Você está na página 1de 9
Bioética & MEDIAGAO DOs SABERES Anténio Fernando Cascais Universidade Nova de Lisboa A emergéncia da ciéncia moderna veio abrir uma ferida insandvel na cultura oci- mtal. De facto, a racionalidade cientifico-natural moderna encontra-se na origem, fo de uma ruptura tinica, simples e linear, entre a chamada ciéncia antiga, aristotélica ptolomaica, e a ciéncia experimental de modelo matematico, mas de um feixe de pturas, além desta primeira. Uma ruptura entre os saberes cientificos ¢ os saberes ‘os6ficos e humanisticos, os saberes epistémicos e 0 senso comum ou os saberes ypulares, 0 mundo do dominio instrumental dos fenémenos naturais e 0 mundo dos llores. Mas também, e progressivamente, & medida do proprio desenvolvimento das Sncias, entre as disciplinas, subdisciplinas, ramos e especialidades dos préprios beres cientifico-naturais cada vez mais diferenciados e fragmentados. E, como € jidente, se falamos de rupturas, temos de reconhecer a concomitante necessidade de tmulas e de instrumentos de mediagio, cognitiva, social, ético-politica, entre as ferentes esferas do saber e da actividade. Dessa multiforme necessidade de media- 0 encontramos eloquentes testemunhos, desde a defesa filoséfica da nova ciéncia, com Galileu e Bacon, a divulgagao cientifica, ainda no século XVIII, até as muito sentes tecnoética e bioética (Cascais, 2003). Isto se no quisermos inclusivamente ontar para a inegdvel dimensio mediadora que constitui parte das condigées de ergéncia de novas disciplinas cientificas, como a ecologia, ou de novas praticas, mo a do risk assessment, completamente integradas no processo de investigagio mtifica (Cascais, 2002). O tema clissico, porque historicamente foi o primeiro a constituir-se, adquirindo r isso foros de dignidade conferidos pela sua vetustez e permanéncia, é 0 da rup- ‘a irreconstitufvel da ontoteologia em (pelo menos) duas grandes esferas do conhe- nento que competem entre si — as ciéncias naturais e os saberes humanisticos — r sua vez desdobradas em outras tantas fontes normativas da acco — 0 dominio itrumental dos fenédmenos naturais e os conflitos entre seres humanos. Este tema sucessivamente retomado desde a querela de método diltheyana (Dilthey, 1986) !& bem conhecida tematica das “duas culturas” de C. P. Snow (1996), mas na 323 verdade ele é recorrente num quadro de reflexao filoséfica ainda mais vasto, prolon- gando-se desde 0 século XVII, que assistiu aos alvores da ciéncia experimental mo- derma, até aos dias que correm, As tentativas de mediago subsequentes a esta ruptura jlustram claramente os problemas suscitados pelos projectos mediadores. Os primeiros esforgos de mediagao pretendiam claramente @ sintese eliminadora da ruptura, algo cujo cardcter contradiz. 0 préprio prinefpio da mediagao. Com efeito, 86 € correcto falar de mediagilo sempre que nao forem anulados, € na condigao de se preservarem, 0s polos entre os quais se pretende efectuar a mediagao. Varias tentati- vas de sintese entre as “duas culturas” se sucederam, mas que vém a reproduzir n0 Jnterior de cada uma delas a ruptura insandvel entre um discurso sobre @ physis e um discurso sobre o humano, fazendo de cada um destes pélos 0 eixo que rege a sintese superadora, de tal modo que ela acaba por verter-se na tentativa de absorgao, idealmente sem resto, de um dos pélos pelo outro. Poderia dizer-se, grosso modo, que 0 eixo do discurso sobre a physis se estende do racionalismo de Bacon e Descartes, que, ainda no século XVII, modela a razdo humana pela racionalidade matemético-experimental das ciéncias da natureza, assim se abalancando a um dominio irrestrito dos fenémenos que principia a dar corpo ao optimismo histérico com que se inaugura a modernidade, O enciclopedismo das Lu- zes nao deixa de constituir um documento maior desse optimismo, duplamente cognitivo e hist6rico, mas seria ilicito fazer remontar a cle a confianga cega na tacionalidade cientifico-natural que, de facto, € coisa do positivismo comtcan, reivindicador, este sim, da heranga baconiana e cartesiana, e que autoriza € vocaciona Uecididamente a ciéncia para a reforma social. Nesta linhagem encontraremos ainda a outra vertente, biologizante agora, do positivismo, que € 0 darwinismo social, da qual nfo 0 préprio Darwin, mas Galton e Spencer so responsaveis primeiros € que tio funestas consequéncias teve na histéria recente, a culminar com a biomedicina cugenista e a higiene racial nazi. Nas dltimas décadas, a sociobiologia, a ética cvolucionista, os projectos de vida artificial, da genémica ¢ da bi6nica ‘mantém a divida para com o fundacionalismo biologizante, doravante subsididrio dos avangos, quet rigs neurociéncias, quer da genética e das biotecnologias, enquanto que, por sua vel a cibernética e a sistémica encontram 0 seu sustento no reducionismo informacional, a0 qual também no so alheios os projectos de inteligéncia artificial. Em contrapartida, no ponto de emergéncia do eixo do discurso sobre 0 humano, podemos encontrar a dentincia humeana da faldcia naturalista que pée termo a figura da natureza como fundamento normativo da acgdo, e, sobre esse eixo, uma corrente que se estende da tripla critica kantiana e da busca de uma antroponomia minima @ tla associada, passando por Vico (1995) ¢ pela hermenéutica, de Dilthey (2002, 1988, 1986) a Gadamer (1976), mas suficientemente lata para acolher no seu seio anti humanismo de Heidegger (1996, 1995, 1991, 1982) e o humanismo cristo, até A acgii comunicativa de Habermas (2001, 1987, 1982) e a ética do discurso de Apel (20002 2000b). Por outro lado, a corrente de critica da tecnociéncia engloba ainda nomes' tendéncias muitissimo dispares entre si mas entre os quais avultam nomes como 0 de Michel Foucault (2005, 1988), Richard Lewontinn (2000, 1998), Donna Harawa (1997, 1991, 1989) ow Edgar Morin (1987-1992, 1991, s/d), mas que se alarga tam bém A bioética de um Hans Jonas (1994, 1984, 1980) ou um Gilbert Hottois (199 324 1996, 1992, 1984a, 1984b); 0 que os aproxima a todos, e que pode por isso identificd- Jos é 0 facto de a oposig&o entre o discurso sobre a natureza € © discurso sobre 0 humano, além de ser regido por este segundo polo, recobrir a tensdo entre o possfvel — que é da ordem do tecnocientifico — e o desejével — que é da ordem do ético & do politico. I O que as tentativas de sintese tam em comum € o facto de assentarem metodologicamente na determinagao da natureza da ciéncia moderna, de partirem da interrogagio fundadora acerca daquilo que pode constituir a sua inerradicavel especificidade. Assim com Descartes e com Kant, que, no termo dessa determinagao gneontram uma linguagem, e uma Tinguagem racional que € ao mesmo tempo a pro- pria réplica da filosofia & emergéncia da ciéncia modema. Por essa via, a filosofia estabelece uma relagio de interlocugio privilegiada, respectivamente com a ciéncia ealilaica, 0 primeiro daqueles, ¢ newtoniana, 0 outro: ou seja, mais essencial da éncia é a razdo e esta é também aquilo que garante a humanidade dos homens. Pela via do cartesianismo e do kantismo, os modernos contemplam, esperam e exploram na ciéncia a dédiva de uma racionalidade enfim conquistada que, transformada em método critica, se oferece e impde como veiculo de emancipacdo. Emancipagao, em primeiro lugar da heteronomia em face dos fenémenos naturais, ¢ af temos 0 projec- tp, jé delineado em Bacon, da apropriago violenta da natureza por mor da realizagao des fins humanos, ¢ logo depois da heteronomia em face da dominagao injusta — € injusta porque irracional — dos homens sobre os seus semelhantes, ¢ ‘af encontramos 60 projecto iluminista de condugao do homem a sua maioridade racional, exemplar- mente formulado por Kant. ‘Ao recuperarem na ciéneia natural emergente a racionalidade da sua linguagem, os primeiros grandes filosofos da Modernidade restituem ao acolhedor dominio do simbélico a nova capacidade de descrever ¢ manipular a physis € desse modo neu- tralizam a potencial ameaca que cla era passivel de representar para a fungao, até af cumprida pela ontoteologia fundadora, de formular normas para a acgiio. O reconhe- cimento de que a ciéncia, entdo nascente e a produzir os seus primeiros frutos, éem primeiro lugar portadora de uma linguagem racional, € pois solidario da antropologia moderna que define a humanidade do homem pela sua capacidade simbélica. E mes- mmo mais do que confirmé-la, reclama-a: neste nascimento geminado se gera a co- pertenca originéria que consubstancia a Subjectividade modema, O homem dos alvores da Modernidade descobre, deslumbrado e feliz, no livro da natureza escrito em ca- racteres matemiaticos, a obra de um deus ex machina — e af temos Galileu — ou de um supremo legislador de todas as leis que regem os fendmenos — ¢ af Newton — que Ihe é doravante dado emular na posicao privilegiada de demiurgo inocente. A ciéncia moderna redescobre na natureza indefinidamente mensurada 0 Jardim do Eden enfim restituivel more matematicum © redescobre-se a si propria como faculdade adamica e dltimo e supremo fruto da criagio. Nao € outro o solo originério do 325 humanismo moderno que assim se abalanga a fundar, com Kant, a ética numa teoria do conhecimento, ao mesmo tempo que ergue sobre a Subjectividade uma antropolo- gia que é garantia da possibilidade de universalizagdo dos imperativos éticos. Ou, por outras palavras: a mesma racionalidade que permite a intervengdo eficaz sobre os fendémenos naturais, com 0 consequente acréscimo de controle que assim liberta 0 agente humano da antiquissima heteronomia perante a necessidade natural, , a0 mesmo tempo, fundamento e guia da ac¢do humana em geral e aquilo que Ihe confe- re um cardcter inequivocamente emancipador. Ha que sublinhar, enfim, que a medi- ago, efectuada assim sem sobressaltos entre as esferas do cognitivo-instrumental & do moral-pratico, assenta portanto na dupla possibilidade, e na correspondente articu- lagao, de um discurso sobre a natureza, pura extensdo inerte, e de um discurso sobre © humano, pura actividade cognitiva e instrumental. Pelo menos até Kant, sabe-se bem o que é a natureza e 0 que é 0 homem, o que é natural e o que é artificial, 0 que € técnico e 0 que € simbélico. Toda a possibilidade de mediagio entre as diversas esferas do saber assenta nestas distingdes claras. Tanto é possivel fundar uma ética como € possivel elaborar uma filosofia da natureza, tanto é possivel fundar uma an- tropologia como formular uma filosofia da técnica. Diferente descricdo, e que cada vez ma afigura inconciliével com a anterior, € a que hoje se dé do estado de coisas tal como ele se vem a desenhar apés dois ou trés séculos de experiéncia de transformagao eficaz dos fenémenos naturais, ou que outrora a impoténcia técnica levava a descrever como naturais, mas que se reconhece ser cada vez mais impossfvel descrever independentemente do efeito de artificio que, de maneira indelével, Ihes confere a intervengio tecnocientifica. Com efeito, ¢ ao contrério do sonho baconiano, a intervengao tecnocientifica nao molda de fora, demiurgicamente, uma realidade natural que na sua esséncia permanece de algum modo intocada e por isso reconhecfvel como entidade & parte da manipulacdo, é antes a intervencdo tecnocientffica que vem a integrar a propria realidade transformada, tor- nando-a progressivamente mais complexa e inabarcdvel, que ndo mais transparente e manobrdvel. A intervengdo tecnocientifica altera em igual medida a prépria matéria- prima da intervengao e, com ela e em simultineo, o seu horizonte de inteligibilidade enquanto intervengao; dai que qualquer descrig&o do estado-de-coisas outrora dito natural — mas que j4 ndo € 0 estado de coisas natural originario, se é que alguma vez houve algo de “originario” — tenha doravante, e se veja a bragos com a necessi- dade, de incluir 0 devir-artificial do objecto descrito. Nos seus escritos sobre a técni- ca, Martin Heidegger ter4 tido 0 mérito de alertar para a transformagdo do cardcter da tekne artesanal antiga com a emergéncia da técnica moderna (1996, 1995, 1991). Na sua esteira, mas contra as implicagdes do pensamento heideggeriano, Hans Jonas aponta a natureza alterada da prépria acgfio humana (1994, 1984) e Gilbert Hottois, demarcando-se do fundacionalismo de matriz metafisica daquele, reitera 0 cardcter logotécnico da ciéncia moderna, que j4 no o logoteérico da scientia antiga (1992), emprestando 0 seu nome a paternidade do termo tecnociéncia (1984a, 1984b) e pro- pondo uma “terceira via” da ética para a era da técnica, alternativa, quer & euforia tecnocratica, quer ao humanismo anti-técnico (1992). Mais recentemente ainda, é 0 proprio Hottois a reconhecer, primeiro, a impossibilidade de fundar racionalmente uma ética para a era da técnica (1996), tal como ela tinha sido proposta por Jonas (1994, iss 326 1984), mas também, depois, a impossibilidade de formular uma filosofia da técnica (Hottois, 1999), que aquela ética implicitamente reclamava, liberta das aporias con- sistentes na exigéncia de superar binarismos tais como natural/artificial, técnico/sim- bélico, humano/animal, racional/instrumental e na impossibilidade, simultanea, de prescindir dessas distingSes para formular, quer uma antropologia, quer uma ética. Deste modo, onde a descrigao iluminista do estado-de-coisas-natural consubstanciava uma ontologia, de algum modo ainda compativel com a antiga metafisica, na medida em que, como ela, pressupunha uma estabilidade ultima desse estado-de-coisas-natu- ral, ainda que tal estabilidade j4 pouco ou nada tivesse a ver com o criacionismo biblico, agora nada disso é possivel. Toda a descrigao do devir-artificio da natureza est irremediavelmente votada a dar conta de uma ontotecnologia cujo alcance abar- ca de modo indissociével 0 natural ¢ 0 artificial, 0 no humano e o humano, a subs- tancia moldavel e a forma sempre mutante dela, indistintas por efeito da intervengao tecnocientifica. E. este tipo de descrig&o que prevalece nas mais frutiferas reflexdes contempordneas sobre a tecnociéncia, sendo j4 consideravel o mimero de autores e de textos que engrossam um caudal de autores cujas reflexGes transcendem, embora frequentemente se cruzem e sobreponham, aos campos j4 constituidos da filosofia e da ética das ciéncias, da sociologia do conhecimento e da sociologia das ciéncias, ou dos estudos culturais e multiculturais ou pés-coloniais, feministas e de género, da ciéncia, ou do vasto campo dos estudos Ciéncia-Tecnologia-Sociedade. i E 0 que daqui ressalta € a incomensurabilidade, nao s6 entre tal filosofia da téc- nica e da natureza e a onto-teo-antropologia que classicamente fundava a moral, mas também entre aquelas primeira(s) e uma ética moldada na simples autoregulacio paritéria, deontolégica, das actividades e das comunidades cientificas. Deste ultimo equivoco enfermam certas pretensdes de formular uma ética para a era da técnica (uma tecnoética) ou uma biostica. Com efeito, a reducao, frequentissima por parte das ordens profissionais ligadas as ciéncias biomédicas, assim como das confissdes religiosas, da bioética, quer a uma mera deontologia profissional, no caso das primei- ras, quer a uma teologia moral aplicada, no caso das segundas, traduz realmente uma soluco de facilidade que visa evitar, pelo menosprezo ou pela ignorfincia, as aporias inerentes & fundacdo racional de uma ética para a técnica. Em regra, ambas estas posicdes mantém um entendimento equivoco da natureza da técnica moderna, com a sua dinamica autoproliferante ¢ inumana (ignorada sobretudo pelas classes médica e cientifica), ao mesmo tempo que um antropologismo humanista que faz t4bua rasa da evolugdo das sociedades modernas ¢ dos seus adquiridos (multi)culturais ¢ sociais (menosprezada sobretudo pelas confissdes religiosas). Devem por isso ser tidas como insuficientes e chegam a ser perigosas, na medida em que contribuem para agravar os problemas que pretendem obviar, as deontologias profissionais de médicos e cien- tistas, sejam elas quer uma ética intrinseca da busca cognitiva da verdade, frequente- mente brandida pelas comunidades cientfficas em prol da defesa da liberdade de investigacdo contra todas as formas de ingeréncia extracientifica, quer uma bioética 327 monopolizada pelas comunidades médico-cientificas ¢ reduzida a aplicac%o, a novos dominios, da tradicional beneficéncia paternalista. Ambas ignoram a dinamica intrin- seca A tecnociéncia (Cascais, 2003, 2002, 1999, 1997) e o seu impulso realmente incontrolével de um ponto de vista estritamente instrumental e humanista (Cascais, 2000), ou seja, com recurso as meras deontologias profissionais, incapazes de darem conta dos riscos suscitados pelas actividades que visam controlar (Beck, 2000). As éticas da responsabilidade (Jonas, 1984) e da precaugdo, que nio sio deontolégicas, ja disseram 0 que havia para ser dito quanto a natureza logotécnica da ciéncia mo- ema (Hlottois, 1992, 1984a, 1984b) ¢ quanto & necessidade de hetero-regulagao das actividades médico-cientificas (Cascais, 2004, 2003; Cascais et al., 1994). Pensamos gue estas consideragdes se impem, mais do que a qualquer outro, aos dominios da investigagio cientifica que envolvem a experimentagzio humana (Cascais, 1998). Ora a bioética constitui, tanto pelo seu espirito enquanto disciplina, quanto pela sua pritica, ja consideravelmente profissionalizada jinstitucionalizada, uma forma privilegiada de mediagao, mediagao ética, entre os mundos da ciéncia e dos valores, da biomedicina e da sociedade, do cognitivo-instrumental e do moral-pratico. Como vimos pelo anterior, essa mediagfio 86 se verifica com propriedade na medida em que as instancias respectivas, as comunidades médico-cientificas ¢ a sociedade (englo- bando-se aqui todos os interesses que extravazam © ‘dominio daquelas) mantiverem & autonomia respectiva. Este imperativo é contrariado pela tendéncia recorrente de re- dugao da bioética a vefculo dos interesses corporativos, ou econdmicos e sociais, que © mais das vezes nao indiciam sendo a real dependéncia das comunidades médico- ientificas em relacdo a instfncias que apoiam, patrocinam, promovern © avaliam as suas actividades, nomeadamente as ligadas investigagao. Nao 6 correcto falar de mediagao neste caso, como também ndo o € sempre que nos encontramos em presen- ca de limitagoes éticas A investigagao cientifica que tenham por exclusiva base a Conviccdo religiosa traduzida em letra de lei, nas sociedades democraticas laicas. Pense- se nos casos da eutandsia, da interrupgao voluntéria da gravidez, ou da experimenta- ¢o com embrides humanos. Na verdade, estes tiltimos exemplos apontam claramente para outra, e decisiva, consideracio da bioética enquanto mediagao. Tal mediagio ndo é apenas bipolar, mas multipolar, Ela engloba no apenas os grupos iniciados. nos saberes € levanta nio apenas os problemas respeitantes as relagées entre as varias disciplinas, as diferentes especialidades, mas destas com 0 mundo social mais vasto, onde se encontram 0s pacientes, os sujeitos de experimentagiio, ¢ quantos os representam ou sio de algum modo significativos para eles. Ao mesmo titulo que ciéncia, quer na investigacao, quer na aplicagao, néio implica somente os cientistas, mas os individuos e os grupos sociais, as organizagdes ¢ instituigdes que patrocinam, que beneficiam ou que sofrem 0s efeitos da ciéncia. A bioética nao constitui uma forma de mediagéo apenas: entre saberes formais, ou entre os dominios profissional ¢ academicamente delimitados como saberes, por oposigéo ao mundo social do ndo-saber (também dito dos saberes infor- mais) que € afectado tanto pelos beneficios como pelos tiscos tecnocientificos. A bioética é, ¢ no pode deixar de ser, mediago entre aquelas jinstancias com que tra- tava a comunicagao publica da ciéncia ¢ por algumas razbes idénticas as que sempre motivaram esta. 328 Iv Sem podermos alongar-nos aqui sobre a histéria, quer da bioética, quer da comu- ieagdo piiblica da ciéncia, alids relevante para 0 nosso propésito, mas no indispen- vel, sempre diremos que ambas constituem formas de mediagtio: mediagio ética, a ‘ira, mas com inegaveis implicagdes cognitivas, e mediagao cognitiva, a segun- mas com implicagées éticas cada vez mais evidentes. A mudanga de modelo da jpreenso ptiblica da ciéncia no sentido de uma mediag&o dos saberes, tal como a s vindo a entender, também aproxima esta da vocagio origindria da bioética. "A bioética emerge, como discurso e como disciplina, no virar da década de ses- senta para a de setenta, nos Estados Unidos da América, antes de se transformar num fenémeno mundial, conservando embora diferengas regionais considerdveis. A bioética norteamericana foi moldada pelo principialismo dominante e pelo primado do respei- ‘to da autonomia, de que o consentimento informado constitui pega central e emblematica. Todas as demais tendéncias da bioética norte-americana posicionaram- “se como alternativa, Na Europa mantém-se a cisio generalizada entre um entendi- “mento secular, laico e doutrinariamente eclético da bioética, até certo ponto préximo do espirito principialista norte-americano, e as vis6es confessionais que reduzem a bioética a uma teologia moral aplicada, frequentemente fundamentalista, a que os americanos preferem chamar bioética religiosa. Entretanto, os paises do Sul contra- poem as problemiticas europeias ¢ norteamericanas preocupagées sobretudo de desi - gualdades de desenvolvimento e de justiga social, ao passo que o mundo islamico, as sociedades asidticas © africanas opdem sérias diferengas culturais A exportagdo de formulas € solugdes ocidentais a problemas que, por outro lado, niio deixam de ser cada vez mais globais (Cascais, 2004). No Estados Unidos ¢ na generalidade dos paises ocidentais, a vocagao originaria da bioética, de alargar 0 questionamento ético da biomedicina, nfo s6 a outras esfe- ras do saber mas ao ptiblico mais vasto, e de estimular a participacdo deste nas dis- “ cussdes éticas ¢ nas tomadas de decisdo no ambito das politicas publicas, mantém-se eresiste aos entraves que a ela sempre opdem de uma maneira ou de outra as tenta- tivas de redugdo dessa discussao e dessa participagao aos circulos restritos de peritos cientificos ou de autoridades morais, No entanto, as resisténcias a essa vocacdo ori- " ginéria nao provém apenas daf. Podemos ilustré-lo mediante dois exemplos maiores que, precisamente, se articulam de maneira muito clara com as discussGes que actu- almente se desenrolam no seio da comunicagao piiblica da ciéncia. Com efeito, o grau de literacia, nao s6 cientifica, mas literacia tout court, condiciona profundamente 0 acesso, pleno e bem sucedido, a discussdo de problemas bioéticos ¢ A participagdo nas tomadas de decistio, nio s6 de piiblicos considerados de modo genérico e indiferenciado, mas mormente quando se trata da prépria pessoa utente da prestagiio de cuidados médicos ou sujeita a experimentagiio biomédica. Pense-se — exemplo por exceléncia — no exercicio do consentimento informado e em quanto ele € afectado pelo real acesso A informagao e a compreensaio dos hermetismos da linguagem biomédica e dos processos técnicos inerentes & prestagdo de cuidados de satide. De resto, a iliteracia é frequentemente invocada pelos técnicos e pelos profis- sionais como justificagdo do paternalismo na relagdo\com o paciente. Neste caso, 329 atrever-nos-famos a adiantar que o antigo paternalismo foi substituido pelo novo hermetismo. Mais, esse argumento parece reforgar-se quanto mais é evidente que a iliteracia cresce na proporgiio directa da inovagao cientifica e tecnolégica. Este facto prende-se com 0 segundo exemplo que pretendemos dar. A produgao de iliteracia que € inerente 4 dinamica impardvel e autoproliferante do proprio processo de inovagao cientifica e tecnolégica (Cascais, 2004, 2005) — e, nisto, paralela & produgao de ris- co e de incerteza (Beck, 2000; Flaysakier, 1997) — nao sé aprofunda o afastamento cognitivo entre peritos e leigos, como a distdncia entre peritos de diferentes especi- alidades, os quais aquele processo de inovagao nao cessa de transformar em ignoran- tes especializados. A miitua dependéncia entre eles, ao contrario de contribuir para a troca, agrava a percepciio da distancia cognitiva e da falta de controle sobre 0 pro- cesso de prestagdo de cuidados (diagnésticos, terapéuticos, preventivos), € tanto mais quanto os peritos em causa incluem cada vez mais técnicos especializados nao-médi- cos. Inclusivamente, comeca a ser frequente o surgimento de nichos de pacientes altamente diferenciados, como na Sida e em algumas formas de cancro ou de algu- mas outras doencas cr6nicas, em que os pacientes disputam renhidamente aos clini- cos a informagao e a tomada de decisdo sobre a sua condigao de satide. Para além da consabida nao-neutralidade axiolégica da ciéncia, ¢ a acrescer a esse fendmeno genérico, estas so situagdes que comprovam um devir-cognitivo dos pro- blemas bioéticos e um devir-ético dos problemas cognitivos. A sobreposigao ¢ a interpenetragilo, que assim se verifica, da esfera cognitiva e da esfera ética, ¢ que inferimos das situacdes acima anteriormente descritas, apontam para uma dimensio mais da crise do modelo linear da compreensio publica da ciéncia e da sua substitui- ¢do por um modelo de mediagao dos saberes concebido a partir de outros pressupostos. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS APEL, Karl-Otto (2000a), Transformacao da filosofia, I: Filosofia analitica, semidtica, hermenéutica. Sao Paulo: Edigdes Loyola. — (2000b), Transformacao da filosofia, H: O a priori da comunidade de comunicacdo. Sao Paulo: Edigdes Loyola. BECK, Ulrich (2000), Risk Society. Towards a New Modernity. London: Sage. CASCAIS, Anténio Fernando (2005), “The Rhetoric of Breakthroughs in the Communication of Science”, in Nigel Sanitt (org.), Motivating Science. Science Communication from a Philosophical, Educational and Cultural Perspective. Luton: The Pantaneto Press, pp. 61-68. _ (2004), “Responsibility and the role of the press”, in Charles Susanne, Guest Editor, Societal Responsibilities in Life Sciences, (Human Ecology Special Issue No. 12). Delhi: Kamla-Raj Enterprises, pp. 227-230. — (2004), “Bioethics: A Tentative Balance”, Studia Bioetica, n°1 — hutp://www.utopia.duth.gr/~xirol/ BIOETHICS. — (2003), “Uma ética para a técnica: 0 caso da bioética”, in José Rebelo (org.), Novas formas de mobilizagdo popular. Porto: Companhia das Letras, pp. 237-252. — (2002), “Genealogia, ambito ¢ objecto da bioética", in Jovio Ribeiro da Silya, Anténio Barbosa ¢ Fernando Martins Vale (orgs.), Contributos para a Bioética em Portugal, Lisboa: Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa/Edigdes Cosmos: 47-136. — (2000), “Bioethical Mediation and the Unstoppable Course of Human Experimentation”, in AAV, World Conference on Bioethics ~ Summary of Oral Presentations, Spanish and English Version. Gijon: 243-245, 330 (1999), “A bioetika tortene, a tudoménydg korebe tartozo kérdések és a bioetika térgyr”, in Charles Susanne, Szerkeszto, Bioetika. Bioetikai olvasékonyv: Multidiszciplindris megkozelités. Pécs-Budapest: Dialog Campus Kiad6: 31-54. (1998), “La etica de experimentacién con seres humanos”, Médico Interamericano, 17 (6): 306-312. (1997), “Bioethics: History, Scope, Object”, Global Bioethics (Florenga), Vol. 11 (1-4): 9-24. (1994), “The Awareness of Science”, (em colaborago com C. Queiroz, T. Levy, I. Serra, J. A. Mourdo, ‘A. C, Matos e D. Nunes), Global Bioethics Florenga), 7 (1): 1-8. THEY, Wilhelm (2002), Psicologia e compreensdo. Lisboa: Edigies 70. (1988), L’édification du monde historique dans les sciences de l'esprit. Paris; Editions du Cerf. (1986), Introduccién a las ciencias del esptritu. Madrid: Alianza. \YSAKIER, Jean-Daniel (1997), “Santé publique et responsabilité des médias”, Hermes. Cognition, Communication, Politique — “Sciences et Médias", 21: 135-144. CAULT, Michel (2005), Arqueologia do saber. Coimbra: Almedina. (1988), As palavras ¢ as coisas. Lisboa: Edigées 70. AMER, Hans Georg (1976), Vérité et méthode. Paris: Editions du Seuil. sERMAS, Juergen (2001), Técnica e ciéncia “como ideologia”. Lisboa: Edigies 70. (1987), Théorie de Pagir communicationnel, 1, II. Paris: Fayard. (1982), Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Zahar Editores. WAY, Donna (1997), Modest Witness Second Millenium. FemaleMan Meets OncoMouse. Feminism ‘and Technoscience. New York & London: Routledge. (1991), Simians, Cyborgs, and Women. The Reinvention of Nature. London: Free Association Books. (1989), Primate Visions. Gender, Race, and Nature in the World of Modern Science. New York & London: Routledge. EGGER, Martin (1996), Essais et conférences. Paris: Gallimard. (1995), Lingua de tradigdo e lingua técnica. Lisboa: Vega. (1991), Questions IV. Paris: Gallimard. (1982), El ser y el tiempo. Madrid: Fondo de Cultura Econémica. HOTTOIS, Gilbert (1999), Essais de philosophie bioéthique et biopolitique. Paris: Vrin. — (1996), Entre symboles et technosciences. Un itinéraire philosophique. Paris: Champ Vallon. — (1992), O paradigma bioético. Lisboa: Edig&es Salamandra. — (1984a), Le signe et la technique. Paris: Aubier-Montaigne. — (1984b), Pour une éthique dans un univers technicien. Bruxelles: Editions de Université de Bruxelles. JONAS, Hans (1994), Etica, medicina e técnica. Lisboa: Vega. — (1984), The Imperative of Responsibility. In Search of an Ethics for the Technological Age. Chicago: The University of Chicago Press. — (1980), Philosophical Essays. From Ancient Creed to Technological Man. Chicago: The University of Chicago Press. LEWONTIN, Richard C. (2000), It Ain't Necessarily So. The Dream of the Human Genome and Other Illusions. New York: New York Review of Books. — (1998), Biologia como ideologia. A doutrina do ADN. Lisboa: Relégio 4’ Agua. MORIN, Edgar (1987-1992), O método. I-IV. Mem Martins: Publicagbes Europa-América. — (1991), O paradigma perdido: A natureca humana. Mem Martins: Publicagées Europa-América. — (sld), Ciéncia com consciéncia. Mem Martins: Publicagdes Europa-América, SNOW, C. P. (1996), The Two Cultures. Cambridge: Cambridge University Press. VICO, Giambattista (1995), Ciéncia nueva. Madrid: Tecnos. 331

Você também pode gostar