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sown Verso para impresso SES! A Restauragao da Narrativa, por Luis Alberto de Abreu 1 a8) ABSTRACT © texto langa alguns elementos de raciocinio sobre o proceso histérico de distanciamento dos valores piiblicos e privados e de como isso afetou profundamente nao sé a geometria da cene como alterou e limitou as fungées de seus criadores e a relagao espetaculo/publico. E propée um reequilibrio dos elementos épicos e narrativos, fundamentais na arte teatral, como uma das formas de busca da restauragao da unidade entre espetculo e publico. ‘Sempre admirei o surpreendente processo que leva um paleontélogo a refazer, a partir de um fragmento de osso, nao s6 toda a ossatura de um animal pré-histérico como seu aspecto, habitos, costumes, o meio em que viveu e uma multtiddo de informagdes sobre aquele espécime. Guardadas as devidas proporgies & como um fascinante jogo de investigacao policial onde um pequeno e significative detalhe se compoe com inimeros outros, formando uma geometria que nos da o rosto do criminoso, o aspecto de um animal ou o retrato de uma sociedade. Penso que foi por causa desse fascinio que me habituei a querer ler sinais, e me tornei dramaturgo. Dramaturgia néo é mais do que ler sinais por trds de uma agao ou de uma expresséio humana. Em Medéia, Euripedes nos revela um universo profundamente humano a partir de um crime barbaro. O mesmo faz Ibsen que, a partir de uma pequena nota de pagina policial constréi Casa de Bonecas, um texto fundamental na moderna histéria da dramaturgia, Foi a capacidade de ler sinais, imagino, que levou Mikhail Bakhtin, a escrever "Cultura popular na Idade Média e no Renascimento”, um livro que considero fundamental para qualquer dramaturgo ou estudioso ligado a teatro ou ndo[1]. Nele, o filélogo russo, a partir de um sinal (o riso) discute, entre outras coisas, todo o processo que levou a sociedade a transitar de uma forte nogao de corpo social presente na Idade Média a afirmagao de corpo individual como nogao predominante no periado do Romantismo, No bojo dessa transformagao (e isso ja & dedugao minha), valores, procedimentos, agdes, imagens, hist6 coletivas perdem a importancia em relagao a valores, procedimentos, agdes, imagens e histérias individuais. Foi também a tentativa de ler sinais que me levou a prestar atengao na organizacao urbana das cidades coloniais brasileiras e no que elas tm em comum tanto com o estudo de Bakhtin quanto com a questao proposta no titulo dessa reflexo: a restauracao da narrativa Nas cidades coloniais brasileiras as moradias eram construldas segundo um padrao determinado, Suas portas abertas durante o dia e apenas cerradas a noite, suas janelas sem trancas, davam acesso direto & rua ou a praga e vice-versa, sem espagos intermedidrios entre dominio puiblico e o privado. Portas e janelas, mais do que instrumentos de iluminago, arejamento ou seguranga tinham o valor simbélico de proporcionar 0 acesso facil livre de embaragos ao espace intimo e privado da casa. O portal da casa permitia o fluxo constante de informagées, a relagao estreita entre o mundo puiblico e o privado. As moradias atuais so construidas de acordo com um padrdo diferente. Entre a soleira da casa e a rua estabeleceram-se quintais, calgadas, muros, portées, grades, langas, cacos de vidro, interfones. As explicagées para essas diferengas na maneira das pessoas se relacionarem com 0 espago urbano, com certeza, vao além de raz6es de seguranga. A relagao intima entre os espagos fisicos puiblico e privado sugerida pela urbanizagao "caética” daquelas cidades (ruas de tragado tortuoso em razéo da distribuigac hepihwu.sesipe-org be nucleodecramturgalipin him 18 soos2016 Versio para impressio das casas, moradias desalinhadas que avangavam sobre a via pliblica, ruas sem saida que terminavan abruptamente numa porta de residéncia) indica que a mesma indefinigao de fronteiras se estabelecia nos mais variados niveis das relagées humanas. E, em especial, na cultura, No interior de uma nogao forte de “corpo social" estabelece-se um imaginario comum de mitos, crengas, histérias, meméria, etc. E do interio desse imaginario comum, pulblico e permedvel, que ao mesmo tempo em que invade a meméria e o: valores do individuo, abriga e agrega suas contribuigdes, que as pessoas extraiam o material para suas expressées simbdlicas - ritos, mitos, arte. E foi de dentro de um imagindrio e de experiéncias tornadas comuns que floresceu a narrativa como transmissora de conhecimento e, mais importante, de experiéncias individuais para o repertério coletivo. Qualquer alteragéo em quaisquer dos planos - « concreto e 0 simbélico - provoca alteragao na forma de expressdo humana. Esse ¢ o raciocinio do fildsofe Walter Benjamin, em seu ensaio primoroso "O Narrador - Consideragdes sobre a obra de Nikolai Leskov' [2], onde analisa a decadéncia da forma narrativa a partir das relagées concretas do homem @ o trabalho A decadéncia da narrativa esté intimamente ligada a decadéncia do imagindrio comum. O IMAGINARIO Nao existe experiéncia coletiva. Existem acontecimentos, fatos coletivos, como a guerra, peste e morte que em determinado momento podem atingir individuo ou sociedade como um todo. No entanto, ¢ experiéncia de cada um desses acontecimentos 86 pode ser absorvida individualmente. © que nao que dizer que uma experiéncia ndo possa ser compartithada, imaginada, comunicada e sensibilizada. Ac contrario, 6 de fundamental importancia que toda experiéncia humana significativa possa ser comunicade tendo em vista a criagéo de um repertorio comum de experiéncias, material basico para ¢ desenvolvimento de uma consciéncia coletiva, E consciéncia coletiva é o que plasma o surgimento de ur destino comum. E destino comum é 0 que orienta e da forma ao que chamamos de comunidade cidadania ou nagao. Essa transmisséo do experiéncias individuais para a esfera coletiva da forma ao que chamamos "imaginério". Um imagindrio - repertério de imagens comuns a uma cultura e, em decorréncia, de histérias tipos, crengas, conceitos e comportamentos - & necessariamente uma criagao coletiva. Mais, um imagindrio é determinado por condiges objetivas, sociais, histéricas. Ou seja, ndo ha a possibilidade de um individuo criar uma imagem fora do imagindrio de sou meio. Por exemplo, na Idade Média serie possivel haver um herege mas nunca um ateu dentro daquele imaginario totalmente religioso. O que nac quer dizer que 0 imagindrio no seja algo profundamente dinémico. Cabe ao artista, ao homem criador perceber, nas condigdes objetivas do processo histérico e social, as possibilidades de surgimento de novas imagens e dar luz a novas histérias, idéias, crengas, que vao integrar o imaginario de sua época. Juntando as coisas todas: o fato de as casas coloniais serem voltadas para as ruas e pragas; a gradative perda, através dos séculos, da nogéo de corpo social; a necessidade de compartilhamento de experiéncias (individuais) para a constituigéo de um imagindrio (coletivo), tudo isso, creio, tem relagac direta com 0 tipo de arte que fazemos e, em especial, com a dramaturgia. Antes, porém, é necessario esclarecer que 0 processo de perda da nogéo de corpo social nao &, por si s6 negativa. Ao contrério, correspondeu a abertura do fantéstico caminho de fortalecimento da nogao de individuo e decorrentes nogdes de independéncia, liberdade individual, humanism. O gradative afastamento do homem da natureza e do corpo social, o homem que se sabe diferente e isolado, que ter um destino préprio, quase desenraizado de seu meio, fez derivar a historia da civilizagéo para outro rumo © Davi, de Michelangelo, com seu semblante pensativo e algo aflito, como se carregasse o peso de set préprio destino, é tido como um marco no proceso que haveria de colocar o homem no centro da Histérie e da criagao. Na dramaturgia, Hamlet, de Shakespeare, é igualmente considerado 0 protétipo do homen moderno, um homem em conflito, envolvido com a pesada heranga de seus pais e que oscila, indeciso, ne busca um novo caminho. Essas duas imagens iluminaram o caminho da afirmago do individuo perante ¢ natureza e 0 corpo social bpkwww.sesipe.org be inicleodscramaturgaprin. him 28 soos2016 Versio para impressio A questéo que se coloca é se no é necessario, hoje, avaliar ambos os caminhos (0 piiblico e privado individuo e corpo social, criagdo individual € imaginério) e talvez equilibrar novamente os elementos. ¢ questo se coloca porque, no Ambito do teatro, foi 0 progressivo isolamento do individuo de seu meio que possibilitou o fortalecimento e subseqiiente predominancia de um género de invejavel poder dramatico mas significativamente fragil no que se refere & apreenséo do mundo real. A predominancia de melodrama, como veremos mais adiante, determinou 0 afastamento dos contetidos narrativos antes fortemente presentes no teatro, DA TRAGEDIA AO MELODRAMA Talvez a perda de um imaginario onde os homens possuiam bravura herdica, coragem e habilidade pare afrontar os grandes desafios da existéncia, diminuiu em nés mesmos a capacidade de nos reconhecermos com tais valores. E se isso 6 verdade, diminuiu bastante em nés esses poderes, Mais precisamente diminuiu nossa capacidade de reconhecé-los em nés préprios. Parece haver relagdo direta entre 0 enfraquecimento da capacidade de luta, forga moral e grandeza dos objetivos dos personagens e 0 progressivo abandono do género tragico e a conseqiiente adogao dc melodrama como género preferencial no século passado, Preferéncia esta que permanece até os dias de hoje. No creio que caiba estabelecer juizo de valor sobre assunto. Os géneros todos, da farsa ac melodrama, passando pelo drama e pela tragédia, sdo importantissimos enquanto revelam esferas de alma e dos conflitos humanos com vigor e propriedade que os tornam insubstituiveis. Se a afirmacao de nogao de individuo fol um bem inestimavel para o ser humano o mesmo se pode dizer do desenvolvimentc © aperfeigoamento de novos géneros como o drama e 0 melodrama. A questo que se coloca 6 0 que perdemos nesse processo. Visto sob a ética da mitologia, 0 melodrama, esté relacionado a uma mentalidade adolescente, Nada de negativo nisto se ndo considerarmos a adolescéncia uma experiéncia humana negativa - tanto < adolescéncia quanto o melodrama estao relacionados a aquisi¢ao dos sentimentos e forga. Na mitologia, « heréi adolescente porta uma pequena faca (ndo uma espada que é simbolo do heréi-guerreiro adulto) « sai pelo mundo. ajudado por um parceiro poderoso e nao humano e esta sujeito ao acaso e as forgas magicas ( na trajetéria adulta -drama e tragédia- 0 her6i depende fundamentalmente de si @ seu destino ¢ determinado pela sua agao). Nas trajetérias miticas relacionadas ao heréi adulto nao existe 0 acaso elemento fundamental no melodrama (doengas repentinas, golpes da sorte séo acontecimentos que ter forte interferéncia num melodrama). Ao contrario do drama e da tragédia, o heréi do melodrama 6 necessariamente uma vitima. Despossuidc de forca, ele sucumbe a ado dos elementos externos, de vildes e vila, é incapaz de suplantar os limites das leis ¢ da moral. Nao investe contra e nem consegue se libertar do poder da familia ou da sociedade Muitas vezes & incapaz de perceber que a origem de seus males é social. Em geral, o herd melodramatico nao vai além de seu quintal, nao vai além de relagdes familiares e humanas de pouce profundidade. Digo em geral porque algumas pecas desse género tratam os sentimentos humanos de forma profunda e verdadeira, tornando, em minha opiniéo, obras primas, apesar de néo descerem a: vastas complexidades da tragédia ou do drama. Personagens tragicos como Electra e Orestes matan Clitemnestra, sua mae; Dr. Stockman, personagem dramatico de “O Inimigo do Povo", de Ibsen, abre lute aberta contra seu préprio irmao e contra a sociedade; Nora , protagonista do drama "Casa de Bonecas” também de Ibsen, abandona marido e familia. Mas a familia Tyrone, no primoroso melodrama "Longe Jornada Noite Adentro", de Eugene O'Neil, decai e sofre sem identificar a origem de seus males.[3 Encerrados dentro de seu préprio mundo individual, os heréis melodramaticos desconhecem as forgas de terra, do mundo e das ruas dos quais ele se exilou, Enquanto os herdis tragicos chegam ao mundo come “herdis de cultura’, personagens que vao transformar o mundo, derrogar velhas leis e trazer novas, luta decididamente contra a heranga e imagens dos pais e das tradigdes do cla ou da sociedade, « enfraquecido herdi melodramético sucumbe a um mundo que desconhece e a leis morais e regras sociais que no consegue mudar. O mundo é algo misterioso e assustador, um “sistema indecifravel, @ o paloc bpkwww.sesipe.org be inicleodscramaturgaprin. him 38 soos2016 Versio para impressio de luta do heréi melodramatico nao é 0 mundo caético ou a sociedade organizada sob leis opressoras € injustas. O universo de luta do heréi melodramatico ¢ 0 dos seus sentimentos. E esses sentimentos sac limitados pelas leis, pelos preceitos religiosos e pelos bons costumes, E, ainda mais, poderiamos dize que, embora os sentimentos sejam o elemento fundamental do melodrama esse género sobrevive principaimente nao do exercicio dos sentimentos mas de sua negagao. Os herdis dramaticos ou trégicos vivem os sentimentos com toda a intensidade e, muitas vezes, s4o punidos exatamente por isso, pele descomedimento, pela falta de medida com que o vivem. Os herdis melodramaticos “tentam" viver seus sentimentos sem conseguir alcangé-los, seja por acidente, pela agao do vildo ou por fraqueza moral. Ao perder 0 contato com a praga, com as ruas, com a comunidade, enfim, o homem perde seu imaginério, abandona a fonte de sua cultura e diminuem-se consideraveimente a quantidade ¢ a qualidade das experiéncias que podem ser comunicadas. Seu repertério de imagens, sem 0 acréscimo das imagens apreendidas no contato e conflito com outros homens, reduz-se aquelas geradas apenas a partir de si préprio (os sentimentos) ¢ advindas no contato e conflito com seu reduzido meio familiar e circulo social (moral). Os préprios sentimentos sem o sadio confiito com a complexidade do mundo real tendem a permanecer na superficie ou a se tomar idealizados, Ao abandonar as ruas o homem diminui substancialmente sua capacidade de aprender. O saber distancia-se do sentir & bem caracteristico que nossa época tenha especial predilego pelo melodrama. E um género que retrata fielmente a perplexidade da maioria de nés com um mundo que ndo mais conhecemos. Um munde complexo, vil, caético, violento ¢ inimigo, do qual nos afastamos para o aparente porto seguro de nose casa e dos nossos sentimentos (desde que nao escavemos esses sentimentos até as profundidades abissais dos instintos). Que distancia enorme do drama ou da tragédia em que os personagens invester em diego ao mundo para transforma-lo em algo possivel de ser ordenado e habitado! ACRISE Desde que comecei minha carreira profissional como dramaturgo, hd vinte anos, ougo falar em crise. Hoje me pergunto se é possivel fazer arte em qualquer lugar do mundo sem crise. Isso nao quer dizer que tenha me habituado a ela, mas que a considero elemento fundamental do proceso criativo, situada ne mesmo nivel de importancia da observagao, da reflexdo, da atengao ou da intuigao. A crise norteia @ nos faz mais espertos. E interessante verificar que o afastamento da intima convivéncia entre 0 puiblico e o privado, o individuo « a cultura, expresso nas moradias das antigas cidades, é um simbolo que oculta mudangas. muite expressivas nas relagdes humanas e artisticas. A perda do imaginério levou a danos que somente agore comegam a ser percebidos de forma evidente. Por exemplo, a tao comentada crise relacionada ao fluxc de ptiblico no teatro, cinema, literatura e outras artes, é uma dessas evidéncias. Obviamente, a ordnice crise determinada pela falta de interesse do piiblico pela produgdo cultural tem miltiplas e importantes raizes, Sdo levantadas desde razdes histéricas até a quase nula sensibilidade das instituigbes governamentais em incentivar 0 acesso da populacao aos bens culturais; 0 peso da midia e os interesses da industria cultural, entre outras. Todas essas razées possuem sélidas justificativas. Mas uma razac pouco aventada, e, talvez a mais importante, seja a que explica que o desinteresse do puiblico se deve ac fato de que talvez a produgao cultural nao esteja falando a mesma lingua que ele, nem veiculando ax imagens extrafdas de um imaginério comum. Talvez a grande aventura da busca da individualidade iniciada no Renascimento tenha se exacerbado de tal forma a ponto de esquecermos da existéncia de ur corpo social, de um imaginario cultural. Talvez o artista tenha renunciado a ser o meio de expresséio das variadas experiéncias humanas para expressar a si préprio. Talvez o artista tenha aberto mao de expressar o mundo e a vida para expressar o préprio mundo ¢ os préprios sentimentos. E talvez o prépric mundo e os préprios sentimentos nao sejam assim tao importantes. Pelo menos para 0 ptiblico. Nao que a totalidade da produgao cultural atual seja apenas feita de consideragées em torno do umbigo de seus préprios realizadores. Ao contrdrio, percebe-se em grande parte da produgao artistico-cuttural um empenho decisivo em questionar e encontrar formas de comunicagéo mais eficientes com o piiblico. ¢ bpkwww.sesipe.org be inicleodscramaturgaprin. him 48, sown Verso para impresso pergunta é se essas formas eficientes ndo estéo intimamente ligadas @ recuperacéo de um imagindric comum RESTAURAR A NARRATIVA © longo e lento processo de afirmagao dos valores do individuo alcanga até os dias de hoje. E se, durante esse proceso, houve época em que tanto os valores coletivos quanto os do individuo conviveram, hoje esta claro, existe uma sobrevalorizagéo dos valores individuais em detrimento dos outros. E paradoxalmente, é na época da chamada cultura de massa que a nogao de individuo se impde de maneira téo avassaladora. Ou talvez 0 proprio conceito de "massa" como agrupamento infinito, amorfo « semiconsciente de seres propicie a sobrevalorizagao do individuo. © apelo da propaganda ¢ para que « individuo se destaque da massa amorfal Isso s6 pode ser feito apoiando-se e reafirmando em si, ac infinitum, a nogao de individu em contraposigao & massa informe. Sem pretender aqui discutir 0 conceitc de massa - para mim no minimo uma impropriedade -, 0 fato 6 que, neste fim de século, 0 pode transformador da arte parece ter se esgotado e seus caminhos parecem ter conduzido a becos sem saida Parece que enquanto as populagdes aumentam geometricamente dinamizando de maneira aguda as relagSes sociais, inversamente as manifestagdes artisticas véem minguar seus puiblicos e, como que excluidas do poderoso processo que movimenta a sociedade contemporanea, recolhem-se a seus gueto: com suas diminutas platéias Fato caracteristico e, a meu ver, revelador do distanciamento entre espetdculo e puiblico é a perda que ¢ teatro vem sofrendo, nos titimos trés séculos de seus contetidos narrativos. O que era elementc constitutive do espetaculo entre os gregos ou mesmo na época de Shakespeare hoje se limita < resquicios, praticamente, Uma ou outra reminiscéncia deste ou daquele personagem nos informam que < narrativa também esta presente num espetdculo, como um apéndice de que, se néo estiver inflamado no se percebe a existéncia. O fato é que os contedidos narrativos numa pega teatral nao so apenas elementos esiilisticos e sua perda corresponde a um prejuizo tao gigantesco que chega quase < descaracterizar a arte teatral. Atualmente tomamos arte dramatica como sinénimo de arte teatra esquecendo-nos de que a arte da narrativa sempre teve lugar marcante na arte teatral, E, dada < importancia da conjugagéio dessas duas artes no teatro creio ser itil abrir um paréntese para a discussac desse tema. © "ONTEM” E 0 "AQUI E AGORA" Existem, a meu ver, dois elementos fundamentais que estruturam 0 que se convencionou chama fendmeno teatral. E ndo é coincidéncia que esses mesmos elementos estejam também presentes tanto nc mito quanto no rito religioso: 0 aqui e 0 agora. Teatro é uma arte efémera e presente e isso quer dizer que sua existéncia se dé no momento em que o espetdculo acontece em sua relagdo com o piiblico Terminado 0 espetaculo, terminou a arte teatral, Teatro é uma arte que s6 tem existéncia em set momento presente. Isso parece uma obviedade, mas é sua propria esséncia. Teatro é a ago presente, emogao presente, o ator € o pliblico presentes. Teatro nao é simplesmente uma histéria contada, 6 ume experiéncia viva, na definigéo de Eric Bentley. Sensagdes como éxtase, gozo, catarse, emogdes alheamento, vivéncia além do concreto da existéncia, sdo elementos necessariamente presentes tanto nc Fito religioso quanto no mito ou no teatro. Com uma grande diferenga: embora a experiéncia viva, 0 "aqui agora" defina 0 teatro, hd outro elemento que o separa tanto da religiao quanto do mito e the dé outre geometria e alcance. Teatro, embora seja um bem do espirito é também algo profano, concreto, onde « éxtase é algo comedido, onde as alturas das emogées - que podem nao ter limites no rito religioso - sac circunscritas ao mundo real. No teatro, 0 contato com 0 espiritual néo 6 um fim em si, como no rite religioso 0 contato com a divindade ¢ 0 objetivo final. No teatro, e nao falamos apenas do teatro grego, ¢ éxtase necessita de um sentido, um /égos, uma razéo. Ouso até refletir que o lagos também esta presente nas religides, afinal existem a doutrina, os preceitos ¢ se nao existissem, existe a organizacdo, < geometria do ito, Religiaéo e arte, no entanto, abrigando os mesmos elementos possuem objetivos opostos: o /égos na religido visa ao éxtase, ao contato com o divino, a teofania. Na arte, 0 éxtase é cédigc de acesso ao logos, ao re-conhecimento da trajetéria humana. Teatro é também uma forma de saber. bpkwww.sesipe.org be inicleodscramaturgaprin. him 58 soos2016 Versio para impressio Reflito que se a agao teatral no geral e os didlogos, no particular, dizem respeito ao presente, a re presentagao, ao “aqui, agora’, a narragdo diz respeito aos fatos acontecidos, ao ontem, ao passado. Bem, fatos acontecem em determinado lugar e em determinada época. Por conseqiiéncia, o universe preferencial da narragao € 0 universo histérico, o tempo e os acontecimentos concretos da histéria de homem. E, nesse sentido, a narragao funciona como oddigo de acesso ao légos, ou seja, tem o poder de inserir, com vantagens, na agdo teatral o territério concreto das relagdes humanas (sociais, politicas econémicas € outras) onde se dé a trajetéria dos personagens. O personagem, assim, através de narragdo, se insere no territério, no tempo e no espago histéricos, e, af, busca um sentido pra sua ago « para sua existéncia. E desse conflto, das relagdes entre a personagem e seu universo historico é possive surgit 0 légos, a razdo entre dois elementos contraditérios: personagem e meio. Isto posto, uma questdo se levanta, dbvia: No & possivel obter-se 0 logos t4o somente com a agac representada, sem a insergao da narrativa? A resposta é também um dbvio "sim. Mas porque, entdo, o: gregos e Shakespeare utilizavam tanto a narrativa? Nao seria porque a narrativa potencializa < representago? E se ela tem essa poténcia como isso se dé na cena? O SISTEMA NARRATIVO © teatro desde o seu surgimento tem sido um sistema integrado de elementos épicos @ dramaticos: em épocas mais remotas com forte predominancia de elementos épicos e em épocas mais recentes com mais acentuada presenga do elemento dramatico. No século XIX 0 equilibrio desses elementos foi fortemente alterado, Uma série bastante grande de fatores contribuiu para isso. E 0 teatro tornou-se um sisteme fundamentalmente dramatico, O exilio da narrativa no teatro provocou distorgées. Uma delas pode se! verificada na artifcialidade de alguns textos melodramaticos, no idealismo extremado, na bonomie inverossimil, no cardter maniqueista de seus herdis e vilbes. Os personagens, extraidos do contexto das relagdes humanas reais, tornam-se apenas emblemas de virtude ou vicio. Afastados do fazer real, das relagdes humanas, a (inica realidade que resta é a subjetividade dos sentimentos. O teatro torna-se mais e mais "sentir", torna-se mais éxtase e emogao e menos saber. Nesses textos melodramaticos ¢ até admiravel a capacidade técnica dos seus autores em provocar emogao no piiblico com personagens absolutamente desprovidos de humanidade. Personagens nessas pegas sao ferramentas habeis pare extrair emogao das platéias, mas muitas vezes no sdo, absolutamente, personagens pertencentes ac mundo real, A emogao paira exacerbada na atmosfera, mas carece de sentido, Talvez seja por isso que hoje, nos causa riso o tom exageradamente emotivo desses velhos textos. Foi contra essa emogao fora de contexto que Brecht se insurgiu com seu teatro épico propés um novo re-equilibrio dos elementos épicos e draméticos presentes no teatro. Mas 0 ostracismo da narrativa no teatro provocou outras mudangas. O espetaculo teatral tomou uma nove configuragdo: de arte sonora, cujo sentido privilegiado de acesso era a audigéo (em inglés, platéia ainda ¢ audience) 0 espetaculo teatral tornou-se algo a ser, em primeiro lugar, visto. O publico torna-se espectador, aquele que vé. Isso provocou alteragdes profundas na relagao do espetaculo teatral com ¢ piblico, Este passa a assistir o espetdculo, Esse “assistir” ndo é desprezivel nem deixa de ser uma boz relagao com a platéia, mas 0 fato 6 que fomos levados ao esquecimento de outras relagdes. No bojo dc assistir, a quarta parede torna-se de fato uma instituigéo e 0 ato teatral torna-se profundamente representado. O espetdculo comega a acontecer fundamentalmente no palco. O assistir representacac ainda preserva a imaginagao do piiblico, mas, talvez, como menos intensidade No sistema narrativo, ao contrario, puiblico é 0 interlocutor privilegiado, a relagao “olho no olho" entre personagens no palco transfere-se para “olho no olho" entre ator/narrador/personagem e puiblico. A ponte obstruida pela “quarta parede" é novamente aberta. O sistema narrativo também lana mao da maior contribuigao que piiblico pode trazer ao espetaculo: uma imaginacao ativa. Através da narrativa o puiblico 6 também construtor das imagens do espetdculo e 0 espetaculo teatral, ao invés de ser um sistema predominantemente sensivel, torna-se também um sistema fortemente imaginativo[4]. bpkwww.sesipe.org be inicleodscramaturgaprin. him co soos2016 Versio para impressio No entanto, a vantagem maior do sistema narrative é que ele ndo exclui o vigor da representagac dramética. Ao contrério, a abriga dentro de si, possibilitando inumeraveis combinagdes entre narragdo « representagao. O limite &, de fato, a imaginago do palco e da platéia. CONCLUSAO Esta 6, de fato, uma conclusdo precdria. Tanto no que se refere as infinitas possibilidades do sisteme narrativo quanto no que diz respeito a alguns tépicos levantados nesta generalizada reflexdo. Cada un dos elementos e afirmagdes aqui levantados exigitia espago maior, reflexo mais arguta e, seguramente a contribuigéo de outros artistas e tedricos interessados no tema, © que podemos conciuir dos elementos aqui expostos ¢ que a restauragéo da narrativa e ¢ aprofundamento da pesquisa cénica em torno de suas caracteristicas (a transmissao de experiéncias humanas e nao de meras informagdes 6 apenas uma delas ) pode se junlar a uma série de iniciativas que visam a restauragdo de um imaginario comum entre palco e platéia e, a partir disso, construir um nove relacionamento, Bertolt Brecht com seu teatro épico apenas iniciou um caminho que pretendia um nove equilibrio entre os elementos épicos e dramaticos existentes no teatro. Peter Weiss, Heiner Miller Bernard-Marie Koltés ¢ outros aprofundaram esse caminho, mas a pesquisa das possibilidades do sistem narrative apenas se inicia. Creio firmemente que o sistema narrativo & um sistema de ganhos. E um sistema complementar ao sistema dramatico/representativo ¢ no exclui nenhuma conquista desse ultimo Ao contrario, provoca, langa desafios a todos os criadores e re-introduz 0 puiblico como elemente construtor do espetdculo teatral. Sem a imaginacao do piiblico o teatro narrativo néo existe Ao propor a partiha imaginativa de experiéncias humanas, 0 teatro narrativo solicita algo além da mere geometria estética. Propde e pede a restauragao da antiga unidade entre o piiblico e o privado, o individuc e sua comunidade, a forga progressista e de ruptura da imaginacdo individual e a solidez do imagindric coletivo, Luis Alberto de Abreu é dramaturgo e estudioso de dramaturgia. Ha mais de dez anos desenvolve estudos nessa area com autores jovens, no Grupo dos Dez (Séo Paulo) e Grupo ABC de Dramatugia (Escola Livre de Teatro de Santo André). Prepara livro sobre a relagao entre a estruture dramatirgica e os mitos e arquétipos. Escreveu “Foi Bom, meu Bem?", “Bella Ciao”, "Lima Barreto Ao Terceiro Dia" e "Guerra Santa", entre outras pegas. Ha sete anos mantém , em Sao Paulo, com¢ diretor Ednaldo Freire a Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, 0 Projeto de Comédia Popula Brasileira. Atualmente voltado ao teatro narrativo desenvolve pesquisas que tem como base o teatro NO isando a criagéo de uma forma teatral breve e intensa. Entre suas pecas criadas dentro de istema narrative destacam-se "O Livro de Jé", dirigida por Antonio Araujo com o Grupo Teatro dé Vertigem, “lepe" "Till Eulenspiegel", com a Fraternal, dirigidas por Ednaldo Freire. [1] BAKHTIN, Mikhail, Cultura popular na Idade Média e no Renascimento : 0 contexto de Rabelais. S40 Paulo : Hucitec, 1987. [2] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e politica : ensaios sobre literatura e histéria da cultura Trad. De Sérgio P. Rouanet. Sao Paulo : Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1) 13] Alguns estudiosos consideram "Longa Jornada Noite Adentro”, de O' Neill, "A Morte do Caixeiro Viajante", de Arthur Miller, ¢ até "Um Bonde Chamado Desejo", de Tennessee Williams, como dramas quando ndo tragédias. Eric Bentley, em seu livro "A experiéncia viva do teatro”, considera-os como autores melodramaticos e partitho de sua opiniao. [4] Uma das mais belas e marcantes propostas desse jogo potente de imaginagao entre palco e platéia ¢ hepihwuwsosipe.og befnucloodecram turin 78 sown Verso para impresso feita no prélogo de Henrique V, de Shakespeare, quando o ator confessa-se incapaz de representai sozinho a guerra entre Franca e Inglaterra e, humildemente, solicita a imaginagao do publico come precondiao da existéncia do espetaculo. Link do eontetido: brinucleodedramaturgia/FreeComponent9545content77389.shim| http://www, sesipr.org,br bpkwww.sesipe.org be inicleodscramaturgaprin. him a8

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