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coneXoes _Cawvexdss ¢ uma colegio dirigida por ina Franco Ferraz apresenta ublicagaes: Joel Birman ENTRE CUIDADO E SABER DE SI Sobre Foucault e a Psicandlise 2 Epica rtrd io Rio de Janeiro 2000 conexées——_— CapiruLo X DESCONSTRUCAO DA FILOSOFIA DO SUJEITO A leitura das conferéncias proferidas nos Estados Unidos 1e foram publicadas com o titulo de “Tecno- contemporineas volumes de “Hi ia da sexualidade”, é esclarecedora de alguns dos aspectos do projeto fi ‘de Foucault. Pode-se depreender isso a partir de diferentes Jinhas de leitura e enunciados que foram formulados nese desenvolvimento. ‘Antes de mais nada, porque a subjetividare como proble- mética est situada no primeiro plano da leitura proposta. Foucault disse em diversos momentos que essa problemé- tica ocupou desde sempre o seu pensamento, estando sem- pre no centro de sua pesquisa, desde o comeco, marcando 0 seu percurso de maneira infalivel. Poder-se-ia dizer que se trataria mais do charme de um autor, que atravessou dife- rentes problemeticas ao longo de uma imensa obra e que ‘acabou por valorizar ~ como talvez tena sido sempre 0 seu. Jeme — 0 seu ponto de chegada? Talvez. Nao estamos certos disso, no entanto. Supomos aqui que essa problematica atravessa 0 con- junto de sua obra, mas de maneira muito especifica e com bastante originalidade. Isso porque ela se situa na encruzi- Thada de miltiplos registros teérioos e diferentes ordens de oY Jot Braun | da investigagio anto na arqueologia do saber e na genealogia do poder quanto na estética da existencia, Portanto, inscri- ta historicamente entre os registros ético,estétco e politico, ser finalmente um objeto teGrico eo campo para as priticas de diversas cigncias humanas na modemidade: gia e psicandlise. Seria, pois, esse conjunto de arti- culagoes, reguladas sempre nas diversas arqueologias e ‘genealogias rigorosas, que conflufram para o projeto de uma estética da existéncia. ue deve ser devidamente ressaltada. Com efeito, formular a existéncia de teonologias de si & mo tempo, que a subjetividade nao tampouco um ponto de partida, mas algo da ordem da pro- dugio. A subjetividade nao estaria na origem, como invariante encarada de maneira naturalista, mas como ponto de chegada de um processo complexe, isto é, como um devir. a subjetividade deveria ser considerada no plu- pois que seria produzida por tecnologi que ao longo da hist ram e se diversificaram, transformarem. A su dendo entéo qualquer fix no seu ser. Enunciar, enfim, a categoria de tecnologia de si é formular ao mesmo tempo que a concepeao de subjetividade se teria transformado ao ongo da historia ocidental, a partir do enunciado de deter- rminadas técnicas de producao de si mesmo. Com isso, Foucault retoma a categoria langada em “A, vontade de saber”, de que 0 que existiria de fato seriam formas de subjetioagio.? Assim, falar em forma de subjetiva- [ENTRE CUIDADO & SABER DE St a fo € insistir na dimensdo de produgto do suite, que nio mais seria origem e invariante, mas destino e producio, destino resultante de um longo e tortuos0 proceso de mo- delagem e de remodelager icamente regulado. Ts50 lando, mas apenas as formas de subjetivagao. Engendradas por cerlas tecnologias de si, as formas de subjetivacao reve- lariam entio a inconsisténcia ontolégica do sujeito que estaria aqui em pauta. Enfim, nessa insistencia de ja resultante maior é 0 enunciado da subjetividade rma de subjetivacio, o que estaria sempre em pau- ta € a inconsisténcia on como uma invariante, que s6 se transformaria de acordo com as diferent para a qual sempre se podem inventar miltiplas técnicas para lidar com o mal- estar da subj a técnica seria sem- idade enquanto tal seria produzida pela propria logia de si, estando esta presente necessariamente, no cengendramento da subjetividade, Portanto, as técnicas de 86 seriam penséveis como decorréncia necessiria dessas tecnologias de producao de si, estando ‘sempre essas tecnologias, enfim, no fundamento de tais tée- rnicas de tratamento do psiquico. Concebidas assim no registro da produgdo, as subjeti- vidades seriam sempre forjadas nos registros ético e esté- 0, ¢ essas formas de ser teriam, além disso, desdobra- | 2 Jou. Baan ‘mentos politicos imediatos, jé que a posigio e 0 reconheci- ‘mento do sujeito na polis como cidadao estariam intima- ‘mente articulados & sua construgao nos planos no contexto da relacio do di tre. Essa codificacdo teria se transformado ao longo da his- do Ocidente, no entante lo pois a mesma na ‘dade e na tradigao inaugurada pelo cristianismo. Isso porque nas tradigdes grega e romana a construcdo de ’o implicaria absolutamente para o individuo algo da ordem da reniincia, enquanto esta estaria no fun- damento da ética crista® Vale dizer, 0 concepgio de subjetividade e de experiéncia fandamento estaria a rentincia, Isso porque o cristianismo teria deslocado o eixo da experiéncia ética, isto é, a relago entre as figuras de mestre e do discfpulo do plano horizontal inscrevendo entio a assimetria que marcaria lagdo entre essas figuras na verticalidade. Cons- iu-se com isso nao apenas o mundo da transcendéncia, para onde foi reenviado o didlogo vertical da experiéncia ética, mas também a separacao hierérquica entre dois mun= dos, 0 celeste e 0 terreno, isto é, 05 reinos de Deus e dos homens, Passando agora 0 individuo a ser dilacerado pelo per- tencim pre a dois senhores, Deus e o Principe, hierarquicamente ‘ordenados jé que o segundo seria ungido na sua posigio majestatica pelo primeiro, a construgio da subjetividade cestaria referida desde entio ao mundo da transcendéncia divina, Seria pela rentincia ao mundo terreno e pela regulacio pelos preceitos divinos, enfim, que a subjetividae de se forjaria face a um Deus impessoal e onipotente, qi EENIRE CUIDADO F SABER DE S 8 aria também hierarquicamente 0 reino, exceléncia do Principe. Em decorréncia dessa transformacao radical, a subjeti- vvidade passou a ser concebida como interioridade e cons- cigncia de si, como decorténcia dos efeitos produzidos pela rentincia como operador ético fundamental. Com efeito, rio por de suibjetivagdo que implicaria sempre interioridade e cons- ciéncia de si. Seria apenas nesse contexto que o aforismo socrdtico ~ conhece a ti mesmo ~ cantado em prosa e verso pela filosofia de Platio se teria inscrito como imperativo tico de maneira absoluta. Nem sempre teria sido assim. Na Antiguidade, em contrapartida, o que estaria em pauta nna experiéncia ética do Ocidente seria 0 imperativo cuidado de si, no campo do qual a exigéncia de se conhecer estaria sempre subordinada A categoria de verdade, correlato fundamental que seria agora do conceito de subjetividade, se inscreveria enlao na da subjetividade. A verdade do sujeito seria a ida da exigéncia deste em se conhecer, desdobra- mento agora da experiéncia da renincia e da insergo do individuo no mundo da transcendéncia. O cristianismo te- ria retomado a tradigdo da ética platdnica, oferecendo a esta ‘outros destinos, como diferentes leituras da hist6ria da fi- losofiajé tinham destacado, bem antes de Foucault. Articu- lada que seria a ascese e & purificagio transcendental, pela retirada da individualidade das referéncias terrenas, a no- ‘a0 de verdade seria permeada pelos valores da culpa e do ppecado, que fundariam a nova nogio de verdade como cons- tituinte da subjetividade.> dispositivo da confisséo, enunciado em “A vontade de saber” * construido nesse contexto genealégico agora cenunciado, seria a condigio concreta de possiblidade para 4 Jos. Baan a produgio e a reprodugéo dessa nova forma de subjetivi- dade. A confissio seria desde entao a tecnologia fundamen- tal para a construgio de si mesmo, pela qual enunciar em palavras para o outro, de maneira contrita, as méculas de sua alma, isto é, as suas culpas e pecados, seria o caminho obrigatério para a ascese purificadora da individualidade em diregio a transcendéncia divina, Por esse vies 0 sujeito estaria renunciando aos prazeres do mundo terreno, esco- Ihendo decicidamente a sua insergao no reino de Deus e da vvida eterna, com isso conquistando, finalmente, a salvagao. i preciso destacar que a confissdo como dispositive nao se restringiria a ser uma experiéncia do individuo que se izaria sempre diante de um confessor re em muito ultrapassaria a iss. as suas dobras quase invis veis para torné-las entao visiveis ao olhar perscrutador da conipoténcia divina. Ser , pela medtiagio desse per- manente exame de si e dessa confissao insistente, sempre diante da transcendéncia divina, como instancia a quem 0 sujeto se dirgiria, que o saber sobre si se enunciaria como verbo e se produzitia enquanto AA virlualidade, sempre presente na experiéncia do exa- ‘me de consciéncia e da contissao, se articularia ento com a transcendéncia do reino de Deus ¢ com 0 desenraizamento da individualidade do reino terreno. O desdobramento éti- co disso foi nao s6 a construgdo inaugural de como também a formulagao da categoria de lei moral com Kant? no século XVIL [ENTE CUIDADO E SABER DE st 85 Portanto, o imperativo moral kantiano se fundaria nes- se eixo de producio de si mesmo, sobre o qual Freud conce- eu posteriormente a existéncia do super-eu, como instan- cia moral e censora que seria interiorizada no sujeito pela © marca indelével da interdicdo da figura do pai 10 estruturante do complexo de Edipo. Com a psicandlise, enfim, a figura de Deus se faria presenca pela figura do pai, que se crstalizaria na instincia do super-eu. Portanto, essa concepcio original de subjetividade e de cexperiéncia ética, construida pelo cristianismo, seria a con- digg de possibilidade para a constituigdo da filosofia do incidido ainda de maneira fundamental na producao dos dliscursos da psiquiatria, da psicologia e da psicandlise, Com efeito, do “penso, logo existo” como imperativo ético-refle- xivo da filosofia de Descartes, passando em seguida pela lei moral e pelo imperativo categérico da filosofia kantiana até desembocar na concepsao do espitito absoluto da filo- sofia de Hegel," a exigéncia de conhecer a si mesmo do imperativo plat6nico-socrético passou a modelar o pensa- ‘mento do Ocidente e a ética do sujeito correlata de maneira absoluta. Com isso, 0 cuidado de si foi sendo paulatina- ‘mente sul @ até mesmo esquecido, como con da experiéncia ética e da produgio de si mesmo na Antigui- dade. Parece-me portanto que, do ponto de vista estritamente ico, 0 que esté em questo no projeto tebrico de Foucault seria a desconstrucéo da tradigao da filosofia do expressa de diferentes maneiras nos enunciados mente formuladas. Com efeito, realizar a descons- seria assumir ao mesmo tem- da motte de Deus e da morte do Homem na ‘modernidade. Isso porque a morte do Homem é o desapa- recimento da figura construida pela tradicio do cristianis- 86 Jos. Bana ‘mo, na qual interioridade, rentincia e consciéncia de si se- iam 08 seuis eixos fundantes, implicados com as figuras da transcendéncia. A morte de Deus e a morte do Homem se- riam as duas faces da mesma moeda, que tiveram na filoso- fia do sujeto a sua representagao metafisca, Esta teve, no entanto, um fundamento também teolégico no Ocidente, como nos ensinou Nietzsche!” e Heidegger’ ras sobre a genealogia da moral e a tradico do Ocidente, que também inspiraram Foucault de diferen- tes maneiras. O projeto de desconstrugdo da filosofia do sujeito mar- cou nao apenas todo o percurso tedrico da pesquisa siste- mitica de Foucault, nas miitiplas arqueologias do saber e sgenealogias do poder que rigorosamente empreendeu, como também os miiliplos ensaios, artigos, entrevistas, cursos e conferéncias que realizou ao longo de sua existéncia, que foram reunidos em 1994 nos quatro volumes de “Ditos e escritos”. Para realizagio disso seria necessério descons- as categorias de sujeito e de verdade, que teriam sido luzidas nessa tradigao em uma associagao fundamen- tal, substituindo-as pelas categorias de formas de subjeti- vagio e de teenologias de si, pelas quais a subjetividade se- ria destino e produgo, contrapondo-se entao a idéia onto- logica de origem e de consisténcia ontalogica Foi em decorréncia disso que Foucault enunciou no mes- ‘mo ensaio a categoria de jogos de ventade, para afirmar verdade como proclugdo estaria sempre inscrita no contexto do confronto de forgas entre as corpos no registro dos mictopoderes, de maneira a relancar agora nos campos da construgio da subjetividade e da experiéncia ética a sua tese imas que iriam entre saber e poder. E preciso circunscrever me- Thor, no entanto, o que se pretende enunciar com essa cate- goria, para que se passa defin-la aqui com maior rigor. FENIRE CUDADO FsABeR DES 7 ‘Assim, parece-me que a categoria de jogos de verdade é uma apropriagio e uma transformagio critica do conceito de jogos de linguagem, enunciado por Wittgenstein nas “In- vestigagbes filosd Porém, essa transformacio impli- cou evidentemente uma critica de Foucault a Wittgenstein. Isso porque se para ambos estariamos sempre no plano do jogo, sto é de algo ligado a ditnensio do que seria definido ‘no set campo por regras e normas, no existindo nada que seja essencial e inerente as palavras e & verdade, mas ape- nas a produgio instituida pela tradi¢go, na categoria de jo- gos de verdade a énfase recairia nas estratégias e taticas do poder. Portanto, as formas de subjetivacio reguladas sem- pre pelos jogos de verdade seriam as resultantes dos agen- iamentos produzidos pelas estratégias do poder. A dimen- sio do confronto de forcas seria instituinte dos jogos de verdade, marcando sempre estes pela materialidade corpé- rea das forgas em presenga e distanciando-os aquelas deci- didamente de um mero nominalismo ret6rico. Nessa perspectiva, pode-se dizer que o projet filos6fi- co de Foucault foi o esforgo permanente e sempre recome- ado para construir novos jogos de verdade na sua insistente voltada para a desconstrugio da filosofia do su- fo. Esta se evidenciava ndo apenas nos discursos filosofi- cos e nas stias conseqiiéncias cientificas, mas também em. uma série de préticas instituidas no espaco social que se fundavam sobre essa leitura Por isso mesmo, as probleméticas escolhidas para a pes- quisa de Foucault foram aquelas que eram emergentes nos ‘campos contextual e conjuntural, que a atualidade impu- nha nas tradigées francesa e intemacional. As tematicas es- colhidas indicavam sempre aquilo que, no real, era emer- gente no entéo campo de forgas em confronto: a foucura, a psiquiatria, a medicina, a criminalidade, a linguagem, as, ciéncias humanas, a prisio e a sexualidade. E nessas pro- 8 168 ane Enya CUDADO = SAR DES 89 11, Hegel, GWE. La piénoménologie de Vesprit (1807). Volumes I e Aubier, 1941 che, FA gonealogia da mart, Op. cit ‘Nietascke. Volumes Ie Il. Pais, Gallimard, 1971 M, “Les technologies de sot-méme”. In Foucault, M. bleméticas que os jogos de verdade se pre cristalizavam como produces que eram do sgizado. Por isso mesmo, seria necessério sempre contextua- lizé-los, inscrevendo-os insistentemente em dispositivos de producio da subjetividade, para captar em estado nascente ‘8 jogos de verdade que estavam sempre sendo tecidos, pelas estratégias e taticas do poder. ‘Ao lado disso, os artigos e ensaios de Foucaul navam sempre como laboratérios do seu pensamento, no qual este enuinciava de maneira axial as idiéias fundamen- tais que orientavam as suas pesquisas teméticas. As estra- ‘tégias que orientaram o seu pensamento se encontram, no entanto, materializadas e as nessas produgées de ‘menor dimensio, Enfim, parece-nos que é apenas nesse contexto te6rico que se pode efetivamente considerar a interlocugao critica que Foucault estabeleceu com a psicandlise, para que se possa definir para a psicandlise uma posigdo precisa no seu [REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS M. “Les techniques de sot-méme” (1988). idem, M, La valonté du savoir. Op. ci M, "Les techniques de soi-méme t fers. Volume IV. Op. ct. 4, Foucault, M. Idem, 5, Kem. 6 Foucault, M, La volo au sna. Op. cit 7. Idem. 8. Descartes, R “Meditations”. In Descartes, R, Oeuores et fetes, Pacis, Gallimard, 1949 eta reison pratique. Paris, Presses Universitaires 10, Freud, S."Le mo ete ga” (1923) In Freud, S. Essai de psychanalyse. Patis, Payot, 1981.

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