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Friedrich Nietzsche A VONTADE DE PODER Marcos Sinésio Pereira Fernandes Francisco José Dias de Moraes Contraponto © desta edigao,Contrponto Editors Lids, CONTRAPONTO EDITORA ETDA, Aw. Franklin Roose 23/145 Rio de Janeiro, RI~ CEP 22292-970 ‘Telefax (21) 2544-0206 2215-6148 Site: woe: conteapontoeditors.com.br E-mail contato@eontraponteaditors.com.be “Todos o dicitos reservados e potegdos pel ei n°5.988, de 14.12.1973. proibida a eprodugo total ou parcial por ‘quasquer mes, sm auorizag, por escrito da elitr, 1 teimpesst margo de 2011 Tiragems 2.000 exemplarse Revisao de origins (Car Benin Revisdotipogrifica Tereza de Recha Projetogritico Regina Forge ‘Teno evsado segundo nove Acordo Ortogrtico da Lingus Portuguesa Ostradtores agradecem o apoio do “aboratério Oasis de Estudos em Filosofia Clissica do Instuto de Flosofae Ciencias Soins «ds Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCSIUFR). CIP-ARASIL CATALOGAGKO-NA-TONTE SINDICATO NACIONAL DoS EDITORES DE LIVROS,k} NsslvNietasche, Fidhich Wilhelm, 1844-1900 ‘A vontade de poder /Fidich Niktsche; talugSo do ‘orginal alemioe notas Marcos Sinésio Pereira Feenancs, ‘Franciseo José Dias de Moraes; apresntagao ihn Fogel, Ro de Janeiro: Contrapont, 2008, “Tradugto de: Wille ur macht ISBN 975-85. 35910.96.0 |. Fllosofa ale Titulo, 8.0504 coo 193 cou as) sumAnio, Apresemtagao 7 Sobre a traducao A VONTADE DE PODER Preficio. 7 PRIMEIRO LIVRO: 0 NIILISMO EUROPEU Como plano 1 Niilismo 2. Niilismo como consequéncia da interpretagio de valor da cexisténcia até hoje 2. Causas mais distantes do niilismo - 3-O movimento niilista como expressio da décadence.. 4-4 crise: niilismo e pensamento do retorno IL Para a histéria do niilismo europeu.... a) O obscurantismo moderno . b) Os ttimos séculos..... . ©) Sinais de fortalecimento 7 SEGUNDO LIVRO: CRITICA DOS MAIS ALTOS VALORES ATE HOJE. 1 Critica da religiao 1. Do surgimento da religito 2. Sobre a hist6ria do cristianismo 3. O ideal cristdo 1. Critica da moral 1. Origem das estimagoes morais 2. rebanho. 3- Do moralismo universal 4. Como se leva a virtude a dominagao 5 23 7 29 29 8 52 7 7 68 a APRESENTAGAO Gilvan Fogel” A-vontade de poder — tentativa de uma transvaloragio de todos os valores :Shabitualmente, se entende ¢ se subentende uma exposicao sis- temitica, isto é, a apresentacio de um tema, de um problema, de maneira articulada € bem composta (sistema), seguindo um fio condutor, uma certa ideia ou concepgao orientadora. A rigor, ainda que a concepeao “vontade de poder” atravesse € conduza, quer explicita, quer implicitamente, todos os textos, A vontade de poder — tentativa de uma transvaloragto de todos 0s val res ndo & isso ~ a saber, uma obra em sentido habitual ou canénico. Antes, trata-se de um apanhado de textos, de uma coletnea de anotagdes ¢ de frag- ‘mentos, com base no vasto acervo postumo [Nachlass] de Nietzsche, princi- palmente no que diz respeito as anotagGes do filésofo nos cadernos (uma in- crivel quantidade dele: década produtiva. A primeira edigdo desta coletinea de textos surgi em 1901, logo apés @ morte do filésofo (1900), com 483 fragmentos) Uma segunda edicao, de 1906, com 1.067 fragmentos, constitui a versio mais conhecida e divulgada, que ser- viu de base para a presente traducio, ss ‘Tal coletanea foi organizada por Blizabeth Férster-Nietzsche)ivros 2 ¢ 4), irmi do filosofo, e por Peter Gast (livros 1 ¢ 3), dileto amigo node Nietzsche, datado de 17 de marco de 1887. Hé outros planos, diferentes esbogos de Nietzsche, visando 4 organizacio de uma tal obra (A vontade de Poder — tentativa de uma transvaloragto de todos os valores) que, por diversas ircunstancias, principalmente relacionadas & satide, jamais veio a luz."" esctitos na década de'880))que foi a sua tltima segundo um pla Doutor em filosofa pela Karl-Ruprecht Universiti, Heidelberg, Alemanka,e professor titular -filolégicos. Con- frontados com a edigao critica, hoje disponivel, se vé tratar-se de textos ge- rnuinos, ainda que, aqui ou ali, com pequenos erros e pequenos cortes, Ia- Cunas, nao por alguma pretensa mé-fé, mas por deslizes naturais de uma Publicagio que nfo segue normas crtico-filolégicas préprias da acribologia ientifica. Isso é decisivo: os textos s4o auténticos e constituem uma rica co- letanea de fragmentos da tltima década produtiva de Nietzsche. Uma tal coletinea, em versio integral, com os 1.067 fragmentos, era desconhecida Por nés, no Brasil, em tradusio para nossa lingua, Hoje, na edicao critica, inicialmente organizada por G. Colli e M. Montinari, depois seguida por W. Miller-Lauter e K. Pestalozzi, em Walter de Gruyter, Berlim, os textos éstdo diluidos no corpo da edigio, de acordo com a ordem cronolégica de suas respeetivas redagoes, Que nao se leiam, pois, estes textos com o espirito eo intuito de ai desco- brir alguma sistematizago da obra e do pensamento de Nietusche. Os textos ‘do seguem, nao obedecem a nenhum plano, ainda que em rigorosa unidade € consonancia com o pensamento maduro de Nietzsche. £ preciso, portanto, ue vejamos tal obra como uma rica antologia de textos nietzschianos tar, dios. Diria Nietzsche, dardos, lechas langadas contra nés, ands. Que dardosQue-flechas!- — — 2 Vida, desde O nascimento da tragédia, sempre ocupou o centro do pen- samento de Nietzsche. Vida, que em principio ngo se refete a nenhum Fend= t APRESENTAGAO a Vows SoOee ‘ion jo que og 0 de psyché meno da ordem do biologic, fala do que o grego, soba esienato. Je psyche,» “Ge modo amplo e geral, caracterizou como movimento que, desde si mesmo, | anus has asthe sealucoras [ah ie ES Comer. endo pode comecar. Esta visio ou experiéncia caracteriza igualmente creo, isto 6 insergo, Inserco como estrutura de comeso, de-arché, de vida. Por- tanto, nada fora além ou aquém. Principio de si mesmos principio que no principia, comeco que fio comesa. Entao, irrupgio sibita, gratuita, ¢ isso, de novo, perfaz circulo, circularidade ow inser¢ao. ; ois bem, essa estruturacao ou fendmeno, que fala da experiéne case i i tir do Zaratusira, passa a denomi- de arché, Nietasche, mais ou menos a parti adeno SX vonndede ‘poder Wille zur Macht. Esta nogao, para Nietzsche, d& maior lareza, maior inteligibilidade & vida. Por que vontade? Por que poder? O que propriamenie quer dizer isso? a b \) 02.5" Wontade\que nfo é nenhum poder da subjtividade humana, nada dede- 4 tes, cisio owarbitrio de alguma faculdade subjetiva do homem, se refere Crranscendéncia que caracteriza a insergio, que perfaz o circulo que é vida, que to || agravar-se, intensificar-se. Bis 0 é/poder)a medida que é realizacio 6,agravar-se, intensificar-se. Fisso mesmo élpoder,4 medi realizag 6 aatla ea i imperal vige evale)E forga)- esta forca ~ concrel zada. Vida € vontade de poder, quer di sde nada, a partir de nada, mo- mento livre (gratuito, sem porque, sem causa) de, para [zur] aparigio€, en- to, asim, imposigao, vigéncia poder. Vida, enquanto e como vonta poder, éa fala do extraordinério, do milagre que o grego experimentou como o elementar de Ser-aparecer) Sim, isto, a vida, €0 elementar ou o elemento 0 ‘A tendéncia, ou melhor, o espontineo desse aparecer, portanto éprio fio crescer ido somativo, 0 proprio de vida e de vontade, € crescer. Nao crescer no sent Ect aeic avolumanlo-es ¢ agigantando-se (engordando!), mas crescer "Se agravary)se intensificay e, assim, de algum_ anhar clareza, ni- tidez e lucidez na sua propria historia (Geschichte, isto & no seu proprio des- tino ou envio histérico, pois ¢ isso que, verdadeiramente e em iiltima instan- ‘cia, est em questo, Entao, nesse sentido, é envio, destino e crescimento, isto &intensificagao de poder. Esse crescimento, essa clareza ou evi lencia de des- tino ow de envio histérico pode e até precisa ser também 0 crescimento € a intensificagdo do obscuro, da sombra, do insondével. Portanto, nenhuma ve- leidade faustiana ou nada de vontade cartesiana de representagao clara e dis- APRESENTAGAO 3 rye ; ; isso se mostra exemplarmente a criagdo art fim, circularidade (Finitude) da vida. Vontade de poder € 0 caminho trilhado por . conquista, a dese facasso constitutive, €doada ao homem, & lesa 3. A década de 1880, na vida de Nietzsche, constitu 0 periodo de maior ~ ocidental, sob a forma de Ubermensch)0 sapreionen | bere-albdo lucidez, de maior intensidade de seu pensamento — de maior poder. & quan- mem. No pensamento de Nietzsche, isso ms spon fe lao in ian ‘do seu pensamento esti mais afinado com a gravidade de sua tarefa ¢ mais Nos textos enfeixados sob o titulo A vonia . a ‘pot ae rat de uma afindo para sua consecugio, Essa Iucidez coincide com a cunhagem do pen transvaloragao de todos os valores & Press também secu se subauvit-a samento vida como vontade de poder. A luz desse conceito, dessa “psicolo- cada passo, a pergunta de Zaratustra:\“Quem eve oo senhor da Tern) 8ia.¢ morfologia da vida”, como ele mesmo denomina, Nietzsche, ou melhor, Terra 6 um outro nome para dizer 0 acontecimento g alo, stein esse conceito vai medir-s, isto é confrontar-se, discutir com a tradigfa flo finito, sem porqué, sem para qué, da vida. E: ‘Quem deve sero senor da s6fica do Ocidente. Em questo esté a prépria filosofia, a metafisica, o saber Tent” No € 0 homen insurgde, reboot do rex nents ede radical, de principio e de fundamento, Enfim, em questio esta a cidncia, die vinganga, o homem da vontade escrava, hoje, 0 ho en a rsionalidade Wissenschaft, na designagao quase pomposa do idealismo alemao, ou seja, séenica-e-da-tecnociéncia, mas a real resposta de. Zarai sehor aguele ido da Terra} O sentido da Terra € © saber (metafisica, ontologia), de modo geral. Este saber, em geral, apare- a ind de ser aquelé que obedece a es z came send a Te ce encarnado em seus grandes dominios: 0 conhecimento, a légica, a moral, ntade de poder) isto ¢, livre e gone crescent 2 teologia (cristianismo), a politica, a arte. Em questio estarao conceitos imento vida, Desde nada, para nada, in jen tan le, causal a st lo, . cant eset as anda en SEdugio destes 1.067 fragmentos, que poe a nossa disposigao um ri- sonsciéncia, representago, movimento, repouso, um, méiltiplo, todo, parte, 7 cr = " | i, esséncia, teleologia, histéria ey ee ee quissimo material do espolio de Nietzsche, é muito oportuna ¢ ficamos gra- Descle vontade de poder}como um pensamente Fundamental) entéo, um tos ala. saber de principio, esses conceitos basicos da tradi, inclusive a prépria von- | Petiipals 7 a jameira aeranae tade de poder, no jogo da confrontagio, sio vivisseccionados ¢, assim, atra- Le vessados, perpassados ~ superados.(Superar nao é el iminar, excluir. Nao se N {rata de eliminagio historica, de anulagao e exclusfo de tradigio. Ao contra ded on / |__| tio. €assungd0, incorporagao, Superar fal, sim, de ultrapassar, de um ir so- hak st \y | bre, para aléme, assim, incorporar tais conceitos desde um outro horizonte, & partir de um outro registro, a saber, principio, vida, visto (ou vista) enquan. f0€ como vontade de poder ¢, claro, tudo que isso implica; Superagao, ultrapassamento da metafisica é uma conquista historica do homem ocidental europeu, do tipo (0, @ parti da qual ele se transporta ou se transpoe, Melhor, reconquista um vel 4 propria vida como vontad uma tensdo vital, na qual e desde'a qual a fendéncia para substincia, a vontade de verdade Lultrapassada, superada, ou seja, € buscada, mesmo realizada e também sem- pre perdida, largad: | abandonada, esquecida em favor do nada do fando ou do fandamento e como sendo-justamente isso e, assim, a realizagio do brs prio sentido da vida, da existéncia, sem nenhum sentido, Indtil, no sentido dle sem sentido (?) ou sem Tinalidade-alguma para além ou aquém da prop SOBRE A TRADUGAO Marcos Sinésio Pereira Fernandes fancisco José Dias de Moraes ‘Nietesche nunca chegou a escrever um livro chamado A vontade de poder. No entanto, todos os aforismos que este livro contém foram, sem divida, es- critos por ele. © que, de fato, nao € de autoria desse pensador € a ordenagio {dos aforismos sob os respectivos titulos que dividem a obra. Isso é 0 resulta- do de uma compilagio efetuada por sua irma Elizabeth Forster-Nietzsche e por um discipulo e amigo, Pete veves, iima em 1906, fos volumes IX e X da “Edigtio de bolso” das Obras de ‘Nietzsche, outra em 1911, nos volumes XV e XVI da “Grande edigdo in oitave", A décima terceira edigio da Kroner, a partir da qual traduzimos, base nos aforismos selecionados para essas duas edicoes. Além disso, cada aforis- mo foi comparado com o texto dos Fragmentos pdstumos estabelecido por Giorgio Colli e Mazzino Montinari na Kritische Gesamtausgabe (edigao crit 2 das obras completas de Nietzsche) a partir dos manuscritos do proprio Nietzsche, Todavia, sabe-se hoje, por intermédio de cartas e de anotagbes pes- soais de Nietzsche, que este contava vealmente publicar um livra, como titu- 1o.A vontade de poder, que conteria a stimula de toda a sua filosofia, ¢ para o qual_o seu Zaratustra serviria de preambulo. f 0 que podemos constatar no seguinte trecho da carta escrita a Franz Overbeck no dia 7 de abril de 1884 Sast, que, juntos, publicaram a obra duas ‘Sends mundo”, com areebetamento, ainda que com muitos resultados terrveis. NBO the mostrei uma vez a carta de Jacob Burckhardt, que me esfregou no nariz a “istéria do mundo”? Caso vd para Sils-Maria no vedo, pretendo empreender uma tevisio de minha metaisica e de meus pontos de vista epstemoligicos Passo a pass, teaho agora que atravessar uma série de disciplinas, pois me de- cidi, dagui para diante, empregar os proximos cinco anos a0 acabamento de minha “flosofa", para a qual construf uma antecamara com o meu Zaratisia Nos tinari na Kritische Studienausgabe (que aqui seré sempre a nossa referéncia, nos mezes tenho promovido os meus couliecimentos de “historla do ragmentos péstumos, editados por Giorgio Coli e Mazzino Mon. quanto 4 carta e aos fragmentos), apresentam-se varios titulos que deve- Fiam ser antepostos a esta obra capital. Pela primeira vez vemos a mengao de A vontade de poder no fragmento péstumo 1 (35), outono de 1885-primavera vom 2885-prima Avvontade de poder A tentativa de uma nova interpretagio de todo acontecer de Friedrich Nietzsche No fragmento péstumo 2 [100], ovtono de 1885-outono de 1886, podemos ler nova alusio ao titulo: Avontade de poder Tentativa de uma transvaloragao de todos os valores Em quatro livros. Primeiro livro: o perigo dos perigos (apresentacio do niflismo) (como da necessiria consequéncia das valoragdes de até agora) Segundo livro: ica dos valores (da légica etc.) Terceiro livro: 0 problema do legislador (nisso, a histéria da solidao). Como ‘os homens tém de ser constitufdos para avaliar de maneira inversa? Ho- ‘mens, que tém todas as propriedades da alma moderna, mas sio fortes o bastante para transformd-la.em satide pura, - Quarto livro: o imartelo seu” meio para a sua tarefa Foi segundo um plano elaborado por Nietzsche para essa obra, em 1887, ‘que sua irmé e Peter Gast compuseram o livro A vontade de poder, compilan- doe ordenando, de maneira muitas vezes arbitréria, os fragmentos em torno da data em que o filésofo manifestou a intengao de elaborar a sua obra mes. tra, na carta que citamos acima, até a época de seu colapso em Turim, Pode- ‘mos encontrar na Kritische Studienausgabe esse plano de 1887 como o frag- mento péstumo 7 [64], final de 1886-primavera de 1887: Iteecho perdido de todos os valores Primeito livro O nilismo europeu "Seu" rafere-se a “homens” + cuja mengao consta no nal do contesido cxplictado do terceieo = 8 meng final do contedido expicitado do SoRE A TRADUGAO wv Segundo livro Critica dos valores superiores ‘Terceito livro Principio de um novo estabelecimento de valor Quarto Livro Disciplinamento e cultivo Esbogado no 17 de margo de 1887, Nizza.* ‘Até o plano da obra, portanto, € do proprio Nietzsche. Somente a escolha a ordenaciio dos aforismos é que se devem a Elizabeth Forster-Nietasche ¢ a Peter Gast ~ 0 que nao deixa de ter importantes determinagdes no sentido da ‘obra, Quanto a irma de Nietzsche, seja por mi-fé, seja por falta de cuidado filos6fico, trocou palavras ¢ corrompeu alguns trechos do original. Feliz ‘te, a edigao critica em lu nos baseamos,«A€Ginsr era edi da RrOner) “corrige essas distorgGes mediante a comp: cada aforismo Com 0 TxI0 dos Fragmentos péstumas estabelecido por Giorgio Calli e Mazzino Montina- ria partir dos manuscritos do préprio Nietesche, que foram a fonte original. Por exemplo, io aforismo 25, em que, em ver de “Nonchalance” [despreocu- pacdo], que constava no manuscrito original de Nietzsche, a sua irma havia posto “Radikalismus” (radicalismo]; ou no aforismo 109, onde, no lugar de “der Menschen” (dos homens], constava “der Kleinlichen” [dos pequenos]; ou ‘no aforismo 619, onde, no lugar de “innerer Wille” [vontade intima], consta~ va “innere Welt” [mundo intimo]. Mas Peter Gast, por ter gozado de grande intimidade com Nietzsche, respalda, erit particular, o valor da organizagéo da obra, Durante o inverno de 1875-1876, Pet st (apelido de Heinrich Ko- selitz) transferiu sua moradia, junto com 0 amigo Heinrich Widemann, de Leipzig para a Basile, s6 para assistir aos cursos de Nietzsche, depois de ter ido alguns de’ seus textos, especialmente O nascimento da tragédia. A partir de entdo, a relagio entre ele e Nietzsche est mais, até 0 pon- to daquele ter se tornado uma espécie de secretario deste: com efeito, trechos inteiros da obra de Nietzsche foram ditados a Peter Gast, que também discu- tia com o pensador o sentido intimo dessa obra. A relagao entre os dois per- durou até o colapso mental de Nietzsche, em Turim, em 3 de janeiro de 1889. Por isso afirmamos acima que a autoridade de Peter Gast &¢ nificativo para conferir valor & organiza¢io dos aforismos. Quanto a inter- vengio de ambos os organizadores de A vontade de poder, informamos ainda a= Gide do ttoral da Provenga, regio no Sul da Franga. (8-1) ( | 2 orientagéo que tomamos nos pri ‘que constam entre colchetes os acréscimos ¢ adigdes que Peter Gast ¢ Eliza- | beth Forster-Nietzsche fazem ao longo de toda a obra. A vontade de poder, tal como saiut na ediglo critica da Kréner em que nos baseamos (a décima terceira), divide-se em quatro livros: 1. O niflismo euro- peu, 2. Critica dos mais altos valores até hoje, 3. Principio de uma nova va- loracao e 4. Cultura ¢ cultivo [Zucht und Ziichtung]. Uma ver. esclarecida a crigem do livro, nao vemos razdo para modificar a ordem dos fragmentos, ou para integrar novos fragmentos, como fizeram outras tradugées da obra. Essas modificagoes, ao nosso ver, s6 conseguiram criar mais dificuldades para 4 identificagio dos fragmentos, pelo fato de a ordem e, consequentemente, a numeragio dos aforismos serem entio modificadas, variando completa. ‘mente de uma edigdo para outra. Além do respaldo histérico, que tentamos resumir, no vamos nos eximir da responsabilidade de dar 0 nosso testemunho em favor da forca expressiva que esta seleglo ¢ organizagao dos Fragmentos péstuntos tem para explicitar 0 pensamento de Nietzsche. O desenvolvimento da obra que aqui traduzimos oferece um conjunto capaz. de descortinar toda a amplitude e o enraizamen- to do pensamento mais maduro do filésofo, Queremos ainda tratar de uma questao que concerne diretamente a uma eiros passos desta tradugao. Optamos, co- mo se pode constatar, por traduzir o titulo por‘A vontade de poder\ Essa op- ‘40, porém, no se fez sem hesitacio, sem cisma, sem muita meditagao, Fica- ‘mos tentados, particularmente, por outra opgio: A voniade de pot verdade, essa foi a nossa primeira preferéncia. Os obstéculos apresentaram- se no decorrer da tradusao: tetiamos que forear muitas passagens que clama- ‘vam para que “Macht”, do titulo alemio da obra [Der Wille zur Macht], fos- se traduzida pela nossa palavra “poder” ~ e nao “poténcia”. Pusemo-nos a refletir e compreendemos que, afinal, tudo o que queriamos dizer, se tradu- zissemos a palavra ulema por “poténcia”, nao se perderia se a opgao fosse “poder”. A decisio se fortaleceu quando consideramos qite a anteposicio de tum preficio poderia muito bem cumprit o papel de chamar atengio para a importancia do que esta em jogo nessas palavras e 0 que cabe conservar para ‘manter uma correspondéncia essencial com o pensamento de Nietzsche. Cremios que o centro gravitacional do titulo € palavra Cvontade”)O pen- samento de Nietzsche herdow essa palavra'do de Schopenhauer €, secunda- riamente, do de Kant) Ela é 0 elo que liga Nietasche a toda tradigao fil em seu assumife repudiay Por iss0, we sobre ela para ganharm antepor a obra © foco das palavras que Nietzsche achou por bem a ser a simula do seu pensamento. MiQaust « sopre A TRADUGAO. HRY 9 | Cart do Po ' tf \*" 0 original alemao Der Wille zur Macht dit algo como A vontadedircio- (nada e voltada para o poder”. Este é 0 sentido conferido pela preposigaio “zui” para’). “A vontade de poder” diz, portanto, a vontade, o modo de ser, que se estrutura em coi om o poder. Mas o que quer dizer poder? Po- ‘der nio é aqui, como facilmente se poderia pensar, o poder jé instituido e | lees como o poder politico, de modo que “vontade de poder” esta- | tes,avontade em que o préprio poder é poder, eo Tan po ‘Todo empenho vigoroso.c pleno de si é desde si mesma, manifesta poder e ¢ poder ( que ha na vontade, ap ¥ ¥ a (i or subconsclente, pervertida etc. im todos os cues aaron, esti ‘em jogo o empenho mais auténtico do homem}de acordo com Nietzsche. Dizemos, comumente, Vontade de alguma coisa:)Com isso estamos indican- do: a vontade liga e empenka o homem sempre com referéncia a —alguma coisa”, Trata-se aqui do “objeto” da vontade. Vontade ¢ sempre falta de.) coisai Vontade € constitutivamente falta) Por isso foi_proclamado: superior &.vontad in Snes eee Salisfacio,ja completeza)o contentamento ~ | de novo: vontade - eis a mensagem qu es _Kidentidade da vontade, © voltar a si (evir:seu vigor, sua forga, sua poténcia, seu poder estao con auséncia que a faz, justamente, vontade como ceme essencial de todas as coi- ‘as, como abertura essenclal de todo o ui eno ea se: ATigagao consigo mesma da vontade, a sua “identidade” (no que coniras ta com a ontologia, com 0 pensamento do ser, do que é 0 mesmo consigo mtrastando com o que é a unidade, & op de, a plenitude), faz-se de modo que vontade seja um eterno langat=s pro-Mover-se eterno, um pro-jeto que porta em su a um nada pro pulsor, nada que ¢ falta constitutiva da propria esséncia anelante da vontade; repulsio de todas as coisa, por io a danga dos planctas, ‘estrelas e do que chamamos de étomos: por isso a abertura de toda a realida- ria. a dizer algo como “desejo cobigoso de poder”. “Vontade de poder” & an-y | < | de para, sempre renovadamente, combinar-s, transformar-se: por isso a géncia eterna do devir. Em O nascimento da tragédia, quando o pessimismo de Schopenhauer nao havia sido ultrapassado por Nietasche, esse carter da de, a pura dor) Por isso, nesta obra, Nietzsche menciona um Uno-origindrio (Ur-Eine) de pura dor: que exige a ilusio, a representagao, o mundo feno- miénico e, sobretudo, a arte para extravasar-se de sua dor, para exorcizar a pura angtstia, o puro anelo no exteriorizar-se da aparéncia, do fendmeno, Esse pensamento de Nietzsche jé permitia uma critica & ciéncia, uma critica a toda foniade de verdade? pois a verdade ¢ aqui o propriamente insuportavel: mo a soem a ‘Com o desdobramento do pensamento de Nietzsche até o surgimento da vontade de poder como cere de toda realidade, a necessidade da vontade, 0 anelo, foi descobrindo-se como a sua forca, a sua tonicidade, o seu maximo poder, A dinimica da vontade passa a ser vontade de poder: a vontade langa- a qual intensiicada jt tade: na resistén ta quie tensiona, 9 apropriar-se do sentido de todas as forgas resistentes € a intensificagao da poténcia, do poder inerente & prépria dindmica da vontade, pri intensidade de sua angiistia de sua falta! que s6 poderd ser assumida pela firmagio, pela transformagio da falta, do (nada em tonicidade do querer. ‘A completeza e a permanéncia} por outro lado, sao perdas do vigor da von- tade, que é sempre um pro-jeio, um lancai-se. A iltima palavra da realidade ¢ dada ao devir, segundo 0 pensamento de Nietzsche. Poténcia é a tensio do arco do querer ~ que envolve essencialmente falta, constituida pela resis- téncia. Poder € a possibilidade de realizagdo que sempre pressupde essa ten- so e 0 suportar dessa tensio para assungao do criativo ~ que uma vez no Ocidente, na aurora da filosofia, foi chamado de physis. ‘Que isso nos baste como comentario do titulo da obra de que aqui nos cocupamos de traduzir. De resto, os aforismos falam por si mesmos. QW Awan QS Q | PREFACIO Grandes coisas exigem que nos calemos seu respeito ou que falemos com sgrandeza: grandeza quer dizer: com inocéncia, ~ cinicamen © que conto €a hist6ria dos dois préximos séculas) Descrevo o que vem, © que nao pode mais vir de outro modor'o advento do niilismo. Essa histéria Pode jf agora ser contada: pois aqui obra a propria necessidade, Ese future Pronuncia-se em cem sinais, esse destino amuncia-se por toda parte; para essa ntsica do futuro, todos os ouvidos estao afinados. Toda a nossa cultura ea. ropeia move- de década a década, como se estivesse encaminhando-se para uma catastrofe: inaviets, violent, precipitada: como uma cortenteza que anscia por chegar 49 firm ¢ que no mais se lembra, tem medo de lembrar-se. Ji desde ha muito, com a tortura de uma tensio, que cresce 3 ;, Aauele que aqui toma a palavra, por outro lado, ndo fer até agora nada ceaercunte lembrar-se: como um filésofo e eremita por instinte, que en. Controu vantagem no ficar a parte, de fora, na paciéncia, na procrastinagto [Verzogerung], no fato de ter ficado Para tras; como um espirito-ousado- “xperimentador, que alguma vez errou por cada labitinto do futuro; como. tin spitto-de-psssaro-vatiinador | Walsageiogel-Geist] que olla pare tris Jduando conta o que virds como o primeiro nilista consumado de Europa, Ait Codavia, jd vivew, ele mesmo, o nillsmo em si atéo fim, — que o tern atrds de si, abaixo de si, fora de si \ 4 Que nao haja disputas sobre o i ido do titulo com o qual este evange- The-do-futur quer ser chamado, “A vontade de poder. Tentativa de uma transvaloragio de todos os valores” — com esta formula expresso um con. !amovimento, no que toca a0 pri tHe, Ro que toca ao princ{pio e tarefa: um movimento que subs. tituiré em algum futuro aquele 2 niilismo consumiado; mas que, toda\ Pressupoe, l6gica ¢ psicologicamente, que to somente pode vis sobre ele ¢ 24 A VONTADE DE PODER a partir dele [auf ihn wd aus thm}, Por que 0 advento do niilismo é doravan- te necessério? Porque nossos valores até agora so aqueles mesmos que 0 aca- retam como a sua iltima consequéncias porque o niilismo & a logica de nos- sos grandes valores ¢ ideais pensada até o fim, ~ porque nés primeiro tivemos gue vivenciar o niilismo para descobrir, ver por trés o que era propriamente 6 valor desses “valores”... Teremos necessidade, algum dia, de novos valores... PRIMEIRO LIVRO O NIILISMO EUROPEU

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