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2ODE SER QUE SEJA S6 0 LEITEIRO LA FORA Peca em um ato Prémio Servigo Nacional do Teatro Texto selecionado para leitura- PERSONAGENS Joao Leo Baby Mona (Carlinha baixo-astral) Rosinha Alice Cooper Angel So todos muito jovens. Entre 20 e 30 anos. ‘hum concurso de dramaturgia do Servico Nacional de Teatro. 0 SNT patrocinou natizadas das pecas vencedoras em varias capitais do pafs. Em Porto Alegre, Leiteiro foi apresentada no Teatro de Arena, sob a diregao de Nara Keiserman, fs Artur Nunes ¢ José de Abreu no elenco e masica de Carlinhos Hartlieb. Logo depois, 01 proibida em todo o territério nacional pela Censura Federal. 63 TEATRO COMPLETO CENARIO Sala de uma casa abandonada. Na verdade, parece mais um quarto de despejo, atulhado de objetos fora de uso: colchées furados, guarda-roupas, espelhos quebrados, cadeiras rasgadas, lixo, enfim, e até mesmo objetos absurdos que ficam ao gosto do diretor. CENA 1 Quando a a¢ao comega, a cena esta completamente as eacu- ras. A luz de uma lanterna vai revelando alguns objetos. Tao lentamente que chegue a ficar monétono e anguastiante. A lanterna pertence a Jodo. LEO — Joao, onde é que vocé esta? JOAO — Aqui, vem ca. Tem uma porrada de coisas. (Eabarra num moével.) Merda! LEO — Que foi, cara? Que barulho é esse? Tem alguém ai? JOAO — Nao. S6 uma porra no meio do caminho. BABY — Tinha uma porra no meio do caminho. No meio do cami- nho tinha uma porra... Yeah! Everybody now: tinha uma porra no meio do caminho... LEO — Fala baixo, cara. Pode ter gente ai. JOAO — Melhor, se tiver alguém morando a gente fica logo saben- do. Ei, tem alguém ai? BABY — Anybody here? LEO (Baixo.) — Mania de falar inglés... BABY — Lingua internacional, meu santo. Quando vocé esta no mundo, falando inglés as possibilidades de comunicacao sao muito maiores. JOAO — Cala boca, Baby! BABY — Do fundo das trevas sé 0 siléncio nos responde, irmaos. Acho que podemos instalar aqui os nossos dominios. (Tira uma vela do bolso. Acende e deposita em cima de um movel. A luz aumenta.) Aqui, por exemplo, podemos colocar uma cortina de veludo cor de vinho. Com franjas douradas, é claro, igual Aquela que tinha na casa da tia Nené. Aqui no canto acho que ficara de extremo bom gosto um aparador com BP see QUE SEIA S6 © LEITEIRO. jo de m4rmore, igual aquele que tinha na casa da v6 Marica. E ie teremos sempre flores. Rosas. Nao, rosas nao, muito vulgar. tulipas. Importadas diretamente dos Pafses Baixos. Tulipas da T like so much. What you think about, my fellow? EO — Vocé acha que nao vai ter problema? B — O qué? Importar tulipas ou plantar papoulas? EO — Nao, cara. A gente ficar aqui. Sei la, policia, vizinho, o dono essas coisas. AO (Acende outra vela e deposita sobre outro mével.) — Olha, eu e gente pode ficar pelo menos até amanhecer. Qualquer jeito mos mesmo para onde ir. - Eu por mim fico aqui mesmo. Depois, de manha sempre ce alguma coisa. As dez pras sete. LEO — Por que dez pras sete e nao vinte pras oito? — Porque eu gosto. Acho sonoro. Estético. As coisas mais ites da minha vida sempre aconteceram as dez pras sete. » acontece alguma coisa. O — E também pode n4o acontecer nada. JA viu 14 em cima? $s quartos, banheiro, cozinha com fogao, um monte de coisas. n fico morando aqui 0 resto da vida. Até nem ta muito estraga- e pode dar um jeito. * — Basta chamar Mona e sua varinha de condao. 0 — Falar nisso, tenho que chamar as outras pessoas. Fico ido com a Rosinha naquela chuva. Que é que vocés acham? — Eu nio sei... E se tiver alguém morando? BABY — Ué, a gente chamou e ninguém se manifestou. LEO — Mas pode ser que... sei la, as pessoas tenham saido... Pode voltem daqui a pouco. O — Deixa de ser besta, Leo. Vocé acha que alguém pode viver desse lixo todo? BY — Ué, e nds nao vamos viver? O — Sim, mas é diferente. Amanha a gente arruma umas vas- aS e, sei ld, da um jeito. Fica com medo nao, Leo. Nao vai acontecer maximo, amanha pinta a policia e manda a gente embora. TEATRO COMPLETO Leo concorda em ailéncio, tira uma vela do bolso, acende, coloca ao lado das outras duas e senta num canto, um pouco assustado. JOAO — Bem, eu vou 14 fora chamar os outros. Nao tenha medo, volto ja. Afinal, parece que tudo vai terminar bem, nao é? Tudo est4 bem quando termina bem, nao é assim? Pelo menos a gente ja tem onde dormir esta noite. (Sai.) CENA 2 Siléncio. Leo réi as unhas e olha em volta lentamente. Baby come¢a a dedilhar o violao. LEO — NAo sei, n&o. N&o gosto nada disso. Tudo tao velho, tao re- bentado, tao sujo. Parece um depésito de lixo. Sabe, eu me sinto como se tivesse acabado. Parece que nada mais vai ser bonito outra vez. BABY — Olha, cara, se vocé der uma voltinha na cidade ou olhar pela janela vai ver que o depésito de lixo 14 de fora é muito maior! Quando a gente est se sentindo assim é s6 olhar em volta — dar 0 tal do look-around —, af vocé vai ver que nao esta tao mal assim. A gente da o tal look-around e canta. Assim, quer ver? (Cantando.) Eu quero mesmo muito pouco / eu quase n4o quero nada / de tao pouco que eu quero. / Talvez eu seja muito louco/ mas basta um canto e um teto /— mesmo furado. / Um canto e um papo-furado, também. / Nao tem importancia./ Ninguém entende nada de nada / e enquanto tudo cai / eu canto por quase nada./ Um vintém, um tostao / faz de conta, um pobre cego / mas com o olho bem aberto: / uma canoa furada / um barco sem fundo / tudo €é mundo e o céu é perto / tudo é mundo e eu navego / tudo é mundo e eu navego / tudo é mundo, vasto mundo /e eu nem me chamo Raimundo. LEO — Que miisica mais doida, Baby. De onde foi que vocé tirou esse negécio? BABY — Da minha cuca, ué. Acabei de compor. Ladies and gentle- men, my last song: Se eu me chamaase Raimundo. Ei, como é que se diz isso em inglés? 66 Of RE PP U TRO. e ) — Eu nao entendo nada de inglés. —Pois devia. Sem saber inglés vocé nunca vai subir na vida. If I called myself Raimundo... Thing like that... (Enrolando RRRaimundooo... Que sarro esta prondncia... (Pega o violdo la mais um pouco.) (Interrompendo.) — Me diz uma coisa: vocé acredita nisso? certeza absoluta que acredita mesmo nisso? —Nisso 0 qué? — Nisso que vocé acaba de cantar. Sei la, quero dizer... Vocé ie basta mesmo um papo-furado, um teto furado? — Olha, meu santo, certeza eu nao tenho mesmo de nada. uer de que estou realmente vivo. Eu sei de agora, me entende? sta um teto, é melhor do que ficar naquela chuva fria l4 de no sei. Pode ser que... (Fica quae sério, mas muda logo Olha, quer saber duma coisa? £ melhor nao aprofundar nao, Quando a gente aprofunda demais acaba caindo sabe onde? siente coletivo... =O qué? — In-cons-ci-en-te co-le-ti-vo. Vé, 6, vé. Ja ouviu falar num ado Jung? Mais ou menos isso. Os arquétipos, sacou? Papo- [do té com nada. Nao aprofunda nao. Me da um cigarro. CENA 3 dois estdo fumando quando entra Mona. Sua entrada ve Aer triunfal, ao som de — suponhamos — “Aquarius”. uma bolsa enorme, uma vela acesa e duas varinhas de cen.so na mao. 1ONA — Hare krishna, Hare krishna / Krishna Krishna, Hare / e Rama, Hare Rama / Rama Rama, Hare Rama, / Forgas do stral / fora daqui. / Chegou Mona, inimiga do mal. / Chegou a do Alto-Astral. / Mas vibragées, go home! / Mas vibra- home! (Incensa um pouco a sala, depois entrega uma varinha ida um, distribuindo beijinhos.) Pra espantar os maus fluidos. o&7 Nossa, Leo, vocé esta com uma cara péssima! O que foi agora? Nao est4 gostando do nosso novo lar? BABY (Irénico.) — Nao é nada, nao. O tal do inconsciente coleti- (Sem prestar atencéo.) — E. Treze 6 morte mesmo. Mas ter muitos sentidos. Nao necessariamente morte ffsica ou as, sei 14, renovacao, renascimento, fim de um ciclo, come- transmutacao. Além disso, tem também 0 58. Deve ter um positivo. Deixa ver. (Abre a bolsa e tira um livro enorme, -o.) Th, meu Deus, melhor esquecer essas coisas... (Faz mencao o livro.) sentir. Pensar j4 era. Pensar acabou, nao se usa mais. Desde que parej — 0 que foi? Vo... MONA (Incisiva.) — Corta! La vem vocé de novo com esse papo xa- ropento. J4 nao falei pra vocé que intelectualismo nao é comigo, Baby? Abaixo a razao e o pensamento! O negécio é sé sentir, meu irmao, s6é de ler fiquei muito menos neurdtica... BABY — Imagine como vocé ndo era antes. MONA ~ Sabe com eu era antes? Um monstrinho de culos cheio: de problemas género “sera que vale a pena viver? — ninguém me ama, ninguém me quer — 0 que vou fazer do meu futuro?”, essas porcarias. Agora chega. Sou Mona, a Rainha do Alto-astral, ndo quero nem saber, (Depositando a vela ao lado das outras.) Mas deixa eu dar uma olhada no nosso novo lar. (Dé uma voltas enquanto Baby dedilha no violao Ninguém me ama ou qualquer coisa do género.) Nao ta mau, nao. Ja vi coisa pior. LEO — Onde? Na lata de lixo? MONA -— Quer dizer ent&o que a sua bad-trip continua a mesma? Puxa, cara, vocé sempre acha tudo um lixo. Corta essa. Olha, sabe duma coisa que eu aprendi? O segredo do belo esta aqui, 6. (Bate na testa.) Na sua cuca, no seu olho que realmente vé, dentro de vocé. Se vocé souber olhar as coisas dum jeito magico, tudo fica mais bonito. LEO — Magico? Nem que eu fosse 0 Merlin conseguiria achar bo- nita essa merda toda. MONA - Corta, corta, corta! (Acende mais uma varinha de incen- 4o.) Trés, para fechar o triangulo. Ah, Baby, me diz uma coisa: vocé olhou 0 numero da casa? 6nico para Libra, muito doce para Escorpiao, muito calmo LEO — Eu olhei. E58. Mas 0 que tem isso? meos. E essa transacao do inconsciente coletivo... deve ser MONA — Como o que tem isso? Esotericamente é um dado im- , © centauro com os pés na terra. Querendo voar junto com a portantissimo. 0 ntimero sempre diz como vai ser toda a transaca0 da coisa... Cinqiienta e oito? Cinqiienta e oito... deixa ver... Cinco mais oito, quanto da? BABY — D413. E se vocé esta querendo saber qual é a carta do Tard que tem o numero 13, eu sei, € a morte. LEO — Ei, que papo é esse? AONA — Vocé gosta de vermelho? (Tentando disfarcar.) — Nada nao. O que é mesmo que eu endo? Ah, a transmutacdo. Pois é, a trans... — Qual é Mona? Escondendo a jogada? (Tomando-lhe o Cingiienta e oito, quatro de espadas: “Perigo iminente. todas as partes. Remorsos. Arrependimentos estéreis e O que é acerbos? A — Nao sei, mas deve ser qualquer coisa bodiante. BY (Continua lendo.) — “Sofrimentos morais. Aces repreensi- Ges nos projetos. Mudancas desfav...” — Chega. Nao vale a pena ficar se grilando 4 toa. — U6, vocé é que acredita nisso. — Acredito, sim. Mas até onde nao me enche a cuca de gri- . E por falar nisso, qual é 0 seu signo? Nao, nao diga. Pode eu adivinho. (Observa Baby atentamente.) Essa transagao pode ser... pode ser Libra... mas ndo sei nao... Vocé é sar- lemais para ser Libra. Claro, nao tanto quanto um Escorpiao. eS, nfo vocé ndo é tao inteligente assim... O seu olho tem = Libra, Escorpiao, Gémeos ou Sagitario? A — Ah, quer dizer que é um dos quatro, 6? Deixa ver. — Tem certeza? A — Nao, nao, ainda nao. Afinal, minha reputacdo esté em direito a uma pergunta? — Vai firme. 68 TEATRO CaoMPLETO SER QUE! GB Pe FG To Niet rere a... BABY — A-do-ro! MONA (Triunfante.) — Entéo 6 Sagitaério mesmo! BABY (Tirando um acorde do violdo.) — Errou. Sou Leao. MONA (Deaconcertada.) — O qué? Leao? Ah, nao pode ser, é a pri- meira vez em toda a minha vida que erro. Mas vocé deve pelo menos ter um ascendente em Sagitario, vocé nao tem? cruzeiros. Vinte com mais detalhes. Cada consulta da direi- de: uma bola de cristal inteiramente gratis. Papo-furado. estado as pessoas? Alice, Jodo, Rosinha. — Baby, meu amor, parece que a tua vibra¢ao nao esta har- us na décima primeira casa astral, em Libra. (Canta.) Ser eu eu sou/ eu sou amor da cabega aos pés. (Fala.) Pode agre- do chegar o Apocalipse é que a gente vai ver... — Apocalipse... Apocalipse é esse lixo todo aqui. Por que é nao corta esse papo-furado e vem me dar uma forga aqui? BABY — Nao. Meu ascendente é Touro. MONA - Mas € fogo, claro. Foi por isso que eu me confundi um) pouco. Tanto Ledo como Sagitdrio sdo signos do fogo, sabia? Esta na cara que vocé é fogo. BABY — Pode ser. (Tirando um acorde do violdo.) De vez em quan: do até solto umas fumacinhas pelo nariz. (Leo ri baixinho.) MONA — Do que é que vocé esta rindo, baixo-astral? Tomem muito go e Mona comecam a ajudar. —ARosinha nfo est4 nada bem. Eles foram comprar algu- cuidado vocés dois, hein? Vocés precisam despertar o quanto antes 0 sa para comer. ser aquariano que dorme no fundo de vocés, os seus poderes ocultos. 0 E0-0 que é que tem a Rosinha? quanto antes, meus irmdos, o quanto antes — eu sei o que digo. Daquia A — Gravidez, nao é, cara? Mulher é isso af. Um bode. Acho pouco vem o fim dos tempos e quem nao for magico nao vai escapar. u pagando todo o meu Karma nesta encarnagao. Se caprichar LEO — Mas escapar do qué, meu Deus? a proxima vou para o espaco, desencarno de vez. Ou entdo MONA - Das inundagGées, terremotos, maremotos, fogo caindo mem. dos céus — tudo de bodiento que vocé possa imaginar. V4o acontecer BY (Malicioso.) — Claro que vocé prefere a segunda hip6tese... coisas medonhas a quem no estiver desperto, a quem n4o for magico. A — Sem essa, Baby. Vocé sabe muito bem que eu sou an- (Observando Leo.) Mas vocé nao tem cara de m4gico, nao. Nem de fogo. Para dizer a verdade, com essa cara vocé deve ser mesmo € Peixes: um a remexe no meio de algumas coisas e encontra um vaso bode sé. 24.) Olhem sé que bom press4gio: flores! LEO (Interessado.) — Ei, como é que vocé sabe que eu sou Peixes? — De plastico. _Mutante da Era de Aquario. (Arrumam alguna colchées como BABY (Levantando e comegando a empurrar alguna objetos.) — —No escuro ninguém nota. (Ajeita o vaso num canto.) Vocé Chutando, meu irmao, chutando. aqui fica bem? MONA (Incensando a cara de Baby.) — Vade-retro, Baixo-Astral, v recolha-se as suas trevas sagitarianas. (Para Leo, misteriosa.) Sei Ase Momento ouvem-se alguns passod e um gemido em off.) 20 (Assustado.) — Siléncio! Vocés também ouviram? Tem al- porque sou um espirito muito velho. Tive trés encarnagées no Tibet, a fora. duas no Egito e uma em Atlantida — para falar s6 neste planeta. Estou em contato direto com forgas paranormais, jd abri as sete portas, sete moradas da minha mente, e a minha Kundalini j4 subiu no minimo até o quinto chacra. BABY (Empurrando méveis com estrondo.) — Passado, presente e futuro. Tudo com Madame Mona Yonara, a sacerdotisa oriental, por Por alguns segundos. Os ruidos se aproximam.) A (Benzendo-se.) — Ai, meus guias do Oriente. Ser4 que é fan- Sa casa é tao velha, deve estar cheia de mas vibragées. (Apanhando um objeto como para defender-se.) — E.a policia, za que € a policia! 7o nm TAT es Cour eeaw Ro Ws ew A NO ro HON ew One oo BABY — Historinha, historinha, tudo historinha. Inconsciente coletivo outra vez. Devem ser s6 as pessoas chegando. (Grita.) Joao, é vocé? JOAO (Off) — Sou eu. Me ajuda aqui. A Rosinha esta passando n castelo. (Comegam a cobrir tudo com panos.) Olha, pessoal, éia maravilhosa. Jé que a gente vai ficar aqui a noite toda e dormir, claro, podemos fazer uma coisa 6tima: uma festa O que é que vocés acham? (Ninguém parece muito entusias- ceto Baby.) Meu Deus, qual é a de vocés, hein? Vao ficar a com essas caras de veldrio, sem dizer nada? Eu me renego e, ta sabendo? Me re-ne-go. Na minha bolsa tenho batom, sombra... Vamos fazer uma festa enquanto o dia nao chega? quando Alice chegar, encontrar todo mundo colorido, numa endo o maior visual... Ela adora visual... Pode crer. Vocé, -... Pode ser loucura minha, mas sempre acho que vocé gravida a Virgem Maria. (HA — Ah, Mona, eu nao tenho jeito pra essas coisas. INA (Comecando a vestir Rosinha.) — Tem sim, senhora. Ja O seu filho pode ser até o proprio Cristo da Era de Aquario? a corresponder a nobreza do seu futuro filho. Isso aqui é 0 9 virginal. Um pouco de ruge, vocé esta muito palida, meni- n... (Afasta-se para olhar. Roainha tenta sorrir.) Levante um cabeca. Assim. Agora faca um ar de... de absoluta pureza... r cima de todo mundo, para bem longe. Vocé foi tocada por for- cas enquanto dormia. (Acende uma varinha de incenso e vai Rosinha enquanto fala.) Um ser todo feito de luz entrou po e plantou essa semente em seu ventre. Desde ent&o vocé mal. (Baby sai para ajudar Jodo. Mona corre a acender mais uma varinha de incenso. Entra Rosinha, amparada por Baby e Joao. Ela geme sempre.) MONA (Para Roainha.) — Que é isso, menina? Est tudo bem agora, N&o tem mais essa de se sentir mal. Pode desamarrar 0 bode. (Mostra a 4ala.) Olhe sé em volta: j4 temos uma casa. Vocé nao gosta? ROSINHA (Deitando num dos colchées.) — Ah, nao sei, nao consigo nem olhar para fora de mim, Mona. Sinto uma dor horrivel aqui. (Levaa mo ao ventre.) Mas nao tem nada. Ja vai passar. Aqui esta bom, quenti- nho. La fora estava chovendo, fazia frio. Daqui a pouco eu fico boa. JOAO — Alice foi ver se conseguia algum remédio contra a dor. LEO — Eu estou com uma puta fome. S6 tomei café hoje. JOAO — Alice foi batalhar pao, também. (Olhando em volta.) Como 6, nado apareceu ninguém? LEO — Ainda nao. BABY — N§o apareceu nem vai aparecer. Nos até tentamos arru- mar um pouco isso aqui. JOAO — Ficou bonito. J4 esté quase parecendo uma casa. MONA - Esta maravilhoso. Tem até flores. LEO — De plastico. MONA (Irritada.) — Baixo-astral. Tenho certeza que vou encontrar’ coisas ainda mais maravilhosas. (Come¢a a remexer num canto, talvez palha aos pés de Roainha.) Pronto: aqui esta a manjedoura. um bai.) 0.) Agora vocé. Joao, o que é que vocé quer ser? LEO (Para Jodo.) — Vocé demorou tanto. O — Ser? Eu... eu nao sei... JOAO — Foi a Rosinha. Eu... C ROSINHA (interrompendo.) — Jodo, fica aqui comigo. Me da tua mao... MONA - Ei, vejam s6 0 que eu achei: um monte de roupas. Puxa, parece que tem coisas incriveis. (Vai retirando coisas de dentro de um bai.) Baby, me ajuda a cobrir esses colchées. Vamos transformar iss0 le No seu interior esta crescendo a tinica coisa capaz de salvar 0 loucura, das maquinas, do desamor, do medo, da sujeira, da a, da hipocrisia. A cada dia vocé sente que chega mais perto 0 em que o seu ventre explodira, jogando para fora toda essa 0 esse amor. Entao nds todos estaremos salvos. (Coloca um — Pois eu sei. Um pirata. Sabe que é assim que eu vejo ezes até penso que vocé deve mesmo ter sido um pirata numa agao. Uma pirata bom. (Comega a vesti-lo.) Vocé assaltava rmados até os dentes, incendiava, matava aqueles fidalgos Obertos de seda, violava todas as mulheres, roubava todo o lepois — sabe o que vocé fazia, Joao? Vocé distribuia todo 0 ouro Rp 73 TeatTRo compurto Pre Quel ee pe 266s ieee eT RO. . : é um castelo: nés somos uns coitados mortos de fome, sem ter sequer onde dormir, nado somos m4gicos nem roubado entre os pretos de uma aldeia na costa de Madagascar. Eles adoravam vocé, uma vez o feiticeiro da tribo fez uma tatuagem no seu peito, o ritual durou sete luas novas. (Vai desenhando com batom peito de Jodo.) Um circulo magico fechou todo o seu corpo, menos esse circulo. Vocé sé poderia ser morto no dia em que esse pedacinho do sey peito fosse atingido. E isso ainda nao aconteceu, vocé ainda esta vivo, vocé atravessou os séculos e continua sendo aquele mesmo pirata, um pirata um pouco perdido no meio das cidades, sempre com vontade de voltar para o mar. (Dirige-se para Baby.) BABY — Eu quero ser um principe. f MONA — Vocé é um principe. Mas um principe solitario. (Comega a veati-lo.) Vocé vive num castelo sobre a montanha mais alta e mais acontece é que vocé ainda nao aprendeu a olhar. escarpada. Alguém lhe prometeu um reino certa vez, um reino de © — Eu nao consigo. Olho em volta e acho tudo nojento. 0 que € paz e amor, e vocé est esperando esse reino. As vezes vocé desce ‘quer que eu faca? a montanha e vai até a vila e tenta conversar com as pessoas. Vocé (Mansa.) — Tente. Sei 14, tem sempre um pér do sol espe- anda sempre disfarcado, elas néo sabem que vocé é um principe. Mas ser visto, uma 4rvore, um p4ssaro, um rio, uma nuvem. Pelo vocé se sente sozinho no meio deles, porque vocé nao pode se mostrar como realmente é. Entao vocé tem sempre a sensacdo que ninguémo conhece, que ninguém o entende. Vocé est4 sempre esperando o reino que prometeram, esse, de paz e amor. S6 nesse dia, quando o encanta- mento quebrar e o seu reino for revelado, s6 nesse dia todos vio saber que vocé sempre foi um principe. S6 nesse dia vocé mostrara 0 seu verdadeiro rosto dourado e tocara seu alatide para que todos fiquem contentes e sintam amor. (Encaminha-se para Leo.) E vocé... LEO — Eu sou Leo. MONA - Eu sei. Leo, signo Peixes. Do que é que vocé quer se fan- tasiar? —Vocé nao é. E vou lhe dizer por qué. Porque vocé nao con- 1ém do chdo, porque vocé acha que as coisas sé tém um lado, seu olho sujo vé. Vocé é exatamente igual a esses cinzentos do 1a fora. A gente s6 consegue ver o que esta dentro da océ sé consegue ver 0 sujo, 0 feio e o doente das coisas. Tudo tro de vocé, na sua mente, na sua cuca. Aqui. (Bate na cuca € que é feia, suja e doente. Nada é horrivel, nada é so. O seu olho daqui é que transforma tudo. O seu jeito de yrria, procure sentir amor. Imagine. Invente. Sonhe. Voe. Se a te alimenta com merda, meu irmao, a mente pode te alimen- es. Eu nao estou fazendo nada de errado. S6 estou tentando ‘coisas um pouco mais bonitas. Vocé acha que isso é mau? Mas eu nao posso fingir que nao estou com fome. Eu nao que este lugar é bonito. Eu nao posso fingir que viver é boa. Olhe pra mim: faz mais de uma semana que nao tomo faco a barba. Faz 15 dias que uso as mesmas meias. Elas j4 josas, grudadas nos meus pés. Nao suporto mais 0 meu pr6- N&o suporto mais ndo ter banheiro, nao ter casa, nao ter he a minha boca: um lixo. Eu nao posso sorrir mais. Faz dois le quebrei um dente e no tenho dinheiro para ir ao dentista. n pra mim e me diga: vocé acha que alguém seria capaz de me LEO — Eu nao quero me fantasiar. ROSINHA — Mas por que, Leo? Mona inventa estérias tao boni- tas... n esta roupa imunda, com esta boca podre? Vocé... vocé mesma LEO — Mona inventa estérias. Eu nao quero ouvir estérias. Eu sou espirito, paz, amor e o caralho: vocé seria capaz de esquecer Leo, isso é tudo. Jodo nao é um pirata, Baby nao é um principe, Rosinha ‘a do meu corpo e me dar um beijo? nao é a Virgem Maria. MONA - Faz de conta... 0. Mona hesita um pouco, depois beija-o. LEO — Eu ja nao tenho mais idade para fazer de conta. Eu nao quero fingir. Eu ndo posso fingir que isso aqui é um castelo, que nds 0 (Empurrando com violéncia.) — E mentira! Vocé me beija somos magicos e encantados. Isso aqui é uma casa abandonada, chei@ 9S outros estdo olhando, porque vocé acha que isso é bonito, 74 75

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