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Público • Sexta-feira 25 Junho 2010 • 37

Todos já perceberam que este Governo já acabou mas ainda temos de viver com ele mais um ano

Desabafos a propósito deste país pequeno e paroquial

O
NUNO FERREIRA SANTOS
abuso dos chips das matrículas Não sendo nova a situação, como é possível que
A forma como o Governo conduziu se repita anos após ano? Em primeiro lugar, porque
o tema da introdução de portagens nas a ideologia dominante no Ministério da Educação
Scut lembra aqueles condutores que, é a de que a aprendizagem é um processo lúdico,
apesar de verem o muro pela frente, que não implica esforço. Mas também porque, como
carregam no acelerador. Às vezes esborracham- se referia na reportagem, temos um problema de
se, outras vezes ensaiam travagens que os levam a “inteligência pública”: convivemos bem com esta
José entrar em derrapagem descontrolada. degradação dos padrões do ensino e muitos até se
Manuel O erro, é bom recordá-lo, vem desde o tempo de sentem aliviados por as “taxas de sucesso” estarem a
Fernandes Cravinho e Guterres: apesar de se viverem tempos aumentar. O desastre a que levou a ideologia funesta
de “vacas gordas”, inventaram-se as Scut para per- reinante do sistema educativo nunca provocou o so-
Extremo mitir ao Estado encomendar auto-estradas sem ter bressalto público que devia ter provocado, até porque
ocidental de se preocupar com o seu pagamento imediato. O não falta quem continue a pensar que a Matemática é
modelo só podia conduzir aonde conduziu: constru- para os outros pois não passa de um mistério…

A
íram-se estradas que ainda hoje estão subutilizadas
(não todas), não se instalaram portagens, fizeram-se mentira como forma de vida
contratos com os privados em que todo o risco fica Ainda custa a engolir toda a falsidade
com o Estado, e a pouco e pouco a “renda” a pagar que rodeou o funcionamento da comis-
tornou-se incomportável. são de inquérito ao caso PT/TVI. Começa
Tudo isto foi dito inúmeras vezes, mas a teimosia por ser extraordinário como o que devia
de Sócrates nunca o deixou ver a realidade nua e ser o objecto do inquérito – a dimensão do envolvi-
crua dos números e dos factos. E quando começou mento do Governo na operação de compra da TVI
a fazê-lo, as asneiras sucederam-se. Primeiro veio para alterar a sua linha editorial – foi transformado
a tentativa de dividir as Scut entre as gratuitas e as na caricatura de saber se o primeiro-ministro tinha
que, afinal, podiam ser pagas. O exercício resultou ou não mentido no Parlamento. Em condições nor-
numa mistificação total e na discriminação negativa mais, e não de rábula política, tal tema não suscitaria
das Scut do Norte Litoral. Depois chegou o famoso sequer dúvidas: há muito que as notícias sobre o
“dispositivo electrónico de matrícula”, o chip, que negócio eram públicas e é sabido que a obsessão
logo se percebeu que implicaria sempre, por via da controleira do primeiro-ministro nunca deixaria
sua obrigatoriedade, uma perda de privacidade por que essa operação fosse realizada sem o seu conhe-
parte dos proprietários de veículos. Pelo caminho, cimento. Afirmar o contrário é fingir que a verdade
houve ainda adiamentos, hesitações e uma enorme formal é diferente da verdade dos factos.
trapalhada legislativa. Quanto à questão central, esta tem uma resposta
Por fim, em desespero de causa face à morte clara na declaração de voto de Pacheco Pereira: “Sim,
anunciada dos chips, o Governo e o PS começaram Poucas vezes estes polícias cultura” ultrapassou todos os limi- houve participação governamental (em particular
a dar o dito por não dito e a acrescentar ainda mais tes. Poucas vezes estes polícias das com origem no primeiro-ministro e executada por
confusão a um dossier que já não tinha por onde das consciências alheias, consciências alheias, demasiado quadros do PS colocados em posições cimeiras em
pegar. Felizmente, apesar de aparentes hesitações, ocupados para irem eles próprios empresas em que o Estado tem qualquer forma de
demasiado ocupados
o PSD não cedeu à chantagem de última hora e o ao funeral, foram tão impositivos participação directa ou indirecta) numa tentativa de,
modelo de chips consagrado na legislação até agora para irem eles próprios como na exigência de o Presidente em ano eleitoral, controlar vários órgãos de comuni-
produzida morreu ontem no Parlamento. Só é pena aí representar “todos os portugue- cação social, nomeadamente a TVI”. Foi esta resposta
que, devido ao autismo e à arrogância do executivo, ao funeral, foram tão ses”. Por mim, só desejo que José clara que a comissão quis evitar a todo o custo.
cuja forma de actuar agrava a percepção de que trata impositivos como na Saramago descanse em paz e que, Há meses que, desde o presidente do Supremo
o Estado como se fosse propriedade sua, nunca se sem o obstáculo do seu azedume Tribunal de Justiça ao procurador-geral da Repúbli-
incomodando quando este deixa de se comportar exigência de o Presidente político, seja possível no futuro ca, passando pelo presidente da Comissão de Inqué-
como um parceiro leal, se tenha chegado a uma situ- apreciar melhor o melhor da sua rito e pelo seu relator, se tenta evitar a conclusão
aí representar “todos
ação para a qual não há saída fácil. Mas há saída. obra. que todos os portugueses tiraram. Porquê? Talvez

O I
os portugueses” porque exista em Portugal uma estranha e insalubre
funeral de Saramago literacia matemática conjugação de interesses que conflui num só objec-
Harold Pinter, o dramaturgo inglês Mais de um em cada qua- tivo: ir sustentando o actual Governo, pelo menos
que ganhou o Nobel da Literatura em tro estudantes que entram até se perceber que destino dar a José Sócrates. Já
2005, morreu na véspera de Natal de no Instituto Superior Técnico ninguém verdadeiramente o respeita, muito menos
2008 e nenhum membro do Governo não respondem certo sobre acredita no que diz, todos sabem que a sua perma-
britânico foi ao seu funeral, a 31 de Dezembro desse quanto é um meio mais um meio. Isto porque os nência em São Bento é uma questão de tempo, mas
ano. Nem qualquer representante da Coroa. Não alunos que chegam ao ensino superior estão “vi- ninguém quer dar o primeiro passo. O Presidente da
passou pela cabeça de ninguém transformar isso ciados no uso da calculadora”, têm cada vez mais República porque quer ser reeleito. O líder do PSD
num caso político. dificuldade “na aplicação de conceitos básicos a porque quer escolher a melhor oportunidade. Os
Camilo José Cela, o Nobel da Literatura de 1989, novas situações” e revelam-se “infantilizados”. A partidos da esquerda porque temem uma vitória da
morreu em Janeiro de 2002 e ao seu funeral, em reportagem do PÚBLICO não nos dava propriamen- direita. O PS porque não sabe já o que quer.
Padron, na Galiza, compareceu o vice-presidente te uma novidade, mas obriga-nos a pensar no que Por tudo isso se manobrou para evitar uma con-
do Governo espanhol, o galego Mariano Rajoy, mas não pode continuar a ser uma fatalidade. clusão taxativa da Comissão de Inquérito, por tu-
nem Aznar, nem Juan Carlos. O problema já nem está em os alunos não saberem do isso se está a condenar o país a viver com um
Albert Camus, Nobel da Literatura em 1957, mor- sequer fazer elementares contas de cabeça: está em Governo em gestão – e em negação – por mais um
reu num desastre de automóvel em 1960 e quando assistirmos, sem revolta suficiente, à destruição de ano. Cada ministro diz a sua coisa, muitos ainda
foi a enterrar, em Lourmarin, foram os futebolistas princípios elementares de exigência e responsabili- nem compreenderam que o seu guião mudou, o
do clube local que levaram o seu caixão. De Gaulle, zação em quase todo o sistema educativo. E se não chefe do Governo só vive apenas em função do seu
Presidente da França, não estava presente. se pede às escolas que formem génios, exige-se-lhes minuto diário no telejornal. Cada acto legislativo é
Estes três exemplos mostram como tudo se passa que, no mínimo, se recordem que, como escreveu numa trapalhada apenas compreensível porque a
com naturalidade nos países adultos quando desa- a Sociedade Portuguesa de Matemática, “dentro arrogância levou a um autismo suicida.
parece uma figura maior das respectivas culturas. de alguns anos, estes alunos terão empregos de Estivesse o país em melhor forma, e este adia-
Estes três exemplos permitem perceber como só responsabilidade no desenvolvimento científico, mento seria suportável; no estado em que nos en-
num país irremediavelmente provinciano e de um tecnológico e económico do país”. Ora, as provas contramos, corrói as suas escassas forças e mina a
politicamente correcto sem limites teria sido pos- nacionais de 2010 estiveram de novo “longe de ter o moral pública, criando padrões cada vez mais bai-
sível que o tema da ausência do Presidente da Re- grau de exigência (…) adequado”. A grande maioria xos, como os que derivam de se admitir que uma
pública no funeral de José Saramago fosse objecto das questões não saía da rotina e pouco se exigia inverdade não é a mesma coisa que uma mentira.
de uma polémica onde o mau gosto dos “donos da em matéria de cálculo. Jornalista (www.twitter.com/jmf1957)

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