Você está na página 1de 6
86 A ERA DOS DIREITOS AS RAZOES DA TOLERANCIA 1. Inicio com uma consideragiio sobre o proprio conceito de tolerdincia e sobre o diferente uso que dele se pode fazer em diferentes contextos. Essa premissa é necessaria porque a tolerancia cujas “raz6es” pretendo analisar corresponde a apenas um dos seus significados, ainda que seja o historicamente predominante. Quan- do se fala de tolerancia nesse seu significado hist6rico predominante, o que se tem em mente & 0 problema da convivéncia de crengas (primeiro religiosas, depois também politicas) diversas. Hoje, o conceito de tolerancia € generalizado para o problema da convivéncia das minorias étnicas, lingtifsticas, raciais, para os que sio chamados geralmente de “diferentes”, como, por exemplo, os homossexuais, os loucos ou os deficientes. Os problemas a que se referem esses dois modos de entender, de praticar e de justficar a tolerfincia no mesmos. Uma coisa é 0 problema da tolerdncia de crengas e opinides diversas, que implica um discurso sobre a verdade e a compatibilidade teérica ou pritica de verdades até mesmo contrapostas; outra é 0 problema da tolerdncia em face de quem é diverso por motivos fisicos ou sociais, um problema que pée em primeiro plano © tema do preconceito e da consegtiente discriminagao. As razSes que se podem aduzir (e que foram efetiva- mente aduzidas, nos séculos em que fervia o debate religioso) em defesa da tolerincia no primeiro sentido n soas mesmas que se aduzem para defender a tolerncia no segundo. Do mesmo modo, sao diferentes as raz6es das duas formas de intolerdncia. A primeira deriva da conviegio de pos suit a verdade; a segunda deriva de um preconceito, entendido como uma opinio ou conjunto de opinides que so acolhidas de modo acritico pas- sivo pela tradicao, pelo costume ou por uma autoridade cujos ditames so aceitos sem discussio, De certo, também a conviegio de possuir a verdade pode ser falsa e assumir a forma de um preconceito. Mas é um preconceito que se combate de modo inteiramente diverso: nao se podem pér no mesmo plano os argumentos utilizados para convencer o fiel de uma Igreja ou 0 seguidor de um partido a admitir a presenga de outras confissdes e de outros partidos, por um lado, e, por outro, os argumentos que se devem aduzir para convencer um branco a conviver pacificamente com um negro, um turinés com um sulista, a nfo discriminar social e legalmente um homossexual, etc. A questio fundamental que foi posta sempre pelos defensores da tolerncia religiosa ou politica é deste teor: como s4o compativeis, teérica e praticamente, duas verdades opostas? A questo que deve pér a si mesmo o defensor da tolerfincia em face dos diferentes € outra: como € possfvel demonstrar que o mal-estar diante de uma minoria ou diante do irregular, do anormal, mais precisamente do “diferente”, deriva de preconceitos inveterados, de formas irracionais, puramente emotivas, de julgar os ho- mens e os eventos? A melhor prova dessa diferenga est no fato de que, no segundo caso, a expressio habitual com que se designa o que deve ser combatido, mesmo nos documentos oficiais internacionais, no é a intole- Hincia, mas a discriminagio, seja esta racial, sexual, étnica, ete, O motivo pelo qual me ocupo das razées da tolerancia no primeito sentido é que o problema hist6rico da tolerncia, tal como foi posto na Europa durante o perfodo das guerras de religiio, e sucessivamente pelos movimentos de heréticos e depois pelos fil6sofos, como Locke e Voltaire, o problema tra tado nas histérias da tolerdncia (como a mais famosa, a de Joseph Lecler, em dois volumes, 1954), é 0 problema relativo exelusiva- mente & possibilidade de convivéncia de confissées religiosas diversas, problema nascido na epoca em que ocorre a ruptura do universo religioso cristo. 10 os 2. Da acusagao que o tolerante faz ao intolerante, isto é, de ser um fandtico, o intolerante se defende acusando-o de, por sua vez, ser um cético ou, pelo menos, um indiferente, alguém que no tem conviegses fortes e que considera nao existir nenhuma verdade pela qual valha a pena lutar. E bem conhecida a contro- vérsia que se acendeu no principio do século entre Luigi Luzzatti, autor de um livro em que exaltava a toleran- cia (La liberta di coscienza e di scienza, 1909) como prinefpio inspirador do Estado liberal, Por um lado, e, por outro, Benedetto Croce, o qual, depois de ter afirmado que a tolerancia é “f6rmula pratica e contingente e nao principio universal, nfio podendo ser empregada como critério para julgar a histéria, a qual, no caso, tem critérios que lhe sao intrinsecos’, replicou que, entre os tolerantes, “nem sempre estiveram os espiritos mais nobres ¢ hersicos. Com freqiiéncia, estiveram entre eles os retéricos ¢ 0s indiferentes. Os espititos vigorosos NORBERTO BOBBIO 87 matavam e morriam, E coneluia: “Assim € a historia e ninguém pode mudé-la.” A acusagio de Croce € muito precisa: os tolerantes podem sex, além de “retéricos” (mas aqui a expressio € genérica e, prova velmente, dirigida contra o seu adversério do momento), também “indiferentes”. A quem lhe fez notar que, dizendo isso, demonstrava ser intolerante, Croce respondeu seraficamente que ele era tio pouco intolerante que, no imbito da histéria, era tolerante até mesmo com os intolerantes. Em suma, para o intolerante ou para quem se coloca acima da antitese tolerncia-intolerdincia, julgando-a historicamente e nao de modo pratico-politico, o tolerante seria freqiientemente tolerante nao por boas ra- Bes, mas por mAs razbes. Nao seria tolerante porque estivesse seriamente empenhado em defender o dieito de cada um a professar a propria verdade, no caso em que tenha uma, mias porque néo dé a menor importancia averdade. Mas, ao lado das més raz6es, existem também boas raabes. Expondo-as, gostaria de evitar a tentagio de inverter a acusago e afirmar que nao se pode ser intolerante sem ser fanatico.Considero que a antitese indiferenga-fanatismo nao remete exatamente & antitese tolerancia-intolerancia, que é essencialmente priti- 3. Comego pela raztio mais vil, meramente pritica ou de prudéncia politica, e que, néo obstante, foi a que terminou por fazer admitir, no terreno da pratica politica, o respeito pelas diversas crengas religiosas, inclusive por parte dos que, em principio, deveriam ser intolerantes (porque convencidos de possuir a verdade e por considerarem errados todos os que pensam diferentemente): a tolerancia como mal menor, ou como mal necessatio, Entendida desse modo, a tolerancia nao implica a rentincia a prépria conviccao firme, mas implica pura e simplesmente a opiniao (a ser eventualmente revista em cada oportunidade concreta, de acordo com as circunstincias e as situagées) de que a verdade tem tudo a ganhar quando suporta o erro alheio, jé que a perseguigio, como a experiéneia histérica o demonstrou com freqtiéneia, em vez de esmagi-lo, reforga-o. A intolerancia néo obtém os resultados a que se propde. Mesmo nesse nivel elementar, capta-se a diferenga entre otolerante eo cético: 0 cético é aquele para quem néo importa que a fé triunfe; o tolerante por razées praticas dé muita importancia ao triunfo de uma verdade, a sua, mas considera que, através da toleraneia, o seu fim, que € combater o erro ou impedir que ele cause danos, é melhor alcancado do que mediante a intolerancia. Essa ratio, na medida em que das correlagées de forcas, entre mim ou minha doutrina, ou minha escola, detentora da verdade, ¢ os outros, imersos no erro. Se sou o mais forte, aceitar o erro alheio pode ser um ato de astticia: a perseguigo causa escfindalo, o escfndalo faz crescer a mancha, a qual, ao contréio, deve ser mantida o mais possfvel oculta. O erro poderia propagar-se mais na perseguigdo do que numa benévola, indulgente e permissiva tolerancia (per- missiva, mas sempre atenta). Se sou o mais fraco, suportar o erto alheio & um estado de necessidade: se me rebelasse, seria esmagado e perderia qualquer esperanga de que minha pequena semente pudesse germinar no futuro, Se somos iguais, entra em jogo o prineipio da reciprocidade, sobre o qual se fundam todas as transagbes, todos os compromissos, todos os acordos, que esto na base de qualquer convivencia pacifica (toda convivén- cia se baseia ou sobre o compromisso ou sobre a imposig&o): a tolerAncia, nesse caso, € 0 efeito de uma troca, de um modus vivendi, de um do ut Aes, sob a égide do “se tu me toleras, cu te tolero”. E bastante evidente que, se me atribuo o direito de perseguir os outros, atribuo a eles o direito de me perseguirem. Hoje é voc, amanha sou eu, Em todos esses casos, a tolerfincia é, evidentemente, conscientemente, utilitaristicamente, 0 resultado de um célculo e, como tal, nada tem a ver com o problema da verdade. encial pritica, assume diversos aspectos conforme a diferente natureza 4. Subindo um pouco mais na escala das boas razdes, passamos da razio da mera prudéncia politica para a escolha de um auténtico método universal, ou que deveria valer universalmente, de convivéncia civil: a tolerncia pode significara escolha do método da persuasio em vez do método da forca ou da coergao. Por tris da tolerancia entendida desse modo, nao ha mais apenas o ato de suportar passiva ¢ resignadamente o e1to, mas ji atitude ativa de confianga na ra: coneepgio do homem como capaz de seguir nao s6 os proprios interesses, mas também de considerar seu préprio interesse & luz do interesse dos outros, bem como a recusa consciente da violéncia como Gnico meio para obter o triunfo das préprias idéias. Enquanto a tolerancia como mero ato de suportar o mal e o erro é doutrina teolégica, a tolerancia como io ou na razoabilidade do outro, um 88 A ERA DOS DIREITOS algo que implica o método da persuasio foi um dos grandes temas dos sébios mais iluminados, que contribi ram para fazer triunfar na Europa o principio de tolerdncia, ao término das sangrentas guerras de religiao. Na ilha da Utopia, pratica-se a tolerancia religiosa; e Utopo explica as suas razées do seguinte modo: “Seria temeririo ¢ tolo (Insolens et ineptum) pretender, através de violéncias e ameagas, que aquilo qu verdadeiro apareca como tal para todos. Além do mais, sobretudo se s6 uma religiao fosse verdadeia e todas as outras falsas, (Utopo) prevé que, no futuro, contanto que se proceda de modo racionall e moderado, a verda- de viré finalmente & luz, impondo-se por seus proprios méritos. Se, ao contrério, as contendas se dessem entre armas e brigas, dado que precisamente os piores so os mais obstinados, a melhor e mais santa das religises estaria destinada a ser esmagada na luta, em meio as mais vis superstiges, como trigo em meio ao joio.” O maior teérico da tolerdncia, John Locke, escreveu: tu erés Seria de desejar que um dia se permitisse a verdade defender-se por si s6. Muito pouca ajuda Ihe conferiu poder dos grandes, que nem sempre a conhecem e nem sempre lhe sio favordveis (...) A verdade nao precisa da violéncia para ser ouvida pelo espirito dos homens; e nio se pode ensiné-la pela boca da le. Sao os erros que captada pelo reinam gracas 3 ajuda externa, tomada emprestada de outros meios. Mas a verdade, se no intelecto com sua luz, ndo poder triunfar com a forga externa. Quis citar extensamente essas duas passagens, embora se jam bastante conhecidas, porque a idéia nelas expressa, generalizada da democratico e um dos tragos diferenciadores do regime democratic em relagao a qualquer forma de despotis- mo, Uma das definigdes possiveis de democracia ¢ a que poe em particular evidéncia a substituigio das técni- cas da forga plas técnicas da persuasdo como meio de resolver conilitos. Nao € aqui o local para nos estender- mos sobre as caracteristicas do discurso persuasivo, ou sobre a “nouvelle rhéthorique”. Mas sabe-se bem quan- to a escola da nova retérica contribuiu para ilustrar a relago entre argumentagio retGrica, no discurso, método democratico, na pratica. esfera religiosa & esfera politica, representa um dos motivos inspirados do governo 5. Podemos agora dar outro passo & frente. Para além das raz6es de método, pode-se aduzir em favor da tolerdncia uma razio moral: o respeito a pessoa alheia. Também nesse caso, a tolerancia nfo se baseia na rentincia & Prépria verdade, ou na indiferenga frente a qualquer forma de verdade. Creio firmemente em minha verdade, mas penso que devo obedecer a um principio moral absoluto: o respeito & pessoa alheia, Aparentemente, trata-se de um caso de conflito entre razio teérica e razio prética, entre aquilo em que devo crer e aquilo que devo fazer. Na realidade, trata-se de um conflito entre dois principios morais: a moral da coeréncia, que me induzi a por minha verdade acima de tudo, e a moral do respeito ou da benevoléncia em face do outro. Assim como o método da persuasio é estreitamente ligado a forma de governo democriitico, também o reconhecimento do direito de todo homem a crer de acordo com sua consciéncia é estreitamente ligado & afirmacio dos direitos de liberdade, antes de mais nada ao direito a liberdade religiosa e, depois, &liberdade de opiniio, aos chamados direitos naturais ou invioliveis, que servem como fundamento ao Estado liberal. De resto, ainda que nem sempre historicamente, pelo menos na teoria o Estado liberal e o Estado democratico so interdependentes, jé que o segundo € o prolongamento necessirio do primeiro; nos casos em que lograram se impor, eles ou se mantém juntos ou caem juntos. Se o outro deve chegar A verdade, deve fazé-lo por conviegao intima e no por imposigo, Desse ponto de vista, a tolerfncia no e apenas um mal menor, nao é apet vel a outro, mas € a Gnica resposta possivel & imperiosa afirmago de que a liberdade in terior € um bem demasiadamente elevado para que no seja reconhecido, ou melhor, exigido. A tolerancia, aqui, no é de sejada porque socialmente titil ou politicamente eficaz, mas sim por ser um dever ético. Também nesse caso 0 tolerante no é eético, porque cré em sua verdade. Tampouco é indiferente, porque inspira sua propria agio num dever absoluto, como € 0 caso do dever de respeitar a iberdade do outro. a adogiio de um método de convivéncia prefert- 6. Ao lado dessas trés doutrinas, que consideram a tole rancia do ponto de vista da razio pritica, hé outras que a consideram do ponto de vista teérico, ou do ponto de vista da prépria natureza da verdade. NORBERTO BOBBIO 89 doutrinas segundo as quais a verdade s6 pode ser alcangada através do confronto, ou mesmo da sintese de verdades parciais. Segundo tais doutrinas, a verdade nao é una. A verdade tem muitas faces. Vivemos nao num universo, mas num multiverso. Num multiverso, a tolerancia nao e apenas um método de convivéncia, nao & apenas um dever moral, mas uma necessidade inerente & propria natureza da verdade. Sao pelo menos trés as posiges filoséticas representativas dessa exigéncia: o sincretismo, de que foi expres- so, na época das grandes controvérsias teolégicas, o humanismo cristo, e hoje, numa época de grandes conilitos ideoldgicos, as varias tentativas de conjugar cristianismo e marxismo; 0 ecletismo, ou filosofia do “justo meio”, que teve o seu breve momento de celebridade como filosofia da restauragio, e, portanto, também numa perspectiva irGnica, apés periodo de choque violento entre revolugo e reagio, revivendo hoje na: varias propostas de “terceira via”, entre liberalismo e socialismo, entre mundo ocidental e mundo oriental, entre capitalismo e coletivismo; ¢ o historicismo relativista, segundo 0 qual, para retomar a famosa afirmagio de Max Weher, numa era de politeismo de valores, 0 tinico templo aberto deveria ser 0 Panteio, um templo no qual cada um pode adorar seu proprio deus. 7. As boas razées da tolerdncia nao nos devem fazer esquecer que também a intolerancia pode ter suas boas razies. Todos nds jé nos vimos, cotidianamente, explodir em exclamagées do tipo “é intoleravel que...”, “como podemos tolerar que ... ”, “tudo bem quanto & tolerdncia, mas ela tem limites”, etc. Nese ponto, cabe esclarecer que 0 proprio termo “tolerancia” tem dois significados, um positivo e outro negativo; e que, portanto, também tem dois significados, respectivamente negativo e pasitivo, o termo oposto. Em sentido positivo, tolerdncia se opie a intolerdncia em sentido negativos e, vice versa, ao sentido negative de tolerncia se contrapde o sentido positivo de intolerincia. Intolerdincia em sentido positivo € sinénimo de severidade, rigor, firmeza, qualidades todas que se incluem no ambito das virtudes; tolerdncia em sentido ne gativo, ao contrario, € sinénimo de indulgéncia culposa, de condescendéncia com o mal, com o erro, por falta de prinefpios, por amor da vida trangiila ou por cegueira diante dos valores. E evidente que, quando fazemos o elogio da tolerancia, reconhecendo nela um dos prinefpios fundamentais da vida livre e pacifica, pretende- ‘mos falar da tolerfincia em sentido positive. Mas niio devemos jamais esquecer que os defensores da intoleran- cia se valem do sentido negativo para denegri-la: se Deus nao existe, entao tudo € permitido. De resto, foi precisamente essa a razio pela qual Locke no admitia que se tolerassem os ateus, os quais, segundo uma doutrina comum naquela época, nao tinham nenhuma razio para cumprir uma promessa ou observar um juramento, e, portanto, seriam sempre cidadios em que nfo se podia confiar. Textualmente: “Para um ateu, nem a palavra dada, nem os pactos, nem os juramentos, que so os liames da sociedade humana, podem ser estaveis ou sagrados: eliminado Deus, ainda que s6 no pensamento, todas essas coisas caem por terra. Tolerdncia em sentido positivo se opie a intolertincia (re ligiosa, politica, racial), ow seja, A indevida exclu- so do diferente. Tolerancia em sentido negativo se opée a firmeza nos principios, ou seja, & justa ou devida exclusio de tudo o que pode causar dano ao individuo ou 8 sociedade. Se as sociedades despéticas de todos os tempos e de nosso tempo sofrem de falta de tolerdncia em sentido positivo, as nossas sociedades democriticas ¢ permissivas sofrem de excesso de tolerdncia em sentido negativo, de tolerfincia no sentido de deixar as coisas 0, de ni questionério onde se pede apoio exigéncia do “direito 4 pornografia”,) Mas nem mesmo tolertincia positiva é absoluta. A tolerncia absoluta e uma pura abstragio. A tolerdncia histérica, real, concreta, é sempre relativa. Com isso, nao quero dizer que a diferenga entre tolerdncia e into- lerdncia esteja destinada a desaparecer: Mas € um fato que, entre conceitos extremos, um dos quais é 0 contra rio do outro, existe um continuo, uma zona cinzenta, 0 “nem isto nem aquilo”, cuja maior ou menor amplitu- de € variavel; e € sobre essa varidvel que se pode avaliar qual sociedade € mais ou menos tolerante, mais ou menos intolerante interferir, de no se escandalizar nem se indignar com mais nada. (Nestes dias, recebi um 8. Ni € facil estabelecer os limites desse continuo, para além dos quais uma sociedade tolerante se transfor- ma numa sociedade intolerante. Excluo a solugio proposta por Marcuse em seu conhecido ensaio sobre a tolerdncia repressiva, que con sidera repressiva a tolerincia tal como exercida nos Estados Unidos, onde as idéias da esquerda radical nao so admitidas, enquanto sio admitidas e favorecidas as da direita reaciondria. A expresso “tolerdncia repressiva” é uma auténtica contradig&o em termos. A tolerancia positiva consiste na 90 A ERA DOS DIREITOS remogio de formas tradicionais de repressio; a tolerancia negativa chega mesmo a exaltago de uma sociedade anti-repressiva, maximamente permissiva. Marcuse pode permitir-se essa expresso contraditéria porque dis- tingue as idéias em boas (as progressistas) e ms (as reacionérias),afirmando que boa tolerancia é a que tolera apenas as idéias boas. Assim, em vez de distinguir entre tolerdncia e intolerdncia, distingue a tolerdncia em face de certas idéias da tolerancia em face de outras, chamando urna de boa e outra de ma. Partindo dessa distincio, afirma que uma sociedade tolerante, na qual a tolerfincia readquira o sentido originario de uma pritica liberadora e nao repressiva, como ocorre na sociedade burguesa quando de seu surgimento, de veria inverter completamente a rota: tolerar apenas as idéias progressistas e rechagar as reacionarias A negaco da tolerincia em face de movimentos reacionsrios antes que possam tornar-se ativos; a intolerdneia até em face do pensamento, das opinides, das palavras, ¢, finalmente, a intolerdncia na diregao oposta, ou seja, em face dos conservadores que se pro clamam tais, em face da direita politica. Essas idéias podem ser antidernocraticas, mas correspondem ao desenvolvimento atual da sociedade democratica, que destruiu as bases para a tolerancia universal. Uma posigiio desse tipo é inaceitavel. Quem distingue entre as boas e as mis idéias? A tolerdincia s6 é tal se forem toleradas também as més idéias. Contrapor uma tolerfincia repressiva, que é recusada, a uma tolerancia emancipadora, que € exaltada, quer dizer passar de uma forma de intolerancia para outra. 9. Nao & que a tolerancia seja ou deva serilimitada. Nenhuma forma de tolerancia é tao ampla que compre- enda todas as idéias possiveis. A tolerancia e sempre tolerZincia em face de alguma coisa ¢ exclusio de outra coisa. O que nfo convence na teoria marcusiaria € o critério de exclusio, ja que se trata, sob certo aspecto, de um critério excessivamente vago, e, sob outro, excessivamente restritivo. Vago porque a avaliagio do que € progressista e do que é reaciondrio é relativa a si tuagGes histéricas mutaveis; restritivo porque, se a tolerdncia é dirigida somente para o reconhecimento de certas doutrinas e nao de outras, sua fungdo é completamente desnaturada. O niicleo da idéia de tolerdncia é 0 reconhecimento do igual direito a conviver, que é reconhe- cido a doutrinas opostas, bem como o reconhecimento, por parte de quem se considera de positario da verda- de, do diteito ao erro, pelo menos do direito ao erro de boa-fé. A exigéncia da tolerancia nasce no momento em que se toma conscigncia da irredutibilidade das opinides e da necessidade de encontrar um modus vivendi (uma regra puramente formal, uma regra do jogo), que permita que todas as opinioes se expressem. Ou a tolerdncia, ou a perseguigio: tertium non datur. Se a tolerneia que Marcuse condena e chama de repressiva é persecutéria, nao se vé por que néo seja persecutéria, pelas mesmas razées, a tolerncia que ele aprova. Seria o mesmo que dizer que a toler’ uma idéia que j4 cumpriu seu destino, e que, numa situacio de conflito antagdnico entre concepgbes do mundo opostas, irredutiveis, incompativeis, ela perdeu toda a razio de set. incia, nascida num certo contexto histérico, deveria ser agora considerada como 10. Uma coisa € afirmar que a tolerdncia jamais ¢ ilimi tada (somente a tolerancia negativa é ilimitada; mas, por isso mesmo, termina por desacreditar a pr6pria idéia de tolerfincia); outra considerar que, se ela deve ter limites, os critérios para fix4-los néo devem ser os propostos por Marcuse. O tinico critério razoavel & o que deriva da idéia mesma de tolerancia, e pode ser formulado assim: a tolerdncia deve ser estendida a todos, salvo Aqueles que negam o principio de tolerdncia, ou, mais brevemente, todos devem ser tolerados, salvo os intolerantes. Essa era a razio pela qual Locke considerava que o principio da tolerdncia no deveria fera dapolitica, a negacao do direito de cidadania aos comunistas ¢ aos fascistas. Trata-se, de resto, do mesmo principio pelo qual se afirma que a regra da maioria no vale para as minorias opressoras, ou seja, para aqueles que, se se tornassem maioria, suprimiriam o principio da maioria. Naturalmente, também esse critério de disting&io — que, abstratamente, parece clarissimo —nio € de facil realizagao na pritica, como parece A primeira vista, e no pode ser aceito sem reservas, A razio pela qual nao é tao claro como parece quando enunciado reside no fato de que ha varias gradaces de intolerancia ¢ sio varios os mbitos onde a intolerincia pode manifestar-se. No pode reservas por uma razao de modo algum negligencivel: quem cré na bondade da to lerdncia o faz ndo apenas er estendido aos catélicos, sendo também a que justifica hoje, na sr accito sem NORBERTO BOBBIO a1 porque constata a irredutibilidade das crengas e opiniées— com a consegtiente necessidade de nao empobre- cer, mediante proibigGes, a variedade de mani festagGes do pensamento humano—, mas também porque eré na sua fecundidade, e considera que o tinico modo de fazer com que o intolerante aceite a tolerfncia nao ea persegui¢io, mas o reconhecimento de seu diteito de expressar-se. Responder ao intolerante com a intolerin- cia pode ser formalmente irreprochavel, mas certamente algo eticamente pobre e talvez também politica- mente inoportuno. Nio estamos afirmando que o intolerante, acolhido no recinto da liberdade, compreenda necessariamente o valor ético do respeito as idéias alheias. Mas 6 certo que o intolerante perseguido e excluido jamais se tornaré um liberal. Pode valer a pena par em risco a liberdade fazendo com que ela heneficie também 6 seu ini migo, sea tinica alternativa possivel for restringi-la até o ponto de fazé-la sufocar, ou, pelo menos, de nao Ihe permitir dar todos os seus frutos. E melhor uma liberdade sempre em pe rigo, mas expansiva, do que uma liberdade protegida, mas incapaz de se desenvolver: Somente uma liberdade em perigo é capaz de se renovar. Uma liberdade incapaz de se renovar transforma-se, mais cedo ou mais tarde, numa nova escravidao. A escolha entre as duas atitudes € uma escolha tltima; e, como toda escolha iltima, nao é facilmente defensivel com argumentos racionais. De resto, ha situagies histéricas que podem favorecer ora uma das copes, ora outra. Ninguém pensaria hoje em renovar a proibig&o dos catélicos, como queria Locke, porque as guerras religiosas terminaram, pelo menos na Europa, e nio é previs{vel o seu retorno. Ao contririo, em muitos paises europeus, hd uma proibicao do partido comunista, porque a divisao entre paises democraticos ¢ paises submetidos a regimes de ditadura guiados pelo movimento comunista internacional ainda esta presente € operante no mundo e na sociedade euro péia, dividida entre um Ocidente capitalista e democratico e um Oriente socialista e nfo democratico. Devemos nos contentar em dizer que a escolha de uma ou de outra solugio permite distinguir entre uma concepgao restritiva da tolerancia, que € propria do liberalismo conservador, e uma concepgao extensiva, que € propria do liberalismo radical ou progressista, ou que outro nome se Ihe queira dar. Aduzo dois exemplos iluminadores. O conservador Gaetano Mosca rechagava como ingénua e infundada a doutrina segundo a qual a violéncia nada poderia contra a verdade e a liberdade, observando que a hist6ria, infelizmente, dera mais razio aos intolerantes do que aos tolerantes; rechagava também a afirmagio de que a verdade termina sempre por triunfar contra a perseguicdo e de que a liberdade é fim em si mesma, como alanga de Aquiles, que curava as feridas que ela mesma produzia. Dizia que essa doutrina dos liberais avangados faria os pésteros rirem as nossas costas, Luigi Einaudi, ao contrario, numa famosa passagem, que j citei em outros lugares, escrita em 1945, no momento em que nosso pais se preparava para restaurar as instituig6es da liberda- de, afirmou: “Os que créem na idéia da liberdade (...) afirmam que um partido tem direito de participar plena- mente na vida politica, mesmo quando for declaradamente liberticida, Para sobreviverem, os homens livres iio devem renegar suas proprias razdes de vida, renegar a propria liberdade de que se professam defensores.” Como sempre, a ligdo da histéria ¢ ambigua (e, por isso, é dificil aceitar a tese de que a histéria é mestra da vida). Na hist6ria de nosso pafs, se pensarmos no advento do faseismo, ficamos tentados a dar razio a Mosca se pensarmos, a0 contrario,no processo de gradual democratizago do partido comunista (e no fascismo residu- al, permanentemente minoritério), ficamos tentados a dar razio a Einaudi. 11. Onde a histéria destes iltimos séculos nao parece ambgua € quando mostra a interdependéncia entre a teoria e a prética da tolerfincia, por um lado, e 0 espirito laico, por outro, entendido daquela mentalidade que confia a sorte do regnum hominis mais as raz6es da raza que une todos os homens do que aos impulsos da fé. Esse espitito deu origem, por um lado, aos Estados no confessionais, ou neutros em matéria religiosa, e ao mesmo tempo liberais, ou neutros em matéria politica; e, por outro, & chamada socieda- de aberta, na qual a superagio dos contrates de fé, de crengas, de doutrinas, de opiniées, deve-se ao império da urea regra segundo a qual minha liberdade se estende até o ponto em que nao invada a liberdade dos outros, ou, para usar as palavras de Kant, “a liberdade do arbitrio de um pode subsistir com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal” (que € a lei da razio). sste como a formagao

Você também pode gostar