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Jean Bartoli

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FICHA DE LIVRO

AUTOR : Danièle Hervieu-Léger

TÍTULO : Le pélerin et le converti, la religion en mouvement

EDITOR : Paris, Flammarion

ANO : 1999

NÚMERO DE PÁGINAS : 291

ÁREA DE INTERESSE : sociologia das religiões

Por muito tempo incerta quanto ao seu objeto dentro de uma modernidade definitivamente a-religiosa, a
sociologia das religiões descobria que a modernidade secular, governada em princípio pela razão
científica e técnica, era também uma nebulosa de crenças1.
O religioso é uma dimensão transversal do fenômeno humano que trabalha de um modo ativo ou
latente, explícito ou implícito, toda a espessura da realidade social, cultural e psicológica, segundo
modalidades próprias para cada uma das civilizações nas quais trata-se de identificar sua presença2.
Contrariamente ao ponto de vista mais freqüente que identifica as crenças religiosas pelo fato que
fazem referência a um poder sobrenatural, a uma transcendência ou a uma experiência que ultrapassa
as fronteiras do entendimento humano, esta aproximação desubstantivada da religião não privilegia
algum conteúdo especial do crer. Faz a hipótese que qualquer crença pode ser objeto de uma
formalização religiosa desde que encontre sua legitimidade na invocação da autoridade de uma
tradição. Mais precisamente, seria esta formalização do crer que, como tal, constitui de modo próprio, a
religião3.
Uma "religião" é, nesta perspectiva, um dispositivo ideológico, prático e simbólico pelo qual é
constituído, mantido, desenvolvido e controlado o sentido individual e coletivo da pertença a uma
linhagem crente particular. (...) Nenhuma sociedade, mesmo inscrita na imediatismo que caracteriza a
modernidade a mais avançada, pode, para existir como tal, renunciar totalmente a preservar um fio
mínimo da continuidade, inscrito, de um modo ou de outro, na referência à "memória autorizada" que
4
uma tradição é .
Numa sociedade laicizada, a vida social é cada vez menos submetida a regras ditadas por uma
instituição religiosa. A pretensão da religião em reger a sociedade inteira e a governar a vida de todo
indivíduo tornou-se ilegítima. O grande paradoxo, porém, das sociedades ocidentais é que tiraram parte
das suas representações do mundo e seus princípios de ação nas suas próprias raízes religiosas.
Neste ponto, uma linha de reflexão seguida por vários pensadores é mostrar a contribuição do judaísmo
e do cristianismo à emergência da noção de autonomia que caracteriza a modernidade. O judaísmo
coloca a noção de Aliança no centro da relação de Deus para com seu povo coloca o princípio da
autonomia da história humana: o povo, segundo se mostra fiel ou não à Aliança, faz a escolha do seu
futuro e demonstra sua capacidade de orientar de modo autônomo sua própria história. O cristianismo
desenvolve todas as implicações desta visão por ampliar a Aliança para a humanidade inteira: a
fidelidade e a recusa são submetidas à consciência de cada indivíduo5.

1
HERVIEU-LÉGER, Danièle, La religion en mouvement, le pélerin et le converti, Paris, Flammarion,
1999 p.12
2
Ibid p. 19
3
Ibid p. 23
4
Ibid p. 24
5
Ibid p.32-36
A secularização das sociedades modernas não se resume ao processo de exclusão social e cultural da
religião. Combina, de um modo complexo, a perda de poder dos grandes sistemas religiosos sobre uma
sociedade que reivindica sua plena capacidade de orientar seu próprio destino com a recomposição
sob uma nova forma das representações religiosas que permitiram que esta sociedade pensasse a si
mesma como autônoma. Daí quatro proposições:
1. proclamando que a história humana é a dos homens que a constroem, afirmando
que o mundo dos homens é um mundo a ser feito e feito por eles sós, a
modernidade rompeu radicalmente com todas as representações de um desígnio
divino que se realiza inelutavelmente na história.
2. contudo, o modo com o qual a modernidade religiosa pensa a história permanece
interior à visão religiosa da qual ela se separou para conquistar a própria
autonomia. Nas sociedades modernas, por muito tempo se pensou a história
"secular" segundo o modelo da chegada do Reino: se colocou no horizonte de
progresso científico e técnico cada vez maior a recapitulação total da história
humana e a realização total das potencialidades humanas, no campo material, no
do conhecimento e, mesmo, no campo moral.
3. os valores que fundam a modernidade, a razão, o conhecimento e o progresso
permanecem. Tiram sua capacidade de mobilização do fato que não se pode lhes
atribuir limites. A realização só pode ser, do ponto de vista da modernidade, um
horizonte nunca alcançado. As sociedades modernas vivem num estado
permanente de antecipação tanto no campo da ciência onde toda nova descoberta
levanta uma nova problemática que leva a um novo esforço de conhecimento
quanto no campo da economia onde o aumento da quantidade de bens produzidos
e dos meios de produção faz continuamente surgir novas necessidades. A
dinâmica "utópica" da modernidade situa-se inteira nesta valorização da inovação,
ela mesma ligada a um estado permanente de não-saciedade. É o "imperativo da
mudança6". A modernidade retoma o sonho da realização, próprio da utopia
religiosa, projetando e prometendo um mundo de abundância e de paz finalmente
realizadas sob diversas formas seculares.
4. esta lógica de antecipação cria, no coração de uma cultura moderna dominada
pela racionalidade científica e técnica, um espaço sempre renovado para as
produções imaginárias que esta racionalidade decompõe em permanência. Esta
tensão "crente" de uma modernidade prisioneira entre a ambição de uma
racionalização do mundo como ele é e a aspiração a um futuro sempre novo pode
ser dita na linguagem secular do progresso e do desenvolvimento. Contudo a
dinâmica de seu avanço implica que ela suscita constantemente sua própria crise,
esta sensação de vazio social e cultural produzido pela mudança e vivida como
uma ameaça pelos indivíduos e pelos grupos.
Pode–se formular a hipótese que os processos de identificação religiosa nas sociedades modernas
passam pela livre combinação de quatro dimensões típicas da identificação, que a regulação
institucional não articula mais, ou cada vez menos, entre elas.
1. a primeira dimensão é a dimensão comunitária: diz respeito ao conjunto de marcas
sociais e simbólicas que definem as fronteiras do grupo religioso e permitem
distinguir os que pertencem e os que não pertencem. Esta dimensão comunitária
concerne a definição formal e prática da pertença. Aceitar de submeter-se ou não
a estas regras constitui um traço discriminador da identificação.
2. a segunda dimensão é a dimensão ética: a aceitação pelo indivíduo dos valores
ligados à mensagem religiosa carregada por uma tradição particular. Esta
dimensão acha-se cada vez mais desligada da anterior: os valores da mensagem
podem ser apropriados sem necessariamente implicar a pertença a uma
comunidade de fiéis claramente identificados.
3. a terceira dimensão é a dimensão cultural: o conjunto de elementos cognitivos,
simbólicos e práticos que constituem o patrimônio de uma tradição particular (a
doutrina, os livros, os saberes e sua interpretação, as práticas e os códigos rituais,
a história – erudita e lendária – do grupo, as representações e modos de pensar
sedimentados nas práticas das comunidades, os hábitos alimentares, de vestir,
sexuais, terapêuticos, a arte e os conhecimentos científicos desenvolvidos ligados
a estas crenças). Esta dimensão cultural cuja riqueza e a variedade marcam o
6
GAUCHET, Marcel, Le Désanchantement du monde. Une histoire politique de la religion, Paris,
Gallimard, 1985
enraizar de uma tradição na duração pode ser apropriado como "bem comum
cultural" sem implicar a adesão a um sistema de crenças que produziu este
patrimônio.
4. a quarta dimensão é a dimensão emocional que diz respeito à experiência afetiva
associada à identificação: o fato novo, nas sociedades modernas, é que esta
experiência que produz o sentimento coletivo do "nos" resulta cada vez menos da
pertença comunitária. É cada vez mais freqüentemente o momento onde se faz
uma experiência elementar de comunhão coletiva, que pode eventualmente
estabilizar-se sob a forma de uma identificação comunitária.
Lógicas contraditórias colocam estas dimensões em tensão entre elas:
1. a primeira tensão está entre as dimensões comunitária e ética: a referência à
dialética da universalidade e da singularidade que trabalha a grandes religiões
ilustra este ponto. As grandes religiões universais se gabam da detenção de uma
mensagem cujo alcance ético concerne a humanidade inteira e cada homem em
particular. Por outro lado, reúnem seus fiéis em comunidades que fazem da posse
presente da mensagem o sinal de uma eleição e de uma separação.
2. a segunda tensão está entre a dimensão emocional – que corresponde à
experiência imediata, sensível e afetiva da identificação – e a dimensão cultural
que permite que esta experiência instantânea se ancore na continuidade
legitimadora de uma memória autorizada, quer dizer de uma tradição7.

7
HERVIEU-LÉGER, Danièle, La religion en mouvement, le pélerin et le converti, Paris, Flammarion,
1999 p.72-78

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