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-ATZNACIBAB'SABER Po fm novemiro de 1939, fu para Sao Paulo morar em uma nso na alameda Glee, 20 exames depois de uma pre- aracio minima, Tiel notas assim: es cinco, ses, sete seis meio, sete, cinco...Em desenho, nove ou dez, no me lembro bem, Naquele tempo havia a mania de se fazer aitmética; Somaram tudo, fizeram a médiae passe em segundo lugar na Universidade por causa de desenn.E por sso que ndo gosto dda méeia: a média nao mede o conhecimento. Os alunos que moravam perto de Sao Paulo ou em Sao Paulo facia, depos do ginaso, dois anos a mais de estudos no chamado Colégio Universitiro, dentro da USP. J eram onhetids dos professores, tinham contato com o ambiente «2 Faculdade de Filosofia, e alguns ndo gostaram muito do fato de que um rapazinho, vindo & do interior e s6 com 0 sinasio, passasse direto © numa boa elasificagdo, S6 eu sei que foi o deserho.. Puseram todo mundo numa sala grande d antiga Escola Caetano de Campos, com um relégio diante de nds, para a gente desenhar. Nao sei por que cargas d'igua me inspire c fiz 0 religi, uma sombra lateral, toda uma naga de pers- Pectva.. Por isso entre na universidade numa boa colocaeéo, Provocando, desde 0 inicio, um pouce de cides Interpretando a paisagem No mural, embaixo da lista dos que passaram, tinha uma no- tinha da professor Pierre Monbeig: "A primeira aula do curso lle geografia seré no dia tal, uma excursio de campo. Ve~ rnham em trajes adequados” Eu nunca tinha feito excursio de campo com um professor e fiquel entusiasmado, Iria sair do circulo de conhecimento geogréfico espacial {que tinha até entdo, Nao conhecia mais nada depois de Sé0 Paulo — a oeste de So Paulo, noroeste de Sao Paulo, sudoes- te le Sao Paulo. E excursdo seria para Sorocaba, Itu, Salto € Campinas. Eu, € claro, ndo sabia, mas essa excursioiria defi- hia minha vida 0 professor Monibeig, meu grande inspiraior ~ tenho in- clusive um trabalho sobre ele —, era muito bom observador. DDeixou os alunos a vontade dentro do 6nibus,e todo mundo ficou olhando um pouco para 0 lado, conversando... Eu, no: J que era excursdo, queria ver a paisagem daquelas areas ‘que nao conhecia, Foi 0 comeca da vida de gebgrafo: ler & Ine pretar a paisagem, tera nogoda sequéneis dos cenérios lle urn determinado espago, passou a ser uma constante em {ola a minha vida As aulas de Monbeig me pareciam atraentes, extraordina~ vas, mas eu tinha uma certa observacao critica em relagdo as Jus outros professores Els estavam ainda em inicio de pre- pparagao do conhecimento ¢ tentavam fazer sinteses répidas Je alguns assuntos de livros importantes. Depo's das aulas, eu procurava na biblioteca e via que © que estavam dizendo era muito poueo. as ARIENACTB ABSA 26 Na excursio de campo, o professor Monbe'g esperava che- ‘gar num lugar € dia: "Vamos até aquele ponto observer 0 Conjunto Um dos pontos essencizis foi o seguinte: atraves- ssamoso que hoje chamamas de serranias de Sdo Raque—Jun= dial, que separa a regido de Sao Paulo da depressio Periférica Paulista — uma drea de rebaixamento das maraens da bacia do Parana —, continuando bem no contato das duas paisa- ‘gens, em diregdo a Sorocaba, Ele subiu no alto de um morro e fez uma apreciagdo sobre 0s diferentes setores do relevo do estado de Sao Paulo: lito- Fal ea serra do Mar, depois planalta Atlénticoe, mais adian- te @ depressdo Perifrica. 0 pouco que falou me incentivou a pensar que havia coisas muito mais extensas nos planaltos interiors de Séo Paulo. Mais tarde passaria a pesquisar essa \depressio, desde Itu, Campinas ¢ Soracaba até a base da es- arpa de Botucatu. Mas ainda no tinha me decidido s6 pela geogratia, As ‘ulas de historia meimpressionavam muito pelo conhecimento € pela metodologia. Recebiamas, as vezes, durante os exames, «scritos, uma cronologia dos fatos histéricos a serem trata- dos. N3o precistivamos mais decorar toda a materia, como no inasio:havia a data e o evento istorico, e a gente tinha que comentar a trajetria dos eventos, ¢ no um evento para a gente precisar a data. Achel isso dtimo, e acabei sendo um aluno razoavel de historia, Sé que um dia fui cnnvidado pelo professor Euripedes Sims de Paula para conhecer sua biblioteca na apartamen- to-em que morava,no largo de Santa Cecilia. Quando olhei a biblioteca do professor, magnifica, repleta de todas as histo ‘las possives, sent que no ira ser um bom professor de his- ‘ria, porque no poderia ter tantos livros. Mal tinha dinheiro 0 QUEE sex edcRAFO para sair do Tatuape ou do Belenzinho e pegar o Gnibus para ir ata Faculdade, na praca da Repablica...oi ai que comecei 1 me dedicar mais & geografia, Por causa da primeira excursdo de campo, sent que padia ler a paisagem,¢ todos os sébados e domingos em que estava ‘mais lve, ficava“Viajando' pela cidade de Sao Paulo. Naque- le tempo, ainda havia bondes elétricos; eu pegava uma linha lle bonde , ads 0s seus terminas, andava pelos arredares 3 és procuranda entender a regido metropolitana daquels épo- ‘a € depois voltava pelo mesma itinerdrio. No inicio, para a ppensdo da alameda Glete; depois, minha mae fez meu pai ven- iter tudo em Cacapava e vieram morar no Tatuapé, onde abri- ram uma quitanda, Eu fazia 0 servigo militar €0 primeiro ano de faculdade na seam época, mas fiquel mute adoentado e quase fui repro vaio em ambos, porque tive que largar tudo por dois ou tres meses, Meu pai teve que ir ki explicar, € eles entenderam, ‘Quando sai voltei para a faculdade e para o servigo militar Fo engracadissimo no quartel Como era aluno de histéria « geografia, escrevia bem os trabalhos que pediam. Na se~ sunda semana depois da volta, ainda pido ds doenca, oca~ pido disse: "Soldado 110, passe para o batalhio dos cabos! Ful promovido porter escrito alguma coisa. Depois, quando o tema da trabalho foi a Guerra do Paraguai, escrevi alguma coisa melhor e: "110, passe para 0 peloto dos sargentos!” Acai saindo do Exército como sargento de terceira catego~ ria por causa da escrita No periodo em que comecei a me restabelecer, passei a fazer poesias sobre S30 Luiz, Uma comegava assim: "La nos ‘mortos de calota arredondada, encastoada nas vertentes dos ” a /ATLNACBAB'SABER ‘morros, dorme a minha pobre cidadezinha.." E no final: “A Ponte velha marcava o fim da minha cidade e o comeco dos ‘morros € das rogas. Mas eu no sabia que do outro tao da Ponte moravam os fantasmas. E eu também nao sabia que ‘aquela velha ponte separava dois mundos. 0s relevos de Sao Paul Estudeltrés anos de geografia€ historia, € 0 quarto ano foi ‘de pedagagia€ ciéncias educacionais, em grande parte. Logo depois entrei na especializaglo, correspondente 0 que hoje 0 mestrado, porque nao tinha muita possibilidade de traba~ {hoe esolvicontinuar estudando (1945-1946). Mais uma vez, minha familia bancou meus estudos. Um professor frances, Roger Dion, gostava de fazer um jpouco daquilo que eu fazia: conhecer os arredores de S30 Paula. Ele era muito isolado, tinha pouco contato com 0s co~ legas professores brasileros, enos fins de semana ia de bonde elétrico até os pontos finais da cidade, que era uma coisa fa- cilima e barata — as rotas dos bondes elétricos tiveram uma Iimportancia fundamental para mim, sei que para muitos outros também. Em suas excursbes, Dion pereebeu uma coisa extraordina- ‘ria na Penha, Parau no ponto final do bonde, comegou a per- correr 0 outeira da igreja € viu aquela ladeira ingreme, que desce direto do largo da Penha — onde est a igreja ~ para a regio baixa, indo na drecdo do Tatuapé. Observando o tracado do bonde eo tragado da ladeira, ele chegou 2 uma concluséo, “Aqui nds temos uma situagia eurinsar passnu-se do cielo do muar, ou seja, das trapas € de cavaleiros andando pelas colinas ¢ morros periféricas da antiga cidade, para o bonde elétrico; como 0 bonde no podia subir ladeiras ingremes, tentdo tiveram que fazer uma declvidade menor, por meio de um fongo volteado", disse. Isso me impressionou muito, por- que na Casa Verde & assim também ¢, até certo ponto, 0 » auienact terminal antigo do onde de Santana; tanto que a gente ti- ‘tha que parar em Santana para pegaro trenzinho e ir para 0 Horto Florestal Pouco depois, um outro professor francés, que era meio historiador, meio gedgrafo, veiovisitar a USP, e os professo- es costumavam levar esses colegas estrangeiros para olhat lum pouco a cidade, mostrar a Paulista, o Centro, Levaram=no para belvedere do Trocadeiro, onde hoje estéo vao do MASP. (Museu de Arte de So Paulo), um ponto onde havia uma vis- ta muito bonita. Esse professor olhou bem o conjunta da ci= dade e disse: La vile cest plate" Foi a Unica observagio dele: "A cidade & plana” Eu tinha aprendido algumas coisas sobre o sitio de Paris, nas aula — 0s professores, mesmo ministrando outras maté- rias, as vezes falavam do sitio urbano de Paris, dos antigos ‘meandros do rio Sena, Aprendi sobre a bacia de Paris eo rele- ‘vo da cidade, os diversos componentes da topografa,neluindo antigo vale, que tinha meandros e depois foi retiticado — 0 ‘canal do Sena atual ndo ¢ o canal do rio no passado, apesar ‘de muitos trechos terem ficado bem preservados, como a ile de la Cite. Aproveitava um pouca do que eles falavam sobre o sitio de Paris pensava no sitio da minha cidade, e achei uma idio- tive dizer que a cidade era plat... Foi uma visio ripida e de- formada. Dai surgiu minha idtia de comesaraestuda 0 sitio urbano de So Paulo: a larga planicie do Tieté, os terragos — 0 primeira que identifiquei foi o do Bom Retiro, depois Pari ¢ Cambuci— e0 patamar intermediério das colinas de So Paulo, ‘onde hoje est praca da Republica , do outro lado, as pra- 25 do Patriarca e bala Se OQUEE eR GrdcRaFO Todos 0s res principals estavam ainda a0 natural. OTieté Com os seus meandros, suas virzeas, tudo pouco utizad. A \izea do Tieté era oeupada apenas por muares e era uma ‘ea de pastagem para animais de serigo (carages). De rs- (0, ra usado para campos de futebol de vérzea 0 “campos ‘ie virzea’, porque todo o sistema de transporte para a cass comeriais— para arua que vendia tecidos, a ua Florencio de ‘Abreu, mas, sobretudo, para a rua 25 de Margo ~, era feito poe carogas ( animal estava muito presente ma cidade de Sa0 Paulo, embora, como o professor Dian observou, tenhamos passado tteto do cielo do muar para 0 ciclo do bonde elétrico, com a pemanéneia do uso de carroga.Praticamente no tiers 0 ‘ilo intermeirio das carruagens, como os eurapeus tive- ram, No comeco da historia clonal de Sdo Paulo, as pessoas inal bem aquinhoadas,sobretudo as mulheres, eram carre- «gadas em caderinhas por eseravos, Eo bonde elérico acabou send fundamental na estrutu- ‘ago da cidade, porque slinhasficaram radiats para pontos de contato com a zona rural, Terminava a linha de Pinheiro, taviacaminhos que iam em varias direcdes;terminava a Laps, ‘inka caminhos que iam para Jundial/Campinas. Cuando eu estava observando os terragos as vrzees um colega me convidou para ir a0 clube Corinthians, alugou sum harea esemos uma fonga volta pelo Tieté. Do's de ter morado no Tatuape, Belenzinho eer Quarta-Psrads, fui mo- ‘ar na Vila Mari, na parte alta conhecida como Jardim Jado, via varzea do Tieté tal como era inclusive ua estrutura ‘Quando comecaram a fazer a Via Dutra, rasgaram a var- 2e0 ea apareceu substato argioso, pantanoso, eseuro, com uma espessura enorme (helo-biom). Nos bordos da antiga AIZNACIBABSABER 2 ponte da Vila Mari, afloravam matacoes de granito, Pude ver acstrutura superficial dos aluvides de varzea na hora da cons- trugdo. Eu era muito curioso, Pois entéo: a base da chamada bacia de Sto Paulo, ao con- triio do que dsseram alguns, ndo € regular. Em alguns pon- tos ela possui altos no seu embasamento cristalina; depois, a ditecao da Mooca, o embasamento desce muito, e esti a mais de uma centena © meia de metras abaixo do nivel do chao, da paisagem. Além do relevo, passei taminém a observar afloramentos de rocha dura em certos lugares. Comecei a me interessar pelastrés coisas: os afloramentos Tochosos, as serrinhas do Entorno, que sio de rochas mais dduras — Jaragua, Cantareira, do Roque e Japi —e,em funcd0 ‘desseinteresse por detalhar a compartimentagio topogréfica das colinas de Sao Paulo e seu entorno serrano, insisti no co- ‘ahecimento da sedimentagao que gerou a bacia de Sa0 Paulo, ‘onde foi madelado o movimentado sistema de colinas do pla- alto paulistana, ‘Aantropologia com Florestan No inicio da faculdade, as aulas eram muito diversficadas, com uma linguagem que no era muito facil para todos os alunos, Em compensagdo, os mestres franceses — Pierre Mon- bei, Roger Dion, Louis Papi ~ me impressionaram muito pelo cconhecimento. 0 Papi deixou um trabalho muito bonito so- le a zona costera de So Paulo: “Au marge de empire du café" Até dos titulas eu gostava: “A margem do império do café ‘Ao mesmo tempo, lia tudo 0 que podia er complementar= mente nesse periado. la biblioteca aos sébados e domingos. Meu lazer era esse: ou vigjava pelos arredores ou ia & Bibio- cca Municipal, Convivi bastante com Floestan Fernandes (0- dlogo] nesse period. Sempre nos viamos na biblioteca, ¢ eu sentava a seu lado nas aulas de antropologia cultural Forestan estava muitissimo mais adiantado do que eu. Ciencias sociais sempre foi um curso muito bom, deste 0.co- ‘ego da USP. E ele ainda tinha a vantagem de fazer ao mes- imo tempo a Escola de Sociologia Politica, no largo de So Francisco, Florestan foi decisivo na minha reorientagao; aler~ tava para fatos socials € antropologicos importantes, porque algumas aulas eram complicadas para mim. tu gostava muito do mestre Emilio Willems, o professor de antropolagta, mas ele dava aulas acima do nosso nivel Nao dava para falar com Willems: éramos bobinhos e ele nos *embrulhava" com alto nivel dos seus conhecimen= tos... Florestan “traduzia" para mim coisas dficeis de serem entendidas, porque, para quem estava fazendo geogratia € a ATIEWACIB AB SABER lum poueo de historia, a antrapologia parecia ser secundé- Tia. No entanto, este curso, apesar das dificuldades, se mos- traria decisivo em minha vida, devido ao conhecimento que passa ter sobre contatos culturaise étnicos ea metodologia de trabalho dos discipulos dretos ¢ indiretos do antrapdlo~ {90 Franz Boas, Daquele notavel leque de ciéncias humanas ¢ fisiogréficas veio meu gosto pela interdiscipinarade. Tempo, espago € cultura estavam contempladas em quase todas as aborda- gens, 0 que era um incentivo permanente. Tinhamos que en- frentar conhecimentos paralelos, para nés impensados, nas aulas de grandes mestres, como Willems Plinio Ayrosa e Roger Bastide, EFlorestan me incentivou a pensar politcamente em cer- tos fatos, a partir das diferencas sociaeconémicasjé existen- tes em Sin Pau # no Brasil. A sociedade herdada do ciclo do café ja tina diferencas muito grandes: havia os banqueiras € (0 ex-fazendeiros enriquecidos, que fizeram mansbes extraor- dindrias na avenida Paulista e em Higiendpolis,e uma classe média sofrida. 0 Rio de Janeiro ja possuia favelas, mas S80 Paulo, entre 1940 e 1950, bairros carentes. Forestan fazia uma certa critica social em relagdo as per- sonalidades que a gente conhecia, Ele me influenciou a ter uma percepcio maior das diferencas socioecondmicas € cule tras fantasticas que existem no Brasil Em particular, na ci- ‘dade do passado, que depois eu pude acompanhar na cidade do presente. Até hoje trabalho risso, Talvez a antropologia tenha influenciado mais profunda- ‘mente a minha vida do que a histéri, Nao pude me adiantar ‘em histériao tanto que eu queria, mas sim em antropologia, inda no — quando muito, alguns QUE E sERGtORAEO 0 professor Emilio Willems, que depois foi lecionar nos Esta~ tos Unidos, era de Santa Catarina. Sequia a antropologia de- fendida pela Escola Sociolégica de Chicago, que estudava 0 ‘mundo urbano de um modo particularmente metédico. Foi decisivo para mim entender a estrutura sociale funcio- nal da cidade, por meio de estudos fotograficas, e, em nivel sociologico, pela posigao das diferentes classes sociais, em ‘airs diferentes e em areas diferentes. Ou seja, do Pacaembu «edo Morumbi as periferiasextremas e também até as favelas. ‘Uma das muitas coises que fiz ob inspiracdo antropolégi= «a foi diseutiro problema da favela em termos da estrutura urbana global: 0 favelado nao pode ficar muito distante do centro, porque depende do centro em termes de aproveita- menta de descarte do consumismo. Os puxadores de carri- ‘phos eam papelin, porexempl, tm que marar mais au menos: peerto do centro, As Favela se mantém dependentes das coi- a5 que acontecem nas regites centrais ov subeentrais 45

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