia, mas o trabalho dos cientistas; nao éa investiga- ¢ao propriamente dita, mas suas determinagGes externas. Em ou- tros termos, elas tomam a ciéncia nao como a analise do conheci- mento no proprio ambito do conhecimento, mas como analise de uma institui¢ao social (rotinas produtivas, aparato burecratico, jo- gos de poder...) ou de um processo de natureza psicolégica (génese da descoberta cientifica, por exemplo). Para a sociologia, por exem- plo, o conhecimento cientifico nao aparece como a relagao de uma teoria com um fendmeno, uma explicagao do real, mas como uma ins- tituicdo social relativa a uma certa comunidade. Seu objeto de estu- do nao é 0 conhecimento cientifico como tal, mas tudo aquilo que envolve a comunidade cientifica e acaba influenciando na produgao do conhecimento cientifico. O conhecimento ali nao € 0 que explica o real, ele é que deve ser explicado pela realidade das instituigoes sociais que abrigam sua produgao. Nao obstante todas ess. dife- rencas de posicionamento, de abordagem, método e propésito, socio- logia da ciéncia e epistemologia aparecem, confundidas nos trabalhos de nossa area. Em grande contraste com esse grupo, 0 primeiro grupo de dis- ciplinas, voltadas para um tratamento filosOfico, se situa num plano interno ao do conhecimento, quer dizer, restringe sua discussao aos aspectos que lhe sao inerentes. Vejamos as disciplinas que o compée e os tipos de questao suscitadas para cada um dos termos analisa- dos e seus respectivos dominios de agao. Filosofia das ciéncias Poderia ser tomado como o termo mais geral, que designa todas as possibilidades e modos efetivos pelos quais a filosofia tomaa cién- cia como objeto. Por exemplo: 1) 0 exame da linguagem da ciéncia, pesquisa dos fundamentos entendida como a andlise dos pressupos- tos bisicos (idéias, critérios e principios) que caracterizam 0 traba- lho cientifico; 2) a tarefa de sondar os principios ontolégicos, meto- AS EPISTEMOLOGIAS CONTEMPORANEAS E O LUGAR DA COMUNICACAO 79 dolégicos e légicos da ciéncia; 3) a classificagdo ea relagao entre as diversas disciplinas do saber de tipo cientifico; 4) a problematizacao da correspondéncia das verdades cientificas como mundo, 0 proble- ma de sua eficacia como adequagao a natureza das coisas; 5) a ana- lise da evolucao do conhecimento cientifico (progresso?), a busca de um principio teleolégico para a historia da ciéncia; 6) problemas éti- Cos surgidos da produgao e da aplicagao do conhecimento cientifico em tecnologias de alto poder de intervengao social ou que se cho- cam com principios morais largamente difundidos (bomba atom ica, clonagem de seres humanos...); 7) problemas de definigao, possibi- lidade, origem e natureza do conhecimento humano em geral. Essas sao algumas das questoes que aciéncia apresenta ao pen- samento filos6fico e que nao podem ser resolvidas no restrito hori- zonte do rigor metodoldgico, ao qual se encontra submetido o traba- lho cientifico. S40 questdes filosdficas que devem ser resolvidas no ambito da filosofia, pelos métodos e recursos que Ihe sao préprios. Outra alternativa é reservar o termo filosofia das ciéncias so- mente a alguns desses problemas. Assim, tomando-se trés grandes rubricas, filosofia das ciéncias, gnosiologia (teoria do conhecimen- to) e epistemologia, uma primeira reparti¢ao que pode ser feita é aquela que opée gnosiologia as outras duas, voltadas exclusivamen- te para o conhecimento cientifico. E depois, a distingao entre filoso- fia das ciéncias, que tomaria como objeto os problemas voltados aos aspectos gerais da metafisica da verdade cientifica, bem como aque- les decorrentes das aplicac6es e usos dos produtos do conhecimento cientifico, e, de outra parte, a epistemologia, que se voltaria apenas para os aspectos internos do conhecimento cientifico (fundamen- tagao, metodologia...), ou seja, para as caracteristicas que garantem sua “cientificidade”. Dessa maneira, os conjuntos de problemas indicados acima po- deriam ser aproximadamente repartidos da seguinte forma: 0 cam- po da epistemologia poderia ser definido pelos problemas contidos em 1, 2 € 3; ja a filosofia das ciéncias (sentido estrito) compreende problemas como aqueles contidos nos conjuntos 4, 5 e 6; e, por fim, a gnosiologia se volta para um outro tipo de problema, como aque- les contidos em 7. Grosso modo, temos ai uma delimitagao do sentido estrito da filosofia das ciéncias e, por conseguinte, das outras disciplinas que lhe sao correlatas. 80 EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAGAO- Gnosiologia, ou teoria do conhecimento Estudo do conhecimento em geral. Jonathan Dancy nos dauma idéia dos problemas centrais e a que tipo de perguntas tentam res- ponder os investigadores dessa linha: “Quais as crengas que so justi- ficadas e quais nao 0 sao? O que podemos conhecer, sé €que podemos conhecer alguma coisa? Qual a diferenga entre conhecer e ter uma verdadeira crenca? Qual € a relagdo entre ver e conhecer?”*. O campo da gnosiologia, tomada como sindnimo de teoria do conhecimento em geral, compreende as questoes: 1) Nainterface com apsicologia geral: percep¢ao, meméria, inducao, génese de crenc¢as; 2) Na interface com a légica: justificagao de uma crenga, inducao; 3) Propriamente filos6ficas: andlise dos posicionamentos possiveis diante da relagao sujeito-objeto, tais como ceticismo, realismo, idea- lismo, empirismo, fenomenismo...; andalise de conceitos-chave como verdade, causalidade...; ou mesmo muito curiosos, como 0 “proble- ma da existéncia das outras mentes”, trazido na discussao do fun- dacionismo. Nesse ultimo aspecto a gnosiologia tende a se confundir com a filosofia das ciéncias, na medida em que as diferentes compreensdes da relacao sujeito-objeto se apresentam e se deixam traduzir em cor- rentes filoséficas. No entanto, o importante, como ja dissemos, € a liberdade e o campo muito maior da gnosiologia que nao se limita apenas ao estudo do conhecimento cientifico, mas que se estende ao conhecimento em geral. Epistemologia Se aceitarmos as distingdes acima, poderemos tirar que a epis- temologia é 0 estudo do conhecimento cientifico, como alias literal- mente sugere seunome. Ela se opée a filosofia da ciéncia por se ocupar de problemas mais especificos e prdprios do conhecimento cientifico, como os de seu objeto, classificagao, método (critérios de validade, de operagao) e de sua fundamentagao (l6gica e ontolégica). Dai, entao, todo 0 despropdésito de um debate epistemoldgico que sejaindiferente ou negue a ciéncia. pistemologia contemporanea. Lisboa, Edigées 70, 1990, p. 13. AS EPISTEMOLOGIAS CONTEMPORANEAS E O LUGAR DA COMUNICAGAO 81 Também evitemos tomar o termo epistemologia como designan- do uma ciéncia, ou identificd-lo com a idéia de uma ciéncia da ciéncia, ou ainda de metaciéncia, no sentido de algo superior ou mais elabo- rado que a ciéncia. Em seu sentido geral, epistemologia designa 0 estudo da ciéncia: ela 6 uma disciplina filos6fica que toma a ciéncia como objeto. Embora seja exata, uma outra defini¢ao também se apre- senta, na medida em que passamos a usar o termo ciéncia no plural: a epistemologia aparece entao como o estudo das ciéncias. A pluralidade de saberes cientificos traz evidentemente o pro- blema de uma classificagao — e, para alguns, de uma hierarquia — das disciplinas cientificas. E aqui podemos introduzir outra distin- c&o importante entre uma epistemologia geral, também chamada de global, e uma epistemologia aplicada ou local, quer tomemos a epis- temologia como estudo do conhecimento cientifico em geral ou re- lativo a cada disciplina cientifica em particular. Nesse caso falamos de uma epistemologia da fisica ou da sociologia e nos aprofundamos na especificidade destes saberes sem ter em mente o trabalho de uma unificagao completa de uma “cientificidade” tmica. O objetivo nao é contestar um Ambito geral, mas esmiugar as particularidades do saber cientifico aplicadas a certos objetos de estudo, suas trans- formag6es e particularidades em fungao dos desafios e solugdes que ai encontra. Essa distingao nos obriga a retomar e redefinir 0 saber episte- molégico como um saber de natureza filos6fica. Num sentido am- plo, como ja dissemos, a epistemologia sem dtivida encontra a filo- sofia e se desenvolve como disciplina filos6fica, mas em um sentido mais estrito, quando a tomamos como saber “aplicado”, a epistemo- logia se apresenta como parte integrante e inalienavel de cada di ciplina cientifica. Ela passa a ser ciéncia, sem no entanto ser pro- priamente uma disciplina cientifica, j4 que nao teria autonomia. Sua cientificidade é apenas relativa, e ainda que nao seja suficiente para mudar a natureza filosdfica de seus procedimentos e recursos, nao se pode entretanto situ4-la como uma disciplina estritamente filo- sOfica, sem fazer com quea ciéncia se desfigure completamente. Ora, a ciéncia 6 uma atividade voltada para a explicagao do mundo, cujo exercicio é altamente regulado e dependente da aplicagao de um mé- todo. O que nao significa, de nenhum modo, uma aplicagao meca- nica de regras e principios. A ciéncia é uma atividade inseparavel de uma dimensao critica e reflexiva, que a coloca num movimento de 82 EPISTEMOLOGIA DA COMUNICACAO. constante aperfeigoamento e superacao de suas proprias producgoes. Dai a recusa de interpretar a epistemologia como uma metaciéncia, pois ela nao estabelece um “outro nivel” em relagao ao trabalho cien- tifico, que de modo algum pode ser separado dessa dimensao criti- co-reflexiva. A atividade epistemolégica no interior do trabalho cientifico é um dos tantos testemunhos da inspiragao que a ciéncia encontra na filosofia, mas também a ocasiao de reconhecer como a ciéncia redireciona o trabalho filos6fico para seus fins particulares, de modo que areflexdo filos6fica ai aparece completamente condicionada pe- los limites, pelos procedimentos e finalidades do trabalho cientifico. Nesse sentido, a ciéncia deixa de ser 0 objeto de uma disciplina filo- s6fica para ser parte da investigagao cientifica. Inverte-se a relacao pela qual definiamos a epistemologia (definic¢ao geral), e vemos a epis- temolagia ser deslocada da filosofia para a ciéncia, nao como disc’ plina a parte, mas como parte dessa Ultima: todo trabalho cientifico comporta uma dimensao epistemoldgica. Dai a razao da inter-rela- go profunda entre ciéncia ¢ epistemologia Essa distingao entre epistemologia geral e aplicada nos permite precisar uma das grandes dificuldades trazidas a mesa de deba- tes, pois na escassez de trabalhos de epistemologia da comunica¢ao, ou seja, de epistemologia aplicada, é em relacao as correntes da epis- temologia geral que devemos situar 0 saber comunicacional. O sa- ber epistemoldgico é hoje fortemente marcado e dirigido para a epis- temologia das ciéncias naturais, especialmente a Fisica, de modo que muito do que hoje é designado como epistemologia geral poderia na verdade ser, pura e simplesmente, classificado como epistemolo- gia local dessa disciplina’. Daf nossa dificuldade de situar a Comuni- ca¢do no movimento geral das correntes epistemoldgicas contem- poraneas. Na falta da ligacdo entre o geral eo especifico, toda tenta- tiva de situar a Comunicac&o no espago das epistemologias globais corre o risco de encontrar um campo relativamente alheio aos pro- blemas apresentados as ciéncias humanas. 7. Em que medida a Fisica pode ou deve ser tomada como modelo para a ciéncia em geral? Na verdade, a questao de fundo é a admissao de uma ciéncia ‘unica ou de tipos de cientificidade (ciéncias naturais e humanas, por exemplo), que repercute diretamente em nossa compreensio do papel da epistemologia. AS EPISTEMOLOGIAS CONTEMPORANEAS E © LUGAR DA COMUNICAGAO, 83 Mas aessa dificuldade acrescentaremos outra, desta vez do lado da Comunicacao: é incontestével a pouca sensibilidade dessa area para os problemas da fundamentagao dos conhecimentos ai produ- zidos. E forte o sentimento de que a Comunicagao deva ser conside- rada apenas como uma disciplina sui-generis; e mesmo quando se admite considera-la como uma disciplina cientifica, persiste ainda o sentimento de que deva ser considerada apenas como uma ciéncia aplicada, no sentido em que seu saber e sua cientificidade sao deri- vados de outros saberes. Convicgdes que convergem e se comple tam com a afirmagao de que a Comunicagao é¢ apenas um campo de estudo e nao exatamente um saber auténomo. O que refor¢a a im- pressao de que seria pouco proveitoso procurar nas correntes da epistemologia os subsidios para alimentar a reflexao de uma episte- mologia da Comunicagao*. Mas nao ha nada de decisivo nesses obstaculos: nem a epistemo- logia das ciéncias humanas se encontra desprovida de trabalhos de qualidade, nem ha verdadeiramente necessidade de se opor a visdo da Comunicagao como um campo aquela de como ciéncia. Ou seja, uma epistemologia da Comunicagdo pode se fundar no mesmo solo das outras ciéncias sociais e trabalhar com uma perspectiva indepen- dente daquela que entende a Comunica¢ao enquanto campo (tal como a sociologia nao se anula pela existéncia das ciéncias sociais). O pro- blema maior ainda nos parece provir da comunidade dos professo- res, dos pesquisadores e mesmo dos profissionais dessa area que se mostram muito pouco sensiveis as consequliéncias de um baixo inves- timento na fundamentagao do saber comunicacional que justifica suas praticas. Um bom sinal dessa falta de consciéncia € a escassez de tra- balhos ea propria maneira como abordam o tema da epistemologia. 2. O trabalho epistemolégico desenvolvido na Grea de comunica¢gao Mas como explicar esse estado de desenvolvimento do saber comunicacional? Primeiramente, é facil constatar que ha uma gran- 8. Enesse sentido que, parece-me, deve ser interpretada a afirrmacao do prof. lanni, neste mesmo seminario, de que nao existe uma epistemologia da 84 EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAGAO, de resisténcia, no interior da comunidade responsavel pelo saber comunicacional, a aproximar a comunicagao da ciéncia. Ha uma gran- de desconfianga sobre 0 estatuto desse saber, que paradoxalmente oscila entre uma nao-disciplina (apenas um campo de aplicagao para as disciplinas das mais variadas ciéncias, a comunicagao é um pro- cesso, um fenédmeno no mundo, e nao uma disciplina ou um saber propriamente dito) e uma superdisciplina, entendida como uma es- pécie de sintese e acabamento das ciéncias humanas e da filosofia. De modo que a Comunicagao aparece ora como muito pouco con- sistente para ser ciéncia, ora como fundamento e acabamento das ciéncias humanas. Para além e aquém da ciéncia, entre o tudo e 0 nada, entre o desprezo e a exaltacao injustificados, oscilando entre uma sub e uma superciéncia, o saber comunicacional praticamente se vé impedido de ser trabalhado numa dimensao cientifica, na qual ganha pertinéncia a questao epistemoldgica Em outro lugar discutimos o que nos parece ser as razdes que dao forma e consolidam esse tipo de obstaculo®. Aqui voltaremos nossa atengao para o estado da questao da epistemologia da Comu- nicagao, tal como ela tem sido recentemente desenvolvida no Brasil. E para isso nos apoiaremos nos dois pontos desenvolvidos na pri- meira parte de nossa intervencao: a) a aceitacao implicita de pressu- postos incompativeis com a instauragao de um debate epistemol6- gico; b) as confusées do tratamento epistemoldgico com o das ou- tras disciplinas que distinguimos acima. Tentaremos ilustrar nossas consideragdes com exemplos reti- rados principalmente das contribuigdes do ultimo encontro do Interprogramas, também consagrado ao tema da epistemologia”. Tomamos como pressuposto que elas sao representativas da produ- cao epistemolégica da area, no sentido em que refletem algumas de ‘Comunicagao, mas das ciéncias humanas. No entanto, nado vernos 0 que exa- tamente ganhamos em nao se pdr as questées especificas de cada disciplina. A existéncia de questdes comuns evidentemente nao impede o trabalho de -questdes especificas (epistemologia local). 9. “Ceticismoe inteligibilidade do saber comunicacional”. In Ciberlegenda, revista eletrénica do PPG da Universidade Federal Fluminense. 10. Todos os nossos exemplos sao retirados de WEBER, Maria Helena; BENTZ, lone; HOHLFELDT, Antonio (orgs.). TensGes e objeto da pesquisa em comunicagao. Porto Alegre, COMPOS/Sulina, 2002. AS EPISTEMOLOGIAS CONTEMPORANEAS E © LUGAR DA COMUNICAGAO 35 suas preocupagées mais tipicas. Trataremos apenas trés problemas pontuais: a chamada “crise do desaparecimento do objeto”, 0 subje- tivismo; a imagem da ciéncia nos trabalhos de comunicagao. A questo do objeto Nao vou discutir 0 que penso do objeto de estudo da Comunica- ¢ao. Outros artigos expressam minhas opiniGes a respeito dessa ma- téria que considero crucial. Vou apenas indicar alguns pontos gerais sobre 0 objeto de estudo, para depois comparar coma abordagem e o tratamento que essa questao vem recebendo. Em termos esquemiaticos, a investigagao epistemologica refere quatro problemas ao saber comunicacional: 1) Como definir o saber comunicacional? (em que condigées podemos apontar um certo es- tudo como sendo um trabalho em Comunicagao?, ou o que faz de uma pesquisa uma pesquisa em Comunicagao?). 2) Quais os fun- damentos desse saber? 3) Qual o estatuto do conhecimento comu- nicacional? (ciéncia?, arte?, tecnica? senso comum?, estratégia so- cial?...).4) Qual arelagao desse saber com outros saberes? (por exem- plo, como a Comunica¢ao se relaciona com os saberes das ciéncias sociais?). A questo do objeto atravessa todas essas divisdes e é a mais fundamental e que pode ser relacionada a um saber. Entretanto, quando se fala em “objeto de estudo” a confusao parece imperar. Antes de mais nada, objeto significa aquilo que se da a ver ou conhe- cer para um sujeito. Trata-se entao de um termo correlato ao de su- jeito, pois a “coisa em si”, a coisa nela mesma nao é um objeto, as coisas passam a ser objetos em fungao de um ato de conhecimento por parte do sujeito; por outro lado nao podemos falar de sujeito em si, pois todo sujeito é conhecido e se deixa conhecer por sua re- lagdo com o objeto (o sujeito nao apenas conhece o objeto, mas se reconhece ao conhecer 0 objeto). O objeto € tudo o que se apresenta a consciéncia ou para a mente do sujeito. Mas essa acepeao geral acaba sofrendo nuangas na discussao do objeto em termos de ciéncia. E preciso ter-se em conta que discu- tir o objeto de estudo de uma ciéncia nao é exatamente fazer uma lista dos objetos que ela pode ou nao pode tratar. Decididamente nao se trata de olhar o mundo e apontar o que a Comunica¢ao pode ou ndo estudar, até porque o objeto comunicacional nao pode pre- 8b EPISTEMOLOGIA DA COMUNICACAO ceder o saber que o institui, mas de explicitar qual a compreensao que o saber comunicacional tem daquilo que investiga. De maneira simplificada, podemos dizer que a Comunicagao é tomada como uma espécie de “sujeito”, ela nao somente vé algo, o objeto de estudo, mas se institui na medida em que se reconhece ao conhecer 0 obje- to. Por isso nao tem sentido “dar uma espiada” no mundo para de- pois fazer pesquisa em Comunicagao: objeto e sujeito comunicacio- nais sao correlativos. Falar de objeto de estudo é na verdade falar de um saber tedrico que fornece uma representa¢ao do mundo, ou de um mundo que aparece por meio desse saber. A analogia, portanto, nao 6 exata porque nao se trata de “coi- sas”, ou de objetos naturais, mas de objetos de estudo, que so apare- cem por meio de uma teoria, de uma apreensao nao-naturalizada mas produzida por um modelo tedrico. O objeto de estudo é, portanto, uma construcao tedrica ou 0 objeto de uma teoria. Ele nao é 0 fend- meno que se da a percepcao ordinaria, mas justamente aquilo que no fendmeno é recortado por uma teoria. A distingao objeto empfiri- coe objeto de estudo foi marcada por varios epistemdlogos, dos quais Max Weber"t, e assume um papel central, na medida em que mostra que 0 objeto cientifico nao é uma abordagem ingénua do real, mas uma construgao tedrica. Mesmo assim ela permanece amplamente negligenciada na area de Comunicacao, apesar de ser bastante cor- rente e basica para os estudos de epistemologia. De outra parte, o problema da defini¢ao do objeto de estudo de cada disciplina se liga e complementa o das relag6es entre as disci- plinas. O nexo entre os dois problemas também constitui um ponto muito pouco explorado em nossa area. E comum ver a questao da organiza¢4o do sistema de financiamento das pesquisas substituir a discussdo epistemoldgica. Tratamentos como esse tém se tornado cada vez mais correntes em nossa area, 0 que nos obriga a lembrar que uma disciplina nao se resume a um simples problema de buro- cracia universitaria. Em matéria de epistemologia, o termo discipli- na corresponde a uma designagao das peculiaridades de um certo 41. Metodologia das ciéncias sociais. Cortez/Editora da Unicamp, 1993. As criticas de um positivismo ingénuo, ou do indutivismo radical, convergem para esta distingao. Cf. CHALMERS, A. F. O queeéa ciéncia afinal? Sao Paulo, Brasiliense, 1993. AS EPISTEMOLOGIAS CONTEMPORANEAS E O LUGAR DA COMUNICAGAO 87 tipo de abordagem, recorte e problematizacao do real. E é como tal que sua discussao se reveste de interesse para uma epistemologia da Comunicagao e nao como uma discussao dos érgaos de finan- ciamento ou regulagao. Introduzamos também uma distin¢do entre objeto de estudo de uma disciplina e objeto de pesquisa. A relac4o aqui é a do geral e do especifico, mas algo mais também. O objeto de um certo trabalho de investigagao é, por assim dizer, a matéria intelectual que ele mani- pula e que s6 aparece nas elaborag6es teéricas pelas quais os fend- menos se apresentam a investigacao cientifica (e se opée, assim, ao objeto empirico). Por sua vez, o objeto de uma disciplina deve ser compreendido como 0 ponto de vista mais geral, respons4vel pelo recorte e pela abordagem por meio da qual o fenédmeno se apresen- ta ao trabalho de teorizacao. Ele funciona simultaneamente como um pano de fundo de onde se destacam as teorias e como principio de diferenga e de unidade do campo. FE a partir dele que se afirma a diversidade tedrica de um domi- nio do conhecimento, de modo que todas as teorias séio entao posi- cionamentos gerais em relagao ao objeto de estudo de uma dada disciplina, por isso marcam suas diferengas especfficas em fun¢ao deste referencial, ao mesmo tempo em que se retinem ao redor de um problema fundamental que ele representa (objeto de pesquisa). Quando Michel Foucault, em As Palavras e as coisas, se per- gunta pela unidade de uma lista muito heterogénea (retirada de um conto de J. Luis Borges), chega 4 conclusdo de que a unidade em questo é um efeito da enumeracao, e nao deve ser buscada na natu- reza dos objetos listados. Em outros termos, a redug4o das diferen- ¢as, mas também a nogao de diversidade sao geradas pelo mesmo movimento que as retine: a enumeracao. E por tentar ver alguma unidade que aparece a heterogencidade. E de um fundo de com- posi¢do abstrata (enumerag¢ao), tal como as famosas linhas dos ged- metras, que aparecem as simetrias e oposigGes, que emergem as diferencas e as similitudes. Ora, mas é precisamente um papel ana- logo a esse que é reservado ao objeto de estudo de uma disciplina. De um lado, ele aparece como linha de fuga imaginaria e construi- da a partir de uma diversidade real (as correntes de pesquisa no interior de uma disciplina); de outro lado, ele aparece como 0 prin- cipio mesmo dessa diversidade, tal como a causa eficiente respon- savel pela geracao dessa diversidade tedrica. Sua fungao é fornecer uma base de comparagao critica para as diferentes correntes ted-

Você também pode gostar