Você está na página 1de 200
Atributos de Deus sabia, poderosa e reta de Deus exercendo o Seu querer. Em nossa concep¢io dela é aquele atributo da Deidade ao qual referimos os Seus propésitos e decretos, como seu principio. 52. Em que sentido se diz que a vontade de Deus é livre, e em que sentido se diz que é necessdria? A vontade de Deus é a esséncia sabia, poderosa e reta de Deus exercendo o Seu querer. Por conseguinte, Sua vontade, em todos os Seus atos, é certa e, a0 Mesmo tempo, muito livremente, tanto sabia quanto reta. Eevidente que a liberdade da indiferenga esté alheia a natureza de Deus porque a perfeigao da sabedoria consiste em escolher, do modo mais sdbio; e a perfeicéo da retidao consiste em escolher do modo mais reto. Por outro lado, porém, a vontade de Deus é, desde todaa eternidade, independente de todas as Suas criaturas e de todos os Seus atos. 53. Que se entende pela distincdo entre a vontade decretatéria ea vontade preceptiva de Deus? Pela vontade decretatéria Deus detemina eficazmente a futuricao certa dos eventos. Pela Sua vontade preceptiva, Deus como Governador moral ordena 4s Suas criaturas morais que fagam aquilo que Ele julga bom e sabio que elas fagam nas circunsténcias em que se achem. Nisso nao ha nada que seja inconcilidvel. Aquilo que Ele quer como nosso dever pode ser bem diverso daquilo que Ele quer como Seu propésito. Aquilo que Ele permite pode estar bem longe de ser aprovado por Ele, e pode muito bem ser pecado se o fizermos. 54. Que se entende pela distingdo entre a vontade secreta e a vontade revelada de Deus? A vontade secreta de Deus é Sua vontade decretatéria, chamada secreta porque, embora seja as vezes revelada aos homens nas profecias e nas promessas da Biblia, na sua 201 Capitulo 8 maior parte nos fica oculta. A vontade claramente revelada de Deus é Sua vontade preceptiva, que nos é revelada sempre como a regra do nosso dever — Deut. 29:29. 55. Em que sentido os arminianos maniém a distingdo entre a vontade antecedente e a vontade conseqiiente de Deus, e quais as objecoes contra essa distincao? E uma distinc4o inventada pelos escoldsticos, ¢ adotada pelos arminianos, na tentativa de conciliar a vontade de Deus com a teoria deles sobre a liberdade do homem. Chamam ato antecedente da vontade de Deus aquilo que precede a acao da criatura; e.g, antes de Adao pecar, Deus queria que ele fosse feliz. Chamam ato consegiiente da vontade de Deus aquilo que se segue ao ato da criatura, e que € a conseqiiéncia desse ato; e.g., depois do pecado de Adao, Deus queria que ele sofresse a pena devida ao seu pecado. E evidente que essa distingio nfo representa verda- deiramente a natureza da vontade de Deus e Sua relagao com os atos de Suas criaturas. 1°. Deus é eterno, e por isso nao pode haver nos Seus propésitos distingado de tempo; 2°. Deus é eternamente onisciente e onipotente. Se, pois, Ele quer alguma coisa, quer necessariamente desde o principio os meios de efetud-la, e consegue assim o fim desejado. Se nao fosse assim, Deus teria ao mesmo tempo e em relagéo ao mesmo objeto, duas vontades inconcilidveis. A verdade é que Deus, por um s6 ato compreensivo da Sua vontade, determinou eterna e imutavelmente que tudo o que sucedeu com Adio, do principio ao fim, sucedesse nessa mesma ordem e sucessio em que cada evento ocorreu. 3°. Deus é infinitamente indepen- dente. Aviltamos a Deus se pensarmos nEle como alguem que determina aquilo que Ele nao tem poder para efetuar, e depois muda de vontade em conseqiiéncia dos atos independentes das Suas criaturas. E verdade que, em conseqiiéncia dos limites naturais das 202 Atributos de Deus nossas capacidades, concebemos as diversas intengdes do propésito nico, eterno e indivisivel de Deus, como se susten- tassem entre si uma certa relagao logica, nao temporal, como algo principal e conseqiiente. Formamos, assim, a concep¢ao de que Deus primeiro, na ordem légica, decretou ou determinou criar 0 homem e depois permitir que ele cajsse, e a seguir preparar uma redencao — Turretino. 56. Em que sentido os arminianos mantém a distingao entre a vontade absoluta e a vontade condicional de Deus, e quais as objecées contra ela? Segundo eles, a vontade absoluta de Deus é a que nao depende de nenhuma condicdo fora dEle,e.g., a determinacao de criar o homem. Sua vontade condicional é a que depende de alguma condigao, e.g., Sua determinacdo de salvar os que créem, isto é, sob a condicao da fé deles. E evidente que essa distingéo é inconcilidvel com a natureza de Deus como um Ser eterno, auto-existente, independente, infinito em todas as Suas perfeicdes. Avilta-O a posicdéo segundo a qual a Sua vontade é simplesmente parte coordenada da criacao, limitando a criatura e sendo por esta limitada. O erro € 0 resultado de destacar um fragmento da vontade de Deus do propdsito tinico, inteiro, e absolutamente compreensivo, eterno. E evidente que, quando considerado como eterno e um s6, 0 propésito de Deus deve incluir tanto as condig6es todas como as suas conseqiiéncias. A vontade de Deus nao depende de nenhuma condicao, mas Ele determina eternamente 0 evento como dependente da sua condigao, e a condicéo como determinando 0 evento. Todos admitem que a vontade preceptiva de Deus, expressa em mandamentos, promessas e ameacas, depende muitas vezes de condigdes. Se crermos, seremos com toda a certeza salvos. Esta é a relacdo estabelecida imutavelmente entre a fé, como a condicao, e a salvacao, como conseqiiéncia, isto é, a f€ € a condicdo da salvagdo. Mas isso é coisa muito 203 Capitulo 8 diversa do que dizer que a fé que Paulo tinha foi a condicdo do proposito eterno de Deus de salv4-lo; porque 0 mesmo propésito determinou tanto a fé, a condigao, como a salvacao, a sua conseqiiéncia. Veja algo mais no Cap. 10, sobre os decretos. 57. Em que sentido se diz que a vontade de Deus é eterna? E um s6 ato cterno, nao sucessivo, totalmente compreen- sivo, determinando absolutamente ou efetuar ou permitir todas as coisas, em todas as suas relacdes, condigdes e sucessdes, que sucederam, sucedem e virao a suceder. 58. Em que sentido se pode dizer que a vontade de Deus é a regra de retidao? E evidente que, no sentido mais elevado, a respeito da vontade de Deus, nao se pode considerar essa vontade como a base fundamental de toda a retid4o, como igualmente nao se pode considerar como a base fundamental de toda a sabedoria. Porque, nesse caso, seguir-se-ia, 1°. que nao ha diferenca essencial entre o bem e 0 mal propriamente ditos, mas somente uma diferenca constituida arbitrariamente pelo préprio Deus;* e 2°. que nao ha nenhum sentido em que se possa atribuir retidao a Deus; porque seria o mesmo que dizer que Ele quer como quer. A verdade € que a Sua vontade opera conforme a Sua sabedoria infinitamente reta vé estar correto. Por outro lado, porém, a vontade revelada de Deus é para nos a regra absoluta e principal da retidao, tanto quando nos manda fazer o que em si mesmo é indiferente, e assim 0 torna reto, como quando nos manda fazer 0 que em si mesmo e essencialmente é reto, porque é reto. * Veja Charles Hodge, Systematic Theology, Cap. 5, § 9s., pag. 405. Nota do tradutor. 204 Atributos de Deus A JUSTICA ABSOLUTA DE DEUS heen ore 59. Que se entende pelas distingées de justica absoluta e justica relativa, rectoral, distributiva e punitiva ou vingadora de Deus? A justica absoluta de Deus é a infinita perfeicéo moral ou retidao universal do Seu préprio Ser. A justiga relativa de Deus é a Sua natureza infinitamente reta, considerada como se manifesta em relag4o a Suas criaturas morais, como Seu Governador moral. A justica de Deus é chamada rectoral quando considerada como se manifesta na administracao geral do Seu governo universal pelo qual Ele cuida das Suas criaturas e governa as suas acdes. E chamada distributiva quando considerada como se manifesta na acao de Deus pela qual Ele dé a cada criatura exatamente aquilo que lhe é devido, como prémio ou como pena; ¢ é chamada punitiva ou vingadora quando considerada como se manifesta nos atos de exigir e infligir a pena adequada e proporcional por todo pecado, por causa do seu demérito intrinseco. 60. Quais as diversas opinides a respeito da justica punitiva de Deus, isto é, quats os diversos motives alegados para explicar por que Deus pune o pecado? Os socinianos negam inteiramente a justica punitiva de Deus e sustentam que Ele sé pune o pecado pelo bem do pecador individual, e pelo bem da sociedade, unicamente até onde esta possa estar interessada no refreamento ou no melhoramento do pecador. Os tedlogos que sustentam a teoria governamental da propiciacao (ou da expiacao), sustentam que Deus nao pune o pecado por causa de qualquer principio imutdvel que haja em Si mesmo e que exija a punigao dEle, mas simplesmente pelo bem do universo, com base em certos grandes principios imutdveis de politica governamental. Reduzem assim a justica a uma forma de benevoléncia geral. Leibnitz afirmava que “a justiga é a bondade dirigida pela 205 Capitulo 8 sabedoria”. Este principio pressupée que a felicidade é 0 maior bem; que a esséncia da virtude consiste no desejo de promover a felicidade, e que, por conseguinte, 0 unico fim da justica pode ser a prevencdo da miséria. Este é o fundamento da teoria governamental da propiciacao. Veja Cap. 25. Também Park, Atonement (Expiacao). Alguns afirmam que a necessidade de puni¢ao do pecado € somente hipotética, isto é, que é tao-somente um resultado do decreto eterno de Deus. A verdade é que a propria retidao eterna e essencial de Deus determina que Ele imutavelmente castigue todo pecado com uma pena proporcional. 61. Como se prova que a benevoléncia desinteressada nao constitui a totalidade da virtude? 1°. Algumas manifestagdes de benevoléncia desinteres- sada, e.g, o amor natural paterno, s40 puramente instintivas, e nada tém de carater moral positivo. 2°. Algumas manifestagdes de benevoléncia desinteres- sada sao positivamente imorais, como, e.g, quando um juiz cede 4 sua simpatia para com um criminoso, ou cede As instancias dos amigos deste. 3°, Ha principios virtuosos que nao se pode reduzir a benevoléncia desinteressada, como,e.g., possuirmos na devida consideracaéo prudencial o nosso préprio bem; termos aspiragdes e empregarmos esforgos para alcancar exceléncia pessoal; termos um santo 6dio ao pecado por causa do préprio pecado, e o santo desejo de ver o pecado punido para que fique vindicada a justiga. 4°. A idéia de dever € a idéia essencial constitutiva da virtude. Nenhuma anidlise possivel da idéia de benevoléncia dard como resultado a idéia de obrigacao moral. Esta é simples, irredutivel, nitida. O dever é 0 género, e a benevoléncia é uma das espécies que ele abrange. 206 Atributos de Deus 62. Quais as provas derivadas dos princtpios universais da natureza humana que mostram que a justica de Deus nao pode deixar de ser um principio fundamental e imutdvel da Sua natureza, determinando-o a castigar 0 pecado por causa do demérito intrinseco deste? A obrigacaéo que todo governador justo tem de castigar o pecado, o demérito intrinseco do pecado, e 0 principio de que o pecado deve ser punido, sao fatos determinantes da consciéncia moral. Nao podem ser reduzidos a outros principios, quaisquer que sejam. Prova-se isso — 1°. Porque estéo envolvidos na consciéncia do seu préprio demérito que tem todo pecador despertado - “...fiz 0 que a teus alhos parece mal, para que sejas justificado quando falares, € puro quando julgares” (Sal. 51: 4.) No seu grau superior, este sentimento vem a ser 0 remorso, ¢ este s6 pode ser apaziguado por uma expiacao. Por isso é que muitos assassinos nao tiveram paz enquanto nao se entregaram 4s autoridades, sentindo entao alivio imediato. E milhdes de almas tém achado paz na aplicacao do sangue de Cristo a suas consciéncias perturbadas. 2°. Todos os homens julgam assim os pecados dos outros. As consciéncias de todos os homens bons sao gratificadas quando a pena justa caiu sobre o ofensor, e tais homens ficam irados quando ele escapa. - »: : . 3°, Esse principio é testemunhado por todos os ritos sacrificiais comuns a todas as religides antigas, pelas peni- téncias que, numa ou noutra forma, sao quase universais ainda nos tempos modernos, por todas as leis penais, e pelos sindnimos das palavras culpa, castigo, justica, etc., comuns a todos os idiomas. 4°. E auto-evidente que a aplicacao de um castigo injusto € um crime, nao importa quéo benévolo seja o motivo que 0 inspirou, nem quao bom seja o resultado que o segue. E nao é menos auto-evidente que é a justica de um castigo merecido que torna bom 0 seu efeito na sociedade, e nao é este efeito que torna justo 0 castigo. A execugao da pena capital num homem 207 Capitulo 8 pelo bem da sociedade sera um crime, um grave erro, a nao ser que essa execucao seja justificada pelo demérito do homem. Nesse caso seu demérito sera visto por toda a sociedade como o motivo real da sua execucao. 63. Como se prova a mesma verdade pela natureza da lei divina? Grotio, em sua grande obra, Defensio Fidei Catholice de Satisfactione Christi (Defesa da Fé Catélica sobre a Satisfacao Realizada por Cristo), na qual se origina a Teoria Governa- mental da Propiciacao, sustenta que a lei divina ¢ produto da vontade divina e que, por conseguinte, Deus pode abrandar essa lei tanto nos seus elementos preceptivos como nos penais. Mas a verdade é que (a) a pena é parte essencial da lei divina; (b) a lei de Deus, quanto a todos os seus principios essenciais do certo e do errado, néo € produto da vontade divina, e sim um transcrito imutavel da natureza divina; (c) logo, a lei é imutavel e é necessdrio que se cumpra cada? dela. Prova-se isso — 1°. Porque os principios fundamentais tém necessariamente a sua base imutavel na natureza divina, ou (a) doutro modo a distingao entre o certo e 0 errado seria puramente arbitraria — ao passo que sao discernidos pelas nossas intuigdes morais a serem absolutos e independentes de qualquer volicao divina ou humana; (b) doutro modo nao teriam sentido as palavras quando se diz que Deus € reto, se a retidao fosse criacdo arbitraria da Sua vontade; (c) porque Deus declara que “ndo pode mentir”, que “ndo pode negar-se”. 2°. As Escrituras declaram que nao é possivel afrouxar a lei, que é necessdrio que se cumpra — Joao 7:23; 10:35; Luc. 24:44; Mat. 5:25,26. 3°. As Escrituras declaram que Cristo veio cumprir a lei, e nao afroux4-la — Mat. 5:17,18; Rom. 3:31; 1034. 64. Que argumento se pode tirar da independéncia e da abso- luta auto-suficiéncia de Deus para provar que a justica punitiva de 208 Atributos de Deus Deus é atributo essencial da Sua natureza? O conceito de que o Ser de Deus é obrigado pelas exigéncias exteriores da Sua criacéo a seguir qualquer curso de aco é inconcilidvel com os Seus atributos essenciais. Existem nEle, necessariamente, tanto 0 motivo dos Seus atos como os fins que Ele tem em vista— Col. 1:16; Rom. 11:36; Ef. 1:5,6; Rom. 9 :22,23. Se Ele castiga o pecado porque assim o determinam os principios da Sua propria natureza, Ele age indepen- dentemente. Mas se recorre ao castigo somente como 0 meio necessdrio para refrear e governar as Suas criaturas, entao os Seus atos dependem dos atos delas. 65. Como se pode provar a mesma verdade pelo amor que Deus tem a santidade ¢ pelo ddio que tem ao pecado? Nas Escrituras 0 amor que Deus tem a santidade e 0 ddio que tem ao pecado sao representados como essenciais e intrinsecos nEle. Ele ama a santidade por amor dela propria, e odeia o pecado e tem a determinacao de castiga-lo por causa do seu préprio demérito intrinseco. Ele odeia o pecado nos maus todos os dias — Sal. 5:6; 7:11. “A mim me pertence a vinganga, a retribuigao, a seu tempo...” — Deut. 32:35. Ele retribui a cada um segundo as suas obras — Is. 59:18; 2 Tess. 1:6: “Se de fato € justo diante de Deus que dé em paga tribulacao aos que vos atribulam” — Rom. 1:32: “...conhecendo a justiga de Deus que sao dignos de morte os que tais coisas praticam, nao somente as fazem, mas também consentem aos que as fazem” — Deut. 7:5,6; 21:22. 66. Como se pode provar esta verdade pelo que as Escrituras ensinam a respeito da natureza e da necessidade da propiciagdo de Cristo? Quanto a sua natureza as Escrituras ensinam que Cristo sofreu a pena do pecado vicariamente como substituto do seu povo eleito, e que assim expiou a sua culpa, reconciliou-o a Deus e remiu as suas almas dando-Se a Si mesmo como 209 Capitulo 8 © preco de remissao exigido em lugar deles. As Escrituras em toda parte e de todos os modos ensinam que o designio da morte de Cristo foi produzir sobre o Governador do universo moral um efeito expiador do pecado, e nao produzir, nem no coracdo do pecador, nem na consciéncia moral do universo inteligente, uma impressdo moral. Isso tudo sera provado detalhadamente nos capitulos 25 e 33. Quanto anecessidade da propiciagao as Escrituras ensinam que era absoluta. Ensinam que era necessdrio que Cristo morresse ou, doutra forma, os pecadores haveriam de perecer — Gal. 2:21; 3:21. Mas a propriedade de produzir uma impressdo moral em cada pecador pessoalmente, ou no 4nimo publico do universo em geral,ndo pode ter como resultado uma necessidade absoluta da parte de Deus — visto que Deus, que criou 0 universo e todos os seus membros componentes, podia naturalmente, se quisesse, produzir neles impressdes morais de qualquer espécie, ou sem meios ou servindo-se de quaisquer meios que quisesse. Uma necessidade absoluta precisa estar baseada na natureza imutavel de Deus, a qual é a base da sua vontade em todos os seus atos, e a determina. Logo, a natureza eterna de Deus O obriga, imutavelmente, a punir todo pecado. Political Science —“President Theodore D. Woolsey”, vol. 1, pags. 330-335. “A teoria de que a correcao é€ 0 fim principal do castigo nao resiste a exame. (1) O estado nao € instituicao benévola (humane). (2) Essa teoria nao faz distingaéo en- tre os crimes. Se um assassino parecesse reformado ao fim de uma semana, ter-se-iam conseguido os fins da sua detengdo e ele deveria ser solto; enquanto que outro ofensor muito menos culpado poderia bem ter que permanecer preso durante meses e€ anos antes que se manifestasse nele a inoculagaéo de bons principios. (3) Qual a espécie de correcéo que se deverd desejar conseguir? Seria uma correcdo que dé seguranca 4 sociedade da nao repeti¢ao do crime? Nesse caso é a sociedade, e nao o 210 Atributos de Deus criminoso, que tira proveito do processo corretivo. Ou seria preciso que se procure conseguir uma transformacao radical, de modo que o criminoso deixe de ser egoista e cobigoso, e que se despertem nele os principios mais excelsos e puros? Nesse caso sera necessario transformar a casa de corregao em igreja para o ensino do evangelho. “A explicacéo de que o Estado protege a sua propria existéncia, ou os habitantes inocentes do pais, infundindo em seus stiditos 0 terror e refreando-os de cometerem crimes pelo medo do castigo, respondemos que, se bem que este efeito é real e importante, ainda nao esta provado que o estado tem o direito de fazé-lo. E necessdrio pressupor o crime e que o criminoso merece castigo an- tes que o senso moral aprove que lhe seja infligida uma pena. E a medida da punigao exigida pelo bem pdblico na ocasiao flutua muito, e as vezes é até tiranica; além disso, o simples terror, se nao se desperta ao mesmo tempo o sentimento de justica, é tanto uma fonte de édio quanto motivo para a obediéncia. “A teoria de que o estado, infligindo castigo ao malfeitor s6 lhe da o que ele merece, é a nica que parece ter fundamento sdélido. Pressupde que, desobedecendo-se a alguma lei reta e justa, cometeu-se um mal moral, e que, de acordo com uma particularidade que tem o apoio da nossa natureza moral, convém que o malfeitor sofra algum mal fisico ou mental, e que em todas as formas de governo exercido sobre criaturas morais deve haver um poder capaz de decidir quanto de castigo deve seguir-se 4 pratica de certas e determinadas transgressdes. O estado, como Paulo diz, é realmente ministro de Deus, vingador em ira contra aquele que procede mal (Rom. 13:4). Contudo, somente o é numa esfera muito limitada, e para fins especiais... O Estado castiga atos, e nao pensamentos; intencdes manifestando-se em atos, n4o sentimentos; castiga as pessoas dentro de um certo territério sobre o qual tem jurisdig&o, e talvez aqueles seus stiditos que cometam crime noutra parte, e mais ninguém; castiga os atos prejudiciais 4 sua prépria existéncia e 4 comunidade 211 Capitulo 8 dos seus stiditos; nao castiga segundo uma escala exata de merecimentos, porque, sem uma revelacao divina, nao pode saber quais sao os merecimentos dos individuos, nem © que € a culpa relativa que os diversos atos provocam nas diferentes pessoas.” * A BONDADE ABSOLUTA DE DEUS 67. Que distingdes séo indicadas pelos termos benevoléncia, complacéncia, misericérdia e graca? A bondade infinita de Deus € uma perfeicdo gloriosa que carateriza proeminentemente a Sua natureza, e que Ele, de um modo infinitamente sabio, justo e soberano, exerce para com as Suas criaturas de varios modos segundo as suas relagdes e condigées. Benevoléncia é a bondade de Deus considerada generica- mente. Estende-se a todas as suas criaturas, com excegao das condenadas judicialmente por causa de seus pecados, e faz provisao para o bem-estar delas. A complacéncia € a afeicdo aprobatéria com que Deus aprecia as Suas proprias perfeigdes infinitas, e toda imagem e reflexdo delas nas Suas criaturas, especialmente nos santificados da nova criagao. A misericérdia de Deus, cujas formas mais passivas sao dé e compaixdo, é a bondade divina manifestada com respeito a miséria de Suas criaturas, sentindo-as e fazendo provisao para oalivio delas, e, no caso dos pecadores impenitentes, tratando- -os com paciéncia ljonganima. A graca de Deus é sua bondade procurando comunicar seus favores e, sobretudo, a comunhao da Sua propria vida e felicidade, a Suas criaturas morais — as quais, como criaturas, necessariamente nao tém nenhum merecimento — e pro- eminentemente Seu amor eletivo, obtendo, mediante um prego * Esta citacdo é apresentada de forma resumida. 212 Atributos de Deus infinito, a felicidade deles, sendo que eles merecem positivamente o castigo divino, por serem criaturas peca- minosas. 68. Exponha a definicao falsa da benevoléncia divina feita freqiientemente, e demonstre a sua definigdo verdadeira. Define-se muitas vezes a benevoléncia infinita de Deus como aquele atributo em virtude do qual Ele comunica a todas as Suas criaturas a maior soma possivel de felicidade, isto é, a maior medida que s4o capazes de receber, ou a medida que é compativel com a aquisicéo da maior soma de felicidade agregada ao universo moral. Mas isso pressupOe que Deus esté limitado por alguma coisa fora de Si; que nao podia ter assegurado para as Suas criaturas maior felicidade do que a de que realmente gozam. Pressupde também que Deus considera a felicidade como bem superior a exceléncia moral. A verdadeira definicéo da benevoléncia divina é que é aquele atributo em virtude do qual Deus produz no universo toda a felicidade compativel com os fins supremos que tinha em vista na criacao. Estes fins colocam-se nesta ordem: 1. A manifestacao da Sua propria gléria. 2. A suprema exceléncia moral de Suas criaturas. 3. A suprema felicidade de Suas criaturas racionais. 69. Quais as fontes do nosso conhecimento de que Deus é benevolente? : 1*, A razao. Benevoléncia é elemento essencial da perfeicado moral. Deus é infinitamente perfeito, e por isso infinitamente benévolo. 2°, A experiéncia e a observacao. A sabedoria de Deus manifestada em idealizar, e Seu poder manifestado em executar o Seu designio nas diversas esferas da criagao, da providéncia e da religido revelada, foram evidentemente determinadas sempre por intengdes benévolas. 213 Capitulo 8 3°. As assergdes diretas das Escrituras — Sal. 145:8,9; 1 Joao 4:8. 70. Como se pode provar que Deus é bondoso e esta sempre pronto a perdoar o pecado? Nem a razao nem a consciéncia podem ensinar-nos que Deus quer perdoar 0 pecado. E evidentemente dever dos homens perdoar-se mutuamente as ofensas que recebem, mas o perdao do pecado como pecado nao é da nossa alcada. Parece claro que nao pode haver principio moral que obrigue qualquer governador soberano a perdoar o pecado como transgressao da lei. Tudo quanto a raz4o e a consciéncia nos asseguram a esse respeito € que nao pode haver perdao do pecado sem uma propiciagao. A afeigéo bondosa que levasse um governador a preparar uma propiciacdo seria, de sua natureza essencial, perfeitamente livre e soberana, e s6 poderia ser conhecida 4 medida que fosse bondosamente revelada. Por isso o evangelho é boas novas, confirmadas por sinais e maravilhas — Ex. 34:6,7; Ef. 1:7-9. 71. Quais sao as diversas teorias inventadas na tentativa de conciliar a existéncia do pecado com a bondade de Deus? 1’, Alguns argumentam que a acao livre é essencial a um sistema moral, e que a independéncia absoluta da vontade é essencial a acdo livre; que, comoobjeto do poder, dirigir a vontade de agentes livres nao é superior a operar contradigdes; e que por isso Deus, embora onipotente, nao poderia impedir que 0 pecado entrasse num sistema moral, sem que violasse a natureza desse sistema. 2°, Outros argumentam que Deus, em sua sabedoria infinita, permitiu que o pecado entrasse por ser isso um meio necessdrio para promover a maior soma possivel de felicidade no universo como um todo. Sobre essas teorias dizemos: 1°. Que a primeira tem por base uma falsa idéia das 214 Atributos de Deus condigdes da liberdade e da responsabilidade humanas (veja abaixo, Cap.15); e mais, que limita de um modo indigno o poder de Deus, representando-O como querendo e procurando fazer 0 que n4o consegue efetuar, e também que O torna dependente das suas criaturas. 2°. Quanto 4 segunda teoria acima, devemos estar sempre lembrados de que a gloria de Deus, e no o bem supremo do universo, é 0 fim supremo de Deus na criacao e na providéncia. 3°. A permissao do pecado, em sua relagaéo tanto com a religiao como com a bondade de Deus, é um mistério inson- davel, e todas as tentativas de solvé-lo s6 servem para misturar palavras com discursos de ignorantes (J6 38:2). E um dos privilégios da nossa fé, porém, sabermos que, embora a nossa filosofia nao o possa compreender, é uma permisséo muito sabia, reta e misericordiosa; e que redundar4 na gléria de Deus eno bem dos Seus escolhidos. 72. Como se pode mostrar que nao hé incongruéncia entre os atributos de bondade e de justica? Bondade e justica séo aspectos diversos de uma sé perfeicao moral imutavel, infinitamente sabia e soberana. Deus nao € as vezes misericordioso e outras vezes justo, nem misericordioso até certo ponto e justo até certo ponto, porém é€ eterna e infinitamente misericordioso e justo. Em relacao a criatura, esta perfeicao infinita da Sua natureza apresenta diversos aspectos, conforme determinado pelo juizo que a sabedoria infinita faz em cada caso individual. Mesmo em nossa experiéncia achamos que, em principio, nao hé nenhuma inconseqiiéncia nestes atributos da nossa natureza moral, apesar de que a nossa falta de sabedoria e de conhecimento, o sentimento do nosso demérito, e uma simpatia meramente fisica, muitas vezes perturbam tanto o nosso juizo como 0 nosso coracdéo quando queremos ajustar esses principios aos casos individuais da vida. vUb te 215 Capitulo 8 A VERDADE ABSOLUTA DE DEUS 73. Que é a verdade, considerada como atributo divino? A verdade de Deus, no seu sentido mais lato, é uma perfeicaéo que qualifica todos os seus atributos morais e intelectuais. Seu conhecimento é infinitamente verdadeiro em relagéo aos seus objetos, e Sua sabedoria nao esté sob a influéncia nem de preconceitos nem da paixdo. Sua justica e Sua bondade, em todas as suas operagées, estéo em harmonia com a norma perfeita da Sua natureza. Em todas as mani- festagées que Deus faz das Suas perfeigdes a Suas criaturas, Ele sempre age de conformidade com a Sua verdadeira natureza, é sempre perfeitamente conseqiiente. Em seu sentido mais especial, esse atributo de verdade qualifica todas as relacgdes que Deus tem com Suas criaturas racionais. E verdadeiro, fiel, tanto para conosco quanto para conSigo; e assim esté posto um fundamento seguro para toda a fé e todo 0 conhecimento. E o fundamento, a base, de toda a confianga que temos, 1°. em nossos sentidos; 2°. em nossa inteligéncia (intellect) e em nossa consciéncia; 3°. em qualquer revelacao sobrenatural devidamente autenticada. As duas formas em que essa perfeicéo se manifesta em relacdo a nos sao: 1*. a verdade inteira que Ele mantém em todas as Suas comunicacoes; 2°. sua perfeita sinceridade ao fazer todas as Suas promessas e Sua fidelidade em cumpri-las. 74. Como se pode conciliar a verdade de Deus com 0 aparente ndo cumprimento de algumas de Suas ameacas? As promessas e as ameacas de Deus as vezes sao absolutas, e neste caso Ele as cumpre no sentido exato em que foram feitas. Muitas vezes também elas sio condicionais, dependentes da obediéncia ou do arrependimento da criatura — Jon. 3:4,10,11; Jer.18:7,8. Essa condigao pode ser expressa explicitamente, e pode também ser condi¢ao implicita, por entender-se que o caso individual esta naturalmente sujeito 216 Atributos de Deus ao principio geral de que o verdadeiro arrependimento e a fé livram de todas as ameagas e alcangam todas as bencaos prometidas. : 75. Como se pode conciliar com a sinceridade de Deus os convites é as exortacoes das Escrituras dirigidas aqueles que Deus ndo tenciona salvar? Veja acima (Perg. 53), a distingdéo entre a vontade pre- ceptiva de Deus e a Sua vontade decretatéria. Seus convites e exortacgoes Ele dirige de boa fé a todos os homens: 1°. porque é dever de todo homem arrepender-se e crer, e a vontade preceptiva de Deus é que todos 0 fagam; 2°. porque nao ha coisa alguma que impeca o pecador de o fazer, sendo a sua propria falta de vontade; 3°. em todos os casos em que alguém cumprir a condigaéo, Deus cumprird também a Sua promessa; 4°, Deus nunca prometeu habilitar todos a crerem; 5°. esses convites e exortacdes nao sao dirigidos aos réprobos como tais, e sim a todos os pecadores como tais, com o fim declarado de salvar desse modo os eleitos. A SOBERANIA INFINITA DE DEUS 76. Que se entende pela soberania de Deus? Seu direito absoluto de governar todas as Suas criaturas simplesmente segundo a Sua propria boa vontade, e de dispor delas. 77. Como se prova que esse direito é afirmado nas Escrituras? Dan. 4:25, 35; Apoc. 4:11; 1 Tim. 6:15; Rom. 9:15-23. 78. Em que se baseia a soberania absoluta de Deus? 1°. Em Sua superioridade, em Seu Ser e em todas as Suas perfeicdes em relacdo a todas as Suas criaturas. - lator 2°. Estas foram por Ele criadas do nada, e sao agora mantidas em existéncia por Seu poder, para a Sua prépria 217 Capitulo 8 gloria e segundo a Sua propria boa vontade — Rom. 11:36. 3°. Os beneficios infinitos que Ele nos concede, ¢ a nossa dependéncia dEle, bem como a nossa bem-aventuranga nEle, s40 motivos para que nds ndo sé reconhegamos essa verdade gloriosa, como também nos regozijemos nela. O Senhor reina; regozije-se a terra! 79. Haveria algum sentido em que hé limites a soberania de Deus? E evidente que, considerada em sentido abstrato, como um dos atributos de Deus, entre outros, a Sua soberania é€ qualificada por todos os demais. Nao pode senao ser uma soberania infinitamente sabia, reta e misericordiosa. Mas Deus, considerado em sentido concreto como soberano infinito, nao esta limitado por coisa alguma fora dEle proprio. “Todos os moradores da terra sao por ele reputados em nada; e segundo a sua vontade ele opera com 0 exército do céu e os moradores da terra; ndéo ha quem lhe possa deter a mo, nem lhe dizer: que fazes?” (Dan. 4:35). A SANTIDADE INFINITA DE DEUS 80. Que se entende pela santidade de Deus? N§o se deve entender a santidade de Deus como se fosse um atributo entre outros; antes, o vocdbulo é um termo geral que representa a concepgao da Sua perfeigéo consumada e a Sua gloria total. E a sua infinita perfeigao moral coroando a sua infinita inteligéncia e o Seu infinito poder. HA uma gloria que pertence a cada atributo, considerado por si sé, e hé uma gloria que pertence a todos eles juntos. A natureza intelectual é a base essencial da natureza moral. A infinita perfeicéo moral é coroa da Deidade. A santidade é a gléria total assim coroada. A santidade no Criador é a perfeigdo total de uma inteli- géncia infinitamente reta. A santidade na criatura nao é mera 218 Atributos de Deus perfeigao moral, e sim perfeigdo da natureza criada de agentes morais segundo a sua espécie, em uniao e em comunhao espirituais com o Criador infinito — 1 Joao 1:3. A palavra santidade, aplicada a Deus nas Escrituras, representa, 1°. pureza moral — Lev. 11:44; Sal. 145:17; 2°. majestade transcendentemente augusta e veneravel — Is. 6.3; Sal. 22:3; Apoc. 4:8. “Santificar ao Senhor” é fazé-1O santo, quer dizer, declarar e adorar a Sua santidade venerando a Sua majestade augusta em toda parte e em tudo aquilo em que e por que a Sua Pessoa ou o Seu carater é representado — Is. 8:13; 29:23; Ez. 38:23; Mat. 6:9; 1 Ped. 3:15. 219 ae wes 9 _ A Santissima Trindade 1 1. Quais sao a etimologia e a significacao da palavra Trindade, e quando foi introduzida na linguagem da Igreja? A palavra Trindade (Titnitas) é derivada detres—unus, trinus —trés em um, ou o um que é trés, e os trés que s40 um; nao triplo —trinitas e nao tripliecitas. A palavra nao se acha nas Escri- turas. Mas os termos técnicos sao uma necessidade absoluta em todas as ciéncias: e, neste caso, tornaram-se especialmente essenciais por causa das perversées sutis que sofreram as exposig6es simples e nao técnicas da Biblia 4s mos dos incrédulos e dos hereges. Esse termo, como definido acima, exprime bem o fato central da grande doutrina de uma s6 esséncia subsistindo eternamente como trés Pessoas, todos os elementos da qual as Escrituras ensinam explicitamente. A palavra grega que significa trindade foi empregada primeiro nesta conexao por Teéfilo, bispo de Antioquia, na Siria, de 168 a 183. O termo latino Jrnitas foi usado primeiro por Tertuliano, por volta do ano 220 - Eccl. Hist., Mosheim, vol. 1, pag. 121, nota 7. 2. Qual o significado teolégico do termo substantia, e qual a mudanca que ocorreu no seu uso? Substannia, no uso atual da palavra, é equivalente 4 esséncia, a existéncia independente. Assim, na Deidade, as trés Pessoas sio o mesmo em substancia, isto é, de uma s6 e mesma esséncia numérica, indivisivel. 220 A Santissima Trindade A palavra foi utilizada, no principio, como equivalente a subsistentia ou modo de existéncia. Neste sentido, enquanto ha na Deidade uma s6 esséncia, ha nela trés substantie ou Pessoas. Veja Turretino, Tomo 1, locus 3, perg. 23. 3. Que outros termos sdo empregados como os equivalentes de substantia, nas definicées desta doutrina? Os termos latinos essentia e natura. Em portugués: esséncia, substancia, natureza, ser. 4. Qual é 0 sentido teolégico da palavra subsistentia? E empregada para designar 0 modo de existéncia que distingue qualquer coisa individual de todas as demais coisas, ou qualquer pessoa de todas as demais pessoas. Aplicada a doutrina da Trindade, subsisténcia ¢é 0 modo de existéncia que € peculiar a cada uma das trés Pessoas divinas, e que em cada uma dElas constitui a esséncia inica em Pessoa distinta. 5. Qual o significado que, no Novo Testamento, tem a palavra “hyypostasis”? Esta palavra, quanto a sua etimologia, é exatamente equivalente ao termo substancia (sub-stare); vem da palavra grega que significa “estar sob” ou “debaixo de”. A palavra é empregada cinco vezes no Novo Testamento: 1°. Em sentido figurado, significando confianga, ou esse estado de 4nimo em que se esta cénscio de que se tem uma base firme e segura: 2 Cor. 9:4; 11:17; Heb. 3:14, que vem da fé, Heb. 11:1. 2°, Em sentido literal, significando natureza essencial — Heb. 1:3. Veja Com. on Heb., de Sampson. 6. Em que sentido a palavra é empregada pelos escritores eclesidsticos? Até meados do século 4 esta palavra foi empregada geral- mente, em conexao com a doutrina da Trindade, em seu sentido 221 Capitulo 9 primario, como equivalente ao termo substancia. E empregada neste sentido no Credo publicado pelo Concilio Niceno, em 325, e também nos decretos do Concilio de Sardica, na Ilfria, em 347. Estes concordaram em afirmar que, na Deidade, ha so uma hypostasis. Como porém, alguns, naquele tempo, tomassem a palavra no sentido de pessoa, seu uso foi mudado, por consenso geral, principalmente gracas a influéncia de Atanasio e, dai por diante, seu sentido, na linguagem teolégica, € 0 mesmo que pessoa, em distingao da palavra grega que significa esséncia. Foi transferida para a lingua portuguesa na forma de um adjetivo, para designar a uniao hipostatica, ou pessoal, de duas naturezas no Deus--homem, Jesus Cristo. 7. Que é essencial & personalidade, e como se deve definir a palavra pessoa, em conexdo com a doutrina da Trindade? A palavra latina suppositum — uma existéncia distinta ¢ individual; e.g., uma 4rvore ou um cavalo, em particular. Uma pessoa ésuppositum intellectuale, uma existéncia distinta e indi- vidual 4 qual pertencem as propriedades da razio e da livre vontade. No circulo inteiro da nossa experiéncia e observacao da existéncia pessoal entre as criaturas, a personalidade descansa sobre a distingao de esséncia e parece ser inseparavel desta. Cada pessoa distinta é uma alma distinta, com ou sem corpo. Esse modo distinto de existéncia que constitui a unica esséncia divina coordenadamente em trés pessoas separadas, é um mistério infinito que nao podemos compreender e que, por isso, nos é impossivel definir adequadamente, e s6 podemos conhecé-lo até onde nos é revelado. Tudo 0 que sabemos a res- peito é que essa distincao, chamada personalidade, abrange todas essas propriedades incomunicaveis, que pertencem eternamente ao Pai, ao Filho e ao Espirito Santo, separada- mente, e nao atodosem comum; que ela éa base para Eles Se congregarem em conselhos, para Se amarem mutuamente e 222 A Santissima Trindade para atuarem uns sobre-os outros, isto é, para interagirem, como, e.g., para o Pai enviar o Filho, e para o Pai e o Filho enviarem o Espirito Santo, e para o uso dos pronomes pessoais Eu, Tu, Ele, na revelagao que qualquer das Pessoas faz de Sie das outras. Gerhard define pessoa assim: “Persona est substantia individua, intelligens, incommunicabilis, quz non sustentatur in alia, vel ab alia”. Em relacao a este grande mistério da Trindade divina de Pessoas na unidade de esséncia, a definicao que Calvino oferece é melhor, por ser mais simples: “Por pessoa, pois, entendo, uma subsisténcia na esséncia divina — uma subsisténcia que, embora relacionada com as outras duas, distingue-se delas por propriedades incomunicaveis” - Institutas, Liv. 1, Cap. 13,96. 0. .+- 8. Que outros termos tém sido empregados pelos tedlogos como equivalentes de Pessoa, nesta conexao? Em grego, hypostasis, e prosopon — aspecto; em latim: persona, hypostasis, subsistentia, aspectus; em inglés: person, hypostasis; em portugués: pessoa, hipéstase. 9. Que é que se entende pelos termos: "homoousios” (da mesma substancia) e “homoioustos” (de substdncia semelhante)? No primeiro concilio ecuménico da Igreja, o qual, cons- tando de trezentos e dezoito bispos, foi convocado pelo imperador Constantino em Nicéia, na Bitinia, em 325, havia trés grandes partidos que mantinham outras tantas opinides a respeito da Trindade. : 1°. O partido ortodoxo, que mantinha a opiniao, agora sustentada por todas as igrejas cristas, de que o Senhor Jesus, quanto 4 Sua natureza divina, ¢ da mesma substancia, idén- tica, ao do Pai. Esses insistiram em que se Lhe aplicasse 0 termo especifico “homoousios”, composto de (homos) - 0 mesmo, e (ousia) — substancia, para ensinar a grande verdade de que as trés Pessoas da Deidade séo um sé Deus, por serem 223 Capitulo 9 da mesma esséncia numérica. 2°. Os arianos, que mantinham que o Filho de Deus é a maior de todas as criaturas, mais semelhante a Deus do que qualquer outra, o unigénito Filho de Deus, criado antes de todos os séculos, por quem Deus criou todas as coisas, e di- vinosd nesse sentido, Sustentavam que o Filho era “heteroousion” — de esséncia diferente, ou genéricamente dissemelhante do Pai. 3°. O partido médio, chamado semiarianos, que man- tinham que o Filho nao é criatura, mas negavam que fosse Deus no mesmo sentido em que é 0 Pai, afirmavam que 0 Pai é 0 unico Deus absoluto e auto-existente; e que, ao mesmo tempo e desde toda a eternidade, fez proceder de Si, da Sua propria livre vontade, uma Pessoa divina, com amesma natureza € as mesmas propriedades que Ele mesmo possui. Negavam, pois, que o Filho fosse da mesma substancia (homoousios) com o Pai, mas admitiam que é de uma esséncia realmente semelhante e derivada do Pai (“homoiousios”, de semelhante, e “ousia”, substancia) um s6, genericamente, mas nao numericamente. Naquele concilio prevaleceram as opinides do primeiro partido, ou seja, do partido ortodoxo, e desse tempo em diante tém sido representadas sempre pelo termo técnico — opinides homoousianas. Quanto ao credo promulgado por esse concilio, veja o cap.7. 10. Quais as proposigées envolvidas essenctalmente na doutrina da Trindade ? 1°. H4 um sé Deus, e Ele é um s6, isto é, é indivisivel. 2°. A tinica esséncia divina e indivisivel existe, como um todo, eternamente como Pai, como Filho e como Espirito Santo; possuindo, cada Pessoa, a esséncia toda e sendo constituida em Pessoa distinta por certas propriedades incomunic4veis, nao comuns a ela e também As outras. 3*. A distingao entre as trés é distingdo pessoal, no sentido 224 A Santissima Trindade de que ocasiona (1) 0 uso dos pronomes pessoais Eu, Tu, Ele, (2) uma concorréncia em conselho e um amor mitituo, e (3) uma ordem distinta de operagao. 4°, Havendo sé uma esséncia divina, e sendo todos os atributos ou todas as propriedades ativas inerentes na esséncia a que pertencem, e inseparaveis dela, segue-se que todos os atributos divinos devem ser identicamente comuns a cada uma das trés Pessoas que subsistem em comum na tinica esséncia divina. Entre as criaturas, cada pessoa distinta é uma distinta substancia numérica, e possui uma inteligéncia distinta, uma vontade distinta, etc. Na Deidade, porém, ha s6 uma substan- cia,uma inteligéncia,uwma vontade, etc., e, contudo, co-existem eternamente nessa tnica esséncia trés Pessoas, cuja inteligéncia, vontade, etc., € uma sé. Em Cristo, pelo contrario, ha dois espiritos, duas inteligéncias, duas vontades, e, contudo, ao mesmo tempo, s6 uma indivisivel Pessoa. 5*. Sendo essas Pessoas divinas um s6 Deus, todos os atributos divinos séo comuns a cada uma dElas no mesmo sentido; nao obstante isso, porém, revela-se-nos nas Escrituras que existe entre Elas uma certa ordem de subsisténcia e operacao. (1) Desubsisténcia, de modo que o Pai nem é gerado, nem procede, enquanto o Filho é eternamente gerado pelo Pai, e o Espirito procede eternamente do Pai e do Filho; (2) De operacao, de modo que a primeira Pessoa envia a segunda, e opera por meio dEla, e a primeira e a segunda enviam a terceira e operam por meio dEla. Por isso é que se diz sempre que 0 Pai é a primeira Pessoa, o Filho a segunda e 0 Espirito Santo a terceira. 6°. Apesar do fato de que todos os atributos divinos sao igualmente comuns as trés Pessoas, e que todas as operagoes divinas realizadas ad extra, tais como a criagao, a providéncia e a redencao, sdo atribuidas ao tinico ser divino— ao Deus tnico, considerado em sentido absoluto — e também em separado ao Pai, ao Filho e ao Espirito Santo, contudo, as Escrituras atri- buem algumas operagoes divinas realizadas ad intra 225 Capitulo 9 exclusivamente a cada uma das Pessoas divinas, respectiva- mente, ¢.g., geracao ao Pai, filiacgéo ao Filho, processao ao Espirito Santo; e ha também algumas operacées realizadasad extra que as Escrituras atribuem proeminentemente a cada Pessoa, respectivamente,e.g., criacao ao Pai, redengao ao Filho e santificagao ao Espirito Santo. Portanto, a fim de estabelecermos esta doutrina em todas as suas partes sobre 0 testemunho das Escrituras, é necessdrio que provemos, em sua ordem, as seguintes proposicées: 1*, Que Deus é um sé. 2*, Que Jesus de Nazaré, quanto 4 Sua natureza divina, era verdadeiramente Deus e, ao mesmo tempo, Pessoa distinta do Pai. 3*. Que o Espirito Santo é verdadeiramente Deus e, ao mesmo tempo, Pessoa distinta. 4°, Que as Escrituras ensinam diretamente que h4 uma Trindade de Pessoas em uma s6 Deidade. 5", Restara reunir tudo o que as Escrituras ensinam a respeito das relagdes necessarias € eternas que estas trés Pessoas divinas mantém umas com as outras entre si. Essas relagdes podem ser assim distribuidas: (1) A relagaéo que a segunda Pessoa mantém com a primeira, ou a geracao eterna do Filho; (2) Arelagdo que a terceira Pessoa mantém coma primeiraea segunda, ou a processao eterna do Espirito Santo; e (3) Suas propriedades pessoais e a ordem da Sua operacao ad extra. 1. DEUS E UM SO E HA UM SO DEUS As provas desta proposicao, tiradas da razfo e das Escrituras, foram expostas acima, Cap. 8, sobre os atributos de Deus, perguntas 12-18. A resposta a pergunta: como se pode conciliar com esta doutrina fundamental da unidade divina a existéncia coordenada de trés Pessoas distintas na Trindade, achar-se-4 abaixo na pergunta 94 deste capitulo. 226

Você também pode gostar