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Ricardo Rocha
– Você...?
O sorriso de Esperança...
Impregnado de reticências e
mistérios... Não era exatamente
triste, apenas não possuía a alegria
em geral frívola que o ricto faz
supor. Estava além da tristeza e da
alegria, quem sabe do bem e do mal.
Tinha a ver com o que eu sentira na
praia no dia anterior, um aceno da
vida a que seria herético não
corresponder.
Ouvi Magda, após me
cumprimentar, pouco sutil, afastar
Esperança e dizer-lhe
inaudivelmente para ouvidos não tão
acurados quanto os meus. Não é
perigoso? Esperança olhou o relógio
e falou. Você está atrasada, Magda.
Magda era uma boa moça, dessas
que expressam a timidez pela
extroversão e fazem do paradoxo um
estilo de vida. Será que eu posso ao
menos pentear o meu cabelo?
Esperança não deu importância à
amiga mas eu entendi que ali ela era
hóspede também. Uma expressão
bem-humorada e ela avisa para a
amiga, na penteadeira segundo
imaginei, que agora ela é quem vai
tomar um banho. Esperança passa
em direção ao que deve ser a porta
do banheiro. Eu folheava as revistas
sobre a mesinha de centro. Tchau,
despediu-se Magda súbita e
rispidamente.
Música no toca-discos.
Erbaaaaaarme ditch. Anjos. Pelas
cortinas um profético fascínio
purpúreo. Eu não tenho duvidas. O
tom que nos envolvia introduziu-se
em minhas veias. Esperança, nua e
tangível, real. Estou morta de fome,
disse. Eu também. Pés descalços na
direção da cozinha. Um certo frio, um
elevador que se fecha no corredor,
uma geladeira aberta. Risos e
olhares do amor mais inequívoco. Ela
em meu colo, comemos os mesmos
sanduíches e tomamos o refrigerante
no gargalo.
Na penumbra do quarto, na
quietude da madrugada, nas
pardacentas luminosidades da
memória, na noite infinita da alma –
eu me envergonhava de meus
temores, remorsos e timidez. O que
você disse? – perguntou Esperança.
Olhei-a. Ela dormia. Suspira. Me
enterneço.
5h38.
Amanhecia.
– Oi.
– Ao cinema.
Sarah apanhou a máquina na
cômoda e colocou-a em minhas
mãos. Segurou a barra do vestido
vermelho, os polegares por dentro,
tirou-o cruzando os braços por cima
da cabeça, colocando-o no espaldar
da cadeira. As mãos desceram pelo
caminho das costas, já desligando o
sutiã, criteriosamente colocado junto
ao vestido. E o mesmo com a
calcinha do conjunto, com equilíbrio
elogiável nos sapatos altos. Deitou-
se em minha cama e colocou a mão
direita na cintura. Uma pose
provocante.
Clic.
– Calhorda!
Mulheres... E se eu tivesse feito e
agora caísse a seus pés, ela me
acharia ridículo, bonzinho,
antiquado, que para um bom sexo
não é preciso amor. A imagem de
Esperança insinua-se como o brilho
de um diamante na lama do
arrependimento. Amor, preciso
desesperadamente de você, de
juntar minha vida à sua. Esperança.
Precisava cancelar decisões
anteriores a mim.
Escuto. A respiração de
Esperança. Dorme no quarto
contíguo ao do Dr. Carlos. Pernas
compridas, dobradas numa cama
estreita. Sonhos em que quem sabe
eu esteja. Dedos de pés graciosos e
fortes, uma brisa pela janela, passos
no corredor, a única lâmpada acesa
na sala que dá para a subida da
favela. Braços abraçam o
travesseiro. Um dia tive aulas
particulares de matemática ali, Dr.
Carlos me salvou de pelo menos duas
repetições de ano. Um homem
simples e bom. Onde estão na
mulher e em sua filha aquela doce
generosidade? Sara chega em casa,
ferida e furiosa, passando pela porta
de Esperança. Mas todos dormiam,
logo Sara estaria dormindo também,
de manhã acordaria curada. É
solteira, experiente, fui apenas um
pequeno elo. No dia seguinte, estaria
tudo bem. Não há por que me
inquietar.