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: O rumor BARTHES, Roland. A morte do autor, da lingua. $20 Paulo: Martins Fontes, 2004, A MORTE DO AUTOR Na novela Sarrasine, falando de um castrado disfargado em ‘mulher, Balzac escreve esta fase: "Era'a mulher, com seus medos repentinos, seus caprichos sorn razio, suas perturbacSes instint- vas, suas audcias em caus, suas bravatase sua deliciosa finura de sentimentos". Quem fala asim? £0 herdi da novel, interes- sado em ignorar 0 eastrad qc ae exconde sob a mulher E 0 in- dividuo Balzac, dotado, por ss experiéneia pessoal, de uma filo sofia da mulher? E o auto: Balzac, profestando idias “literiias" sobrea feminilidade? a savedovi universal? A psicologiaromtn- ‘ica? Jamais serd possvel saber, pela simples raza que escttara eat ae rte ca #70, ese comporto, ese ob1guo pelo qual foge o noso sujet, 0| branco-e-preto em que Vern = perder toda identidade, a comiegat | pela do corpo gue escreve 1 Orme de iges | Sem divids sempre foi assim: desde que um fato & contado, para fins intranscivos, e nio para agiediretamente sobre o rea, sto 4 Finalmente fora de qualquer fungéo que nfo sejaoexerccio do S| simbolo, produx-se ese desligamento, a vox perde a sua origem, | eens elcome te pose ‘6 sentimento dese fendmeno tem sido vaidve; nas sociedades ‘eqnogrdlicas, a narrativa nunea € assumida por uma pessoa, mas por ur mediador, yam ou recitane, de quem, igo. pode ad- mira a performance (isto 6,0 dominio do cddigo narrative), ma ‘munca 0 “genio”. O autor € uma personagem moderna, prods AE sem vid por nossa sociedad na medi em qu, a0 da] ‘dade Média, com o empirismo inglés, o racionalismo francts e 2 { pessoal da Reforma, ea descobrin o prestigio do individua cu,| | Jo° como se diz mais nobremente, da "pestoa humans”. Entéo é 16-) | Bico que, em matria de literatura, seja © positvismo, resumo & Ponto de chegada da ideologia capitalist, que venba concedido a Jie maior importincia “pesto” do autor. O aor ainda rina 90s ma mais de histrialiteritia, nas biografias de esrivores, nas entre vistas dos peiddicos e na propria consciéncia dos liveraro, casos por juntar, gragas ao seu didro {ntimo, a pessoa e a obra; a ima- ‘gem da literatura que se pode encontrar na cultura corcente esa tiranicamente centraizada no autor, sua pesos, sua hstéra, seus {ostos, suas paixdes a critica consisteaind, o mais das veas, em dizer que a obra de Baudelaire €0fracasso do homem Baudelaire, ade Van Gogh €aloucura,a de Tehatkovsi €0 seu vicio:aexplic do da obra € sempre buscada do lado de quem a produ se, através da aegoria mais ou menos transparente da fog, Fosse Sempre afinal a vor de uma sé ¢ mesma pessoa, © autor, a revelar sua “vonfidenciz” 1 Dees | ‘Apesar de 0 império do Autor ser ainda muito poderoso (a nova critica muitas vezs nfo fee mais do que consoidi-lo),& s bido que hé muito certos ecritores vém tentando abal-lo. Na Franga, Mallarmé, sem duvida o primeiro, viu e preva em toda 4 sua amplitude a necesidade de colocar a préprialinguagem no lugar daquele que era até entio considerado seu proprietéio: para cle, como para nés, 2 linguagem que fala, nio 0 autor; escrever& através de uma impessoalidade prévia — que nfo se deve em mo- mento algum confunelr com a objeivdade castadora do roman- ist ealista~ ating esse pono em que sé linguager age, “per- forma’, ¢ do “eu”: toda a poética de Mallarmé consist em supri- mir o autor em proveito da escritura (0 que vem a ser, como se ‘veri, devolver ao eitor o seu Iygat). Vary, todo embaragado numa Psicologia do Eu, muito edulcorou a teoria mallarmeana, mas, re portando-se, por gosto do classicismo, & retdrica, nfo cessou de colocar em diivida e em dertsio © Autor, acentwow 2 natureca lingulstica © como que “risa” da sua atividade,e sevindicou a0 Jongo de todos 0 seus livros em prosaa favor da condigéo esencal- mente verbal da literatura, em face da qual todo recurso & inte tioxidade do escrito Ie parcia pura supessigéo. O proprio Proust, a despeio clo carder aparentemente psicoldgico do que chara mos suas anise, dew-se visivelmente ao trabalho de emaranhar inexoravelmente, por ura subutilzago extrema, a relagio do es- itor com as suas personagens: 20 fazer do narrador nio aquele que viu ou que sentiu, nem mesmo aquele que escreve, mas aquele {que nui ecrever (0 jovem do romance ~ mas, a propdsico, que idade tem e quem é ele? — quer escrever, mas nio pode, €o romance aca- ba quando finalmente a escritura se torna possvel). Proust dew & cscritura moderna a sua epopeia: mediance uma inwersto radical, em lugar de colocar a sua vida no seu romance, como tho fe 39 | Orme gue ailentemente se diz, ele fer da sua propria vida uma obra de que © livzo foi como o modelo, de maneira que nos fasse bem eviden- te que nio & Charlus quem imita Montesquiou, mas que Montes- squiow, na mis ralidade anedévca, indica, uo € nals que unt fragmenco secundirio, derivado, de Charlus. © Suerealismo, fnal- mente, para nos aermos esa pré-histéra da modemidade, nfo po- dia, sem divida,aeibuir’ linguagem um lugacsoberano, na me- dida em que a linguagem ¢ sistema, ¢ aquilo que se tinha em mira nesse movimento era, romanticamente, uma subversio dreta dos ‘cécigos~aldsiluséria, pois um cédigo nto pode se desu, pode- se apenas “jogar” com ele; mas, recomendando sempre frustrar Dbruscamente os sentcosesperados (era famosa "sacudida”surea lst), confiando & mao 0 cuidado de escrever to depressa quanto possivel aquilo que a cabega mesma ignora (era a escritura auto- mdtica) aceitando o principio ¢ « experiéneia de uma escritura coletiva, 0 Surealismo contribuiu para dessacralzar a figura do ‘Autor. Finalmente, fora da prépria liveratura (ahem dizer ais dis tingGes.se rornam superadas), 2 lingtistica acaba de fornecer para a destruigio do Autor um instrumento analitice precioso, mos- trando que 2 enunciagio em seu todo é um proceso vazio que fanciona perfeiramente sem que seja necesstio preench?-lo com 1 pessoa dos interlocutor: ling mais do que aguele que escreve, assim como “eu” outra coisa € sendo aquele que diz “cu”: a linguagem conhece um “sujeito", rio uma "pessoa", ¢ este sujeto, vazio fora da enunciagio que 0 define, basta para “sustentar” a linguagem, isto é para exauti-a afastamento do Autor (com Brecht, poder-s-ia falar aqui de um verdadeiro “distanciamento”, 0 Autor diminuindo como uma figurinha berm no funclo co palo teria) aio € apenas um fatohistérico ou um ato de escrtura ele transforma radialmente 0 texto moderno (ou ~ 0 @v° dé na mesina ~ 0 texto 6, doravante, feito e tido de tal forma g< ncle, em todos os nfves,ausenta-se © autor). O tempo, primero, nfo € 9 mesmo. O Autor, quando se ert nele, é sempre eonctblo come 0 passada de su vo; ol ‘to. o autor colocam-se posi mesmos numa mesma linha, distri- bud como um ante um dips consides-se que o Autor mire o livro, quer dizer que existe antes dele, pens, soft, vive por ee: escd para a sua obra na mesms telagio de antecedéncia que um pai para com o filho,Pelo contisia, 0 escripror moderna nasee 20 ‘mesmo tempo que seu tea: 330 é deforma alguma, dotado de sum ser que precedesse ou excedesse a sua escritura, no éem nada © sujeito de que o seu livro losie 0 predicado: outro tempo no i sento o da enunciagfo, ct «agora. porque (ou seg uma operagio de egstro, kexto€esctito etecnamente aud ue) exrever jd nfo pode designar Seago, de epresenagao, de “pin- ‘ura’ (como diam os Cliss-0s), mas sim aqulo que os lingiistas, ‘em seguida & losoia oxford, chamam de performativo, forma verbal ira (usada exelus 8 primeira pessoa eno presen- te), na qual a enunciagfo no tem outro contetido (outro enun- ciado) que nao seja 0 ato pelo qual ela se profere: algo como 0 Eu declaro dos eis 01 0 Bi cant dos poets muito anigos; 0 ecriptor rmoderno, tendo enterrado 0 Aso, jd nfo pode areditar, segundo 2 visio pattrica dos seus predeccwores, que tem a mo demasiado Jenta para o seu pensamen:o 01 para sua paixio,e que, conseqien- temente, azendo da neces li deve acentuar esse atras e*ra- balhas” indefinidamente s su forma para ee, an contriio, a mio, dissociads de qualquer vor, levada por um puro gesto de insctigio (€ do de expresto), rage wi campo sem origem ~ ou que, pelo | rer da ign | sncnos, ours organ do ens ven prdprialinguagem, ico aquilo mesmo que contisuamente questions toda origem. Sabermos agora que un texto néo ¢ feito de uma linha de pa: Javras a produzic um sentido tinico, de cerca maneia teoligico (que seria a *mensagera” do Autot-Deus), mas um espago de dimensbes, milkplas, onde se casam e se contestam escrituras variads, das quis rnenhuma ¢ original: 0 texto € um tecido de citgBes,oriundss dos mil focos da cultura. A semethanca de Bouvard e Pécucher, esse ecernosenpistas, a uma s6 ver sublimes e cBmicos, ej profun- do ridiculo designa preciamente a verdade da etriura,o estivoe pode apenas imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu {inico poder exc em mesclar a eserturas, em fazé-as contrarar-se uumas pelas ourras, de modo que sunes se apoie em apenas uma dels; quiseraeleexprimirse, pelo menos deveria saber que a “coisa” inerior que tem 3 prerentio de “eradunie” nfo €zendo ums dicions +o todo compost, cujas palaveas 6 se podem explicar através de ou tras palaveas,e isto indefinidamente: aventura que adveio exem- plarmente a0 jovem Thomas de Quincey, to versio em grego que, para tradutir nesta Kngua morta idéias e imagens absolutamente rmodernas, diz nos Baudelaire, “haviacriado para si um diciond rio sempre pronto, muito mais complexo ¢ extenso do que 0 que resulta da vulgar pacincia das verses puramenteltedras” (Os pa~ rises artifciai); sacedendo a0 Autos, © exriptor jf nko possul «rm si paxdes, humores, sentimentos, impresses, mas ese imnenso icionivio de onde retira uma escrivura que nfo pode ter parade: vida nunca fa outra coisa sendo imitar olivro, e esse mesmo li- ‘ro nfo € mais que um tecido de signos, imitagio perdida, infini- tamente recuada, e | Beal ce Una ver alastado o Autor, pretensio de “decifrar” um cex- toe toma tocalmente initil, Dar ao texto um Autor éimpor-lhe tum tev, provélo de us significado Ulkimo,¢ fechar a excite ¥2, Esst concepci convém muito & crftea, que quer dat-se enti ‘como tarefa importante descobrir 0 Autor (ou as suas hipdstases: 4 sociedade, a hist6tia, a psiqué, aliberdade) sob a obra: encon- trado © Autor, o texto esté“explicado’,o crtico venceus ndo & de admires, portanto, que hstoricamente, 0 teinado do Autor tenha sido também o do Crtico, nem tampouce que a critica (mesmo a ‘nova stra hoje abalada 20 mesin tempo que o Autor. Na esc: ‘ura miltipla, com efeto, cud esté para ser dewindado, mas nada para ser decifade; a estrutura pode ser seguida,“desfiada’ (como se diz uma malha de meia que escapa) em todas as suas ‘etoma- das eer todos os seus estgins, mas nie ha fundoy 0 expago da es ‘zitura deve ser percorrido, endo penetrado; a escrituca propoe sen- sido sem paar, mas € sempre pata evaporilo: ela procede a uma isengdo sistertica do sentido. Por isso mesmo, a literatura (seria melhor passa dize a crite, recusando designsr 20 texto (¢ 20 rovundo coma texto) um “segredo", ito é, um sentido dime, libe- ‘a uma aividade a que se poderia chamar contratecl6gica, propria ‘mente revoluciondra, pois a recs de deter o sentido € finalmente recusar Deus ¢ suas hipdstases, a raz, ac ‘Voltemos frase de Balzac. Ninguém (isto , nenhuma pessoa") a diz: sua fonte, sua voz nio é 0 verladeiro lugar da eserituta; &a leieura. Outro excmplo bem preciso pode fer-nos entender isso: 6 | mama de ge | pesquisa recenes (-PVernan)tornaram patent a natureza cons tiutivamente ambigua da ragédla greg: o texto € tecido de pala- ‘ras de duplo senido que cada personagem compreendeuniates mente (esse perpéauo mal-entendido é precisamente 0 “rigico") hh, encrerano, alguém que ouve cada palara na sua duplicidade, c ouve mais, pode-se dies, prépria surder das personagens que falam dante dele ese alguém € precsamente oleitor (ou, no caso, co owvinte), Asst se desvends ose vocal da esrtura um texto é feito de scrnuras mileipls,oriundas de viris eulturase que en- tram umas com as outs em diflogo, em para, em contestagio; mas hi um lugar onde essa muliplicidade se reine, e ese lugar no € 0 auto, coma se dite a€ o presente, £0 lero: oleivor€ 0 espago mesmo onde se insrever, sem que nenhuma se perca,t0- das as citagdes de que é feita uma escrturas a unidade do texto no esté em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino ji iio pode ser pessoal: o leitor é um homem sem histéia, sem bio- srafia, sem psicologia: cle € apenas esse alguém que mantém reu- hidos em um mesmo campo todos os tragos de que é constculde ‘escrito. E por iso que é derisério ouvir condenar a nova escri- ‘ura em nome de um humanismo que hipocsitamente se arvora em campeéo dos direitos do letor. O letor, jamais a ertica clissica se ocupon dee; para clang i outro homem na literara a no sero que escreve, Estamos comegando a nfo mais nos deixar en- godar por esas espécies de antfrases com as quis a boa sociedade retnica soberbamente 2 favor daquilo que ela precisamente afata Jgnora, sufoca ou desersi; sbemos que, para devolver&esricuta ‘0 seu fimuro,¢ preciso inverter 0 mito: 0 nascimento do lecor deve pagar-se com a morte do Autor. 1968, Mantcia

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