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Parece que o mundo ser interessante se toda a gente vivesse num outro pais Jodo Miguel Cunha 2016 joaommcunha@gmail.com Ha um fenémeno de validago social (certamente nao novo) cuja existéncia é altamente frequente mas 0 qual nem sempre é alvo de andlise comparada. Refiro-me a andlise comparada, por, neste caso, me parecer muito Util para o entender numa perspectiva bilateral quando, quase sempre que ocorre, o seja unilateralmente. Falarei de migracdes. Em primeiro lugar, parece-me importante distinguir dois contextos diferentes das migracdes. Temos as migragdes de pessoas em situagdes muito dificeis de vida, que arriscam tudo para fugir delas, motivadas por impulsos bésicos de sobrevivéncia. Temos, por outro lado, as migracdes das classes médias e médias-altas, cuja sobrevivéncia ou necessidades basicas de vida ndo esto em causa, mas migram motivadas pela procura de uma mudanca que as enriqueca pessoalmente (seja monetariamente, culturalmente, socialmente, etc.) Ambos os casos tém dois pontos em comum: a procura de melhoria pessoal a algum nivel e, a conviccdo de encontrar isso num pais diferente do seu. No entanto, foco-me apenas nos segundos casos, sendo que as minhas premissas ndo sao de todo validas para os primeiros casos. J8 dura hd alguns anos, um programa de reportagens da RTP sobre portugueses que vivem no estrangeiro. Uma das caracteristicas deste programa, é, esses portugueses representados, serem maioritariamente de classe média/média-alta, terem formacdo superior e estarem nos seus paises de acolhimento em posigdes sociais favorecidas. Nao vi ainda, nenhuma dessas reportagens, sobre um portugués de 50 anos, empregado de lavandaria de um hotel em Paris ou empregado da construgdo civil na Alemanha. Contudo, vé-se um jovem de 30, destacado na sua area profissional de engenharia informatica e que é diretor de informatica desse mesmo hotel, ou um jovem de 35, engenheiro civil que coordena uma equipa tecnolégica de obras publicas na Alemanha. ‘Andloga e hipoteticamente, caso um canal televisivo quisesse fazer 0 mesmo programa, seguindo os mesmos critérios, mas focado nos imigrantes em Portugal, provavelmente, destacariam o senhor Sueco que dirige uma multinacional representada no Porto, ou o senhor Americano que desenvolve em Lisboa um préspero negécio imobilidrio. Um programa de reportagens, sobre o paquistanés que vende isqueiros na rua em Cascais, sobre 0 romeno que é ajudante de pedreiro em Matosinhos, ou sobre portugueses que recolhem lixo nas ruas de Londres, seria um programa bastante diferente. Muito menos glamouroso, que de reportagens com entrevistas sobre “onde costuma ir comprar os seus jantares gourmet2”, dariam lugar a outras sobre “como dividem 0 72 entre as 5 familias que I vivem?”, (Perdoem-me 0 uso excessivo do masculino, apenas usado enquanto recurso de simplificacdo dos exemplos, os quais sdo indiferenciados em género). Nada me move contra estas reportagens, nem, téo pouco acho que retratar uma realidade sé se possa fazer retratando todas. Cada uma tem o seu lugar de existéncia. Apenas recorro a esse exemplo, para melhor ilustrar um ponto de vista Como disse, focar-me-ei apenas na migrago de classe média/média-alta. E através desta que se alimenta 0 tal fenémeno de validaco social que referi de inicio. ‘Apesar de nao o poder afirmar com validade cientifica, certamente que a generalidade do senso comum reconhece a existéncia de muitas manifestacdes de apreciacao dos migrantes de classe média e média alta. De facto, os estrangeiros residentes em Portugal, sio muitas vezes prestigiados socialmente, e, os portugueses residentes no estrangeiro recebem reconhecimento frequente. Quando se fala de alguém Portugués, que é designer na Alemanha, ha, normalmente, adjetivagdes muito positivas, como se, ser-se designer na Alemanha, fosse atributo suficiente para construir um jufzo sobrevalorizado quando comparado com os portugueses que so designers em Portugal. Ao mesmo tempo, algo de semelhante acontece quando se fala de um alemao que é designer em Portugal. Nao sé é referido com alguma sobrevalorizacaio relativamente aos designers portugueses em Portugal, como também o é por comparacdo a designers alemaes que trabalhem na sua terra natal. De certa forma, parece que sair da terra natal confere, por si s6, atributos sociais a quem o faz. Pessoalmente, sou adepto da ideia de um mundo sem fronteiras. Um mundo no qual cada individuo viva e trabalhe onde melhor se sinta. Para mim, isso faz parte de um ideal humanista de liberdade individual que cada um pode ter sobre o rumo da sua prépria vida, No entanto, isso nao invalida o facto de considerar muito pouco substantivo que a pratica das migragdes (volto a frisar que me refiro apenas aos migrantes de classe média e média-alta), confira a esses migrantes qualidades adquiridas pelo simples facto de viverem num outro pai Neste sentido coloco duas hipéteses teéricas: a) a migracdo € realmente uma manifestagdo de qualidades pessoais, e nesse caso, o prestigio deve ser alargado a todos os migrantes independentemente da classe social; e b) a migracao nao é, por si s6, uma caracteristica que permita ajuizar qualidades pessoais. Inclino-me mais para a segunda hipétese. Mais que nao fosse, porque a emigracao depende de muitas varidveis em cada caso individual e todas elas muito diferentes de caso para caso. No entanto, aceito 0 argumento da hipétese a) ser valida, tendo em conta que emigrar reflete uma atitude pessoal, através da qual se pode deduzir “espirito de aventura", “predisposicdo ao risco", etc. Mas, nesse caso, teria de perguntar: no so essas carateristicas muito mais necessdrias a quem emigra sem ter trabalho, caso ou qualquer dinheiro para sobreviver? E, assim sendo: Por esta logica ndo deveriam ser os migrantes pobres, aqueles que socialmente poderiam ser mais valorizados? Nao séo estes que efetivamente manifestam grande “espirito de aventura’, “predisposigao ao risco”, “resiliéncia’, etc.? Mesmo colocando estas questdes, considero pessoalmente que a migracdo confere tantas qualidades a um individuo como qualquer outro comportamento. E que, essas qualidades sé sdo “mediveis” pelo individuo em si e nao pelo comportamento em si. Da mesma forma, optar por andar de bicicleta motivado por uma preocupacao ambiental nao confere a esse individuo qualidades, a nao ser que as enquadremos no seu comportamento geral. Por exemplo, considero precipitado e sem fundamento, afirmar que esta pessoa tem a qualidade de se preocupar e agir em beneficio do mundo. Porqué? Primeiro porque esse comportamento pode ter, eventualmente, outras linhas de motivacao inconscientes, tais como uma procura narcisica de auto-valorizagdo (por exemplo). Segundo, porque essa pessoa, pode ter na sua vida varios comportamentos que contradigam essa conclusdo, pode, por exemplo, andar de bicicleta e em casa bater nos filhos. Parece-me entdo, que o glamour dos migrantes, social e culturalmente situados em niveis acima da média, se deve essencialmente a uma tendéncia de atribuigdo de qualidades seguindo uma ldgica semelhante a légica publicitaria, Como se tratasse de um produto valorizado, ndo pela sua qualidade enquanto produto, mas porque as caracteristicas da sua embalagem se inserem numa tendéncia “estética” especialmente apreciada e procurada num certo contexto social e temporal Na verdade, as qualidades do produto em si, dependem dele mesmo e nao das caracteristicas da embalagem. Da mesma forma, a atribuigdo de qualidades a uma pessoa, deve depender dessa pessoa enquanto individuo e ndo do facto de viver na sua terra natal ou numa outra qualquer. Nada me move contra estes fenémenos de valorizago social. Fazem parte da natureza da propria sociedade enquanto conjunto de individuos que procura continuamente modelos de referéncia entre si. No entanto, algo me move contra o facto de fendmenos deste género desvalorizarem pessoas por néo adquirirem para si as caracteristicas apreciadas pelas tendéncias dominantes. Dando exemplos praticos disto, j4 testemunhei critérios de seleccéo profissional baseados neste fenémeno de sobrevalorizacso da migracdo. Tanto, a escolha de um estrangeiro que vive em Portugal (porque isso, por si s6, faz crer ter mais competéncias do que outro), como a escolha de um portugués que vive no estrangeiro (porque isso, por si s6, faz crer ter mais competéncias do que outro). Esta é a consequéncia que me parece importante evitar. A migracdo é, para mim, uma escolha de rumo para a vida. Deve ser valorizada e protegida como toda a liberdade de cada um ter as suas escolhas de vida. Acredito num mundo sem fronteiras, onde se aplique a maxima da musica do Zeca Afonso “seja bem vindo quem vier por bem”. Acredito na liberdade de decisio sobre as nossas préprias vidas, como um valor muito alto e quase sagrado. Contudo, acredito que a escolha de um determinado rumo a dar & vida pessoal, nao deve ser uma forma de construir juizos sobre qualidades e defeitos dessa pessoa. ‘Ao associarmos a pratica da liberdade de viver num outro pais (seja alguém de fora no nosso, seja alguém de cé num outro), a uma forma de construgo de valorizago social, estamos a condicionar a prépria liberdade de escolha do nosso rumo. Da mesma forma, se alguém tiver a convicgao de que receberd mais apreciagdo social e profissional por usar camisolas azuis, isso servird de condicionamento a sua liberdade de usar camisolas amarelas. Acredito na defesa da ideia, de que as qualidades de qualquer pessoa, devem ser exercidas e apreciadas, com independéncia da cor da camisola. A verdadeira liberdade de se escolherem rumos paraa prépria vida, implica a auséncia de juizos sociais sobre essas escolhas, O dominio de um paradigma de valorizagao e desvalorizacdo das pessoas através das escolhas que elas fazem para as suas vidas, diminui todos nés. Reduz o valor de uma determinada pessoa a uma escolha que fez, sem sequer existir uma verdadeira tentativa de compreensao sobre os motivos de o ter feito. Isto, tanto funciona para beneficio como para prejulzo de alguém. Ser diferente por ser diferente, ndo é uma qualidade por si sé. Uma colher com um buraco no centro & diferente, no entanto ndo necessariamente melhor do que uma colher standard. Muitas vezes se faz o elogia a diferenca. Eu elogio o direito inegdvel a liberdade de se ser como se quer, seja diferente, seja igual, seja assim-assim. Mas aquilo que realmente elogio como caracteristica que contribui para o mundo ser um lugar interessante, é algo que muitas vezes se confunde com a diferenga: acredito na diversidade. A grande distinggo entre diferenca e diversidade, é que a diferenga é um atributo individual. Condicionar quais as melhores diferencas entre os diferentes, pde em risco a diversidade e constréi uma regulamentacao da diferenga. Ao contrario da diferenca que é individual, a diversidade é um atributo e patriménio de e para todos nos. Que cada pessoa tenha o seu valor reconhecido, onde quer que esteja, venha de onde vier, fique onde ficar, seja de cd, seja de ld, seja de sitio nenhum...

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