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MEMÓRIAS DE ESPERANÇA

A PESSOA
A noção de pessoa precisa ser redescoberta e entendida1. A pessoa
não é exatamente o que chamamos de indivíduo. O indivíduo é um fragmento
da humanidade, do cosmos. A pessoa é uma presença absolutamente única,
que engloba a humanidade, que lhe dá uma coloração particular: ela
transcende tudo – a história, o cosmos. Ela se afirma no que ela tem de único
porque, justamente, ela é o reflexo do Deus único. O que, no cristianismo,
poderia ser comparado ao “si mesmo” hindu, é a idéia de que o homem é
criado à imagem de Deus. Mas essa imagem é entendida como uma alteridade
e não uma identidade, com essa idéia do que o mais profundo é o aspecto
pessoal.

A PRESENÇA DO CRISTO

Quem é o Cristo?
No cristianismo, a conversão ou a experiência espiritual consiste
num encontro pessoal com Cristo, amigo próximo e ao mesmo tempo abertura
para o abismo da divindade, sem dúvida mais importante e mais decisiva do
que as próprias formulações da fé2. O Cristo quebra toda a física sobrenatural
do puro e do impuro, do sagrado e do profano, toda a hierarquia abarrotada de
exclusões que caracteriza as sociedades religiosas arcaicas para colocar em
primeiro plano a pessoa e a comunhão das pessoas. Pode se amar os próprios
inimigos quando, dentro de si, a morte e, primeiro, o ódio são substituídos pela
vida ressuscitada e que não se precisa mais de bode expiatório. É a única
ruptura possível, não somente no destino individual mas também na história,
das engrenagens inelutáveis da violência e da morte. Deus, em Cristo, se faz
próximo do homem para que o homem, por sua vez, faça se próximo dos seus
irmãos.

1
CLÉMENT, Olivier, Mémoires d’espérance, Paris, Desclée de Brouwer 2003, p.27s
2
Ibid., cap. 2
Qual o significado da “realeza” para Jesus? Jesus recusa ser rei, no
sentido dos reinados desse mundo. É preciso render a Deus o que é de Deus,
quer dizer o homem imagem de Deus, o homem como segredo e como amor,
o homem ontologicamente amor. Jesus joga na história, como uma ferida e
como um fermento, a revelação da pessoa irredutível e da toda - humanidade
de cada pessoa. Ele pede que os seus transformem o poder em serviço.

A fé nas suas figuras


Como entender a noção de pecado original?3 Os padres gregos não
falam em pecado original mas em queda. Uma queda que introduziu a morte,
na vida cósmica e na condição humana. Portanto todo homem nasce num
mundo cercado pela morte. Ele não herda um pecado. Essa queda é
permanente porque somos constantemente confrontados ao mistério da morte,
por isso a ressurreição do Cristo é tão importante porque a morte vira uma
passagem e não o abismo do nada.
Por quê? Lá onde intervêm a idéia da liberdade do homem, o seu
desejo de se auto-deificar introduz uma ruptura da confiança original. Um limite
foi posto e não foi respeitado. A memória do paraíso, evocado também pelo
mito da idade de ouro, existe em quase todas as tradições humanas. Ele está
sempre presente, mas não conseguimos entrar nele de um modo estável. O
pressentimos sem cessar mas ele escapa sempre. Ele nos é devolvido em
Cristo.
Aparentemente estamos numa realidade cíclica. Na realidade
existem três modalidades da temporalidade: uma cíclica, cósmica. Uma outra
em tensão em direção para o que é último, que aparece com o judaísmo e a
Bíblia. Uma terceira segundo a qual o que é último já está presente
segredamente no Cristo e à qual temos acesso no instante.
Existe uma involução e, ao mesmo tempo, uma evolução, quer dizer
a presença de uma realidade escatológica que penetra nossa temporalidade.
Existe de um certo modo perda, esquecimento na medida onde existe uma
individuação em relação a um estado de quase fusão original. Essa
individuação é marcada em muito campos, sempre de modo negativo. Na

3
Ibid. p 41 s.
realidade essa individuação prepara o desabrochar da pessoa (antes da
pessoa existe o indivíduo). Através a experiência da alteridade e da comunhão,
a pessoa vai abrir-se a Àquele que vem e não somente Àquele que veio. Existe
ao mesmo tempo queda e escatologia positiva. Sempre haverá um elemento
de morte e um elemento de ressurreição. O ritmo morte-ressurreição marca,
desde a vinda do Cristo, toda temporalidade.

A kénose de Deus: um poder de amor


O “poder” de Deus é tal que Ele pode ultrapassar a própria
transcendência para vir até nos e tomar-nos na Sua misericórdia e Sua alegria.
Contudo, a criação de seres pessoais exige uma espécie de retirada de Deus.
Na criação, existe a afirmação de uma plenitude e de uma retirada voluntária.
Se Deus cria seres livres, Ele lhes dá o espaço de sua liberdade. Portanto,
existe uma kénose (ou esvaziamento voluntário de Deus) poderíamos dizer no
próprio ato da criação. A onipotência de Deus não é poder exterior: é a
irradiação de paz, de alegria, de amor que só podemos receber se a
acolhemos. É onipotente porque terá a última palavra. É preciso quebrar a
espiral do mal pela confiança, a fé pessoal e transformadora que permite ao
poder de Deus de irradiar na história e no cosmos.

A ressurreição
O cristianismo anuncia no Ressuscitado a união sem separação nem
confusão da terra e do céu, a humanidade e do Deus vivo. A recepção da
ressurreição é inteiramente dependente da nossa liberdade. Temos em nos
essa semente de vida eterna e é preciso deixar lugar para que ela cresça: é
todo o trabalho da vida espiritual. Isso quer dizer que precisamos nos
interiorizar e exteriorizar em direção ao sacramento do irmão. Deus olha para
ver se existem, no meio dos homens, corações abertos e que Lhe permitem
entrar na história e agir. Ele não pode fazer nada se os homens não se abrirem
livremente para Ele.
Chave da metanóia
A paixão fundamental é a morte que, ao mesmo tempo, fascina o
homem e o enche de angústia4. A chave da metanóia, essa reviravolta de toda
nossa apreensão da realidade, é, portanto, a “memória da morte”, quando o
homem percebendo nele mesmo esse abismo, descobre aí o Cristo que não
cessa de descer no inferno para nos ressuscitar. A paixão fundamental que é a
morte é mascarada pelas paixões. Duas paixões, a avidez e o orgulho, seriam
as “mães” de todas as outras porque expressam o dobramento do mundo ao
redor do ego. A vida “ressuscitada” metamorfoseia as paixões em virtudes.

Sucessão apostólica e comunhão dos santos


Existe a sucessão apostólica que diz respeito à sucessão da
mensagem atestado pelos bispos. Ela pode se manifestar também nos homens
que, independentemente do lugar que eles ocupam na hierarquia eclesial,
testemunham do que conhecem e vêem. Existem portanto duas formas de
sucessão apostólica: uma institucional e uma carismática, que é essa
capacidade que todo cristão tem de conseguir contemplar o Cristo
ressuscitado, de ver a Deus.
A comunhão dos santos é fundada no fato de que o Cristo é o
homem máximo, sendo portanto separado de ninguém nem de nada. Enquanto
somos indivíduos separados que se agarram aos nossos fragmentos de
humanidade, nossos fragmentos de cosmos, o Cristo, por sua vez, engloba a
humanidade inteira. Existe uma unidade ontológica de todos os homens em
Cristo. É isso que expressa a comunhão dos santos. Um santo é alguém que
se torna consciente dessa unidade em Cristo e do fato de que, nEle, não
somos mais separados.

4
Ibid. p. 220

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