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PSICANALISE Laplanche, J. — A Angistia Laplanche, Castracao/Simbolizagies Laplanche, J. — A Sublimagao Tallaferro, A. — Curso Basico de Psicanalise Bion, W. R. — Uma Meméria do Futuro [: — 0 Sonho Ferenczi, 8. — Didtio Clinico Lagache, D. — A Transferencia McDougall, J. — Teatros do Corpo Cotet, P., Bourguignon, A. — Traduzir Freud Inconsciente e 0 Id Novos Fundamentos para a Psicandlise NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE J. Laplanche Martins Fontes Sao Paulo — 1992 Tuto original: NOUVEAUX FONDEMENTS POUR LA PSYCHANALYSE ‘Copyright © Presses Universitaires de France, 1987 Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Lids, Séo Paulo, 1988, para a presente edieao 1! ediedo brasileira: dezemibeo 1992 Trodupdo: Ctéudia Berliner Revisio da tradupio: Eduardo Brando Revisio tipagrafia Sandra Rodrigues Garcia Carlos Roberto de Carvalho Produedo grfica: Garaléo Alves Compasiedo: Renato C, Carbone Capa — Projeto: Alesandre Maztins Fontes (Ciara Brain do Livro, SP, Bra) Teplancte, Tenn "Novos fdamantos pars pecan / ean Laplace [wadupio Cis Beciner;reviato da tedugso Eade Brenloh—StoPaa Mary oats, 191. ~ esate | de pcan) Bttograts ISBN 85:33601328 1, Picandie 1. Tio. Ste epp-s16.4917 sn3i98 NEMCWM 460 Tce para entlogo sate 1. Palendlse : Fundaments : Medicina 616.8917 Todas os direitos para a lingua portuguesa reservados & LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677 (01325.000 — Sao Paulo — SP — Brasil | | t | Introduggo 1. Catartica I/ O biolégico Sumario Fundar novamente : anon Fundamento e epistemologia freudiana . A fisiologia como fundamento: um bicho na fruta Quatro lugares da experiéncia analitica A clinica: 0 tratamento A psicandlise extramuros .... A teoria como experiéncia .. A histéria como experiéncia ... © biolégico como esperanca O biolégico como modelo . O biolégico na origem.. : . mas nao como fundamento © modelo bioldgico no aparelho animico vital no € “no fundo do homem, 50" 19 19 20 22 23 24 21 34 2/ O filogenttico . instinto perdido Contra as fantasias origindsias inatas . Especulagées pré-historicas em Freud Nem Darwin, nem Lamarck Nao ha lembranca hereditaria das cenas Situagdo secundaria das “fantasias origindrias” 3/ O mecanicismo . O modelo fisicalista: quatro caracteristicas O verdadeiro modelo do i - uma falsa fisica ........ 4/ O lingitistico Situaeao secundaria da linguagem verbal . Primazia do significante ou: significante dessignificado « . 5/ Morfismos ... A questo do antropomorfismo O biomortismo : 7 ‘Vida e morte: ‘em psicanalise”” . © mecdnico-morfismo Lingiiistico-morfismo ... 6/ Fundamento e origindrio histérico: psicandlise e psicologia O origindrio do tratamento remete necessariamente a um origindrio histérico Historia, desenvolvimento, génese, ori A vicarianga da autoconservacdo pela sexualidade... - como fundamento real da ilusto ansexulista © panpsicanalitica Superposigdes abusivas entre a psicandlise ¢ a psicologia A psicologia psicanalitica do adulto 49 50 50 52 34 56 37 Reinjecdo de conceitos psicanalfticos na psicologia da ‘erianga . Intoxicagao dos psicdlogos pelo panpsicanalitismo Reducionismos conceituais 7/ Um importante exempto de confusto: 0 estado “anobjetal” Clivar Freud sobre 0 narcisismo ‘Tempos sucessivos do erdtico © auto-erotismo que, cle mesmo, nao ¢ primeiro narcisismo, tempo sexual de unificacio . Cronologia do auto-erotismo e do narcisismo Escolha objetal ¢ acesso & objetividade: raizes freudianas de uma confusio . Reducao da evolucao sexual a autoconservacao Reducio do funcionamento autoconservativo ao modelo da pulséo sexual Adesio de Freud & anobjetalidade Confusdes sobre a “‘alucinacao primitiva’ Simbiose .. Contra 0 solipsismo do bebé psicanalitico, duas reacdes mal fundadas no prinefpio: Balint = Os kleinianos ... 8/ Dar lugar & psicologia da crianca A crianga Bsicanalitica, crianga mitica? Discussao de A. Green . ceseeees Esvaziar a psicologi panpsicanalitismo A psicologia do bebé: fundo minimo mas real para a psicandlise Se programa de Lagache Observacdo ¢ inferéncia em psicologia ¢ em psicandlise um retorno do 09 70 1 72 2 B 4 15 16 B 9 80 81 82 83 83, 84 84 86 86 88 89. 90 92 2, Fundamentos: rumo teoria da sedugo generalizada 95 I/ A situacdo origindria: adulto-crianca 96 Margaret Mead comentada por Merleau-Ponty . 97 2/ Os protagonistas da situagdo origindria ........ 99 A crianca como protagonista .. 99 Um individuo biopsiquico. 99 aberto a0 mundo. 100 provido de montagens reguladores... 102 mas desadaptado .... A “Hilflosigkeit”” ... . O grande debate sobre a angistia de real ...... 105 adulto como protagonista ..... 108 A dimensio do inconsciente 109 3/ Da teoria da seducdo restrita @ teoria da sedugao generalizada .... 1 Situar Freud tr A seducao infantil: cenas de experiéncia sexual prematura . 14 Sempre o adulto e perverso 115 Encadeamento das cenas 116 Passividade essencial da crianga ............... 117 A teoria: aspecto temporal, o a posteriori 119 Aspecto tépico . oe 120 Aspecto linguageiro, tradutive =o 121 Forga e aberturas da teoria . +. 122 Pontos frdgeis: restrigao ao psicopatolgico aire Tusdo apofiantica 123 O recalcado originario no € pressentido. 123 Desarticulagado da teoria +. 125 Progresso na factualidade: a sedugao precoce .. 128 Nao ha retorno a sedugdo infantil ..... 129 Reinterrogacdo do bindmio atividade-passividade 130 Os cartesianos Jungdo com Ferenczi .. ‘Um sentido dele mesmo ignorado + 134 Significantes enigmaticos .. weseeees 134 © enigma, mével da sedugio origindria ....... 135 Relagdes entre os trés niveis da sedugdo ....... 136 Teoria da seduc&o generalizada ... 138 No centro: 0 ponto de vista tradutivo . 139 Modalidades da metabole 139 A t6pica do ego: deve ser reavaliada em relago aos tempos do recalcamento O superego: um imperativo nao metabolizavel A teoria das pulsdes Para a pulsio: quatro requisitos da experiéncia Os elementos da pulséo na perspectiva do objeto-fonte. 151 Esclarecimento sobre o apoio. Sua verdade: a seducio 152 141 . 145 148 150 Pulsdes de vida. Pulsio de morte ~ 154 Sua relacdo com 0 objeto 155 Sua relagdo com os dois tipos de processos 156 A questéo do objeto-fonte 156 ‘A ponderacdo: ligacdio-desligamento . 157 4/ Pos-escrito: a natureza do inconsciente weve 158 Da fenomenologia ao realismo ee 3. A tarefa pré . 161 A crise de 1897: modelo da intricagdo teorético- pratica . 161 Desamarracao entre a teoria e a pratica I/A situagio ..... sees 164 “setting’”: nem um formalismo, nem um dispositivo técnico 5 oo 164 Instauracao viet 165 ‘A tina: um lugar pulsional puro +. 165 Um lugar de sedugao originaria A continéncia ... 2/ A transferéncia : A prdpria situacéo & transferéncia .... Transferéncia em pleno, transferéncia em oco 3/ O proceso Niveis da teorizagao Andlise infinita e transferéncia de tansferéncia - 166 168 168 169 “410 i71 172 13 INTRODUCAO Novos fundamentos para a psicandlise? Qual a neces- sidade de voltar aos fundamentos ¢ o que justifica qualificé- los de ‘novos’? A necessidade, para mim, é clara: desde 1969, na Universidade de Paris VII, este ensino prossegue ¢ depois é reunido na série Problemdticas, cujos subtitulos siio esclarecedores. Trata-se de questionar, de argiiir, de pro- blematizar a partir de um tema de aparéncia classica na psi- candlise freudiana. Problematizar € abalar, por & prova, até os fundamentos, toda a experiéncia analitica. Certamente € uma problematica que privilegia a experiéncia freudiana ¢ est centrada nos conceitos freudianos. A partir desses questionamentos radicais, violentos, & necessariamente uma nova temética, novas ordenagées, no- vos coneeitos ou uma nova disposigao dos conceitos que se desenha. Minhas posi¢des sobre a pulsao, sobre o narcisis- mo ou sobre a linguagem, sobre varios outros temas, s40 precisas, mesmo se recebidas de forma dispersa. Chegou, para mim, 0 momento de mostrar sua articulagdo, Haveré que pagar o preco de um certo esquematismo? Creio que serd inevitvel e, desde o principio dessa exposigao infeliz. mente sinto esse peso, ou seja, a necessidade de cobrir esse 2 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE tema ea vontade deir até o fim. Por isso uma certa corrida contra o reldgio e um tipo de procedimento que serd um pouco menos errante ¢ um pouco menos “‘em espiral’” do que em outros momentos. Fundamentos: é, a partir de uma critica incessante dos conceitos ditos fundamentais, uma retomada dos gestos dos movimentos que fundam; que fundam o qué? Que fun- dam a psicandlise, que fundam wma psicandlise, no senti- do do que chamamos o tratamen- to; e, finalmente, que fundam o ser humano. Pois, eu insisto, o que é fundador para a psicandlise s6 pode sé-lo se estiver em res- sonancia, estiver a posteriori, com o que ¢ fundador para © ser humano. Portanto, fundamentos, mas também: ‘novos funda- mentos""? Desconfianea, perigo, quando aparece o termo “novo”! Aludirei a uma cronica recente que pretende (mais uma vez!) proclamar o declinio da psicandlise e da sua pro- dueao intelectual, silenciando sobre alguns dos trabalhos mais ricos entre as publicagSes recentes. O amincio do de- clinio ¢ apenas o inverso da avidez insacidvel por algo de novo a qualquer preco. Surpreenda-nos a todo instante, faga-nos continuar gozando ¢ sempre mais, pede-se & psi- canéllise, No dia, jé antigo, em que a psicanilise, e particu- larmente a psicanilise francesa, cedeu aos efeitos ¢ fasci- nacdo da moda, cla enveredou pelo que podemos chamar de “‘satisfacdo da pulsdo pelas vias mais curtas” para reto- mar uma férmula freudiana, ou entdo, “processo prima- rio”, ou, “pulsio de morte’’. O gozo a qualquer custo © trabalho desenfreado da pulsio de morte. Desconfiemos, portanto, do termo “novo”, ¢ retome- ‘mos este addgio de Freud em O chiste: “toda descoberta tem apenas metade da novidade que parece ter & primeira vista’’. Ceticismo, diro. Mas, certamente, nao qualquer ceticismo, pois a psicandlise acrescenta suas razOes a esse adagio. A psicandlise nos mostra que a histéria procede no or progressao continua, nao por acumulacdo e nao rumo FUNDAR NOVAMENTE INTRODUCAO 3 aum happy end, no num desenvolvimento sem falhas, mas por recaleamento, repeticdo, retorno do recalcado. E, por outro lado, se nos referirmos a uma tradic&o mais antiga, filos6fica, penso tanto na tradicdo de Hegel quanto no le- gado de um Heidegger, veremos que trazer algo de novo no é necessariamenite inovar, ndo é necessariamente afastar- se dos fundamentos. Entre o termo “‘novo” eo termo “fun- damento” ha, portanto, um movimento: 0 fato de retor- nar aos fundamentos para renové-los. Voltar as fontes. Além do mais, insisto neste outro ponto: ligo “novi- dade” a ‘*fundamento” e nao & “psicandlise”; nao se tra- ta para mim de uma nova psicandlise. A psicandlise existe, € uma situacdo e uma pratica que se desenvolvem — que se desenvolvem também como pratica te6rica, voltarei a is- to —, endo € 0 caso de inovar a qualquer prego, mesmo que fosse para agradar alguns. Mas o que se trata de reco- locar em questi e de renovar, explicitando-o, é o que funda. Distinguir nitidamente fundamento e prética, no en- tanto, nao conseguiria nos situar numa oposicdo absoluta, pois é bem evidente que renovar os fundamentos nao pode deixar de repercutir sobre a pratica, assim como uma certa inclinagéo moderna da pratica nao pode deixar de ter in- fluéncia sobre nossa maneira de considerar os fundamen- tos. Aqui, ao insistir sobre a rela- FUNDAMENTO E 40 que, apesar de tudo, existe en- EPISTEMOLOGIA tre os fundamentos e a pratica, tal- FREUDIANA, vez va de encontro ao que Freud disse algumas vezes. Aludo parti- cularmente a um trecho de “Introdugo ao narcisismo”!, mas encontramos outros do mesmo género, onde os con- ceitos mais gerais da psicandlise so apresentados como su- perestruturas distantes da experiéncia e, eventualmente, in- tercambidveis. Ha, ai, a ostentacdo de um certo ceticismo em relacao a especulacdo, ceticismo que vem contradizer 1. La wie servele, Pars, PUF, pp. 8485, 4 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE Por completo a inspiracdo ¢ a exigéncia profunds de Freud quanto procura, precisamente, do fundamento. Existe um outro texto epistemoldgico mais nuancado, que eu gostaria de comentar rapidamente. E 0 inicio, mui- to conhecido, de “Pulsdes ¢ destinos das pulsdes”, onde Freud se interroga sobre a necessidade de recorrer a um con- ceito tao fundamental quanto o de pulséo. “Temos ouvido com freqtiéncia a formulacio da se- guinte exigéncia: uma ciéncia deve ser construida com base em conceitos fundamentais claros e nitidamente definidos. Na verdade, nenhuma ciéncia, nem mesmo a mais exata, comega com tais defini¢&es [veremos que todo este texto des- creverd um procedimento epistemolégico geral, sem nenhu- ma referéncia ao que pode ter de particular a procura dos fundamentos e a conceitualizacdo em psicandlise]. O ver- dadeiro comego de toda atividade cientifica consiste, antes, na descrig&io de fendmenos, que, em seguida, so agrupa- dos, ordenados ¢ inseridos em relacées [Freud retornard, € claro, ao termo de fendmeno: nao se trata de um empi mo cego]. Jd na descri¢do, é inevitavel aplicar ao material certas idéias abstratas extraidas daqui e dali e, certamente, nao apenas da experiéncia atual [a propria experiéncia, sim- plesmente para ser percebida e dita, para ser simplesmente descrita, necesita de um primeiro enquadramento concei- tual emprestado, “improvisado”}. Tais idéias — que se tor- nardo os conceitos fundamentais da ciéncia — sio ainda mais indispensdveis na elaboracdo posterior dos materiai Primeira, eles comportam necessariamente certo grau de in- determinac&o; seu contetido nao pode ser claramente deli- mitado [o retorno a uma definicdo clara é um tempo total mente secundério e, como veremos, uma etapa nunca aca- ada}. Enquanto estiverem nesse estado, chega-se a um acor- do sobre sua significacdo, multiplicando as referéncias ao material da experiéncia de que parecem derivar, mas que, na verdade, esté submetido a elas. Portanto, tém, rigoro- samente falando, o cardter de convencdes, embora tudo de- penda do fato de que no sejam escolhidas arbitrariamen- INTRODUCAO 5 te, mas determinadas por suas importantes relagdes com os materiais erapiricos; acreditamos ter adivinhado essas rela- ‘es antes mesiuo de poder conhec®-tas e demonstré-las [por- tanto, € dado lugar & intuicdo e ao que aprenderemos mais adiante ser especulaeao]. Somente apés um exame aprofun- dado do campo de fendmenos considerado é que também podemos apreender mais precisamente os conceitos cient ficos fundamentais que ele requer e modificd-los progress vamente... E quando pode ser a hora de confind-los em de- finiges. Mas o progresso do conhecimento tampouco to- lera rigidez nas definigdes. Como 0 exemplo da fisica ensi- na de maneira brilhante, mesmo os ‘conceitos fundamen- tais’ que foram fixados em definigdes véem seu contetido constantemente modificado.”? Constatemos que é com a fisica que termina esse pard- arafo, que descreve, portanto, um vaivém enriquecedor entre experiéncia e conceitos. Os conceitos fundamentais nao es to presentes desde 0 comego; desde o estdgio da descricéo, porém, hé contextos ideais vagos, como roupas que nao de- vem apertar, isto ¢, ndo devem ser restritivas, ao mesmo tempo convencionais ¢ nao arbitrérias, emprestadas daqui ou dali. Evidentemente, um dos conceitos que teremos de examinar serd este empréstimo dos conceitos da psicandli- se tomados de dominios conexos, esta espécie de colagem. E somente mum tempo posterior que se opera um estrei mento em direcdo aos conceitos fundamentais, uma tenta~ tiva de delimité-los ¢ defini-los; mas essas definicdes esta- ro sempre sujeitas a revisao. Muito bem, belissimo texto, mas que, insisto, no é em absoluto especifico de procedimento da psicandlise, ou, para ser mais preciso, que a inclui numa epistemologia geral, no mesmo plano das cigncias da natureza. E por isso que nao posso resistir a invadir o pardgrafo seguinte, e vocés verdio 2. Métapsychologie, Pacis, Gallimard, pp. 11-12, Bate colchetes: comen- trios de J. L. 6 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE por qué. O pardgrafo seguinte in- A FISIOLOGIA, troduz 0 conceito de pulsdo e to- COMO FUNDAMENTO: ma um empréstimo da fisiologia, UM BICHO a fisiologia de Reiz, que, em geral, NA FRUTA 6 traduzido por “excitacao”, mas que seria melhor verter por “esti- mulo”, para distingui-lo de Erregung, a ‘‘excitacdo””. Por- tanto, 0 conceito de pulsdo seria compreendido com refe- réncia @ nogéo mais vasta de “‘estimulo”. Cito: “Hé um conceito fundamental, convencional deste género, por en- quanto ainda bastante confuso, de que ndo podemos pres- cindir em psicologia: é 0 de pulsdo. Tentemos dar-lhe um contetido abordando-o por diversos lados. Primeiro, pela fisiologia. Esta nos fornece o conceito do estimulo ¢ 0 es- quema [é aqui que comeco a me divertir, ouso dizer] do re- flexo, segundo 0 qual uma excitacdo aplicada ao tecido vi vo a partir de fora (a substancia nervosa) & descarregada para fora sob forma de acao.”"3 Eis que 0 conceito de pulsdo poderia ser esclarecido pela nogdo de estimulo ¢ pelo “esquema do arco reflexo”’. Um esquema que, tal como o apresenta Freud, eu sempre mos- trei estar absolutamente errado; um esquema tirado de uma falsa fisiologia, até mesmo de uma fisiologia infantil. A idéia de que uma excitacdo aplicada sobre o tecido vivo a partir de fora encontra-se idéntica na saida provém de um meca- nicismo elementar que ninguém defenderia. Sabemos que © que é descarregado sob forma de acdo muscular terminal nada tem a ver nem com a energia do estimulo, nem tam- pouco com a energia nervosa que percorre as vias do “arco reflexo””. A energia muscular, a energia da acdo, aquela que faz levantar a perna quando se bate com um martelo no ten- dao rotuliano, evidentemente nada tem em comum com a energia do martelo. Trata-se de uma seqtiéncia de desenca- deamentos sucessivos, € no do transporte seguide da eva- 3, [Bid., pp. 12-13. Entre colchetes: comentérios de J. L. INTRODUGAO 7 cuacdo da energia externa. Entre a extremidade receptora ea extremidade motora, nao ha nada que se pareca com uma tentativa de se desembaragar de uma excitacao incd- moda. Este “‘esquema’? nao se sustenta nem por um segun- do, nao apenas diante da fisiologia moderna, mas até mes- mo perante a da época de Freud. E certamente Freud sabia isto. Aiestd, portanto, essa nogdo de arco reflexo, descrita por um falso esquema no ambito de uma fisiologia aber ante, proposta como modelo para a psicandlise! E, sem dt vida, como um modelo extremamente fecundo, na prépria medida em que, por mais errado que seja, hd algo no apa- relho psiquico que se parece com isso, ou seja, que tudo © que entra deve ser rapidamente evacuado. Desta forma, esse suposto empréstimo tomado de uma ciéncia conexa re~ corre apenas a uma fisiologia fantdstica, ow, talvez, popu- lar, assim como a paralisia histérica recorre a uma anato- mia paracientifica para delimitar seu territ6i ‘Nao gostaria de terminar com esse passo de virtuosis- mo epistemolégico de Freud sem insistir na maneira como ele explode, como que de dentro, no momento em que pre- tende “‘aplicar”” seu procedimento ao conceito de pulsdo ¢ 10 “exemplo”” do arco reflexo. Como em varios outros textos, cujo desenvolvimento estaria aparentemente bem fundamentado na razao e na experiéncia se dissesse respei- to as ciéncias da natureza, ou até as outras “‘cigncias hu- manas’”, 0 bicho foi introduzido na fruta pelas tiltimas li- nhas, tao desconcertantes: 0 modelo emprestado da “‘bio- logia”’, da psicofisiologia, ¢ um falso modelo. Como que para significar uma dupla heterogeneidade; nao apenas a psicandlise nao é como as outras ciéncias, ja que nao pro- gtide como elas, mas talvez esteja numa relac&o com as ou- tras ciéncias que no é comparavel 4 que elas mantém en- tre si. 4. Ch mals adiante pp. 25-26 8 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE Portanto, este texto é um paréntese, porém muito im- portante, na medida em que introduz, numa aura sinistra, as relacdes da psicandlise com os dominios conexos: nao apenas a biologia, como a lingiiistica e também a histéria, a pré-histéria, e outros. Teremos a oportunidade de exa minar esse problema. E possivel a importagao, a apropria- gao de fundamentos conceituais externos 4 psicanilise? E, sobretudo, questo prévia: so esses conceitos realmente ex- ternos? Ou, ento, para formular uma outra questa no mes- mo circulo, que sentido pode ter o termo “‘apropriacdio de um conceito”’ quando se trata da psicandlise que faz da pré- bria apropriacdo, nao apenas um movimento conceitual, mas um movimento real; digamos, algo necessariamente fur. dado numa introjeedo (para empregar um termo simples)? Fundamentos para a psicandlise QUATRO LUGARES so, portanto, fundamentos para DA EXPERIENCIA, uma experiéncia que é a experién- ANALITICA, cia psicanalitica. A experiéncia psi- canalitica pode ser localizada? Ha um lugar privilegiado dessa experiéncia? Certamente, se hou- ver um lugar privilegiado diremos imediatamente que & 0 tratamento psicanalitico. Precisamos ainda definir com pre- cisao esse privilégio que talvez nada tenha a ver com aquele que se vincula, pretensamente, experiéncia imediata, um privilégio de empiria, pois, no fim das contas, talvez nao haja nada menos empirico do que o tratamento psicanaliti- co. Além disso, a experiéncia psicanalitica néo ¢ somente experiéncia do tratamento, e podemos agrupar os lugares € 08 objetos da experiéncia psicanalitica em quatro pontos: a clinica, a psicandilise exportada, a teoria e a histéria. A clinica. Pois bem, a lista acima, A CLINICA: que recoloca a clinica em paralelo (0 -TRATAMENTO com outros lugares, indica que es- ta nfio corresponde ao todo da ex- perigncia psicanalitica, mesmo se quisermos, como cevemos, dar-the o sentido estrito da clinica do tratamento. Com mais razio ainda, ela ndo ¢ o lugar da experiéncia psicanalitica INTRODUCAO 9 sea rebaixarmos, como € muitas vezes 0 caso, a tudo 0 que qualquer y (dir-se-ia em matematica), em qualquer circuns- t€ncia, pode recolher de qualquer sujeito. A inflagao do con- ceito de clinica acompanha seu carter vago e irrefletido, ¢, sobretudo, o valor de alibi que ele ganha hoje em dia, Alibi contra o pensamento e arma de guerra contra toda re- flexdo. Pretende-se que se trata de um empirismo salutar? Diria que, em relagdo 4 grande tradicdo empirista, a dos anglo-saxdes, o empirismo da ‘‘clinica”’ ¢ irreconhecivel ¢ os grandes empiristas certamente nao se reconheceriam ne- le. Sob o nome de retorno A clinica, o que se tenta impor €um terrorismo de conceitos implicitos, com muita freati cia retirados do senso comum ou banalizados por ele. Te- Tei a oportunidade de falar de um desses conceitos, um dos mais recentes, que se tornou uma espécie de tapa-buracos, em particular na psicologia psicanalitica anglo-saxa, ou se- ja, o conceito de interacdo, que passou a ser a formula mé- gica da antiteoria. Mas poderiamos citar muitos outros. Dir-se-d que o “‘pensamento clinico’’ é um pensamen- to pragmatico? Mas também isto seria injuriar a grande tra- dicdo do pragmatism como orientac&o epistemolégica, seria esquecer que 0 verdadeiro pragmatismo toma, sem diivida, como critério o éxito, mas o éxito do pensamento, e nao a obtenedo de um efeito material imediato, como gostariam, em mimero cada vez maior nos nossos circulos, aqueles que a propésito de cada conferéncia, em cada momento da dis- cussaio, tm apenas uma quest&o na boca: para que serve isto? Que receita vocé me propde? Uma receita a qualquer prego para obturar a angiistia de nossa ineficdcia terapéu- tica demasiado freqiiente! ‘‘Meu reino por um cavalo!” “Freud todo por uma receita!” Accritica de um pensamento vulgarmente empirista ou pragmatico ndo precisa mais ser feita, Freud:a esboca no trecho que eu citava ha pouco. Toda experiéncia sé pode ser acothida em contextos conceituais, pré-contextos, que véo se afinar e se cortigir numa dialética, num movimento 10 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE de vaivém, com a experiéncia. Contudo, podemos nos per- guntar, como eu indicava anteriormente, se a argumenta- cdo de Freud nao é uma espécie de remédio para tados os males. A epistemologia de Freud, neste trecho, estard a al- tura de seu objeto e da especificidade deste? Especificida- de do objeto humano, ficamos tentados a dizer. Pode ser. Mas ¢ entao...? Trata-se simplesmente de opor as ciéncias humanas as ciéncias naturais? Talvez nado féssemos muito Jonge se inclufssemos a epistemologia da psicandlise numa epistemologia geral das ciéncias humanas. Antes de avancar mais, acho que convém definir duas especificidades da clinica psicanalitica como objeto. Primei- ramente, a especificidade da nossa experiéncia do tratamen- to. Nossa experiéncia se produz num enquadre fundante, segundo uma regra ela mesma fundante, jé que se intitula assim: Grundregel, “‘tegra fundamental”’, ou seja, que es- ‘td no proprio fundamento do que vai acontecer no trata- mento. O que essa regra funda, o que ela funda de novo voltaremos a abordar, mas sublinhemos que esse cardter fun- dante do tratamento vai muito além do que se pode dizer das condigdes experimentais que enquadram necessariamente todo aparelho de experimentacdo numa ciéncia qualquer (‘‘humana’” ou nfo). Isso vai muito mais longe que o pre- ceito de que se leve em conta as condigdes da observagio. E algo que pretende fundar e recolocar em andamento um processo em ressonfincia com um processo fundante do ser humano. A outra caracteristica, que nao é totalmente indepen- dente da primeira, é que o objeto da psicandlise nao é 0 ob- Jeto humano em geral; nao se trata do homem que pode- mos delimitar através de varias ciéncias — a psicologia, a sociologia, a historia, a antropologia —, mas do objeto hu- mano, na medida em que formula, que da forma & sua pro- pria experiéncia. E evidente que lhe da forma essencialmente na linguagem do tratamento, porém, de maneira mais pro- funda, este é um movimento de sua vida inteira. Uma epis- temologia e uma teoria da psicandlise devem levar em con- inTRODUCAO itt ta, na propria base, o fato de que o sujeito humano é um ser teotizante, ¢ teorizante de si mesmo, quero dizer que ele teoriza a si mesmo, que ele se autoteoriza, ou entdo, se esse termo de teoria mete muito medo, que ele se auto- simboliza, A simbolizagao que lhe surge no tratamento, in- | terpretacdo ou auto-interpretagéo, movimento da interpre- tagdo entre o analista eo analisado, essa simbolizacdo ¢ re- | simbolizacdo com base em primeiras simbolizacdes, dessas | simbolizagées originarias em cujo rastro nos colocaremos \ necessariamente nesta procura dos fundamentos. ‘Um segundo lugar ¢ objeto da ex- ‘A PSICANALISE periéncia psicanalitica é a psicand- EXTRAMUROS lise que chamo de exportada ou ex- tramuros. Sabe-se que utilizo essa expresso para me demarcar da de “‘psicandlise aplicada””, que, com certeza, éa mais comum e mais eloqiiente, encon- trando sua origem ja nos tempos de Freud, mas que, por carregar consigo a nocdo de aplicacdo, é toralmente sujeita a criticas. ‘Aplicacdo” suporia que, a partir de um dont nio privilegiado, que, com efeito, é 0 tratamento, uma me- todologia ¢ uma teoria seriam abstrafdas, para, em segui- da, serem transferidas, sem mais — como numa engenharia — para um outro dominio, assim como a ciéncia aplicada de um engenheiro, para construir uma ponte, nada mais € do que uma engenhosa derivacdo a partir dos conceitos fun- damentais da fisica ou da mecfnica. Por isso, rejeitamos essa nogio de psicandlise aplicada que desdenha 0 que constata- mos quanto & sua fun¢do, quanto ao seu papel, a sua im- portancia, no movimento psicanalitico e, antes de mais na- da, em Freud; em Freud, onde verificamos nao apenas sua importancia quantitativa na obra, mas também sua fecun- didade. Quando se pensa que um caso como 0 de Schreber, ou como 6 de Leonardo, to centrais para 0 progresso do pensamento freudiano, sao psicandlise extratratamento, en tramuros. Quando refletimos sobre os estudos socioantro- polégicos, no Totem e tabu, no Moisés, nos estudos sobre aarte, nos estudos sobre a religido, escritos estes que cons- ie ! a 12 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE tituem uma proporcio considerdvel da obra freudiana. Em nenhum caso, esse pensamento extramuros é secundério em Freud; tira sempre seus resultados do contato com seu ob- jeto. Face a essa fecundidade, tive a ocasido de sublinhar, nao sem alguma ironia, o desapreco de que é abjeto por parte de muitos, nos nossos dias, um descrédito que s6 se compara ao entusiasmo com que cada um a ele se dedica, seja abertamente — ¢ este é por certo o melhor caso —, se- jade maneira sub-repticia ¢ até mesmo nas apreciages psi canallticas do “‘movimento” das escolas psicaialiticas, ou, entdo, na “psicandlise” dos “‘caros colegas””. A psicandlise se dirigindo para fora-do-tratamento, nao de maneira acesséria, como um ao-lado-de, mas fandamen- talmente, dirigindo-se adiante dos fendmenos culturais; pois, com efeito, a psicandlise exportada nao é exportacao para qualquer lugar, nem todo “‘extratratamento” é objeto de psicanilise extramuros e as condigdes de dominio e de mé- todo tem de ser definidas a cada vez. Nesse movimento de se-dirigir-para-fora da psicandlise, distingo dois aspectos, dois movimentos, ou um duplo aspecto de um mesmo mo- vimento: com certeza 0 aspecto interpretativo, teorético, in- clusive especulativo, mas também um aspecto real sobre 0 qual pouco se insistiu até agora. Por aspecto real entendo que a psicandlise, no apenas como pensamento e como dou- trina, nas obras de psicandlise dita extramuros, mas como modo de ser, invade o cultural. A psicanalise € um imenso movimento cultural e, neste sentido, é 0 conjunto da psica- nalise que se dirige para fora-dos-muros. Tentei, nas mi- nhas Problemdticas IIT dedicadas & sublimaco5, delimitar © que poderia ser uma teoria da sublimacdo mederna — para empregar tal termo — a partir desse movimento que dirige a psicandlise para a cultura e que faz com que 0 ho- | mem psicanalitico ndo seja somente um homem segundo a psicandlise, estudado pela psicandlise, mas um homem que | doravante est marcado culturalmente pela psicanilise. 5. Paris, PUF, 1980, INTRODUCAO 13 Terceiro lugar e objeto de experién- cia: a teoria. Enunciar que a teoria é lugar e objeto de experiéncia sig- A TEORIA COMO, EXPERIENCIA, nifica, é evidente, recusar teoria qualquer estatuto que estaria definitivamente a parte, seja como ferramenta (ferramenta conceitual, diz-se as vezes: ela deve servir para alguma coisa), seja, pelo contrario, como superestrutura mais ou menos imitil (¢ sabemos qué, & ve~ zes, era uma afetagao de Freud, nao se pode dizer de outra forma, pretender que os conceitos psicanaliticos eram, em suma, nosso hobby). Ao inverso, afirmar que o homem é autoteorizante significa dizer que toda verdadeira teoriza- cao ¢ uma experiéncia que, necessariamente, engaja o pes-| quisador. © modelo disto, sem diivida, é Freud. Penso nes- tes monumentos puramente tedricos que s4o 0 Projeto pa- ra uma psicologia cientifica de 1895, o capitulo VII da In- terpretacao dos sonhos, Para além do principio de prazer, ou entdo o tiltimo achado, este texto inédito que se intitula Visio de conjunto sobre as neuroses de transferéncia. Pois bem, como abordar esses monumentos tedricos seniio co- mo exercicio onde se vive a andlise? Ela nao é vivida af em relacdo a um objeto que Ihe seria extrinseco, mas se desen- volve por seu movimento préprio, Experincias que cabe ana- lisar, levar ainda mais longe do que Freud, levar aos wlti- mos redutos, com a possibilidade, assim, de vé-las se desar- ticularem, se decomporem e se recomporem. ‘Trata-se ai, nos diz Freud, de especulacdo. “O que se- gue € especulagao...”, diz ele em Para além do principio de racer © quase a mesma frase em Visio de conjunto sobre as neurases de transferéncia, Enuncia-se, como que se des- culpando e aproximando a especulaciio do livre jogo da ima- ginacdo, mas sabemos que essa especulacao logo adquire, para ele, mais peso do que todo raciocinio experimental. Pen samos, em particular, na famosa especulagao sobre a pul- sio de morte que, nascendo efetivamente de um suposto mo- vimento “para ver no que vai dar”, de uma espécie de “ex- periéncia de pensamento”, “‘ganha consisténcia” pouco a 14 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE pouco, como uma maionese, e ganha uma consisténcia mais forte que a maionese, como um verdadeiro cimento. Espe- culagao bioldgica em Para além do prineipio de prazer, es- peculacdo antropoldgico-histérica em Totem e tabu ou, ain- da, na Visdo de conjunto, a especulacao em Fread é uma real “experiéncia interior”, para retomar esse termo de um. outro autor. Nao é uma desvalorizacao mobilizé-ta, isto tornd-la mével, remobilizé-la, desfazer seus lacos artificiais para eventualmente reencontrar para ela outras valéncias, sem por isso rebaixé-la a algo puramente ilusério (sindni mo, para alguns, da fantasia), mas, por outro lado, sem reduzi-la a um jogo de argumentos puramente racionais. Meu quarto ponto, por fim, seré 0 seguinte: o que acabamos de esbo- car sobre a experiéncia tedrica se- ria ainda mais verdadeiro a propé- sito da histdria como lugar e objeto de experiéncia. Tam- bém af trata-se da histéria da psicandlise e, particularmen- te, da histéria de Freud e do pensamento freudiano. Ainda 'o esgotamos (algum dia o faremos?) o privilégio de este mecanismo ser néo apenas fecundo, ou genial se quiserem, mas de ser o lugar de uma experiéncia que revela até nas suas hesitacdes, nas suas defesas, nas suas tomadas de po- sigdo, nas suas tepeticdes, os proprios contornos de seu ob- jeto. Por histéria do pensamento de Freud certamente no entendo a historia historicizante — de forma nenhuma sou um historiador de Freud, outros so mil vezes mais compe- tentes do que eu. Sirvo-me da hist6ria que os outros escre- vem, mas ndo € essa a questo: parto de uma reflexfo so- brea historia do pensamento freudiano. Nao me refiro nem a historia oficial deste pensamento, nem a histéria revista. A histéria oficial ¢, primeiro, a histéria de Freud por ele mesmo. Mais de uma vez Freud esbogou, seja em obras se- paradas, seja em certas passagens, uma hist6ria de seu pro- prio pensamento, histéria que é sempre extremamente dis- cutivel, falsificada, o que, com mais motivos ainda, ¢ tam- bém o caso da historia oficial dos grandes hagiégrefos, mes- InrroDucaO 15 mo que competentes, como a de Jones. Mas, em contrapo- sig&o, tampouco entendo por histéria a historia revista que, em nossos dias, pode nos ser apresentada, aneddtica ou 10, segundo os poucos documentos que se consegue exumar ¢ que, algumas yezes, so seguramente importantes; essa his- téria mais veridica, que, pouco a pouco, quer substituir as falsificacbes ou as mediocridades da precedente. O que me interessa ¢ a histéria de um pensamento inteiramente mo- vido por seu objeto ou, se quiserem, inteiramente movido por sua pulsdo. Mais do que a anedota, mais do que peri- pécias (esses famosos abandonos, esses famosos retornos), também mais do que as continuidades, o que me interessa nessa historia de experiéncia é uma dialética complexa on- de encontramos, na evoluco da teoria, 0 eco e, as vezes, 0 decalque da evolucao do ser humano. Acho que nao se- ria abusivo enunciar uma espécie de lei de Haeckel de um novo tipo (voces sabem: a ontogenese reproduz a filogéne- se), aplicavel, pelo menos, ao pensamento psicanalitico e que formulatia que “a teorético-génese reproduz a ontoge- nese". Tive a oportunidade de mostré-lo de perto no caso da teoria freudiana das pulsdes, sobre a qual se é forcado a dizer que seu proprio desenvolvimento temporal repro- duz algo do movimento do ser humano pelo qual se engen- dram suas préprias pulsde Em outros momentos é 0 conflito, a discérdia, a defa- sagem entre 0 pensamento € seu objeio que podem ser re- conhecidos no que temos o direito de chamar de recalca- mento, defesas, repeticdes incoerciveis. Entre esses recal- camentos, entre essas defesas — que, com freqiléncia, ar- rastam consigo, como toda defesa, muito mais do que aquilo contra o que querem se defender, que arrastam, muitas ve- es, todo um plano da realidade e, aqui, todo um plano da realidade de pensamento —, ha essa espécie de cataclismo sobre o qual ainda retornaremos e que ainda nao perlabo- ramos suficientemente, esse famoso cataclismo do suposto abandono da teoria da sedugio. 16 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE Fundar a psicandlise e no crid-la, pois ela existe nes- ses quatro lugares de experiéncia: clinico, tedrico, extratra- tamento e histérico, lugares que reiino sob o termo de “eo- rético” para distingui-los em bloco de um “‘prdtico”’, no sentido de que mesmo o que se intitula clinico é, de fato, uma certa consideracdo (theorein) e uma certa rellexo so. bre o objeto, pois nao existe clinica puramente empirica, Quatro lugares de experiéncia, e 0 francés é pobre com es. sa palavra que abrange pelo menos trés termos em alemao (€ também em outras inguas): 0 “Experiment”, o experi- mentalismo que se apaga diante do objeto; o “Erlebnis””, a experiéncia vivida, como nds traduzimos, onde é mais 0 objeto que se apaga diante da vivencia; e, por fim, 0 que entendo aqui por experiéncia, 0 “Erfahrung™, ouseja, um movimento em contato com o objeto, em contato com o movimento do objeto. Fundar é, portanto, refundar, ¢ refundar é voltar a um gesto fundante e, necessariamente, é claro, ao fundador, isto é a Freud. Qual é este gesto fundante? E aquele em que ele instaura a situacao analitica nos anos 90-95, 0 que chamo de tina e que esquematizo, como poderao encontrar desenvolvido em ensinamentos ja antigos, no seu estranho fechamento (fechamento do circulo) e abertura (pois tan- gencia outro circulo, o dos interesses ¢ da adaptacao)6, Gesto inaugural o de Freud, mas que nao parece sus- peitar que s6 0 € porque renova outro gesto fundante, ou- tros gestos fundantes, que so o tracado, a delimit um dominio no seio do ser humano no pequeno ser huma- no. Fundar ¢ sempre fundar de novo. que dizer daquilo que se chama, daquilo que se cha- mou ja hd algum tempo, “tetorno a Freud’? Os estilos disso sdo imimeros desde 0 movimento de arrasto provocado por Jacques Lacan. Retorno a Freud? Isso é ser freudiano or- 6. Cr, Problemariques I / Langoisse, Pats, PUR, 1980, pp. 1785s, 6, sobee- tudo, Problémariques V/ Le baquet. Tanscendance di transfert, Pais, PU, 1987 INTRODUCAO 17 todoxo? E 0 que isto pode querer dizer? E, ao contratio, fazer Freud dizer o que se quer, 0 que, com éfeita, 0 caso de um certo lacanismo. E, também, recorrer a Freud, que- ro dizer, eventualmente de maneira apologética, lancar pas- sagens de Freud contra outras passagens. “Escoldstica freu- diana”, dizem. Na verdade, nao exageremos, a escoldstica freudiana nunca adquiriu as dimensOes que tinha a esco- ldstica aristotélica e, nem mesmo, mais perto de nds, a es colstica marxista. O termo que prefiro, depois desse re- torno a Freud e desse recurso a Freud, seria 0 retorno so- bre Freud, pois n&io podemos voltar a Freud sem fazé-lo sofrer (¢ € 0 que quer dizer este sobre”) um certo traba- Iho, trabalho sobre a obra e trabalho da obra, sobre o qual jd me expliquei, trabalho que suplicia a obra. CATARTICA Como se coloca a questao dos fundamentos, primeiro para Freud e, talvez, depois dele, em particular na aventura Jacaniana? Desde o principio, como um recurso a dominios cientificos mais ou menos vizinhos tentarei examinar qua- tio: 0 recurso ao bioldgico, o recurso a pré-histéria da es- pécie humana, o recurso ao mecanicismo ¢ 0 recurso & lin- agiiistica. Os trés primeiros esto incessantemente intrinca- dos, em Freud, ou seja, o biologismo, o pré-historismo ¢ © mecanicismo; 0 quarto esta ligado a tentativa de encon- trar uma outra “‘ciéncia piloto”, segundo a expressdo com que se conotou por um certo tempo, no meio estruturalista, a lingiifstica. I/ O biologico biol6gico ¢ onipresente em Freud. Falei disto em va- rias ocasies e, para certos desenvolvimentos, remeto As mi nhas Problemdticas I, em particular “A angiistia na t6pi- ca’"l. © bioldgico aparece de trés maneiras no freudis- 1. Paris, PUF, 1980, pp. 153-250, 20 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE mo: como origem, como modelo (com a polivaléncia que se pode atribuir a esse termo, volto a isto num instante) e, por fim, como esperanga, como perspectiva de futuro e, mui to precisamente, como perspectiva terapéutica. ‘A esperanga de um tratamento bio- logico, quimioterépico, des neuro- ses nunca abandonara Freud, co- mo algo que deveria, alum dia, por vias bem mais curtas, suplantar o tratamento psicote- répico. Isto no deixa de ter fundamento na teoria, em re- lag&o a uma idéia precisa que pode ser enunciada de dife- rentes maneiras: Primeiramente, a natureza quimica da libido, conside- rada por Freud como um produto de metabolismo suscet{- vel de descarga, de acumulacdo e, portanto, responsavel por intoxicacio. A libido, para Freud, seria uma substancia tni- ca nos dois sexos. Ligada a esta teoria da natureza quimica da libido, hd a velha teoria das neuroses atuais, neuroses consideradas como néo sendo de origem nem de significacdo psicolégi cas, mas determinadas por um desvio do metabolismo se- xual, um desregramento dos mecanismos que normalmen- te deveriam desembocar numa descarga regular da libido. Essa teoria das neuroses atuais, sempre presente, nunca abandonada, significa, por um lado, que Freud coloca uma categoria ao lado de outra, a categoria das neuroses atuais ao lado da categoria das psiconeuroses, tendo estas ultimas uma determinacdo e uma significacdo psiquicas, enquanto que nas neuroses atuais estaria em plena ago um mecanis ‘mo somiético e, portanto, presente, ‘‘atual”’, j4 que 0 cor- PO, por definic&o, como res extensa, estd sempre no pre- sente. Mas a neurose atual é, ao mesmo tempo, mais do que uma simples categoria limitada. Ela ¢ apresentada por Freud como intrinseea as psiconeuroses, no sentido de que nao exis- te psiconeurose, mesmo totalmente compreensive! por fa- tores psiquicos, que no comporte um momento — talvez 0 mais eficaz, do ponto de vista da producao dos sintomas — © BIOLScIco COMO ESPERANCA 5 CATARTICA 21 um momento de “atualidade”, um momento em que ela se atualiza no atual do corpo. Idéia por demais esquecida, mas periodicamente redescoberta e ainda ha pouco, a pro- posito da angiistia, visto que um congresso sobre esse te- ma, que os jornais cobriram de maneira bastante curiosa, opunha a posic&o de Freud como puramente psicogenéti- ca, a uma teoria, digamos “metabélica’””, da angtistia, es- quecendo que o proprio Freud é o inventor dessa teoria me- tabélica, intoxicante, da angtistia?. A angustia como me- do presente que repete um medo antigo, eis 0 aspecto mais simples (e, sem diivida, 0 mais simplista, inaceitavel sob esta forma) da teoria psicogenética?; a anguistia como transbor- damento e opressdo do ego por um excesso de libido: esta €a teoria “atual””, Sem insistir na sintese possivel entre es- ses dois pontos de vista, valeria a pena sublinhar que uma teoria psicanalitica da angistia ndo pode deixar de levar em conta esse ataque interno pela libido, que se desenvolve no nivel do corpo. Caberia igualmente lembrar, para uma teoria geral dos afetos, que esta, néo mais do que a teoria deste afeto por exceléncia que é a angiistia, no pode evitar de se situar na prépria cena do corpo. A modificagdo corpo- ral e sua vivéncia perceptiva séio essenciais para a vivéncia do afeto, de forma que nao hd nada de escandaloso, nem de antipsicanalitico, em lembrar que as drogas podem mo- dificar completamente essa vivéncia e em formular 0 pro- jeto de uma acdo seletiva e controlada sobre ela. Depois desta evocacdio bastante répida relativa & no- 40 do biolégico como “esperanca””, paso ao que, antes 2, Simpdsi internacional sobre os “Novos aspectos da ansedade” na Aca ‘emia de Medicina, 24-26 abril de 1985. Resumo no Le Monde de 24 de abril de 1985, p15. 3. Cr. sobre este ponto, Problimatiques I/L‘angotse, Pats, PUF, 1980, Dp. 148 5. 244 ss. 4. O que chamo de ataque do objeto-fonte, CF. paticulemente “Une mé- tapaychologie & preuve de Mangoisse”, em Paychomnalyse a Université, 1979, 44,16, pp. 709-722 22 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE de mais nada, gostaria de sublinhar ¢ discutir no freudis- mo: 0 biolégico como “protétipo”. Vorbild € um termo de consideravel freqiiéncia em Freud e sob o qual varias idéias vem se juntar, O Vorbild ¢ uma imagem, uma épura, um desenho prelimi- nar, ao mesmo tempo “modelo” abstrato ¢ uma primeira realiza¢do concreta, ou seja, um “*prot6tipo"*. Em varias ocasides Freud emprega essa no¢ao, particularmente a pro- pésito do que chama os protétipos normais dos estados pa- toldgicos. Assim, o luto seria 0 Vorbild normal da melan- colia; ou entio, 0 sono seria como que o modelo normal, ‘ou melhor, o modelo atual do estado fetal. Mas vemos, nesta iiltima colocagao freudiana, tirada do Complemento me- tapsicolégico & teoria do sonko, que podemos nos pergun- tar quem € modelo de quem: um modelo € aquilo que nos permite conhecer 0 outro, ou € aquilo que, na cronologia, vem antes do outro? Se se declara que 0 sono é o modelo normal do narcisismo, é para sugerir que 0 sono éa manei- ra que temos de ter acesso ao narcisismo fetal; mas, por ou- tro lado, segundo Freud pelo menos, 0 narcisismo fetal se- ria o protétipo do sono. Em suma, qual é 0 modelo ¢ qual € 0 protétipo no sentido do que vem primeiro, segundo 0 termo alemao Vor-bild? Em que medida um modelo des- creve uma origem? E que origem descreve ele? Trata-se de uma origem no interior do modelo, ou uma origem exte- rior ao modelo? E j4 que me detenho um pouco nessa nogao de mode- Jo (termo, mais uma vez, que nao esta exatamente presente em Freud no sentido que Ihe é dado por uma epistemologia mais moderna; 0 termo mais proximo que encontraremos 60 de “ficcao”), lembrarei rapidamente que podemos dis- tinguir pelo menos dois tipos de modelos em Freud. Por © BIOLOGIco ‘COMO MODELO 5. CE Prablématiques V/Lebaquet. Transcendance du transfert, Pi 1987, pp. 31 ss. is, PUR, a CATARTICA 23 um lado, encontramos o que chamo modelos de memérias, modelos de livre circulacao que poderiam ser comparados 20 que s0, em nossos dias, os modelos informaticos. O mai famoso desses modelos é 0 do capftulo VII da Interpreta- do dos sonkos, mas temos também toda uma parte do Pro- jeto para uma psicologia cientifica. O famoso modelo do ‘capitulo VII estabelece, com efeito, uma sucessfio de me- mérias entre as quais se produzem reinscrigdes sucessivas. E hé um outro tipo de modelo, os modelos de nivel; esto muito mais préximos da biologia, pois fazem intervir a fic- gio de um organismo — e ndo mais apenas de um aparelho psiquico — que tende por todos os meios a manter um cer- to nivel, uma homeostase. Com muita freatiéncia, esses dois tipos de modelo se completam, se misturam, principalmente no Projeto para uma psicologia cientifica, onde partimos de um modelo de memérias, mas que, muito rapidamente, somos forgados — obrigados, nos diz Freud, pela ‘“urgén- cia da vida" (precisamente obrigados no nosso pensamen- to como 0 préprio organismo o é no seu ser) — a fazer in- tervir a nocdo de um nivel a ser salvaguardado. Confrontemos, por um instante, os trés termos, de ori- gem, modelo e fundamento, quan- do os relacionamos com o biolégi- co. A origem supée uma anterio- tidade. Partimos da evidéncia de que somos seres vivos antes de sermos seres humanos, se- res “‘culturais”. Evidéncia incontestavel: na historia da vi- da hd seres nao culturais antes de existirem aqueles marca- dos por uma cultura. E, provavelmente, tampouco se con- testard, na historia dos hominideos, que o estégio cultural veio se enxertar num estagio mais biolégico. Uma anterio- ridade similar pode ser postulada, nao sem razo, no indi- viduo, em cujo desenvolvimento pode-se pelo menos recons- truir, a partir da observacdo, a existéncia de uma camada adaptativa-desadaptativa (poder-se-ia dizer) dos comporta- ‘mentos neonatais, antes de serem marcados pela interagao social. E 0 que podemos dizer quanto ao termo “origem © BIOLEaICo NA ORIGEM, 24 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE biolégica’’, no sentido de que postular que o vivo existe an- tes, é anterior ao cultural, nao significa, a meu ver, formu- lar uma demanda ou uma concessdo cxcessiva. Vejamos agora a questo do “modelo bioldgico”’. A psicandlise da, de nosso devir humano, modelos ditos bio- logicos, recorrendo & nogao geral de um ser vivo confron- tado com um meio, Além disso, nao s40 somente modelos estdticos, mas modelos em movimento, modelos de génese que pretendem mostrar como esse ser vivo evolui de uma etapa simples a uma etapa mais complexa, por diferenciacao. Pois bem, como estes trés aspectos — anterioridade do ser vivo em nés, modelo do ser vivo para nosso psiquismo , por fim, modelo evolutivo, construtivo do ser vivo (mo- delo construtivo de um ser vivo, pois se trata de um ser vi vo em toda a sua abstracdo) — nao desembocariam, por coalescéncia, numa total confusdo entre o que diz respeito a origem, 0 que diz respeito ao modelo ¢ © que se refere ao fundamento? O bioldgico antes do humano, estamos di- postos a admitir. O bioldgico invadindo, como modelo, psiquismo humano é o que temos de descrever. Foi o que as vezes Freud tentou fazer, se voces quiserem me acompa- nhar, a propésito do “‘ego"”. Mas, em contrapartida, 0 bio- logico presidindo a génese do psi- quismo humano a partir de um fundamento vital, em outras pala- vras, o biolégico presidindo a re- lagio entre o psiquismo e a vida, estando a prépria emer- géncia do psiquismo humano regida pelo bioldgico, isto é mais duvidoso. Duas evidéncias: a precessio do biolégico ea presenca do modelo biolégico no psiquismo. Uma con- clustio duvidosa: que a prépria evolugao do psiquismo hu- mano seja regida por uma lei biolégica. No entanto, hé nessa idéia de que a evolugao do vital ao psiquismo humano se- ria, ela mesma, de ordem vital, ou seja, da ordem da adap- tagiio, uma concepeo corrente, admitida, nunca questio- nada e que se traduz, pot exemplo, numa teoria da estrutu- ragdo progressiva do ser humano, com emergéncia dos ni- MAS NAO. COMO FUNDAMENTO | CATARTICA 2s veis adaptativos cada vez mais clevados, ainda que através de rupturas, A expresso desse género de teoria, ha algumas deze- nas de anos — talvez hoje esteja um pouco fora de moda —, era 0 organodinamismo, cujo expoente era Henri Ey. Havia nela uma visio de conjunto da psicopatologia referindo-se a duas fontes consideradas compativeis: por um lado, Jackson e, por outro, Freud. As teses jacksonianas da integracdo sucessiva de diferentes niveis, da progressao do mais simples ao mais complexo e do mais automatico ao mais voluntario, conjugavam-se com a idéia de uma de- sintegracdo possivel, percorrendo as mesmas etapas em set tido inverso na dissolucdo psicopatolégica. O que o pri prio Henri Ey chamava seu neojacksonismo nao era outra coisa senéo uma tentativa de integrar nesse esquema, co- mo a primeira etapa desse percurso, 0 inconsciente, 0 di- namismo pulsional. Sem diivida que, em mais de um as- pecto, Freud se presta a tanto. Toda uma linha de pensa- mento, toda uma linha de textos caminha nesse sentido, e um dos que vai mais longe nessa tentativa de construgdo. do ser humano do mais simples ao mais complexo, como um ser vivo se adaptando & necessidade vital, provavelmente € aquele que se intitula Formulagdes sobre os dois princi- pios do curso dos acontecimentos psiquicos’. E raro que um texto como esse, que podemos trangiiilamente dizer de inspirac&o naturalista, no contenha o que denomino uma admoestacdo, como muitas vezes um sonho contém em al- gum cantinho um indicio, um ‘‘determinante’’, nos indi- cando, por exemplo, que todo o contetido do sonho deve estar marcado pelo selo da contradicao ou do absurdo: um “recomponhamo-nos”’. Encontraremos no tiltimo pardgrafo deste texto essa verdadeira adverténcia, Embora todo o ar- tigo esteja centrado na adaptacdo progressiva de um orga- nismo ao mundo e, portanto, a realidade, esse ultimo pa- 6, Résulats, ides, problomes 1, Pais, PUF, 1984, pp. 135-144, 26 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE régrafo nos lembra, justamente em contradi¢ao com 0 con- junto do texto, qué a moeda da realidade (é 0 termo em- pregado por Freud), a moeda da realidade fisica néio tem valor legal em psicandlise, j4 que esta se desenrola total- mente no campo do nao-adaptativo, do nao-vital”. A questo, para formulé-la de outra maneira, seria a seguinte: 0 biolégico no come¢o da vida, 0 organismo con- creto do pequeno humano, este que evidentemente admiti- mos levar em consideracao e 0 biolégico como modelo no psiquismo, esse “ser vivo"” no psiquismo que iremos encon- trar, sd a mesma coisa? Pois bem, nesse mesmo texto, Freud vai se fazer essa pergunta numa nota famosa, on- de faz a si mesmo uma objesao capital: 0 organismo que ele descreve, 0 qual, como vocés sabem, é pretensamente capaz de satisfazer de forma alucinatéria seus desejos, de viver em autarquia, essa ménada que estaria totalmente sub- metida ao “prinefpio de prazer”? e que negligenciaria a reali- dade do mundo externo, como poderia ela se manter viva, mesmo que s6 por um instante, e, até mesmo, simplesmen- te, como poderia ela ter aparecido? Mas, acrescenta Freud (com uma bela desenvoltura), “... a utilizacdo de uma fic~ Gio deste género se justifica quando notamos que o bebé, desde que se acrescentem os cuidados maternos, est mui- to préximo de realizar tal sistema ps{quico”’. Assim, o pré- prio Freud nao € insensfvel a diferenca existente entre uma espécie de modelo — extremamente simples ¢ abstrato, & preciso dizer — do ser vivo, e, por outro lado, o ser vivo que todos somos e, mais ainda, o ser vivo que 0 pequeno recém-nascido. Para reduzir essa consideravel diferenca, ele sé precisa incluir no modelo nada menos que 0 conjunto dos cuidados maternos... Mas ndo se subverte completa- 7. Masque nuneasejamos levados a ntroduatr 0 padrio da realldade nas Formagdes psiquicas rocaleadss." (bid, p. 142). Se o pricanalita € advertido para nio introduair esse “padrio de realidade™, como a “urgénea da vida” se- a eapaz de intoduzi-lo ao inconsciente humano? 8. Ibid... 2, pp. 136-137 CATARTICA a7 mente um modelo biolégico ao introduzir nele uma inter- venedo estranha da qual o menos que se pode dizer é que é bastante complexa e, de qualquer modo, irredutivel a um elemento suplementar num suposto equilibrio autérquico”? Geralmente, Freud nao tera a preocupacdo de respon- der de maneira mais explicita ao questionamento que se re- fere a este ser vivo concreto que é 0 pequeno ser humano no comeco. O que ele pe na origem nao é, com efeito, 0 pequeno ser humano tal como o © MODELO observamos, mas um modelo pri- BIOLOGIC mitivo, pode-se dizer, um modelo NO APARELHO de uma biologia elementar, um ‘ANIMICO protista, um ser vivo reduzido a sua expresso mais simples; é, como sa- bem, o famoso modelo de Para além do principio de pra- zer, onde esse protista é denominado “‘animélculo proto- plasmdtico””. Tive a oporiunidade de falar longamente disto!®, ¢ apenas gostaria aqui de retracar algumas grandes linhas. Esse modelo que podemos dizer biolégico, caracteriza-se pelo qué? Pelo fato de que é um aparelhio de nivel, se quisermos retomar a distincao proposta acima en- tre aparelhos de meméria e aparelhos de nivel. Um apare- Iho de nivel é, antes de mais nada, um aparelho energético, leva em consideracdo quantidades de energia e, sobretudo, diferencas entre quantidades de energia; levando em conta essas diferencas, 0 aparetho tem por funcdo e como tinica finalidade manter-se em existéncia, o que, para ele, nfo ¢ outra coisa sendo manter constante seu nfvel. E 0 que se chama de homeostase e principio de homeostase. No se deve crer que, na homeostase, 0 nivel energético desse ani- mileulo protoplasmatico seja mais elevado do que o do ex- terior; muito pelo contrario, 0 que o “organismo inicial” 9, Veremos mais adiante a fongio profundamente “anti-homeostatca” dos culdados maternos, na hipéeese da seduo. 10, Problématiques I/Langoise, Paris, PUR, 1980, p. 182 28 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE tenta manter constante (numa ficgo que é preciso aceitar) € um nivel menos elevado do que o que o cerca. O limite tem por objeto proteger um nivel interno de energia que & incomensuravel com as energias externas que Freud consi- dera extremamente violentas e capazes, a todo instante, de destrui-lo. Para tomar um modelo de outro tipo mas, no fim das contas, bastante préximo, um vaso, um copo, po- de ter por finalidade manter mais clevado o nivel energéti- co (0 nivel de agua) em relaeao ao que o rodeia; mas se 0 copo esti ligeiramente enfiado, vazio, na superficie da égua, sua fungdo passaré a ser de manter, no interior, um nivel menos elevado. Quem diz “nivel constante” diz necessariamente uma superficie, um limite, algo que proteja esse nivel. O que im- plica, no modelo freudiano, uma diferenciacao superficial destinada a manter a diferenca de nivel. Sabemos que € 0 que Freud chama Reizschutz, péra-excitacdo, camada pro- tetora. Essa camada protetora endurecida, essa cuticula com- pardvel, no ser vivo unicelular concreto, & membrana celu- Jar, tem, segundo Freud, uma dupla funcao normal: a pro- tego do nivel energético e a diminuicao, a redugio das ener- gias que afluem ao organismo. Enfim, esse invélucro tem (desta vez, nfio uma fun¢o, mas) um papel capital em tu- do 0 que é patoldgico, ja que é sua invasao pela energia ex- tema que, conforme 0s casos, se traduz por dor ou ento, ‘por trauma. Lembremos, por fim, para sermos completos, que a di- ferenciagao superficial do aparelho culmina, segurdo Freud, na formacao de duas camadas superficiais e néo de uma 86: camada protetora, mas também camada perceptiva, cha- mada camada “percepedo-consciéncia”, diretamente situada sob a camada protetora. Bis, portanto, 0 que denominamos um mo¢elo. Qual a relagdo que ele tem com a coisa: que modelo e que coisa? ‘Temos dificuldades, lendo Freud, de situar de maneira uni- voca 0 que ele quer representar, pois provavelmente visa varias coisas a0 mesmo tempo. Por um lado inicialmen- CATARTICA 29 te, € um modelo bioldgico do organismo, nao somente do organismo protozoario, mas inclusive de todo organismo, © que ¢ demonstrado pelo valor explivative que Ihe confere Freud, ja que permitiré dar conta de um fendmeno to ge- ral quanto o da dor, a dor fisica, considerada, sabe-se, co-jo". mo 0 resultado de uma invasdo limitada do invélucro pro- “ tetor. Mas, por um outro lado, insisto nisto, é um organis- mo tedrico, cuja rela¢ao com o organismo neonatal con- creto é mais do que hipotética, pois deveriamos incluir nele a mae para fazer coincidir, mais ou menos, modelo e rea- lidade! Num segundo nfvel (e anuncio que encontraremos pe- Jo menos trés), esse modelo ¢ 0 de um sistema especializa- do no ser vivo ¢ ndo mais no conjunto do organismo vivo; sistema que no é indiferente denominar, de acordo com © caso, sistema nervoso central, ou, entdo, do lado psica- nalitico, aparelho psiquico ou aparelho animico. As vezes, parece que sistema nervoso central e aparelho psiquico so nogdes quase equivalentes, mas, no entanta, sua funcdo ex- plicativa é bem diferente. Quando se trata do sistema ner- voso central, 0 que precisa ser explicado é o traumatismo fisico, enquanto que, quando se trata do aparelho psiqui- co, é ao trauma ps{quico que nos referimos. Ora, entre os dois tipos de traumas certamente ha analogias, mas tam- bém uma capital solucdo de continuidade: estamos diante de um ponto de ruptura essencial, no sentido de que trau- matismo fisico € trauma ps{quico, longe de se completarem ou de se prolongarem um a outro, se excluem. Muito con- cretamente, isto significa que, numa situacao traumatica, © fato de estar somaticamente ferido vem evitar, e nao re~ dobrar, o trauma psiquico. Notamos, hd pouco, que a marca da contradigao apa. recia, com freqiiéncia, num canto do texto freudiano. Aqui, em Para além do principio de prazer, ela vai ser encontra. da num “absurdo” que, é claro, no deve ser mencionado apenas para colocar Freud na posiedo de dizer coisas in- sensatas. Refiro-me a um desenvolvimento notério, em que 30 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE Freud tenta confirmar sua idéia de que o “sistema” se de- senvolve por diferenciaco periférica e que o sistema percepydu-onseiéncia, em particular, encontra-se imedia- tamente subjacente & camada protetora. Ora, Freud quer encontrar como prova para essa assercdo consideragdes neu roanatémicas, segundo as quais o proprio cértex, lugar da consciéncia, encontra-se na superficie do cérebro. O que, evidentemente, é uma consideracdo de uma anatomia na- croscépica quase pueril, supondo, com efeito, que as exci- tagdes chegariam ao cdrtex diretamente, como que de fora através da caixa craniana, Na verdade, sabemos, pela ana- tomia neuronal, que o eériex celebral, longe de ser 0 pri- meiro exposto as excitacdes do sistema nervoso, encontra- se bem no fim das vias aferentes!. O absurdo de estabele- cer uma comparacdo topoldgica entre caixa craniana e c6r- tex, por um lado, para-excitacto ¢ sistema percepcao- conscincia, por outro, é tio evidente, que ndo poderfamos recriminar Freud sem buscar nisso um sina! de outra coisa: o sinal dessa pseudobiologia que tento levantar, como se Ievanta a lebre, nos modelos freudianos. Por fim, 0 tiltimo nivel possivel desse modelo, depois do de um organismo e depois do do sistema nervoso cen- tral ou de um aparelho psiquico, é 0 de um ego. Um ego, pois ndo é indiferente notar que Para além do principio de prazer é 0 texto em que Freud reintroduz de maneira plena essa nocdo, retomando uma linha bastante antiga, a do Pro- Jeto para uma psicotogia cientifica de 1895, ¢ indo na mes. 11, Cito essa passagem que merece ser escutada: “Notemos aqui que, com, | essa hipdteses, nfo acrescentamos nada de novo, mas que vamos a0 enconteo | da teoria anatémica da localizagdes cerebrais que situa a ede” da conscizncia |, / na periferia cerebral, camada externa eenvolveate do érgi central. A anatomia | cerebral odo precisa se perguntar por que, anatomieamentefalano, a eonscién- | cis encontra-se prelsamente situada na superficie da cérebra, ac inves de habi- | tar, bem protesida, algum lugar no mais profundo deste, Quantoa nés, poder | mos talvez ir mals fonge, entando deduzr a situapao que atribumos ao sistema Pes-Cs.""(ssas de psychanalyse, Pars, Payot, 1981, nova ed, pp. 65-66) CATARTICA 31 ma diregao: fazendo do ego, certamente nao a totalidade da pessoa psfquica, mas um éredio desta. Porém — segun- do caracteristica —, ndo qualquer érgao, e sim, precisamen- te, um organismo, uma organizacao, cujo funcionamento total é regido pelo principio de nivel definido anteriormen- te. Como o nosso animalculo de hd pouco, o préprio ego estd mergulhado num mundo de energias traumatizantes, as pulsdes. Mas, a partir de entdo, se considerarmos este ultimo nivel, 0 do ego, percebemos que o “vital”, 0 “biolégico””, no tem mais um papel de fundamento, um fundamento em existéncia, mas de modelo e, além do mais, de modelo real, como 0 que é representado ou o que se faz represen-\ tar no psiquismo. O vital no ser hu- ' mano é um pressuposto, isso é in- contestavel. Mas, e af esta a distan- cia, deve-se dizer, por isso, que ele €o primeiro recaleado ou que € 0 que ha de mais profundo no psiquismo? Esta é uma hipé- tese, porém, que vai percorrer toda a obra de Freud e, so- bretudo, toda uma certa vulgata freudiana: o vital seria o recalcado, sendo o cultural, por sua vez, a superestrutura € 0 recalcante. Encontramos essa tese nas duas “tépicas”; na primeira tépica, com uma expresso como esta: tudo 0 que se tornou consciente teve, primeiro, de ser inconscien- te. O inconsciente seria, entdo, apenas a parte, mantida por segregaco, de um dominio inconsciente primordial. E co- nhecida a famosa imagem do parque natural (0 primeiro parque natural dos Estados Unidos, o de Yellowstone): 0 inconsciente seria semelhante a uma reserva natural que se encontra cercada ¢ mantida, por isso, em seu estado origi- nal. Quanto a expressdo, na segunda t6pica, dessa suposta prioridade do vital, sua mais bela ilustracdo seria o titulo francés escolhido, em determinado momento, para a obra de Groddeck, No fundo do homem, isso. O id (¢a), 0 isso, é certamente um lugar do estranho, do estrangeiro: 0 pré- prio termo significa que ele esta ‘em coisas”, ‘em terceira © VITAL NAO E: “NO FUNDO DO HOMEM, Isso” 32 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE pessoa”, neutro. O id, lugar das mais obscuras pulsdes e, par- ticularmente, da pulstio de morte: quer isso dizer que ele é, necessariamente, o que ha em nds de mais bioldgico? Esta éuma inferéncia absolutamente contestavel. E 0 id um pri- mordial origindrio ou, forna-se o id, pelo préprio proceso de constituicao do aparelho psiquico e, em particular, pelos Tecaleamentos, esse estrangeiro que passa a ser em nds? E € 0 gesto que separa primeiro, ou no, em relagio ao que é separado? Nao é ele que instaura 0 que ele separa? 2/ O filogenético Gostaria agora de examinar uma segunda forma do ori- gindrio em Freud. Refiro-me ao recurso, como fundamento tiltimo, ao que se pode chamar filogénese, pré-histéria ou his- toria arcaica da humanidade. ‘Também aqui a pulsao vai estar no centro do debate, Lembremos, inicialmente, como a terminologia de Freud so- breesse ponto serd clara. Apesar de todas as variantes de tra- ducdo, encontramos nele dois termos perfeitamente distin- tos eque designam duas coisas completamente diferentes: por um lado, o Trieb, que traduzimos, corretamente, por “pul- Sao" ¢, por outro, o “instinto”’, o Instinkt. Alids, zeralmen- tea expressdo “instinto dos animais”” que aparece sob sua ena, num sentido preciso que é o deum comprimento jées- tabelecido, fixado e pré-adaptado a uma finalidade, exata- mente 0 que os etologistas descreveram, durante um longo periodo de seus trabalhos, como montagem instintiva, Contudo, entre instintoepulsio, ha OINSTINTO uma certa dialética!2. Todo o mo- PERDIDO vimento dos Trésensaios para uma teoria sexual pode se resumir assim: ialética que necessariamentenegligenciam aqueles que querem apagar — em tradugio — & distinezo entre os dots termos. CATARTICA 33 © instinto perdido e o instinto reencontrado. Trata-se de mostrar que, no homem, o instinto est perdido, em parti- cular, o instinto sexual, ¢, mais precisamente, 0 instinto que a reproduedo. A pulsio, no homem, pelo menos é esta a tese dos Trés ensaios nas suas duas primeiras partes, nao tem nem objeto fixo e determinado, nem mesmo finalida- de, ou seja, um desenvolvimento estereotipado e tinico. Atra vvés da descrigtio das aberracdes sexuais, das perversdes, quer quanto ao objeto, quer quanto ao fim, ha uma verdadeira apologia da plasticidade, da mobilidade, da intercambiali dade das pulsdes umas em relac&o as outras, dos compor- tamentos uns em relacdo aos outros. O que é salientado é a Vertretungsfdhigkeit, isto €, a capacidade de se substitul- rem entre si, a capacidade que uma pulsdo tem de vir no lugar de outra, eventualmente uma pulsdo perversa no lu- gar de uma ndo-perversa, ¢ vice-versa. Por outro lado, nos Trés ensaios, ‘‘o instinto reencontrado” é, através dos re- modelamentos da puberdade (die Umgestaltungen der Pu- bertiit), 0 que também poderiamos chamar de instinto imi- tado, instinto substituido, através de uma evolugdo com- plexa, por algo que, apesar de tudo, vai se parecer com 0 instintivo. Pensemos como € pouco simples o desejo de ter ‘uma crianga, tal como Freud descreve sua génese no ser hu- mano, na mulher, apesar de sua aparéncia natural. Atra vés de que dédalos a mulher chegard a desejar aquilo para que todo ser vivo fende instintivamente? Esse instinto reencontrado seria, pois, apenas 0 resul- tado de uma evolucdo complexa, aleatéria, feita de revira- voltas ¢ de identificacdes muitas vezes estranhas; pensemos, em particular, no fenémeno de identificagdo que, em Freud, é essencialmente uma identificagZo ao objeto de amor, tanto que a assuneo do sexo supée, no inicio, um amor homos- sexual mais forte, um amor homosexual pelo pai do mes- mo Sexo ao qual é preciso conseguir se identificar!5. 1B. CE. Problémariques 1/L'angoisse,Patis, PUP, 1980, pp. 341 ss. 34 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE No entanto, embora se possa mostrar que a evolucao sexual do individuo é sempre complexa, nao — ou mal — preestabelecida, a paixao pelo preestabelecido, pela herc- ditariedade no homem, nao deixard de perseguir Freud. O exemplo mais extremo desse retor- CONTRA AS no da hereditariedade &, sem diiv FANTASIAS da, o das “fantasias origindrias”” ‘ORIGINARIAS Se existe no homem, declara Freud, INATAS algo de semelhante ao instinto dos animais, é preciso procurélo pelo Jado das fantasias inatas. Essas fantasias origindrias foram exumadas, por Pontalis e por mim mesmo, num pequeno texto que acaba de ser republicado' e que devolve o devi- do lugar a essa verdadeira paixdio pelo filogenético em Freud. Aproveito a ocasido para indicar, neste volume, minhas dis- tancias em relagdo a essa nogo: nao é Porque se restitui um pensamento que se adere totalmente ao que ele veicula. ___ As fantasias originarias em Freud sao, Portanto, espé- cies de categorias @ priori, nao apenas conceitos, mas ver- dadeiros roteiros, dos quais se conhece ‘pelo menos quatro: Toteiro de sedugao, roteiro de castracdo, roteiro da cena pri- maria ¢, por fim, eventualmente, roteiro do retorno ao seio ‘materno, Freud considera essas categorias, como toda ca- tegoria no sentido kantiano do termo, mais fortes do que a vivéncia individual, j4 que, quando esta nao esti de. ace do com os roteiros, aparecem atipias, haveria uma espécie de admoestacdo por parte da fantasia ori iginaria que viria enquadrar, completar, inflectir, até mesmo corrigir as sin- gularidades pessoais. Essa tese das fantasias originarias acompanha a de um desenvolvimento quase endégeno do Edipo, de seu au- 1, Fantasme originire, fantasme des origines,origines du fantasme, Pac 1s, Hachette, 1985; edigao cevista de uma primeira publicagio em Les femps tos eres, 1964, 215, pp. 1.133-1.168, CATARTICA 35 ge ¢ de sua queda ou desaparecimento. Enfim, essa tese se completa nos imensos afrescos pré-histéricos que colocam em cena o homem das origens, 0 Urmensci, ou a horda pri- mitiva, Urhorde. Com Totem e ta- ESPECULAGOES bu, é todo o desenrolar da viven: PREAHISTORICAS cia individual que se encontra EM FREUD preestabelecido neste amplo pano- rama pré-histérico que supde que, primeiro, haja uma horda dominada por um pai poderoso ‘que castra os filhos, que os torna impotentes, que os man- tém totalmente sob sua dominagdo e que formula as duas leis iniciais do interdito: a do assassinato (do pai) e a do incesto (com a mae). Sabe-se que, finalmente, o pai origi- nario serd destronado pelos filhos, desembocando numa so- ciedade de um tipo bem diferente, a sociedade dita frater- na onde o vinculo homossexual entre os irmaos predomi- na. Ea grande saga de Totem e tabu, que agora € comple- tada por um texto encontrado muito recentemente e que se intitula Visdo de conjunto das neuroses de transferéncia (Ue- bersicht der Uebertragungsneurosen)'s, Esse texto, que € mais um projeto do que propriamente um texto, em estilo quase telegréfico, data de 1915 ¢ foi enviado por Freud a Ferenczi. Um destinatario que, sem dtivida, nao deixa de influenciar 0 contetido, pois sabemos que toda uma vertente do pensamento de Ferenczi o leva a essas especulacdes meta- histéricas e, inclusive, metacosmoldgicas. O que af é apre- sentado vem completar, em parte, Totem e tabu, prineipal- mente pela hipétese de um estagio pré-horda (se € que se pode dizer) antes do reinado do pai, que Freud compara ingenuamente ao paraiso terrestre, um estdgio em que a pe- miria no existe, ao contrario do estégio seguinte, onde & a necessidade o fator que desemboca na formagao da hor- da sob a dominacio, mas também sob a protesao de um 15, Fronkfurt am Main, S. Fischer Verlag, 1985; trad, francesa, Paris, Gl- limard, 1986, 36 ‘NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE pai onipotente, um senhor. Tudo isso, nos diferentes tex- tos ¢, particularmente, em Visdo de conjunto, com certeza € tomado como pura fantasia; em ontros lugares, como es- Peculac6es, um texto sobre o qual jé tive a oportunidade de insistir!®. Bis, neste texto, 0 comego do desenvolvimen- to sobre a filogénese: “Espero que 0 leitor, que também percebeu, pelo aborrecimento derivado de numerosas secdes, © quanto tudo estd construido sobre uma observaciio cui. dadosa ¢ parcimoniosa, seja indulgente se, por uma vez, a critica cede passo diante da fantasia e se coisas incertas sio Propostas, simplesmente porque sfo incitantes e permitem uma visio do longinquo.""!7 Em suma, uma oscilacdo, ela mesma estimulante, entre 0 tédio da teoria e da clinica fun- dada numa observacao laboriosa e essa espécie de recrea- G40 que, de repente, a fantasia proporciona, uma fantasia considerada, contudo, fecunda, incitante e que, muitas ve- zes, torna-se progressivamente crenea e adesao. Essa segunda parte do texto provém de uma reflexdo sobre a predisposicao para as neuroses e sobre 2 concor- dancia de trés séries que Freud tenta colocar em evidéncia; esquematizo-as a seguir: dceba/abed ABCD A série da direita, em mintisculas, reflete o aparecimen- to das diferentes neuroses na histria do individuo. As di- ferentes neuroses aparecem, comumente, numa idade mais ou menos privilegiada, de forma que se pode colocar numa certa ordem a histeria de angiistia, a neurose obsessiva, a histeria de conversdo, a deméncia precoce, etc. A esquer- da, esta representada a série dos acontecimentos predispo- 16. Cr. acima, pp. 1314, 17 Frankfurt am Maia, S, Fis Paris, Gallimard, 1986. Aqui, nossa tradusio, 985, p. 28 (8) a6, Francesa, CATARTICA a7 nentes, ainda na histéria individual. Constata-se que ela é invertida, em espelho, em relagao & precedente, de man: ra que quanto mais tarde a psiconcurose se desenvolve mais © acontecimento causador é antigo. A deméncia precoce, por exemplo, desenvolve-se, a prinefpio, depois da adoles- c@ncia, enquanto que seus acontecimentos fundantes esto muito recuados no tempo. Enfim, o que aqui nos interessa mais e que € muito inovador (mesmo que discutivel) neste texto, €a série mareada por letras maiisculas, que, supos- tamente, é uma série filogenética: a série das psiconeuroses da humanidade inteira. Notar-se-4 que essa predisposicao segue a mesma ordem (e ndo a inversa) que a de apareci- mento no individuo. Vemos aié onde é capaz de ir 0 que se pode chamar a verdadeira paixio de Freud pela filogé- ese: aqui, no so apenas os roteiros prototipicos da nor- malidade que se encontram pré-inscritos, mas os esquemas transindividuais, meta-histdricos, de toda a psicopatologia. Além disso, estio ordenados numa cronologia histérica que reproduzir, numa populacilo contemporfinea, a diversidade das idades de aparecimento das psiconeuroses. Como situar 0 que acabo de desig- nar como uma paixdo de Freud, em relagdo as teorias da evolucao? Faré-la entrar numa grande catego- ria parece abusivo. O darwinismo, como se sabe, é aclama- do por Freud como um momento capital do pensamento humano, como uma das trés grandes revolucdes que des- ‘tronaram o homem de seu antropocentrismo, entre a revo. lugdo copernicana', que destrona a Terra de seu lugar cen- tral, ¢ a revolugo freudiana, que destrona a prdpria alma humana de sua centralidade, j4 que se encontra excentrada em relagao ao seu préprio inconsciente. Assim, 0 darwinis- mo € proclamado por Freud como a grande doutrina da evo- NEM DARWIN, NEM LAMARCK 8, Que deveriamos, na verdade, chamar de “aristarqulana”, pare resi thir sua paternidade 2 Aristarca de Sarnos 38 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE lugdo, e seria um pouco precipitado detectar neste tipo de imaginacdo filogenética um lamarckismo mais ou menos la- tente, Para dizer as coisas numa s6 palavra, com Darwin temos variagdes aleatérias, mutacdes que so mantidas pe- la eliminagao do mais fraco na historia das espécies. Com Lamarck € 0 confronto ¢ a adaptac&o ao meio que sao su- postamente primordiais, criadores de modificagées adap- tativas, finalizados e depois transmitidos hereditariamen- te, Sabe-se também que, atualmente, o lamarckismo estd abandonado por quase todos, em proveito do que se pode chamar um neodarwinismo bastante generalizado". Pois bem, na verdade, em Freud, nao se trata nem de um, nem de outro. E indiscutfvel que Freud admite uma hereditarie- dade do que & “adquirido”’ no decorrer de longos perio- dos, na existéncia — as existéncias — do homem hist6rico ou pré-histérico. Esta hipétese é suficientemente levada a sério, ao pé da letra e nao num sentido “mitico”, para que cheguemos a levantar uma questo do seguinte tipo: here- ditariedade, portanto, de algo adquirido? Mas bem diferente das aquisigdes do homem “lamarckiano”, tanto que 0 pré- prio termo “adquirido" ¢ enganador. Por um lado, 0 que € transmitido nao € especialmente adaptativo, mesmo se 0 foi numa certa época: pode tratar-se de neurose... Por ou- tro lado, e sobretudo, esse heranea filogenética niio consis- te em caracteristicas ou aperfeicoamentos de aparelhos, mas em roteiros presentes numa espécie de memdria. Como eu insistia, hd pouco, as fantasias origindrias podem vir com- pletar a meméria individual, elas situam-se num plano de meméria € ndo de funeao. © modelo da histéria humana continua sendo, para Freud, a historia individual. Suas aqui- sigdes ficam armazenadas como lembrangas, ou, pelo me- nos, esquemas de lembrangas 19. No eniraremos absolutamente em detalhes no que conceme &s ale rengas fundamentais entre darwinismo e neadarwinismo. O que importa é que ambos negam a possibilade de uma transmissao herditria (pelo gerne) do que € adquirido na existénci individual ou coletiva (no some) CATARTICA 39 Minha posigao pessoal — ja que NAO HA LEMBRANCA —_ sou levado a explicité-la, principal- EREDITARIA, mente em relacdo a esse optisculo DAS CENAS de Laplanche e Pontalis sobre as “‘fantasias originarias”” — é que, a partir do momento em que a mio treme no tracado do ori- gindrio infantil ena delimitacdo da meméria infantil, a partir desse momento, introduz-se o recurso a uma heranca genéti- ca das cenas. Entendamo-nos bem: ndo se trata, num debate uum pouco ultrapassado entre o adquirido ¢ o hereditario, de riscar com um traco de caneta tudo o que pode ser da ordem da predisposieo, Freud insiste, com razio, no que vem com onascimento, no que é congénito, até constitucional, através de termos como o Anlage, o que se encontra ali, depositado, a Veranlagung. Nao se trata de um debate entre o totalmente inato ¢ 0 totalmente adquirido, mas de situar o que pode ser inato: pode ser uma aquisicdo da espécie e, de maneira dife- rente, pode ser a predisposicdo de uma linhagem genética par- ticular, desembocando num individuo determinado, As aqui- sig6es da espécie humana, as montagens no nascimento s40 mais importantes do que se supde. Por outro lado, o consti- tucional, particular de determinada linhagem genética e, por- tanto, de determinado individuo que dela provém, é concebi- vel em multiplos dominios: pensemos nas aptidées adaptati- vas, sensoriomotoras, nas predominancias sensoriais, na do- minancia deste ou daquele sens6rio, a0 qual podemos vincu. lar, por exemplo, determinado tipo de predisposiedo artisti- ca; pensemos também na maior receptividade de determina da zona corporal aos estimulos, ponto de atracao natural pa- ra quea pulsio, que a ela vai se ligar, seja reforcada. Enfim, pode-se certamente falar, de maneira geral, de uma maior ou menor sensibilidade congénita ao trauma. Em contrapartida, aidéia de roteiros mnemdnicos biologicamente inscritos ndo tem como nao ser objeto de um ceticismo radical e, com cer- teza, nao seria admitida pelos geneticistas, exceto por meio deuma confusdo entre meméria (sempre ligada a representa- Ges) e esqquemas de comporiamento. 40 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE Nao se trata, portanto, de negar que, com as fantasias originarias, Freud tenha descobertn alga de prototipico, algo que, de fato, ex- cede a vivéncia individual, infor- mando e, inclusive, modificando as vivéncias particulares. Todavia, nao estd resolvida, com So, a questo da natureza desse “‘prototipico”, ou, sendo mais exato, haveria inclusive uma dupla questo a resolver: seu modo de transmissi ¢ sua situacdo t6pica. Talvez.fosse mais facil abordar seu modo de transmissdo se refletissemos pri- meiro, de maneira critica, sobre o que é sua verdadeira s taco tépica. Como situar no sistema psiquico humano esses roteiros prototipicos? Mais perto do qué? Do id, do ego, ou do superego? Tomando 0 exemplo da fantasia de castracao, talvez a mais fundamental dessas fantasias origindrias, co- ‘mo nao se surpreender ao notar que o que Freud reintitula “fantasia origindria’* € 0 que ele jd descobriu como “teoria sexual infantil’’? E que pode significar esta ultima nocao, ando ser algo que nao surge diretamente no nivel do pulsio- nal, mas que, pelo contrério, est encarregado de controlar, represar, 0 que, com certeza, o pulsional tem de andrquico, mas também de questionador, em todos os sentidos do ter- mo? A castracdo, quer a intitulemos teoria, fantasia ou fan- ‘asia origindria, € antes de mais nada, uma resposta, ndo um questionamento pulsional. E uma resposta a uma ques- {do enttre as questdes angustiantes que a criancinha pode se fazer: de onde provém a diferenca dos sexos? E, portanto, pelo lado em que o ser humano é teorizante, autoteorizan- te, que se situa a teoria que explica a diferenga dos sexos. Annogao de castracdo € insepardvel da grande categoria, em liltima instncia, légica, da supressdo — e a idéia de supres- so do sexo — como percebemos bem na histéria da espé- cie, por exemplo, nas pinturas pré-histéricas®” — é se- SITUAGKO SECUNDARIA DAS “FANTASIAS ORIGINARIAS” 20. CF. J Laplanche, Problémariques 1/Castration. Spmbottaions, Pati, UE, 1980, pp, 213-218. R&R CATARTICA 4 cundaria, se é que existe, ligada A propria idéia de nega- flo légica, presenga-auséncia e terceiro-excluido, que alias vai fundar. A fantasia, ou a teoria da castracio como ori- gem da diferenca dos sexos, introduz.o sujeito humano ao desenvolvimento infinito, mas também o submete as cor- rentes de uma Idgica bindria, de uma ldgica da contradi- fo. Situé-la no lado de um inconsciente primordial nao seria anular a descoberta fundamental da psicandlise, de que, pre- cisamente, o inconsciente nao conhece a negacao? Se a ne- gaco se situa, como simbolo da negacao, no nivel mais “ele. vado"” do aparelho psiquico, como poderia ser diferente para essa atualizagao fundamental da negac&o que é a castracao? Seria, portanto, necessdtio situd-la no lado dessa aquisica0 cultural imensa que introduz o género humano no pensa- mento da contradigao, Voltando a ligacao anteriormente estabelecida entre a situagio tépica da fantasia originaria e o problema de sua transmissdo, digamos que a situaco tépica “secundaria” do roieiro da castragao joga a favor de sua transmissdo co- mo um padrdo secundario, légico, como um pressuposto implicito da comunicagao verbal. 3/ O mecanicismo Meu terceiro desenvolvimento sobre certos fundamen- tos exégenos que se tenta encontrar para a psicandlise abor- dard rapidamente o problema do mecanicismo. Trata-se de uma inspiracio freudiana fundamental, que se costuma si- tuar biograficamente, limitando-a & influéncia da escola “fi- sicalista””, como o famoso juramento que unia, num peque- no cla, Briicke, Dubois-Reymond, Helmholtz e alguns ou- tros. O juramento dos fisicalistas, cujo texto encontramos em Jones, obriga a nada explicar na psicologia que nio se- ja redutivel a dura fisico-quimica. Mas ele continua assim: no caso em que essas forcas ndo puderem ser detectadas di- retamente, dever-se-4 “postular a existéncia de outras for- te] 42 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE ‘sas, equivalentes em dignidade as forcas fisico-quimicas ine- rentes & matéria, e redutiveis & forca de atracdo e de repul- so’, Ao lado da tentacao abstrata de reduzir completa mente a psicologia a fisico-quimica, encontramos uma idéia bem diferente e mais interessante: caso essa reduedo se re- vele longingua demais, dificil demais, é um modelo fisica- lista que deve ser introduzido na psicologia. Deparamo-nos af, com 0 segundo tipo de modelo ‘© mopELO que eu distinguia anteriormente, os FISICALISTA‘ modelos de memérias ou entio, quatro pode-se dizer, os modelos maqui- CARACTERISTICAS nicos. Somos introduzidos aqui a estes modelos simultaneamente ma- quinicos ¢ mecénicos do freudismo, cujo exemplo mais de- senvolvido € 0 do Projeto para uma psicologia cientifica de 1895. Lembremos rapidamente certos tracos essenciais desse texto que servem a0 nosso propésito. Inicialmente, tudo nele se reduz a figura e forea; diga- mos, forcas circulando num modelo figurado, espacialmente figurado. A figura torna-se mais complexa convertendo-se em meméria, que nao é outra coisa que o efeito da forca sobre ela; sabemos que as marcas da passagem da forca de excitacdo culminam em facilitagoes (frayages), que corres- pondem ao aspecto fisico do que chamamos meméria. Eis © primeiro ponto que certamente nos reconduz a uma as cendéncia bastante antiga, pelo menos cartesiana, a duali dade entre a figura e o movimento, dizia-se no século XVI. ‘Um segundo ponto é que se trata de um modelo néo- biol6gico e, mais importante, de um modelo ndo-vivo e, mais, ainda, de um modelo que ndo pode viver, que nao poderia sobreviver um instante. E um modelo que, no inicio, esté como que aberto a todos os ventos, j4 que sua tinica finali- dade ¢ desembaracar-se da energia que Ihe é comunicada. ; Esse mecanicismo, e este serd nosso terceiro ponto, & \2)formulado antes de um biologicismo que vem complic4-lo, mas apenas complicé-lo. E 0 que Freud chama de interven cdo da urgéncia da vida, a “‘Nof des Lebens”* que, nao se | } | | i © CATARTICA 43 sabe como, intervém como auténtico deus ex machina, for-!2°6-""* cando o aparelho a economizar energia, quando, pelo con- trdtio, seu duico principio era desembaracar-se dela. Por uma verdadeira escamoteacdo, seria para melhor se desem- baragar da energia que essa maquina nao-vital deveria apren- der a viver, isto & a acumular energia Quarta caracteristica: esse mecanicismo fornece 0 pro- tdtipo do processo pstquico primdrio — caracterizando-se este, precisamente, pela livre circulagdo da energia — e de um processo primdrio que vem antes do secundario. Assim como se supde que a vida vem depois do mecanismo nesta espécie de génese fantdstica, pois bem, o psiquico secunda- tio, 0 ligado, que nao escoa livremente, vem depois da ener- aia livre. O livre antes do ligado, 0 morto antes do vivo, e Freud nfo deixara de dizer em outras ocasides, particu- larmente em Para além do principio de prazer, a matéria inerte antes da matéria organizada. Questées a propésito deste modelo? Pelo menos duas. Primeiro, de que é esse modelo? — como nos pergunta- ‘mos a respeito da vesicula em Pa- © VERDADEIRO ra além do principio de prazer. 6 MODELO o modelo de um ser vivo e de seu DO WD. sistema nervoso central? Indiquei, ha pouco, o paradoxo que consiste em querer ensinar a viver a algo que é feito justamente pa- ra ndo viver, para ser uma maquina de evacuar. Mas, por tanto, se nao é o modelo do que deve ser situado no princi- pio, na origem, nao seria, antes, 0 modelo do que est en- terrado no mais profundo? Pois continuamos insistindo na distincao, que vai de encontro a toda uma corrente freu- diana, talvez até & corrente preponderante, de que estar na origem no é a mesma coisa que estar enterrado no mais profundo. O mecfnico, o “em terceira pessoa’’, o ‘em pes- soa neutra’’, o “‘em forma de id’’ esta, do nosso ponto de vista, no mais profundo do ser humano sem, por isso, es- tar no infcio. 44 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE Nossa segunda questo talvez seja UMA FALSA mais acesséria para o psicanalista, FISICA mas no deixa de ter seu interesse: de que cigncia fisica se trata? Nao serd uma fisica muito datada, ainda muito pés-cartesiana, em todo caso absolutamente pré-quintica e pré-relativista, uma fisica qua ainda é a das aparéncias macroscépicas, fi- sica definitivamente ultrapassada no préprio momento em que Freud a ela recorre? Se assim for, o nascimento da psi- canalise encontraria, portanto, do ponto de vista epistemo- logico, sua incitac&o, sua mola propulsora, ndo num mo- mento de desabrochar da fisica, mas numa espécie de eflo- rescéncia final, de ttima chama lancada pelo mecanicismo, uma tiltima chama talvez mais filoséfica do que cientifica, E, no fim das contas, a escala fisicalista se considerava, com efeito, mais filoséfica do que cientifica. Quais s4o, em suma, os elementos em jogo? B a maté- ria deserita pela fisica moderna? E, numa visio mais po- pular, uma matéria que, de certa forma, coincidiria com um certo cartesianismo? Ou, devemos afirmar que existem, em psicanalise, outros elementos tiltimos, outros dtomos, outros indivisiveis? Mas entre esses indivisiveis que so 08 neur6nios do Projeto, esses indivisiveis que so as repre- sentagdes em Freud ¢ os indivisiveis que sdo os significan- tes na lingiiistica, vocés podem ver que a passagem nao & totalmente arbitraria. E é ai que serd proposto um quarto tipo de fundamento, também ele extrinseco & andlise, 0 fun- damento lingiiistico. 4/ O lingiitstico Na falta de encontrar uma derivagao a partir do ser vivo e de sua adaptacdo, trata-se, nesse projeto de um fun- damento lingifstico, de reduzir o inconsciente humano ao que manifestamente o préprio do homem e, manifesta mente, a mola mestra do tratamento, ou seja, linguagem. CATARTICA 45 Vocés,reconhecem af 0 projeto lacaniano sobre o qual tive a oportunidade de me expressar longamente, em particular na segunda parte de Problematicas IV, sob 0 titulo de “A. referéncia ao inconsciente””!, Tomei explicitamente parti- do em relagdo a formula candnica lacaniana de “‘o incons- ciente esta estruturado como uma linguagem”. Que lingilistica? Que linguagem? Também, que laca- nismo, hé que ja mais de um? O que se pode dizer, em to- do caso, ¢ no deixamos de sublinhé-lo desde 1961, é que identificar o que ha de mais profundo®? no homem, seu in- consciente, & linguagem verbal (0 que chamamos linguagem no sentido estrito do termo), isto é explicitamente antifreu- diano. Nao que a linguagem nao tenha um imenso lugar em Freud — yocés encontrarao miiltiplas provas disso num texto como O interesse da psicandlise™, onde 0 que en beca o interesse da psicanailise pelas ciéncias nao-psicolégicas € “o interesse pela ciéncia da linguagem’”. Nao resisto a ci- tar as primeiras frases que situam muito precisamente 0 que Freud chama de linguagem: “Ultrapasso certamente a sig. nificagdo habitual quando postulo o interesse do filélogo [portanto, aquele que se interessa pelo logos, pelo discur- So] pela psicandlise. Por linguagem nao se deve compreen- der simplesmente a expresso dos pensamentos em palavras, mas também a linguagem dos gestos e qualquer outro tipo de expressio da atividade psiquica, como a escrita.""4 As- sim, em exergo a esse capitulo, por outro lado muito con- densado, 0 que Freud marca, logo de inicio, € que a lin- guagem deve ser tomada num sentido que englobe o verbal © 0 ndo-verbal. 21, Paris, PUF, 1981, pp. 7-146. 22, Pois nfo vejo por que recusar a nocto freudiana de uma “psicologia profunda”, a nfo set em nome de um esnobismo que poesia ndo ser outra cos do que o sesquicto de wma certa Fenomenclogia 23, Résultats, idées, problems 1, Paris, PU, 1984, pp. 187-214 24, bid, p. 168. Entre colehetes: comentario de J.L. ' 46 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE A linguagem verbal, por seu lado, no sentido estreito do termo desta vez, também desempenha um pa- pel essencial em Freud, sob a co- nhecida forma das representacdes de palavra (Wortvorstellungen). A representacao de pala- vra de forma nenhuma esta na raiz ou na origem do incons- ciente. A linguagem verbal, para Freud, é secundaria em todos 0s sentidos do termo, exaramente como mostrei ago- Fa mesmo que a castragao se situa no nivel do secundério. A linguagem verbal é secundaria historicamente: na hist6- ria individual temos o direito de falar de um estigio pré- verbal. Freud inclusive pretende fazer uso dessa cronolo- gia para detectar na sintomatologia de certas neuroses, em particular, a histeria de conversdo, uma regresso ao estd- gio anterior a linguagem, que se caracteriza pelo fato de que, nessa etapa pré-linguageira, a distincao entre consciente ¢ inconsciente ainda ndo existe. De forma que os estados se- cundérios, os estados hipndides da histeria, onde justamente as fronteiras entre consciente e inconsciente se apagam, se- riam uma regressdo a esse estégio anterior & linguagem. Também na histdria coletiva, a linguagem é cronologica- mente secundiria, segundo Freud, o que fica evidente quan- do apéia com todas as suas forcas 0 artigo de Hans Sper- ber sobre a origem sexual das primeiras palavras e da pri meira linguagem?, Também topicamente a linguagem é secundaria; carac- teriza 0 pré-consciente € 6 ego no sentido de que fornece © esclarecimento das representagdes de palavra, permitin- do as cadeias de pensamento tornarem-se conscientes. Pa- ra Freud, ndo ha conscigncia sem percepedo atual. A cons- ciéncia é, primariamente, uma conscigncia perceptiva, aquela que temos no éxato momento em que nos abrimos para 0 SITUAgRO SECUNDARIA DA. LINGUAGEM VERBAL 25, H, Sperber (1912), “Ueber den Einfluss sexullee Moment auf Entse- {bung und Entwicklung der Sprache’, Jmago, 1, 40S. CATARTICA 47 mundo. Mas, é claro, também é preciso explicar a conscién- cia secundaria, isto &, a consciéncia que tomamos de con- tetidos psiquicos, contetidos de pensamento ou lembrancas. Todavia, essa consciéncia ‘secundaria’ nao pode se fur- tar ao seu cardter perceptivo: ela implica 0 que podemos chamar de flashes perceptivos sucessivos, descontinuos, ¢ esses flashes perceptivos, que nos permitem tomar conscién- cia de contetidos psiquicos, implicam a reproducao das re- presentacdes de palavra. E somente porque, aqui e ali, num contetido de consciéncia, captamos algumas palavras, é so- mente porque essas palavras sao reatualizadas, repercebi- das, revivificadas no sentido prdprio do termo, até repro- nunciadas internamente, que uma tomada de consciéncia secundaria é possivel. Evidentemente, isso é muito impor- tante no que se refere & dinémica do tratamento, toda ela submetida a essa formula capital segundo a qual a repr: sentaco pré-consciente, na tomada de consciéncia, ¢ a re- presentagao de coisa mais a representagao de palavra. Economicamente, por fim, a linguagem verbal é secun. daria, isto é, regida por um modo de associagdes e de cir- culacdo com retencdes, barragens. Para que haja pensamen- to, € preciso que qualquer coisa nao se insira em qualquer coisa, ¢ é isto o préprio da linguagem verbal. ‘Um certo lacanismo, provavelmente até sua prépria cor rente dominante, vai no sentido de situar a linguagem ver-| bal no fundamento do inconsciente, um inconsciente que| se torna ent&o e, como que por definicAo, transindividual,| Encontramos ai, com certeza diferente do inconsciente jun guiano, uma espécie de inconsciente coletivo; ainda que te- nha, por contrapeso, de fazer funcionar essa linguagem ver- bal, que supostamente seria a do inconsciente, segundo o processo primario; conhecemos bem essa doenca do jogo de palavras exagerado, que causa estragos em tantos tex- tos, modernos ou antigos, dos lacanianos, talvez mais ain- da de que no préprio Lacan, e que foi estigmatizada, de odhen. ta baa 48 NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALISE maneira cmica, sob 0 termo de “effet yau d’potle””*. Tal teoria, a de um lacanismo centrado na linguagem verbal, {certamente permite uma escuta “analitica’? que nada mais tem a ver com a escuta do singular, pois so os efeitos uni- versais, ou, se quiserem, transindividuais, da linguagem que lento sao privilegiados. Percorrer todo o lacanismo, ou até mesmo 0 lacanis- mo do ponto de vista da linguagem, seria algo impossivel aqui. E um pensamento mtiltiplo, um pensamento talvez contraditério no que concerne a essa questao do verbal e do nao-verbal. E, também, um pensamento que evoluiu. Houve um tempo em que Lacan preconizava a lingiiistica como “ciéncia piloto” (na época durea do estruturalismo); felizmente, percebeu em seguida que uma lingiiistica psica- nalitica estaria em profunda mutacao em relagao a lingtiis- tica dos lingiiistas. ‘No que a mim respeita, direi que, em toda essa agita- ao psicanalitica em torno da lingiifstica®®, o mais pos vo é aquilo que se relaciona com o significante. A nogao de significante é certamente retomada de Saussure, na sua oposicao € na sua complementaridade com relagio ao sig- nificado. Também deve ser retomado de Saussure naquilo que amplia em relacdo a linguagem verbal, pois, em Saus- sure, ndo é a uma lingiifstica, mas sim a uma semiologia geral, ou seja, a uma ciéncia do conjunto dos sistemas de significante-significado, que a proposta da férmula do sig- no tende. Na gira “tuyau d'podle” referee aalguém exibido, salieme. A expres: slo usada por Laplanche faz meneio a uma critica 20 lacanismo publicada em 1979 pela Fiachete, de autoria de Francois George eintitulada “ ‘Leet dpe. le" de Lacan et des lacaniens”. (N.T.) 26, “Lingisteria” disse Lacan, A dos psicanalisas, mas também a dos lin _gistas: cans escols, tants escolhas conceitas quanto individuos! Aq, pro- pia psicandlise veneida no plano do esmigalamento, das nuangassutis, da exegese i ears cararrica 49 Lé onde Lacan supera totalmente PRIMAZIA Saussure é na afirmacao da inde- DO SIGNIFICANTE OU: —_pendéncia do significante, ou mes- SIGNIFICANTE mo da primazia do significante so- DESSIGNIFICADO bre todo significado. Aqui, o des- lizamento metafisico nao esta dis- tante, um verdadeiro idealismo do significante espreita, ¢ talvez esta seja a tentagao de um autor filésofo como Ju- ranville. Mas 0 que hd de mais fecundo, a meu ver, no uso lacaniano da nocdo de significante, é a distingao, epis6 ca, mas essencial, entre dois aspectos: o significante de qué (© significado, subentendido) e o significante para quem. O que é afirmado, em certos momentos, é esse aspecto do significante onde ele é o que significa para alguém, o que iterpela alguém, no sentido que diz. que um oficial de jus- tiga notifica [vous signifie] com um papel azul, notifica uma penhora ou um decreto da prefeitura*, Essa afirmagao de aspecto “significa para’” é das mais importantes, pois um significante pode significar para sem que, por isso, se saiba 0 que ele significa, Sabe-se que ele significa, mas nfo se sa- be o qué. Um significante tem uma significincia, um po- der significante ou significativo, detectavel, sabe-se que hé significante em algum lugar, sem que, para tanto, um sig- nificado explicito tenha-se manifestado. Uma imagem pro- posta por Lacan foi a dos hierdglifos no deserto, dos ca- racteres cuneiformes numa tébua; sabemos que eles signi- ficam e que, enquanto tais, tém um tipo de existéncia pré- pria, diferente fenomenologicamente da das coisas: eles que- rem nos significar algo, mesmo que nao tenhamos nenhum significado para atribuir-lhes, Isto nao implica aderir a uma primazia do significante, inclusive a uma hegemonia do si nificante no tratamento. Trata-se, simplesmente, de sub J. Laplanche toma um dos significados de signer Gignifica), que & “'no- tifear por via judicria” e, portanto, pode ser usado nas frases que aparecem no texto. (N. T,) ae 50 \NOVOS FUNDAMENTOS PARA A PSICANALIS nhar, mas com veeméncia, a possibilidade de o significante ser dessignificado, perder 0 que ele significa, perder, inclu- sive, toda significacio determinavel, sem, por isso, ter per- dido seu poder de significar para. Refiro-me tanto ao sig-

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