Você está na página 1de 11
SUPLEMENTO ESPECIAL: MOVIMENTOS DE ALFABETIZAGAO m viver memoria da * EW pedacovia Neen ecu Ce UEC E INTERACIONISMO eselas1354).) LINGUA ESCRITA AREVOLUCAO DO ALFABETISMO paste DOS METODOS ORY Nd iT Tey Emit Z EIRO A CONSTRUCAG DO CONHECIMENTO esdea 1? Conferéncia Brasileira de Alfabetizagdo € Cidadania ocorrida em Brastla, em 1991, da ual participamos € na qual originou-se nosso trabalho de formagio de professores alfabetizadores no Brasil, muitos planos do Ministério da Educacio e intime- 10s estudos universitérios foram desenvolvidos, no pats e ‘no mundo, muitos planos de ONGs foram langados para tentar eradicar 0 analfabetismo no Brasil Em um artigo, “Afinal, onde esté a leitura:", manifests ‘vamos nossa preocupacao diante de dois fatos: a auséncia de textos na escola tradicional e, nas raras ocasibes em que cles existiam, a auséncia de situagdes de leitura nas préticas de alfabetizagio. Desde essa €poca, muita 4gua passou debaixo da ponte € queremos destacar alguns fatos que ‘nos parecem signifcativos no que diz respeito ds prticas da escrita, fora e dentro da escola. Um esforgo.continuo do conjunto da ociedade posibili- tou auniverslizacio da escolarizagao na escola fundamental e, em 1997, 0 MEC publicou os Parémetros Curticulares Nacionais (PCN), tendo em vista oferecer ao professor um novo referencia que marcava uma virada na érea da apren- dizagem da escrita, em relagdo ao passado. A fonte principal ca aprendizagem, segundo os PCN, deveria ser encontrada, «em primero lugar, na prtca dos textos escritos endo apenas dentro da cartilha, como ocomia na metodologia tradicional Em segundo lugar, 0s textos a ser abordados nao poderiam provir exclusivamente da transposicfoeserita da lingua oral infantil, como ocortia nas metodologias brasileras que po- deriamos chamar de "progressistas. Conforme a visto dos PCN, o conceito de alfabetiza- Go focado no dominio do alfabeto, isto €, nas relacdes centre as letras ¢ 0$ sons, passoua ser insuficiente para dar conta dos novos objetivos buscados. Paralelamente 20 conceito de alfabetizacio surgiu o conceito de letramento, O CONSTRUTIVISMO DE EMILIA FERREIRO SE vor Eur BYARD que cobre, além do dominio do alfabeto, o conjunto das competéncias visando os usos da escrita Acrescentam-se a esses fatores escolares outros fatos «que mudaram as préticassocias da escrita. O primeiro éa cexpansio da literatura infanto-juvenil (LI)), que no Brasil 4 ultrapassou as vendas de outros setores da literatura. Os livros de LI) agora colonizam as estantes do quarto da crianga de classe média, entram nas bibliotecas piblicas e escolares e, gragasa“‘mediadores de letura”formados por diversas ONGs (como A Corda Letrae Vaga-Lume, entre ‘outras), invadem os lugares de convivéncia da crianga: creche, hospital, orfanato, jardim, praca piblica, barco no rio Amazonas, énibus-biblioteca na rua etc. Assim, a preocupagio coma leitura nao ¢ mais respon- sabilidade Ginica da escola, mas sim da sociedade inteira. encontro entrea crianca ¢ livro deixou de ser propiciado pelo professor da segunda série como prémio por uma alla- betizacio bem-sucedida. O manuseio do livro ocorre antes a alfabetizacio formal. A seqiiéneia aprendizagon (com a cartilha)/asoda sorta (com olivro) €agora invertida. Anova abordagem wsolaprndizagen nfo € fruto de uma proposta escolar, mas de uma mudanga social. Desse ponto de vista, © professor de primeira série nfo tem mais a prerrogativa ca cscolha do método de aprendizagem. Durante esses dois decénios, a pesquisa de Emilia Ferreiro liderou numerosos estucos universitarios © um movimento pedagégico internacional ativo e influente, chamado construtivismo, que mudou no Brasil o panorama das praticas e da reflexao sobre a alfabetizacao. Pretendo destacar os avangos que esse movimento originou ou forta- Jeceu na paisagem pedag6gica brasileira, uma vez que eles «estio agora ameacados pelo surgimento do método fénico, ‘que procura convencer os responséveis educacionals com argumentos cientificos de ordem parcial Ne EM PESQUISAS QUE QUESTIONAM A REDUCAO DA ESCRITA A MERA TRANSPOSICAO GRAFICA DA LINGU. \VIVER MENTES&:CEREBRO GEM ORAL AEXPANSAO ds literatura infanto-jwenil um dos fatores que rmudaram as peéticassocais da escrita. Ao lado, Duas meninaslendo no jardim (1890), de Auguste Renoir ESPECIAL EMILIA FERREIRO A autonomia of DEESGREA — AVANGOS AMEACADOS O método fonico, que promove uma “decodificacio" prévia a qualquer construgao de sentido, se revela atra vvés de um relatério entregue 8 Camara dos Deputados (Relatério final do grupo de trabalbo “Aifabetizagao infantil 0s 1000s canivbos"), elaborado por uma equipe internacional coordenada por José Morais (cuja posicio teérica pode ser conferida em A are de ler). Constituida exclusivamente por adeptos daquele método, ela contou com Fernando Capovilla (co-autor de Alfabdizagzo. méodo fonico) como membro brasileiro. © relatério se refere explicitamente a trabalhos franceses realizados no amago do Observatoire National de la Lecture (ONL), Srgio influente no Ministé- rio da Educagao Nacional da Franca. Ebom mencionar que José Morais pertence também ao ONL e € co-signatério de textos norteadores dessa instituigao Essa linha te6rica atribui aos “métodos globais" (in- cluindo nesse rétulo as linhas construtivistas ou socioin- teracionistas, os programas oficiais brasileiros expressos nos Parametros Curriculares Nacionais e no Profa — Pro: ‘grama de Alfabetizacao de Adultos) a péssima situagio do dominio da escrta no Brasil, De fato, “os dados revelam um quadro bastante grave ao indicar que apenas 26% da populacio brasileira, na faixa de 15 a 64 anos de idade, sao plenamente alfabetizados” (conforme escreveu Fébio Mon- tenegro em "Mobilizacao pela alfabetizacao pena’) No entanto, atribuir o fracasso escolaras metodologias ‘mencionadas remete tum reducionismo distante do rigor cientffico reivindicado pelos autores. Escreve Claudemir Belintane: “O documento (o rela. torio) admite, em trés linhas (pag. 113), a diversidade de ‘eausas possveis que o sistema educativo brasileiro enfren- ta, mas descarta de imediato que os problemas possam set atribuidos a ‘questio da pobreza’ ow a ‘disturbios de aprendizagem”. (“Andlise de um documento produzido por um grupo de trabalho composto por defensores do método f6nico’, artigo a ser publicado na revista Educagio ¢ Pesquisa, da Faculdade de Educacao da USP) O Instituto Montenegro, que publica niimeros alar mantes no que diz respeito ao dominio da escrita no Brasil, sponta pessoas que nao "conseguem ler textos mais longos, localizar relacionar mais de uma informag3o e comparar PAIS SAO MEDIADORES da letra, criando uma familaridade com o livro que pode ser introduzida na educagSo infant ‘Abaixo,ilustaco de A roinha da neve, de Hans Chistian Andersen © MANUSEO DX ab professora Alb ta Guerra dentro de ps textos’ (segundo o artigo ja citado de Fabio Montenegro). ‘Ora, se 0 fracasso remete nao a analfabetos absolutos = pessoas que milo dominam 0 cédigo alfabético =, mas sim a analfabetos funcionais, um paradoxo se configura. ‘Como 0 método fénico poderia reduzir o analfabetismo funcional brasileiro se, nos termos do relat6rio, ‘aprender a ler consiste essencialmente em adquirir as competéncias para decodificar’, meta muitas vezes atingida pelos anal- fabetos funcionais, no entanto incapazes de transformar essa habilidade em compreensio? ACRIANCA NO CENTRO Conforme a teoria de Jean Piaget, que a subsidiou, Fer: reiro questiona a abordagem tradicional da aprendizagem da escrita fundada na obediéncia ao programa preestabele. ido da cartlha, que apresenta o sistema alfabético numa ordem tinica para todos os alunos. E necessério “colocar © sujeito da aprendizagem no centro do processo, € nio aquele que, supostamente, conduz essa aprendizagem, co método ou quem o veicula” (Psicogénese da lingua escrita). Desse modo, a idéia de que a crianca aborda a escrita pelo sistema alfabético € claramente contestada por Ferreiro: \WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR "Qual € a justificativa para se comegar pelo célculo me- ‘canico das correspondéncias fonema/grafema para entao se proceder, e somente entio, a uma compreensio do texto escritor". No hé um ponto zero da aprendizagem dda escrita; existe sempre um conhecimento prévio que a atividade do sujeito reestrutura a partir de um processo de acomodagéo € assimilagio mental, conforme mostra Piaget. No momento em que a grande maioria dos pro- fessores seguia fielmente o programa da cartilha,levar em cconta as modalidades de cognigio da crianca se revestia de fundamental importancia. A primeira fase da lingtifstica saussuriana ~ “a tinica razio da existéncia (da escrita) € representar (a fala) (Saussure, Curso delingistca geal) ~ confirmou uma abor- dagem da escrita como gravagio da oralidade. Assim LIE BAJARD 6 autor Ler edlzer e Caminhos da exerita (Cortez) «eespectalista na formacao de professores no campo da apren- dizagem da escrita, com experiéncia em pafses como Franca, Argélla ¢ Marrocos. Como adido linguistico da Embaixada da Franca no Brasil, riou com 0 Ministrio da Educacao o Projeto Pré-Leitura (1990-1994), VIVER MENTES& CEREBRO 55 56 fazendo, fundamentou uma visio fonocbtria (termo usado por Derrida em Gramatologia), a qual justifica a existencia do grafema apenas por seu vinculo com 0 fonema. No entanto, a evolugio das ciéncias humanas ~ andlise do discurso, semiética, psicandlise, historia da escrita e da leitura ~ evidenciou um funcionamento da lingua escrita mais complexo ¢, particularmente, mais auténomo Para exemplificar nosso ponto de vista, digamos que colocar 6 dominio do sistema alfabético na origem da aprendizagem equivale a esquecer que as slabas escrtas sao identificadas a partir da apreensio visual prévia da palavra. Ora, € 0 espacejamento, que pertence a dimensio logografica, negada pelos promotores do método fénico, que possibilita a apreensio visual da palavra ‘Assim, cada vez que um método é elaborado pelo adulto cexclusivamente a partir de uma determinada descricio da lingua escrita, corre vérios riscos conjugados. O primeiro visco € 0 de nio corresponder “aos esquemas assimiladores” do sujeito (ver Os proceso delta eescrita). O segundo éo de submeté-lo a um saber historicamente marcado, como € 0 caso daquele que nega qualquer autonomia lingua escrita ("Acescritaalfabética nao representa o significado diretamen te-como se fosse um desenho, mas sim indiretamente, por meio de mapeamento dos sons da palavrafalada’, escreve Capovilla em Aljabetzagao: mado frico) Destacar a responsabilidade do sujeito que aprende foi a contribuic 10 central de Jean Piaget & pedagogia € também a contribuigdo imprescindivel de Ferreiro & aprendizagem da escrita FAZER SENTIDO Ferreiro contradiz os adeptos do método fonico, que argumentam quea decodificagao é competéncia central do processo de aprendizagem da leitura” (Relatri), j4 que a compreensio, por estar presente "quando se assiste um filme, se participa de uma conversa, se escuta um palestrante” (Michel Fayol ¢ José Morais em “A leitura ¢ sua aprendizagem’), no pode caracterizar especifica mente nenhuma dessas atividades. Como, segundo os adeptos do método fénico, a decodificagio transforma a excrita em discurso oral, apenas este iltimo € suscetivel de ser entendido e a compreensdo acaba sendo expulsa do campo da leitura Para que tal raciocfnio pudesse ser aceito, seria necessé- rio mostrar que as operacées de compreensio sao idénticas cem todas essas situacdes. Ao contrério, pensamos que @ leitura € caracterizada pela singularidade das operacGes de compreensao efetuadas sobre a representagdo gréfica de um texto. Para Ferreiro, a leitura € claramente uma atividade de linguagem, e nfo uma ‘decodificagao” que transpde grafe- mas em lonemas: "Este processo, que diz respeito 8 leitura de um texto com a respectiva compreensio, € 0 tinico que merece er chamado de leitura e até que possamos doming- lo, nfo sabemos ler’ (Os process de letra ewscrita) E paradoxal que 0 método fénico, que reduz a escrita ao sistema alfabético (para nés é importante distinguir 0 sistema alfabético, subsistema do sistema gréfico mais amplo) ¢ a leitura & “decodificagio” possa atribuir a0 construtivismo 0 fracasso da escola na sua luta contra o analfabetismo funcional, caracterizado justamente pela impossibilidade de o leitor chegar até o sentido, apesar de saber “decoditicar’ (O método fénico se refere & correlagdo demonstrada por varios autores entre a consciéncia fonica (capacidade de reconhecer na cadeia falada as unidades fonémicas) ¢ 1 sucesso na leitura. Ferreiro questiona 0 uso abusive das correlagdes entre pré-requisitos e competéncia de leitura: !Nao hd que se confundir uma correlacao positiva com uma relagio causal (que quaisquer dessesfatores se correlacionem Positivamente com orendimento escolarna lectoescrita n3o quer dizer que o referido fator seja a causa do rendimento observado, coisa que se aprende em qualquer curso elemen- tar de estatistica)’. (Os procsosdeetura eescrita) Os apelas constantes a ciéncia pelos adeptos do método fonico parecem ter sido escolhidos menos como demonstragao cientifica para convencer cientistas de ou- RESSONANCIAS. Visio de Ferreiro tem proximidade em relaglo 83s teotias de Chomsky (a lado) ede Bruner no que diz respeto 8 ‘onquista da lingua oral materna ESPECIAL EMILIA FERREIRO tras inhas do que como selo de garantia para conquistar © poder nas instancias de decisio politica (Ministério da Educacio, Camara dos Deputados) e para orientar de acordo com sua conveniénciaa prtica escolar ea formacéo dos professores. Se'“ler €extrair de uma representacio gréfica da lingua: gem a prontincia € o significado que Ihe correspondem’ (Fayol © Morais) e se a instituicSo conseguisse ensinar a decodificagio a todos, um plano escolar ousocial posterior seria necessrio para se ensinar a ext da compresto. Ora, se 0s novos alfabetizados vém engordando as coortes de analfabetos funcionais, uma tal visio da aprendizagem em duas etapas levaria a crer que 70% da populacio brasileira fracassaram na segunda. O método fénico, com seu duplo processo em se- aiiéncia, no passa de uma retomada da cartilha, que ensinava a decifragao antes de qualquer compreensio, Assim sendo, as criticas feitas por Ferreiro aos métodos tradicionais permanecem pertinentes. Os professores formados pelo construtivismo sio conscientes de que 0 objetivo da alfabetizagdo € educar cidadios capazes de utilizar a escrita como linguagem € néo apenas formar decodificadores. APRENDER FAZENDO Para Ferreiro, a leitura constitui uma destreza, "0 el rmento-chave de uma destreza é 0 processo de interac de todo 0 conjunto de condutas que constituem a habi- lidade total, A integracao se aprende mediante a prética 6 € possivel praticar a integraco quando se exercita a destreza em sua totalidade" , citando Bamberger, ‘muitos rio léem livros porque nio sabem ler bem. Nao sabem ler bem porque nao Iéem livros’. Esse raciocfnio teérico se assemelha & pratica dos métodos ativos e sua divisa apreerfazendo, No constru tivismo, as criangas comecam a escrever muito antes de WWW/VIVERMENTECEREBRO.COM.BR JEROME BRUNER, autor de Uma nove teria do aprendlzagem ‘¢um dos fundadores da psicologia cognitiva dominar a escrita, Eas escrevem a partir das habilidades 58 integradas, isto & produzindo uma escrita “nao con vencional’, aceita pelo grupo-classe ¢ pelo professor. Na ritica construtivista, as produgbes das criangas-—desenhos primeiro, textos depois ~ se fazem presentes nas paredes da instituigdo desde os primeiros passos, na creche. A lectoescrita, desde o inicio, é uma prética de linguagem ¢ rio apenas um e6digo a ser dominado, Sew uso enquanto instrumento de comunicagio e de pensamento antecipa 0 dominio do cédigo e 0 torna possvel Para estudar a maneira pela qual a crianga aprende a «scrita, Ferreiro a colocou em situacdo de produzir textos ‘Observouminuciosamente as criancas convidadas aescre- verantes de dominarem o sistema de escrita, Aceitou pro- dlgdes infantis rudimentares como sintoma de um sistema inacabado, alicerce da construgao do sistema vindouto. Essa visio de Fereiro apresenta ressoniancias comas teorias de Chomsky e de Bruner no que diz respeito & conquista da lingua oral materna. Assim, as produgées infantis nio Sto apenas avaliadas em relacao a esrita convenciona, mas sio vistas como expressio de um conjunto de regra assimiladas pelo sujeto que aprende, utlizadas de maneira ainda demasiado "potente” (para Chomsky, a poténcia de ‘uma tegra temete & amplitude da sua érea de aplicacio). E importante avaliar uma tal contribuigio & educagio, uma vez que 0 professor é convidado a mudar seu ponto de vista: deve transformar o negativo (a regraa ser dominada) «em positivo (a regra jd assimilada), Essa mudanca de pers- pectiva fez com que o movimento liderado por Ferreiro tenha se expandido na América Latina com o entusiasmo de professores comprometidos com a reducio da miséria cultural de suas populacoes. Surpreende o retrocesso trazido pelo método fanico no que diz respeito 3 aprendizagem, a visio da inféncia, a cultura escrita, comparadas 3 pesquisa de Ferreiro e & pratica do movimento construtivista, A escrita éreduzida ‘atuma duplicagio da oralidade, a crianca, aum ser receptor de saberes convidado a montarautomatismos, ea cultura, {um premio em um percurso iniclatério. E preciso tomar consciéncia de que os avangos possibilitados pela aio de Ferreiro nao estao definitivamente sedimentados, Uma visio de aprendizagem centrada na crianga devers sempre ser defendida contra uma outra, mecanicista, di- retiva, Fstamos falando, em tiltima andlise, de diferentes concepgdes da infancia Por isso, podemos dizer que o método fénico € um asso no conservadorismo, enquanto Ferreiro retoma as intuigdes dos grandes pedagogos, tais como Decroly, VIVER MENTE&CEREBRO 57 Dewey, Freinet, Freire, aprofundando-as na érea da escrita e articulando-as & nossa época EVOLUGAO Desde os anos 80, 0 movimento construtivista evolu cde duas maneiras. A primeira, te6rica, pelo aprofunda- mento da dimensio social da aprendizagem, a partir do confronto com 0 pensamento de Vygotsky. A segunda, pela colocacao de livros de literatura infanto-juvenil nas mos das criangas pequenas. Sensivel 3s mudangas sociais ccontemporineas, 0 movimento construtivista fez entrar na sala de aula 0 novo habito familiar das classes médias de organizar a convivéncia das criancas com hist6rias es- critas ilustradas. Os pais se tornam mediadores de leitura compram livros, convidam as criangas a manuseé-los, a interpretar ilustragoes e a escutar textos ditos pelo adul to, Essa familiaridade com o fivro, iniciada nos fares, foi introduzida na educagio infantil ‘Assim, os textos da insituiglo escolar que, nos anos 80, cram exclusivamente frutos da produgio infantil deixaram espacoa textos oriundos de forada escola, particularmente da literatura infanto-juvenil. A partir da, o texto objeto de atengio ndo € mais apenas o texto produzdo pela crianca, mas 0 texto a ser lido, que se desdobra em géneros diver- sificados: literatura, artigo de jornal, receita de cozinha, bula, cartaz publicitério etc. A prética escolar da escrita, antes exclusivamente dedicada & emissio da escrita, passou aser também voltada a recepcio, Criangas acostumadas a \VIVER MENTESCEREBRO DIMENSAO SOCIAL da aprendizagem enfaizada pela obra de \Yygotsky € um dos alicerces do movimento construtivista tocar olivro,abrincar com seus personagens em dobradu 1a, a criar historias com suas ilustragées, a escutar 0 texto sonora interpretar imagens em seqiéncia ea idemtificara presenca €a fungao do texto gréfico (a terminologia texto sonoro-texto gréfico € nossa) adquirem conhecimentos sobre a escrita antes de abordar © funcionamento do sistema alfabético. ‘Como articular a praposta do método fénico com um percurso prévio¢ individualizado no que diz respeito aes ctita? Seré possivel adiara extracio do sentido para esperar o dominio da extragao da prontincia? A nosso ver, a situagao do analtabetismo no pais ndo pode ser causada pela pedago- gia renovada do construtivismo, tampouco dos PCN, como acusam de maneira simplista ¢ injusta os adeptos do método fonico. Ao contrério, a formacao de professores realizada pelo movimento construtivista através de uma militéncia generosa oua partir de programas institucionais deverd sero alicerce sobre o qual outros planos, aperfeigoados, poderdo ser elaborados com uma eficiéncia ampliada, TOMAR CONHECIMENTO DO TEXTO Vimos que a disseminacao da literatura infanto-juvenil modificou a primeira fase didatica do construtivismo, ra medida em que os textos presentes entre os grupos de criancas nao se restringem mais a textos produzidos por elas, mas englobam textos acabados, complexos, diversificados, Essa mudanga €, a nosso ver, profunda Com efeito, convidada a escrever, a crianga nao esté mais limitada a hipéteses de sua autoria tendo em vista t0- somente a tradugio de uma mensagem oral em escrita Quando detém uma experiéncia com a lingua da LI), a ctianca pode utilizar, na sua escrita, solugées encontradas nos textos lidos; deixa de estar restrita a hipdteses da sua autoria sobre uma escrita nunca encontrada AAs hipéteses elaboradas pela crianca ocorrem nao apenas ou prioritariamente na situagio de produgio de textos, mas sim na situagdo de confronto com um texto 8 existente, para compreendé-lo. Nao se trata mais de inventar um elemento possivel do cédigo para traduzir tuma mensagem, mas sim de interpretar um elemento real do cédigo, encontrado no texto acabado, Essa mudanca na prética pedagégica, a nosso ver, pode evar’ revisdo dos resultados jé obtidos através de indimeras pesquisas em paises diversficados, que trazem sempre & luz as mesmas etapas da aprendizagem — pré-silabica,silabica, alfabética, ortografica-, semelhantes as fases percorridas pela humanidade através da histéria da escrta (ontogénese € filogénese). Esse isomorfismo nao € surpreendente se ESPECIAL EMILIA FERREIRO ae: tomarmos consciéncia de que, sem contato com o mundo da escrta, 0 sujeito€ levado a reinventar uma linguagem ‘Cabe lembrar, a esse respeito, a situac3o daquelas criancas surdas da Nicardgua que inventaram uma linguagem de signos sem ter tido nenhuma convivéncia com surdos possuidores de linguagem (ver Aux origins du langage, de Jean-Louis Dessalles) Em nossa pratica, observamos que criangas familiariza- das com livros identificam elementos do cddigo ideogra- fico, tal como a maitiscula, antes de dominar inteiramente ossistema alfabético, A constancia da seqléncia de etapas detectadas por Ferreiro pode ser fruto da similaridade da situagao na qual as criangas foram observadas (ver "Un coup pour rien’, de Jacques Fijalkow). Perguntamos: seré {que criangas que identificam elementos do cédigo dentro de livros emitem as mesmas hipéteses que outras sem experiéncia similar) Pensamos que a resposta varie em funeao das referéncias da crianga. Quando ¢ fruto apenas de hipéteses sobre uma escrita possivel, a resposta € mais limitada do que quando provém de um repertério signi- ficativo de solugdes efetivas, reunidas através do contato com uma escrita atestada \WWWLVIVERMENTECEREBRO.COM.BR Podemos observar, através da pritica infantil da litera tura, que 0s pressupostos do construtivismo no sio ainda levadossufcientementea sério por seus préprios defensores ‘Apesar de a compreensdo serclaramente, segundo Ferreito, ‘essencial do ato de ler, a descoberta de um texto desconhe- ido permanece um desafio a ser enfrentado pela didatica construtivista. Quando a crianga € colocada em contato ‘com um livro novo, ela pode ser convidada a interpretar as imagens. Raramente, no entanto, éestimulada a interpretar © texto gréfico antes que o texto sonoro seja proferido e 0 significado, assim, revelado. A crianca &estimulada a ese ver antes do dominio do alfabeto, mas, curiosamente, nio € convidada a interpretaro texto grafico antes da revelacio do seu significado pela boca do mediador. Ora, se a leitura € definida como 0 ato que possibilita ‘© entendimento de um texto que nunca foi encontrado, € essa situacio que deve constituir © centro da didatica da leitura, se quisermos contemplar os pressupostos do construtivismo. Quando o significado do texto é desvelado pcla boca do mediador, se esvai a situacao de leitura: sé resta ser realizada a comparacao entre a forma grafica do texto e sua forma sonora, ‘VIVER MENTE&CEREBRO 59 Assim, o significado, previamente revelado, deixa de ser suscetivel de busca. As operagdes efetuadas sobre 0 texto nio constituem um ato de linguagem — conhecer a hist6ria -, mas transformam-se em estudo metalingiistico: ‘a palavra (sapo) essa Nao apenas o prazerda descoberta da histéria esté ausente, mas a propria escuta do texto se toma pretexto para um exercicio escolar. Nao queremos negaro interesse da comparacio do texto sonaro com 0 texto grifico, mas nosso objetivo € mostrar que ela no equivale a um ato de leitura, Quando o ato de leitura constitu o fulero da aprendizager da escrita, outros ins- trumentos didéticos, entre lesa comparacio entre a forma sgréfica e a forma sonora, sio por ele justificados. Uma metodologia de aprendizagem da escrita cons- truida a partir da prética social da linguagem no pode esquecer 0 ato de "tomar conhecimento do texto” (um sinénimo de ler no dicionério Houaiss), propondo exer- cicios nfo enraizados na leitura propriamente dita O construtivismo hoje ultrapassou a fase em que, tal como ocorria nos anos 80, a crianga, sem contato com o mundo dos textos publicados, era exortada a reconstruir tum sistema jéexistente no mundo no qual ela nasceu. De. pois de o movimento ter integrado a sua pritica 0 contato precoce da crianca com textos diversificados, outro desafio deve agora ser superado. Além da escuta, tinico acesso possivel do analfabeto & literatura, textos desconhecidos, isto é, sem que a proferigao os tenha desvelado, devem ser submetidos & investigacio da crianca, Quando esses textos apresentam problemas lingis- ticos, geram a situagdo denominada questionamento de texto (Formando criancas letoras, Josette Jolibert)¢ possibilitam a ampliagio do cédigo da escrita. Quando sio desprovidos de elementos novos, suscitam uma leitura comum,fala-se entio de descobrinento do text (titulo de artigo do autor deste tensaio). Acabam sendo assim contemplados os pressupos tos do construtivismo: aprende-se leitura lendo, Podemos portanto detectar duas fases da pritica do construtivismo. Na primeira, a aprendizagem da escrita opera apenas através da producdo de textos. A crianga Ecolocada em situagao de eserever. Contrariamente 20s pressupostos de Ferreiro, que recusa considerar a lingua escrita enquanto pura duplicacao da lingua oral, acrianga € convidada, na realidade, a transformar seu discurso oral VIVER MENTESCEREBRO cem lingua escritae a transpor sons em signos gréficos. Vi se 0 sistema allabético em detrimento do sistema grafico, (Numa abordagem visual, o sistema grafico mais amplo inclu’ o sistema alfabético: todos os grafes possuem uma dimensao ideogréfica, mas apenas alguns tém dimensio alfabética. O sistema grifico pode ser considerado como primeiro, diretamente apreendido pelo olho. O sistema alfabético pode ser tido como secundirio, pois deve ser transformado em signos sonoros, conforme a frase de Saussure citada anteriormente.) ‘Osistema da escrita & construido, nesse caso, a partir da produdo de textos, ea leitura passa a serum efeito dessa construcéo. A leitura no é adquirida a partir da prética da compreensio do texto. Essa proposta de alfabetizagio chegou a ser desenvolvida em escolas sem livros, isto é, fora do mundo letrado, 0 que nao corresponde aos, pressupostos anunciados, De fato, aprende-se a escrever esctevendo, mas aprende-se a ler a partir do cédigo cons. ESPECIAL EMILIA FERREIRO truido através da producio de textos. Assim, alectoescrita (como diz Ferreiro) se torna a prética tinica de um sistema tido como reversivel ‘A segunda fase do construtivismo ocorre quando a crianga é colocada em contato com livros 0 mais cedo possivel. A diferenca é radical, na medida em que, a0 conviver com livros, ela tem acesso & fonte na qual reside a manifestagio do sistema complexo e acabado da escrita O livro Ihe dé a oportunidade de se apropriar do sistema, sda mesma maneira que a lingua dos pais Ihe dew a materia lingtistica necesséria 8 sua apropriagao da lingua port sguesa, Atrafda pelas histérias, a crianca, motivada pela Pesquisa do sentido, procura levantar hipsteses sobre 0 funcionamento do texto que acompanha a ilustragio. A situacdo de descoberta do livro é uma verdadeira situacao de leitura, j4 que a crianga busca construir um significado ainda desconhecido. F a sua prdpria investigacao visual que revela assim tracos do sentido. Noentanto, essa busca se opera de maneira esponténea, ‘sem ser acompanhada nem aproveitada pelo alfabetizador, Quando este intervém, na maior parte das vezes 0 faz apenas para proferir o texto sonoro e revelar a histéria 0s ouvidos da crianga. Encerra-se assim a investigacao infantil ea situagao de leitura. Uma condugio que leve ao desvelamento do significado pela prépria crianca é,anosso ver, 0 préximo desafio da proposta construtivisa ‘A pesquisa de Ferreiro, assim como 0 movimento que animou durante decénios, transformou a paisagem da alfabetizagio na América do Sul e as representacées sobre a escrita de uma parte dos professores brasileiros Ao questionar a cartlha, o construtivismo dé chances & ‘rianca para expressar-s, sem se manter presa.a uma visio estritamente adulta, A aprendizagem da lingua escrita é uma prética de linguagem que deve atender 0 projeto da rianga. A atuagao preconizada pelo movimento construti- vista encontrou no Brasil um terreno fértil,jé lavrado pelo ‘impulso intelectual e social efetivado por Paulo Freire e sua pedagogia do oprimido. Segundo esse notavel pedagogo, a Jeicura pode se tornar um instrumento libertadorse, desde sua aprendizagem, atender as necessidades do cidadio. Para Paulo Freire, o ato de ler envolve a pessoa inteira em lum projeto libertador, nao podendo ser reduzido a uma Depois dos trabalhos de Piaget, Ferreiro estudou 0 desenvolvimento psicogenético da crianca no que diz res peito lingua escrita. Analisouas produces das criancas, convidadas a escrever antes de saber fazé-lo. Com efeito, as produgdes escritas, apesar de no deverem se tornar um procedimento Ginico para adquirir 0 cSdigo, se revelaram ‘um diagnéstico fiel para avaliar as estruturas lingisticas jd dominadas pelo sujeito. WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR Para terminar, podemos expressar uma expectativa Assim como 0 construtivismo, por ser um movimento atento as mudangas sociais — particularmente & explosio da literatura infanto-juvenil e & sua entrada nos [ares -, 8 soube incorporar 4 sua metodologia a prética do live, © que no ocorria na sua primeira fase, esperamos que 0 novo desafio, constituido pelo confronto com o texto desconhecido, seja respondido. A propria Emilia Ferreiro tenta analisar as mudangas acarretadas pela generalizacio da informética na so- iedade, na escrita e no seu uso (wer Passado e preset dos eros ler escrever), Ainda & dificil avaliar a importancia e 4 profundidade de tal mutagao. Criancas com 4 anos ja manusciam 0 mouse e escrevem com perfeigio 0 seu nome, antes de dominar a motricidade fina necesséria ao tracado das letras ¢, as vezes, utilizam as fungdes copiaricolar. A escrita passa hoje por uma mutagao de intensidade inédita desde a invencio do espacejamento na escrita continua no século IX. Se o seu uso se modifica, as metodologias da alfabetizacao precisam se adaptar para assegurar sua cficiéncia, Estamos convicios de que os pedagogos mais abertos, entre os quais incluimos os adeptos do construt- vvismo, saberdo levar em conta tais transformacoes. me ‘arte de ler |. Moras. Unesp, 1996. ‘Afinal, onde esta leitura? €.Bajard, em Cademas de Pesquisa, 12 83, novembro/1992. Alfabetizagao: método fonico. A. 5. Capowilae FC. Capovila Silvana Santos, 2002. ‘Aux origines du langage. |-L. Dessalles. Hermes (Pais), 2000. Curso de linguistica geral.F. Saussure. Cult, 1969. Formando criancasletoras |. Jolibert. Artes Médicas, 1994. Gramatologia. |, Derrida, erspectiva, 1999. La lecture et son apprentissage. M. Fayol e |. Morals, em Févolution de Fenseignement def lecture en France, depuis de ans, Anais das “Journées de FONL”. Clermont-Ferand, 2004. http:// \wnwinrp f/ONLressources/publi/publiations tot htm, Mobilizagao pela alfabetizasao plena, F, Montenegro, em Pano- rama Edteril 1°13, outubro}2005, © descobrimento do texto. €, Bajard, em Linha d’Agua, 0° 15 Humanitas, setembro/2001 (0s processos de leiturae esrita, E. Ferreko e M, Gomez Palacio. ‘Artes Médicas, 1987. Passado e presente dos verbos ler e escrever. E Ferreiro. Cor- ‘ez, 2002, Pedagogia progressista.G. Snyders. Almedina (Coimbra), 1974 Psicogénese da lingua escrita, E.Ferreko e A. Teberost. Artes Medlcas, 1991, Relator final do grupo de trabalho “Alfabetizagio Infanti os novos eaminhos". Camara dos Deputados, Comissio de Cultura «eEducagio, 2003. htp:/www2.camara.gowbr/comissoes/cecite latoroselat Final pdt Un coup pour rien. |. Falkow, em Les Actes de Lecture, n° 67, setembro/1999, VIVER MENTESCEREBRO ee ee 61

Você também pode gostar