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EHRENBERG, Alain, La fatigue d'être soi,dépression et société, Paris, Odile Jacob, 1998,
introdução
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mental para ser melhor do que si mesmo. Não se distinguiria mais curar-se ou
drogar-se. Numa sociedade em que as pessoas tomam em permanência
substâncias que agem sobre o sistema nervoso central e modificam assim
artificialmente seu humor, não se saberia mais nem quem é si mesmo nem quem é
normal. Um bem estar artificial tomaria insidiosamente o lugar da cura. Segue uma
seqüência de questões não resolvidas: o sofrimento é útil? Em caso de resposta
positiva, para que serve? Pode-se ainda distinguir entre as infelicidades e as
frustrações da vida ordinária, e o sofrimento patológico?
democracia na medida em que ela permite representar num palco político a divisão
do social. Do mesmo modo, a conflituosidade psíquica é a contraparte da auto-
fundação que caracteriza a individualidade moderna. A noção de conflito é o meio de
manter um espaço entre o que é possível e o que é permitido. O indivíduo moderno
está em guerra contra si mesmo: para estar ligado a si mesmo, é preciso estar
separado de si. Do político até o íntimo, a conflituosidade é o núcleo normativo do
modo de vida democrático.
Daí uma segunda hipótese: o sucesso da depressão repousa sobre o
declínio da referencia ao conflito sobre o qual se construiu a noção de sujeito que o
fim do século XIX deixou para nos. A identificação das noções de conflito e de
sujeito aconteceu com a invenção da "psiconeurose da defesa" por Freud. Esse
ensaio queria mostrar que a história psiquiátrica da depressão é caracterizada pela
dificuldade em definir o sujeito dela. As adições encarnam a impossibilidade de um
domínio completo de si sobre si mesmo. O drogado é escravo de si mesmo, mesmo
que depende de um produto, de uma atividade ou de uma pessoa. A sua capacidade
de ser sujeito ou de ser sociedade está em causa. A liberdade de costumes, ou seja
o declínio da polaridade permitido/ proibido, e a superação dos limites impostos pela
natureza para o humano, graças ao progresso das ciências biológicas e da
farmacologia, fazem que tudo se torne concretamente possível. A adição é a
nostalgia de um sujeito perdido.
Assim como a neurose esperava pelo sujeito dividido pelos seus conflitos,
dilacerado entre o que é permitido e o que proibido, a depressão ameaça o indivíduo
aparentemente emancipado frente às proibições, mas certamente esfrangalhado
entre o possível e o impossível. Se a neurose é o drama da culpabilidade, a
depressão é a tragédia da insuficiência.
pontos que os opõe, um deve ser notado porque ele permite interpretar as
metamorfoses da depressão, relacionando ela ao problema da individualidade.
Freud pensa a neurose a partir do conflito enquanto Janet refere-se a
uma insuficiência ou a um déficit. Enquanto a existência de um sujeito para os
conflitos é indubitável, porque o paciente é considerado como um agente, é muito
mais difícil identificar o sujeito de um déficit.
Um estudo histórico da depressão mostrará que, no início, a aliança sutil
entre o déficit e o conflito fornecerá para a psiquiatria a referencia para tratar a
depressão de um sujeito doente, paradigma de partida para a depressão
contemporânea. Quando essa aliança for rompida no decorrer dos anos 70, a
neurose começará seu declínio. A depressão sairá do campo médico num contexto
onde a emancipação conduz a uma mudança de lugar da proibição, a culpabilidade
sendo dissimulada pelo avanço da responsabilidade. Ela torna-se a doença da moda
bem antes do aparecimento do Prozac. A depressão aparecerá não como uma
patologia da infelicidade mas como uma patologia da mudança, a de uma
personalidade que busca simplesmente ser si mesma. A insegurança interior será o
preço dessa libertação. A partir dos anos 80, a depressão entra na problemática
onde domina não tanto a dor moral mas a inibição e a astenia. A antiga paixão triste
se transforma em pane na ação, num contexto em que a iniciativa individual torna-se
a medida da pessoa. A noção de cura entre paralelamente em crise na medida em
que a depressão é redefinida como uma doença crônica.
2
Ibid, primeira parte capítulo 3
6
O CREPÚSCULO DA NEUROSE4
3
FOUGÈRE, P., les médicaments du bien être, citado em EHRENBERG, Alain, La fatigue d'être
soi,dépression et société, Paris, Odile Jacob, 1998, p. 127
4
EHRENBERG, Alain, La fatigue d'être soi,dépression et société, Paris, Odile Jacob, 1998, segunda
parte
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de decidir para isso ou aquilo" como diz Freud em relação à cura5. Nessa segunda
parte, o fio condutor é que estamos assistindo ao declínio da referencia ao conflito e
à culpabilidade em proveito de figuras que acentuam o déficit e o bem estar.
Essa transformação da noção de depressão acontece no contexto de
mudança normativa que torna-se sensível no decorrer dos anos 60. As regras
tradicionais de enquadramento dos comportamentos individuais não são mais
aceitas e o direito de escolher a vida que se quer levar começa a ser, senão a norma
da relação indivíduo-sociedade, pelo menos a entrar nos costumes. As relações
entre o público e o privado modificam-se notavelmente: o primeiro aparece como o
prolongamento do segundo. Em vez da disciplina e da obediência, a independência
em relação às imposições sociais e o erguimento sobre si mesmo; em vez da
finitude e do destino ao qual é preciso adaptar-se, a idéia que tudo é possível; em
vez da velha culpabilidade burguesa e da luta para libertar-se da lei dos pais (Édipo),
o medo de não estar a altura, a vazio e a impotência que disso resultam (Narciso). A
figura do sujeito sai de tudo isso modificada: trata-se daqui para frente de ser
semelhante a si mesmo. A partir do momento em que tudo é possível, as doenças
da insuficiência colocam, dentro da pessoa, dilacerações que lembram para ele que
nem tudo é permitido.
A depressão sai do raciocínio que consiste em buscar a patologia sub-
jacente. Por que levar os pacientes a confrontar-se com os próprios conflitos na
medida em que a assistência médica compensa o sentimento de insuficiência? O
continente do permitido deixa lugar para o continente do possível.
5
Em Nouvelles conférences sur la psychanalyse, citado por EHRENBERG, ibid. p. 136
10
6
FREUD, Sigmund, Inhibition, symptôme et angoisse, citado por EHRENBERG, ibid. p. 161
7
HAYNAL, A., le sens du désespoir, comunicação ao XXXVI congresso dos psicanalistas de língua
romana, citado por EHRENBERG, ibid. p. 162
13
O INDIVÍDUO INSUFICIENTE8
8
EHRENBERG, ibid., terceira parte
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A PANE DEPRESSIVA
No fim do século XX, a depressão encarna não só a paixão de ser si
mesmo e a dificuldade em sê-lo, mas igualmente a exigência de iniciativa e a
dificuldade em tomá-las. A falta de iniciativa é o distúrbio fundamental do deprimido.
A dor moral vê-se substituída pelo tema do enfraquecimento afetivo: este tipo de
indiferença é para o humor o que a apatia é para a ação.
Duas dimensões principais aparecem: a inibição e a impulsividade, uma
sendo o reverso da outra. São as duas faces da patologia da ação. Na inibição, a
ação é ausente; na impulsividade, ela não é controlada. O território da apatia cobre o
da depressão. A individualização da ação gera novas pressões sobre a
individualidade que deve assegurar em permanência lá onde ela se contentava de
obedecer.
A ação hoje individualizou-se. Ela não tem outra fonte a não ser o agente
que a realiza e que é dela o único responsável. A iniciativa dos indivíduos passa no
primeiro plano dos critérios que medem o valor da pessoa. Assim o empreendedor
passa a ser modelo de ação para todos e serve de referencia para dinamizar o
conjunto sócio-político. As empresas-cidadãs devem aliar-se a administrações que
funcionam como empresas.
Ao acréscimo do grau de engajamento pedido se acresce uma nítida
diminuição das garantias de estabilidade. O estilo das desigualdades se modifica: às
desigualdades sociais se adicionam desigualdades internas nos próprios grupos.
As regras mudaram, independentemente do lugar considerado (escola,
empresa, família). Não são mais obediência, conformidade à moral, disciplina, mas
sim flexibilidade, mudança e rapidez de reação. Domínio de si, flexibilidade psíquica
e afetiva, capacidades de ação fazem que cada um deve suportar a carga de
adaptar-se em permanência a um mundo que perde precisamente sua permanência,
um mundo instável e provisório, feito de fluxos e de trajetórias cheias de altos e
baixos. A legibilidade do jogo social e político ficou embaçada. Essas
transformações institucionais dão a impressão de que cada um, inclusive os mais
humildes e frágeis, deve assumir a tarefa de escolher e decidir tudo. Mudamos mas
15
9
LEGENDRE citado por EHRENBERG, ibid. p.272
18
10
VERNANT, Jean Pierre VIDAL-NAQUET, Pierre, Mythe et tragédie dans la Grèce ancienne, Paris,
La Découverte, 1974, p. 44 citado por EHRENBERG, ibid. p.280
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CONCLUSÃO