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Esperança

Ricardo Rocha

Carros ressoam no crepúsculo ao


longo da Avenida Atlântica atrás de
mim. A calçada acompanha a orla
marítima de Copacabana. Piso na
areia. O oceano transmite a velha
paz que jamais consigo manter.
Deus, eis-me aqui de novo tentando.
Pode ser o começo de uma história,
de minha história. Até aqui apenas
sonhei e abortei sonhos. Mas agora
descalço na areia, minha existência é
real e mais que isso, necessária.
Sempre fui aquele que poderia ter
sido. Tudo o que fiz foram as coisas
que deixei de fazer. Um sonhador,
prefiro considerar; um perdedor,
será preciso admitir?

Mas pode estar para acontecer


alguma coisa neste fim de dia,
parece vir de longe um prenúncio na
brisa que respiro. Alguns banhistas
se chocam com as ondas, eu
mergulho. Saio das águas,
gotejando; ponho os cabelos para
trás. No caminho de casa, o que está
errado comigo? Todo condomínio
hoje tem essas grades. Casais se
beijam nos bancos. O bar. Um
homossexual passeia seu cão. A
primeira estrela. Adolescentes em
grupos na esquina. Não fiz nada para
estar assim cansado. Mães e suas
crianças correndo. Há quanto tempo
tenho andado por essa trilha à beira
da estrada? As luzes começam a
aparecer nas janelas e desce a noite
sobre o Rio de Janeiro. É como se a
vida me mostrasse um sinal.

Minha mãe pediu para que eu


levasse uma encomenda que ela
trouxe de Paris para sua amiga
Tereza. Tomo banho como quem tem
pressa. Não tenho respostas. Visto a
camisa, vou à cozinha. Anatólia, a
empregada, cantarola “Último
Desejo”. Faço um sanduíche de
queijo, mastigo com um refrigerante
– venero esse jeito como desce
rasgando. Tereza tem uma filha de
minha idade. Não vou suportar por
muito tempo essas refeições rápida
sozinho e continuar me vestindo com
destinos circunstanciais. No saguão
do prédio, hesito antes de entrar na
marcha da normalidade e fazer parte
dos passos das pessoas lá fora.

Vou a pé da rua Paula Freitas até


a Sá Ferreira. Quando Sara abre a
porta, eu a vejo. Esperança. Ela
empurra com cuidado o velho na
cadeira. Oi, diz Sara. Oi, respondo.
Tudo bem? Como tem passado o seu
pai? Ela diz que um derrame é um
derrame. O estado dele não tem
muitas alterações. Eu e mamãe já
aprendemos a conviver com isso. O
que se pode dizer numa situação
assim? Estou indo ao cinema, diz ela.
Porque não vem comigo? Esperança,
que havia sumido no corredor, agora
volta, já não de branco,
cumprimenta-me, despede-se de
Sara, passa por mim e pela porta,
chama o elevador. Já estou atrasado
para um compromisso, apresso-me
em responder a Sara. Outro dia a
gente vai. Vou aproveitar o elevador.

Esperança vai me dizer seu nome.


Você é a nova enfermeira do Dr.
Carlos? Sou, ela sorri. Sou amigo da
família. Muito prazer. Agora ela sabe
o meu nome também. Vamos nos
despedir, não sei como evitar. Estou
enfeitiçado pela luz nos seus olhos.
Não há tempo para timidez. Eu digo
Vou ao cinema. Não gostaria de vir
comigo? Estou um pouco cansada;
noutro dia a gente vai. Também
estou cansado, replico com súbita
firmeza. Cansado de esperar dias
que nunca chegam. Após a longa
pausa ela pergunta que filme quero
assistir. Estamos parados na
esquina. Eu estou no paraíso.

Conheci Esperança em uma


quinta-feira, numa época em que me
determinara a nunca mais chorar ou
me sentir miserável, exceto pela
visão de crianças miseráveis
chorando. Ela gostava de ópera, não
todas nem toda uma, mas aqueles
trechos em que a contralto se
esgoela, desprendendo a alma pela
garganta. Quanto a mim, só mesmo
o velho blues aquieta meu espírito. A
noite arrefecera um pouco e a lua
caminhava conosco. Os ônibus
passavam cheios. As pessoas
caminhavam apressadas para chegar
em casa e não perder a novela.
Andávamos devagar e ainda não
tínhamos nos decidido por um filme.
Naqueles momentos eu não era nem
um sonhador nem um perdedor e
estava realmente fazendo o que
fazia, partilhando com Esperança a
sagração da vida, refletindo sobre
Deus e os homens. Eu havia sido
aprisionado numa nuvem de pureza,
glória e serenidade. Ali era o lugar
de Esperança, anjo; e, quando
mulher, era limpa de rosto, como
limpa a alma que expunha diante de
mim.

Eu não podia imaginar, como


quem ama geralmente não pode,
haver no mundo alguma fealdade
que pudesse desafiar a beleza de
nossa afeição, avançando com a
noite para a plena luz do amanhecer
que combinamos contemplar na
praia. Nada existia que pudesse
mudar o que ela provocava em mim,
sua singeleza e segurança, a
sensualidade sem astúcia. Era o
cumprimento de minhas
idealizações. Quaisquer imperfeições
fortuitas, causadas por influência de
passado ou destino, não poderiam,
se existissem, afastá-la da força de
meu amor. Que lei proibiria o que
meu ser começava a sentir, doce
revelação súbita, a felicidade?

Esperança era alta e magra,


acalentava sonhos sem se perder
neles, tinha um sorriso triste que me
comovia e deixava indefeso, acatava
os chamados secretos da vida, como
meu convite, seus olhos brilhavam
além do momento em que eu os
contemplava, venerava a Virgem
com devoção supersticiosa e, de
resto, seus cabelos negros
emolduravam-lhe o rosto evocando a
própria Senhora.

No final da sessão, os créditos


descem na tela e Esperança diz ter
se identificado muito com a
personagem. Acabamos indo ao
Cinema Um, na rua Prado Júnior. O
filme contava a história de um
garoto com uma doença rara que
deformou o seu rosto, mas supera os
traumas e leva uma vida normal – é
alegre, inteligentíssimo, muito
sensível e – não, não, diz Esperança –
ela se referia à mãe do garoto. Cher
fazia o papel, uma mulher no limite,
sempre drogada.

– Você...?

Claro que não. Droga é loucura.


Esperança tornou-se enfática. Umas,
os pós, a bebida, tiram a gente da
realidade, o que é uma covardia
fatal; outras (o ácido, a maconha),
nos fazem ir ao coração da realidade,
mas tirando-nos de nós, o que acaba
dando no mesmo. Para ela, atenção
era a palavra-chave. Uma estrela
desceu dos céus e a seguimos.
Sonhos no olhar de Esperança
ofuscam feridas abertas sobre as
quais ela ainda não falou. Não
havíamos sequer dado as mãos.
Atenção. Repete-se, segura.
Simples assim. Atentos nos
embriagamos da intensidade
alucinógena em perfeita temperança.
Olho para os céus recortados pelo
alto dos prédios como a esperar que
um espírito me envie alguma luz
para compartilhar com Esperança
mas apenas sinto uma vontade louca
de sair da rua interna, onde
tomamos café, e ir logo para a beira
do mar. É isso o que compartilho
agora com essa a quem minha alma
começa a se apegar de forma tão
desatenta.

Atenção é a chave de tudo, desde


aquela estrela cadente até o quebrar
dessas ondas; do tremeluzir da
cidade no mar até o som de nossa
própria voz; e o cheiro do sal, o
cachorro-quente da carrocinha...
Atenção, e nossos pés vivificam o
toque da areia. Com toda essa
introdução, foi natural o que se
seguiu. Num pacto tácito, seguro-a
pelos ombros e a viro para mim;
usufruo a aura de seu perfume e vivo
sua respiração em meu rosto, antes
do beijo. Algumas horas atrás,
pensaria num dos motéis da Glória.
Agora, me debruço no sonho em seus
olhos, vendo enfim a luz que por
toda a noite intuí .

Sentamos na areia úmida junto às


ondas. As mais fortes ameaçam
molhar os nossos pés. Ela fala. Conta
coisas de seu passado. Um mundo
fechado em angústia terrível.
Sempre muito sozinha. Vivia triste
porque se sentia só, era feia, pobre,
negra, sem pai em casa, sem um lar
para morar. O som da rebentação
fazia fundo às palavras e, refletido
em suas lágrimas, Deus do céu, eu
estava enlevado! Não era mais o
rapazinho que fugiu de casa aos
quinze anos e encontrou a assessora
de um político que lhe arranjou um
emprego público, onde sofri minha
primeira decepção de amor, Andréa,
filha de um magnata do esporte. Os
pais dela jamais acharam doença a
demasiada saúde de nossos corpos
adolescentes e portanto não tinham
por que a mandarem para a Europa.
E o marido da assessora nada
enciumado não exigiu a minha
demissão. Não. Eu não tinha
passado. Não voltara,
desempregado, à cruel dependência
de minha mãe e à segurança do
apartamento espelhado onde eu não
conseguia ver o mundo.
Porque,arrebatado ao presente,
apaixonado, quero ser numa outra
vida, Esperança, cuja dimensão em
mim é a do verdadeiro amor, essa
que o redor não capta e as pessoas
não entendem. Só alguém que
amasse Esperança como eu amava
poderia vê-la como eu a via, discernir
as virtudes que nela me enlevavam.

Nalgum lugar um galo cantou,


anunciando a nova manhã.

Ficaríamos até o nascer do sol,


ratificamos. Que o momento fosse
infindo. Agora. O astro derrama ouro
e sangue, um olho de fogo que,
conforme a lentidão de sua subida
em cílios fulgentes, tinge o silêncio
da manhã. Com a claridade surge a
manhã de uma metrópole. Quietude
quebrada, vinga a normalidade
putrefata. O carbono polui a lua e há
uma corrida enlouquecida na direção
do centro da cidade. O anátema de
vencer na vida. Na avenida Nossa
Senhora de Copacabana, os ônibus
passam cheios e a morte escraviza o
sentido do trabalho e do dinheiro,
expressando-se na pressa dos
pedestres e no ódio dos automóveis,
nas lápides sobre todos onde todos
sonhavam glórias.

Esperança fazia sinais para um


táxi. O fusca de placa vermelha
parou. Mais alguns segundos e eu a
perderia. O motorista abre a porta,
ela entra. Pergunta se vou com ela.
Claro que sim, que alívio. No carro,
não falamos exceto por nossas mãos
dadas sobre o banco. Eu fazia planos
mas considerava se tinha direito de
fazer. Eu não era livre, nada podia
oferecer com meus arroubos e
depressões. Vivia à margem de um
mundo cujas portas Esperança abria
sem pedir permissão. Onde porém
estavam minhas mazelas senão num
passado que ela apagara? E a
margem, a partir de Esperança, não
se confundiria com a estrada? O táxi
avançou pela avenida Presidente
Vargas e parou numa esquina, que
esquina!, rua Santana. Logo
estávamos no número 73. Perguntei
se ela morava ali. Bem que gostaria,
respondeu. Estamos na clara manhã
de sexta-feira, entrando no
famigerado prédio, e Esperança está
à vontade. Cumprimenta o porteiro
com sua voz grave despedaçando as
sílabas com sotaque de anjo.

Uma amiga de Nova Friburgo, sua


cidade natal, também enfermeira,
estava hospedando Esperança
enquanto ela não conseguia a
própria casa. Não esse é o sonho de
toda moça, ter um lar e no fim do dia
um homem para partilhar a noite
dentro dele? A porta do elevador se
abriu. No corredor escuro do décimo
quinto andar, um vulto procura
chaves na bolsa.

Uma voz ecoa ao entramos. É


você Esperança? Sim, respondeu ela
na volta do mesmo grito. Achei que
embora tão pequeno, o apartamento
aproveitava bem o espaço e disse
que é mesmo um lugar bom de se
morar enquanto se prepara uma
vida. Um lugar assim me bastaria,
disse ela. Eu ri e disse que decerto
ela não pretendia ter filhos. Ela
sorriu também.

O sorriso de Esperança...
Impregnado de reticências e
mistérios... Não era exatamente
triste, apenas não possuía a alegria
em geral frívola que o ricto faz
supor. Estava além da tristeza e da
alegria, quem sabe do bem e do mal.
Tinha a ver com o que eu sentira na
praia no dia anterior, um aceno da
vida a que seria herético não
corresponder.
Ouvi Magda, após me
cumprimentar, pouco sutil, afastar
Esperança e dizer-lhe
inaudivelmente para ouvidos não tão
acurados quanto os meus. Não é
perigoso? Esperança olhou o relógio
e falou. Você está atrasada, Magda.
Magda era uma boa moça, dessas
que expressam a timidez pela
extroversão e fazem do paradoxo um
estilo de vida. Será que eu posso ao
menos pentear o meu cabelo?
Esperança não deu importância à
amiga mas eu entendi que ali ela era
hóspede também. Uma expressão
bem-humorada e ela avisa para a
amiga, na penteadeira segundo
imaginei, que agora ela é quem vai
tomar um banho. Esperança passa
em direção ao que deve ser a porta
do banheiro. Eu folheava as revistas
sobre a mesinha de centro. Tchau,
despediu-se Magda súbita e
rispidamente.

Esperança apareceu na sala,


totalmente seca, a camiseta da noite
sobre o corpo e as demais roupas
que vestia em algum lugar do quarto
ou do banheiro. Um balbucio dúbio.
Aproxima-se do sofá onde eu estava
e ajoelhou-se. Tira meus sapatos de
camurça marrom e as meias com
desenhos em ponto-de-cruz. Meu
cérebro em crise aguda de limite se
transporta para essas reflexões
taquicárdicas que nunca chegam a
ser concluídas, conduzidas que são
para um outro gênero de
pensamento, obscuro e viajante,
como quando se fica na fronteira
antes de acordar e não mais no
transe do sono. Ela desabotoa minha
camisa, e meus nervos vão
desfazendo o que suas mãos fazem e
refazendo-o segundo a estética de
prazer captada pela poesia perdida
em seus dedos. Você está indo muito
bem, disse ela ao abrir o zíper da
calça. É assim que deve ser, apenas
dançar a música que está tocando.
Deve ser mesmo, concordei
humildemente, pois me sinto muito
bem.

– É isso o que conta. Quero que se


sinta bem; quero que se sinta livre.

Das roupas eu já estava.

A gente não aprende a dançar


senão dançando. Minhas feridas
estão assim tão abertas? Ela pode ler
dentro dos meus olhos... Mas, se
hoje é tão diferente de mim, o que
nos atrai, é porque um dia foi tão
igual, o que nos atrai mais ainda.
Esperança jogou a última peça de
roupa sobre as outras no chão. Por
que eu deveria analisar seu
comportamento? Ela me fazia ser.

Me toma pela mão. O coração


estressado da cidade lá embaixo
está sereno. Caos urbano, paz
universal ou minha alegre
tranqüilidade. Eu decido o que as
circunstâncias ao redor serão, não o
inverso fatídico.

O chuveiro sobre a banheira. A


mão que abre a água; a mão que me
empunha. Dentro do boxe, eu
totalmente molhado, a ducha
desligada, ela apanhou o xampu e
lavou os meus cabelos. O sabonete.
Meus ombros, a barriga. Como
Nicodemos, eu buscara respostas na
noite cheio de idéias próprias, mas
numa dimensão maior de
pensamento agora eu era levado a
renascer através do rosto de
Esperança. Não sabia de onde vinha
ou para onde ia o vento mas, liberto
da necessidade de saber, podia
enfim escutá-lo.

Entra na banheira. Minhas costas,


as nádegas. Agachou-se. As pernas,
as coxas. Virou-me. Deixou-se.
Prendo o ar. Fecho os olhos. Nada
falávamos.

Tornou a ligar a água, passando-a


para a mangueira do chuveirinho.
Enxaguou os meus cabelos, a
espuma branca entra no ralo.
Quando a noite terminará senão na
certeza de que a noite voltará?
Esperança me entregou o xampu e o
sabonete. Estremeci quando ela
puxou a malha por cima da cabeça.
Entrou sob o jorro. Suas feições
infantis contrastavam com a mulher
imensa diante de mim, imenso
também.

Os cabelos ainda mais negros


porque molhados, a água escorria
em abundância pelo seu corpo, como
se a vestisse. Eu tomava sobre mim
as mudanças de Esperança ao longo
da vida, da pobre menina feia à bela
mulher independente, e
acompanhava as metamorfoses
contínuas que, quando eu chegava
na suposição de entende-las, ela ali
já não estava. Era essa a própria
essência do prazer que me possuía, o
da impossibilidade. O sabonete erra
pela luz amarelada. Ela se vira e abre
os braços, as palmas se apóiam nos
azulejos respingados. Sombras e
luzes em suas costas. Era mais do
que eu merecia, mais do que podia
esperar. O conhecimento restrito ao
sabor do momento que
irreversivelmente passará: saber de
sua transitoriedade é faze-lo eterno.
Quando desliguei a água em
definitivo, ela encostou a cabeça em
meu ombro num afago, e nosso
abraço foi o das partidas e dos
reencontros.

Música no toca-discos.
Erbaaaaaarme ditch. Anjos. Pelas
cortinas um profético fascínio
purpúreo. Eu não tenho duvidas. O
tom que nos envolvia introduziu-se
em minhas veias. Esperança, nua e
tangível, real. Estou morta de fome,
disse. Eu também. Pés descalços na
direção da cozinha. Um certo frio, um
elevador que se fecha no corredor,
uma geladeira aberta. Risos e
olhares do amor mais inequívoco. Ela
em meu colo, comemos os mesmos
sanduíches e tomamos o refrigerante
no gargalo.

Termo do suportável. Delicados


preâmbulos sujeitam o deleite.
Toques tenros, afagos lentos.
Murmúrios ininteligíveis. Palavras
desconexas, suspiros. Profundezas.
Infinitos. Umidade abissal e pulsação
limítrofe. Ondas mais fortes
ameaçam nos molhar. Ainda não.
Não há pressa. Não há tempo no
mundo. Não há mundo lá fora. Assim.
Visão de paraíso. Esperança. Suave,
ardente, morena como a virgem, em
nuvem mágica de pureza. Assim.
Atentamente. Assim, ah,
atenciosamente.

Uma fresta de manhã na volta ao


quarto, ou de tarde já talvez, divide
a cama onde seu corpo começa a
pousar. Mãos apoiadas no lençol
enrugado, enruga-se mais a toalha
branca, um pedido da branca luz, a
língua inquieta no pescoço sinuoso,
lábios que descem ao feixe do sol na
auréola um vermelho mais vermelho
e as mãos multiplicadas, mãos em
meus cabelos, gemidos, e outro a
esse apegado, não há ombro como
este, assim liso, nem umbigo
licoroso, ou costela, ou traços
risonhos assim entrevistos, o paladar
e a consistência. Os movimentos
vinculam o corpo a um desejo remoto
e vago.

Que foi feito da noite? Está aqui,


em sua síntese, plena no dia,
resumida, inteira no dia. Na
luminosidade dos olhos de
Esperança, um espelho que pulsa em
seu peito e me reflete. Na suavidade
e no silêncio, exceto pelo incenso do
coração longínquo da cidade lá
embaixo. Na bondade, na
autenticidade, na respiração em meu
rosto, no seio suplicante, no pacto
silente, na reticência do sorriso de
Esperança e na poesia em seus
dedos.
Estou enfim onde esperado.
Contornos sombrios na ponta da
língua, lição de vida ainda por vir,
adivinhada. Esperança de olhos
fechados e o vale da voz sob o
pescoço. Sorri num momento e
noutro não sei mais se é um riso ou
uma ordem a que obedecendo não
paro, ajoelhado; mas agora preciso
me erguer, só um pouco, e percebo
o quanto a cama é alta e o quanto a
flor aberta me engole. O limite é
onde o colchão acaba, nas idas do
reconhecimento úmido e róseo e nas
vindas de um tempo como o tempo
capaz de modificar os rostos e
sentimentos, de aplacar saudades ou
tristezas e dar e retirar da alegria
mais ou menos vida.
Um grito, e mais um outro;
quando os joelhos se dobram lá no
alto, há um relógio no pulso que se
mantém desde o cinema – resquício,
analogia, testemunha. No balé
preciso, uma mudança na luz sobre o
palco e a nova fala não há que ser
decorada. Ela enlaça meu pescoço no
arco, no abraço o calor dos seios
trazem um mundo que só
prosseguirá na presença mútua, um
mundo por instantes abalado e
renovado; vira-se sobre um corpo
estirado, sobre a forma pétrea que
deve talvez estar prestes a partir
desse ser nascido de mim e que não
sei se ainda sou.

Tantas luzes se completam,


marcam as mãos nas carícias
espalmadas; sombras que se
espalham nas costas, nas nádegas e
nos cabelos, nenhuma superfície
está imune. Um beijo, longo e
aturdido, uma nova pressão no
abraço deslumbrado, antes que ela
se vire e sente agora no corpo
estirado, as costas que obrigam o
olhar que se pensava exaurido, e
sobe sobre uma destreza sequer
imaginada, e desce, e sobe, e ao fim
a questão ainda se mantém, e nada
está resolvido, donde talvez o novo
apoio das mãos, sobre a guarda da
cama. Eu apenas me deixo guiar, o
amor de Esperança sabe tudo e
entendo nada saber. Um céu sobre
suas costas, uma tarde inteira e logo
a noite, odores, ímpetos, e a incisão
da lâmpada nos quadris. O espelho
da penteadeira devolve-me ainda
seu rosto num gozo outro, espectral,
que se tardar perderá a necessária
claridade, sumindo na fina treva.

A noite está aqui, o universo em


nós. Nossas mãos falando, as minhas
por trás, nos seios dela, as dela de
novo nos lençóis. Onde estão minhas
angústias? Amplidão de virtudes me
enleva – assim, assim. Prendo o ar,
fecho os olhos, o mar desliza pela
areia.

Esperança adormecera em meus


braços, em sua cama. O ambiente a
ela familiar me evoca ainda as
expectativas do desconhecido. Eu
permanecia desperto porque
acreditava ser um desperdício
algumas horas de descanso físico
que se poderia ter quando da volta
ao tempo. Ela dormindo, eu
respirava uma outra aura, não
menos partilhável ainda que noutra
dimensão. Esperança adormecida me
oferece sua ignorância de mim,
reparte comigo todo o ser que em
comunhão consciente comigo me
completava mas também excluía, na
perfeita contemplação dos matizes
da cortina, ou os desenhos do papel
de parede, nas suas roupas sobre a
cadeira (uma visão semelhante a de
seu corpo nu). Então eu absorvia
todo um halo primaveril dela
exalado. Esperança dormindo é a
porta fechada, confiando-me
sublimes esponsais. O trânsito
distante, distantes gemidos de
animais pré-históricos. As vozes de
vizinhos falando coisas
incompreensíveis de um mundo no
qual eu nascera e ao qual não
pertencia. E, sobretudo, Esperança,
acordada, ela mesma, na integridade
de sua consciência, me estava
vedada, era velada a visão de sua
alma quando falava ou calava,
gesticulava, quando olhava ou
evitava olhar.

Talvez sacudida pela minha


contemplação, virou-se de costas
para mim e se encolheu, o braço
para fora do lençol, descobrindo no
movimento seu ombro e seio. Eis-me
de novo dividido: não mais bastava a
contemplação, mas minhas mãos e
lábios eram os instrumentos gentis
do que me bastava. Logo a ação
deles introduziu-se nos desejos do
despertar lento de Esperança.
Renúncia das plenitudes que um
sono me ofertava. Corpos se
encontram em doces limitações.

Sussurrei. A que horas Magda


volta? O turno dela é 24 por 48, um
bom horário. Só voltaria de manhã. O
telefone tocou baixinho, como já
tinha acontecido diversas vezes ao
longo do dia. Aroma de cabelos
limpos e uma pergunta. Você nunca
atende as ligações? Só em nuncas
como hoje, responde Esperança. Se
Magda precisasse falar alguma coisa
urgente, tinham um código de
toques. Agora ele pede que eu, por
favor, apenas continue, assim.
Ficamos pois assim, mexendo de
quando em quando, assim quietos,
sem perguntas nem respostas, até o
dia terminar, quando exaustos
terminamos também.

Cortinas abertas, amada luz


noturna. As pessoas lá embaixo
derramam-se dos prédios comerciais
no sentido da Central do Brasil. Sete
e dez no grande relógio da estação.
Se eu estivesse lá embaixo, voltando
para casa depois de um dia de
trabalho, a posição dos ponteiros
teria um doce significado para mim.
Isso agora é irrelevante. Se já
conhecesse Esperança, essa janela,
vista lá debaixo, entre tantas e igual
a todas, seria única. Vou fazer uma
janta decente para nós, nada de
sanduíches, diz ela. Com um
pequeno beijo, fiz a pergunta. O que
é que se faz quando chega o dia que
não chegava nunca, aquele que
cansado estávamos de esperar? Não
faça nada, disse ela num carinho.
Fica comigo.

Na penumbra do quarto, na
quietude da madrugada, nas
pardacentas luminosidades da
memória, na noite infinita da alma –
eu me envergonhava de meus
temores, remorsos e timidez. O que
você disse? – perguntou Esperança.
Olhei-a. Ela dormia. Suspira. Me
enterneço.

O relógio – 4h40 – tictactictac –


testemunhava a chegada de boas
ações que eu fizera pela existência,
disposições benfazejas para com os
que me cercavam – reparti o meu
pão, dei meu agasalho, chorei com o
que chorava – o bem em toda
intenção. 4h50. Em Esperança eu
amava toda uma humanidade à qual
revoltas inúteis ensinaram-me a
desprezar. Um fluxo de luz enche
minha alma. Uma nova consciência:
nem o esquecimento nem a retenção
de todas as coisas. 4h 53.

Tudo tem o seu lugar. 4h56. Eu


não poderia resistir muito num
relacionamento de amor junto a uma
mulher abençoada pela Virgem com
o dom da liberdade, estando eu
próprio preso a espíritos em mim,
5h08. Lembrar e esquecer vinculam-
se à sabedoria e o discernimento
provém do olhar. O filamento
nervoso de um abajur só agora
percebido rege as nuances dos fios
de seu cabelo. Um clarão do terror
do que se quer alcançar e se alcança.
5:14.

Mas assim como passamos a noite


sem nos tocar, como falamos acerca
de Deus e de cinema, introduzimos o
clima do primeiro beijo, vimos o sol
nascer, passamos a madrugada sem
comer e comemos sanduíches no
almoço e bife com batatas à noite,
assim como preparamos o amor e
fizemos amor, e dormimos e
tornamos a fazer em outras
posições, a satisfação precederia
sempre, no amor, um novo desejo e
não o tédio. Amar uma mulher,
descobri, será continuar amando e
ainda renovando as mesmas coisas
que fizeram nascer esse amor.

– Seja o que for que estiver


pensando – disse Esperança ao
recostar a cabeça no meu peito – a
gente descobrirá junto. Agora dorme
um pouco.

Sempre existem horizontes


quando o sol está para nascer.

5h38.

Amanhecia.

Despertei com a visão da foto de


Esperança sentada num carrinho de
mão cheio de flores, um cântaro no
colo e um chapéu de palha na
cabeça. Nos olhos o surpreendente
sorriso sem nuvens. Todavia a foto,
que me havia enternecido no dia
anterior, era justamente daquela
época do mundo fechado em
angústia terrível do qual me falara,
não da moça desprendida que se
tornara no Rio e eu conhecera. Em
seguida entrou e seu rosto na foto,
até então sua única presença ali,
retornou a seu lugar no passado,
deixando-me com aquela nova
encarnação dela no robe, olhos
apertados em conformidade com o
tom que iluminava o quarto. Nosso
café, disse ela, colocando na cama a
bandeja com as xícaras, os pães, a
manteiga, o suco e a omelete de
queijo. Digo que, desse jeito, ela
está me acostumando mal. E a
Magda? Ela me repreende. Mas será
que você não pode esquecer a
Magda? Meu olhar diz tudo. Moça
adorada.

Segunda-feira seria feriado.


Haveria uma festa no domingo –
Esperança me contava. Poderíamos
passar o sábado juntos, ir à praia
talvez, mas por volta das seis e
meia, horário em que saía uma das
outras enfermeiras, ela teria de
estar no serviço, na casa de Tereza –
não está recitando um poema? A
mão nas costas de minha mão. No
silêncio, paz e cansaço. Será assim.
Eu a deixarei lá no final da tarde,
quando se iniciará o rito de minha
saudade, amparado pela certeza de
que a reencontraria.

Quando Magda chegou, sonolenta


e cansada, estávamos prontos para
sair. A amiga não demonstra mais
precauções quanto à minha
presença, uma mulher diferente,
outro tipo de aura. Melhor talvez
chegasse como saiu: os ainda
incertos instantes em que eu não
sabia tudo o que estava por
acontecer nas horas seguintes com
Esperança retornariam com ela – o
prazer da expectativa, um quê de
mistério e até a própria manhã
anterior, para a qual sua reação
serviu de referência. Mas me senti
bem em compreender que o Rio é
uma cidade violenta, todos os dias os
noticiários exibem casos escabrosos,
nada mais natural que a cautela
anterior de Magda, dissipada junto a
meus constrangimentos. Ela
pergunta bocejando: Onde vocês
vão?
Arpoador. As ondas deslizam ao
longo do limo na pedra. Um recanto
de privacidade no monte que sobe
do parquinho infantil. Ali passamos a
tarde ao sol; ali nos divertimos,
conversando e cantando, em
prelúdios de nós. O zíper de novo
aberto. Como eu posso dizer que
não? O pôr-do-sol começa a
avermelhar tudo ao redor. Esse
cântico será um dia pura memória. A
mulher capaz disso, sem qualquer
embaraço, há de ser, imagino,
guiada por um verdadeiro amor.

Mas não se engane comigo, disse


Esperança subitamente séria. Eu não
amei nunca. Quero te amar, mas não
sei se serei capaz. Ela havia criado
essa resistência, disse, sua alma foi
como que cauterizada, criou
bloqueios que achou necessários
para a manutenção da liberdade. E
amar fragiliza. Quanto mais
verdadeiro, mais o amor expõe ao
sofrimento. E, nem mesmo por amor,
concluiu, queria sofrer mais.

Não é necessariamente sofrer, eu


disse.

Sim, necessariamente. Como a


madrugada é mais escura
imediatamente antes da manhã.
Embora a gente se alegre pela
perspectiva do sol, ainda assim é
treva e não luz.

É luz, se a gente vive na luz, e


não na treva exterior.

Nem sempre a gente consegue


viver na luz interior. É grande o
fascínio das trevas.
– Você é tão bonita...

– Sei que tenho coisas bonitas em


mim e também que será difícil não se
deixar cativar por você: sua alma é
nobre e seu corpo paciente. Mas
quando te encontrei já havia me
decidido por uma vida e quando
decidi não imaginava que ainda
poderia ser capaz de amar.

–Mas se amar, essa decisão fica


automaticamente cancelada...

-Não sei – disse ela. –Realmente


não sei.

Fica então apenas assim,


Esperança, sua cabeça em meu colo.
Fica então apenas assim, pousada
em mim como um pássaro ferido. O
sol se põe, um flamejante disco-
voador. Ali, descendo sobre as lajes
da favela. Vamos, mostrarei a você
no caminho razões para você me
amar. O crepúsculo atrás de nós
concedia-lhe magenta majestade
quando a olhei pela última vez antes
que fosse na direção do prédio onde
o Dr.Carlos sobrevivia.

Nessa época, eu costumava


passar a maior parte de meu tempo
em casa, tocando violão e compondo
em meu quarto, só saindo para as
refeições. Na terça-feira porém, esse
cotidiano, já afetado pelo
conhecimento de Esperança, deveria
se modificar mais, pois começaria
num emprego em uma biblioteca. Em
meu quarto, por todas as paredes,
havia fotos, razão quase única de
minhas saídas de casa, para pegar as
cenas do nascer do sol e do poente,
como esses pescadores, essas
turistas, esses jogadores de
futevôlei, esses corredores no
calçadão. Fotografava ainda
crianças, mendigos, feirantes, e todo
tipo de figura exótica do velho Rio.
Às vezes conseguia captar um rosto
de mulher como esse, também
colado na divisória que me guardava
do mundo apreendido. Mas havia
uma janela e além agora Esperança.
Na direção dela, os acordes de uma
nova canção.

– Oi.

Cantando eu, distraído na


lembrança de Esperança, esvoaçando
na lembrança de minha vida de
reveses agora resgatada, e eis que
Sarah entrou no quarto sem bater,
sorridente, crepitante.

–Oi – respondi. E pensei: Terá nos


visto juntos?

–Será que hoje sai nosso cinema?


– perguntou ela ao colocar a bolsa na
cama e me beijar com uma
intimidade que não tínhamos. –Agora
não vai me convencer com a
desculpa da pressa para um
compromisso.

Lá fora vadiava um vento


veemente de presságios. A vida é
assim. Tantas vezes desejei Sarah,
na elegância de seu corpo bronzeado
quando vinha com Tereza para ir à
praia com minha mãe, mas por
algum bloqueio relacionado decerto
a essa mesma ligação de nossas
famílias, por medo do ridículo de me
declarar e ser rejeitado, nunca fui
além da imaginação. Até o dia em
que, com um pretexto perfeito,
determinado bati em sua porta com
a força acumulada pelo longo tempo
de solidão. E vi Esperança. Ela me
preencheu como desejo, preencheria
logo minha vida – desvanecida
estava em mim a imagem de Sarah
desde aquela noite. E aqui está ela,
extrovertida, elegante, um olhar
inequívoco. Sempre cantando e
tirando fotos, seu grande vadio,
disse, olhando minhas paredes.

– Vivo por coisas que perdurem.

– O Ricamar está passando


Subway. Um grande filme deixa
sempre uma recordação que não se
apaga. Vamos?
–Muito cultuado para minha atual
simplicidade.

–No Art está passando The Rose.

–Trágico demais. Estou vivendo


um momento feliz.

Sempre que desejo entender o


que se passou comigo naqueles dias
e como mudariam minha vida, ouço
de novo o comentário incrédulo de
Sarah àquela minha declaração.
Agora você é simples e feliz, diz. O
cara mais complicado e angustiado
do bairro? Não posso deixar de lhe
dar razão e me torno um pouco
menos arrogante com relação a
essas mudanças, revendo os lábios
de Sarah pronunciarem tais palavras
enquanto o vento continua a soprar
pela janela.
Mas na hora não me dei por
vencido e repliquei. Você me
conhece tanto assim? É que às vezes
sua mãe fala de você, respondeu.

– Minha mãe às vezes fala demais.

Bem, se eu não queria ir ao


cinema, podíamos fazer umas fotos.
Perguntei se ela também gostava de
fotografar. Gosto de posar, disse ela.
Não sabia que trabalho como
modelo? Não falo tanto assim com
sua mãe, disse eu.

–Eu sim. Ela diz que faríamos um


belo par.

Justo agora que não fazemos


mais, ela vem me dizer isso? Então,
prosseguiu Sarah, ao cinema ou às
fotos? Podemos fazer uns belos nus.

– Ao cinema.
Sarah apanhou a máquina na
cômoda e colocou-a em minhas
mãos. Segurou a barra do vestido
vermelho, os polegares por dentro,
tirou-o cruzando os braços por cima
da cabeça, colocando-o no espaldar
da cadeira. As mãos desceram pelo
caminho das costas, já desligando o
sutiã, criteriosamente colocado junto
ao vestido. E o mesmo com a
calcinha do conjunto, com equilíbrio
elogiável nos sapatos altos. Deitou-
se em minha cama e colocou a mão
direita na cintura. Uma pose
provocante.

Clic. Minha mãe não está em


casa? perguntei. Não, respondeu
Sarah, virando-se um pouco mais de
lado. E Anatólia também não. Estava
saindo quando ela entrou. Clic.
Algum dia esse tipo de coisa acaba, e
não mais a lei da carne trará o
homem sujeito. Algum dia a
criatividade e a arte não mais
operarão em favor da vaidade e do
mero prazer, clic, e não se invocará
mais a culpa como consolo. Clic. Ela
agora está de bruços, sorri
insinuante e dá uma piscadinha e se
aproxima de mim junto à janela.

Suas mãos sabem o querem.


Ajoelhou-se e começou. Tinha essa
intenção de gerar o inelutável e sabe
que conseguiu. Minhas costas na
janela para outras janelas e uma
fresta para a rua; mas não dá para
ficar pensando nessas coisas agora,
se alguém olhar e perceber, nem
mesmo pensar um pouquinho, não dá
para desviar a atenção. Ela, ávida,
pairando sobre meus medos. Sobre
minha timidez paira a boca e os
músculos de sua face. É para mim.
Para mim? Um olhar escuros logo
escondido pelas pálpebras, uma
confidencial habilidade. Não me olhe.

Clic.

Serei franco. Dir-lhe-ei o que ela


deve saber, o meu amor por
Esperança, mas não precisa ser
agora. Grandes confissões
acontecem quando não podem mais
ser adiadas por razões exteriores. Os
lábios dela reluzem entre a luz da
lâmpada e a do tênue sol, crispando-
se, permitindo agora a saída da
coberta vermelha. Esses ruídos
vizinhos de obra em algum modo me
acalmam. Levantou, eu
despersonalizado, não tenho como
fugir do abraço ou da troca de
lugares, e com os meus olhos devoro
o corpo debruçado, inclinado, o que
pensará ela olhando a praia?

Coloquei a máquina de novo na


cômoda. Dos quatro, o fogo é o único
elemento que não existe por si
mesmo, que só existe sob certas
circunstancias e não há – exceto o
inferno – um lugar constantemente
em chamas. Olhos de fogo. E agora?
Caminhos para arrependimento vão
se tornando cada vez mais estreitos
ao longo da vida. Foi bom,
simplesmente, é simplesmente
prazer. Como subitamente estou
realista!...

Eu não estava prevenido. Fui


testado e falhei. Mas um dia isso
acaba. Não sei quando. Um dia.
Sara ligou para sua casa para
avisar à mãe onde estava e iria
jantar. Esperança atendeu. Sabê-la
em contato com a sala de minha casa
perturbou-me e aproveitei a
companhia que tocava para ir abrir a
porta, o mais naturalmente, como se
o telefonema em nada me afetasse.
Minha mãe entrou, Sarah desligou,
abraçaram-se – Como vai, querida? –
três beijinhos, essas coisas.
Sentaram-se e minha mãe começou a
falar sobre a visita que fizera – Minha
filha, eles estão muito bem de
vida!.... – e sua ida ao shopping –
Meu Deus, como as roupas estão
caras!... – etc. Anatólia também já
voltara e punha a mesa do jantar.
Sarah ligou a TV a pedido. A cada
cena gargalhavam, amaldiçoavam as
personagens malvadas ou
comentavam maliciosamente a
beleza do galã.

– Prefiro seu filho...

Minha mãe me olhou ao


comentário. Olhos brilhantes e
sorriso deslumbrado. Retribuí com
um muxoxo e ela disse que sim,
faríamos um belo par. Eu já falei isso
hoje com ele, disse Sarah. Cena
insólita elas juntas, têm tudo e nada
em comum. Volto aos tempos de
infância, um tempo feliz e nem tanto.
A falta que eu sentia dela, o tanto
que minha mãe trabalhava. Sara tem
tudo o que quer sem fazer força.
Você deve fazer o conservatório,
dizia minha mãe. Quando cresci
desdenhou do violão. Família, ah. O
esteio da sociedade, a estrutura da
pessoa e sabe-se lá que mais. Coisa
nenhuma. Relações consangüíneas
animais têm também. O que conta é
a pessoa entre pessoas.

Depois do jantar. Quadros caros,


cortinas espessas. Cafezinho. Licor
para elas. A grave voz de minha mãe.
Pergunta se vamos sair. Pretextando
interiormente a nobre intenção de
contar sobre Esperança, razão pela
qual não poderíamos mais formar o
belo par sonhado por nossas
famílias, eu mesmo tomei a iniciativa
de dizer que sim. Vai que ainda
desse para nos despedirmos num
dos motéis da Glória.
Cerca de onze horas, prontos para
sair. Divirtam-se, disse minha mãe.
Sarah quis entrar em seu carro, eu
disse não, vamos de ônibus e a gente
pode voltar a pé. Sarah
naturalmente não era mulher de
estrelas ou grandes caminhadas,
mas aceitou, acredito eu por puro
estímulo da novidade.

Estou diante do prédio enrolando


a manga de minha camisa,
cumprimentado pelo porteiro. Como
está sua filhinha? Sara chama as
atenções entre a avenida
Copacabana e a rua Tonelero, de um
lado a subida da comunidade, de
outro o shopping de antiquários. O
balanço do vestido traz de volta as
nádegas à luz da janela à tarde.
Nossa conversa incidental não tem
qualquer relevância. Agora
finalmente pegamos o ônibus e, não
fosse pelo motivo que deveria
quebrar nossa noitada, seria por
outra coisa qualquer. Não daria
certo.

No vídeo-bar tampouco não havia


clima para conversas sérias. Vimos
“O ultimo concerto de Rock”
bebendo vinho branco, para minha
surpresa sem imediatas nem
posteriores náuseas. Dali um
lugarzinho aconchegante também
nos quarteirões noturnos de
Botafogo. A baía não tão distante,
imagináveis barcos ancorados,
cheiro de sábado nas esquinas. Aqui,
a casa onde morei na infância. O que
exatamente estou querendo? Oh
sim, Sarah empresta ao vestido de
noite de minha mãe sua própria
exuberância. A cada clique da
bolsinha prateada dedos carnudos
trazem com os cigarros a atmosfera
sensual de uma sessão de fotos.

Quando enfim caminhávamos de


volta, ao lado do cemitério, em
direção ao túnel por onde sairíamos
em Copacabana, satisfeito o fascínio
de uma noitada com semelhante
mulher, lembrei-me da razão de ter
decidido sair com ela. O sonho não
deve ser a vida que se apequena,
intangível, e agora eu precisava
mesmo falar. Sarah, eu disse. E
contei sobre Esperança.

Fúria, deboche e desprezo. Agora


eu vinha dizer que amava outra?
Depois de termos dormido juntos e
namorado a noite toda? Carros
estrondeando interrompiam de
quando em quando a voz estridente
e colérica dentro do túnel. Quem eu
pensava que ela era para usa-la
assim? Usa-la? Despiu-se diante de
mim e não era exatamente para
posar.

– Sim, mas só porque você deixou


que eu acreditasse que queria
consolidar nossa relação, não por
uns minutos de prazer que aliás nem
tive!

Desse jeito. Quer dizer: se eu


nada fizesse além das fotos, ela iria
dizer que eu era bicha, espalharia
isso por nossas famílias. Como não
fiz, era um

– Calhorda!
Mulheres... E se eu tivesse feito e
agora caísse a seus pés, ela me
acharia ridículo, bonzinho,
antiquado, que para um bom sexo
não é preciso amor. A imagem de
Esperança insinua-se como o brilho
de um diamante na lama do
arrependimento. Amor, preciso
desesperadamente de você, de
juntar minha vida à sua. Esperança.
Precisava cancelar decisões
anteriores a mim.

Na rua Siqueira Campos, saída do


túnel, clarões. Um sinal escandaloso
para um táxi, uma bolsinha luzindo.
O veludo estremece um corpo de
mulher. Cabelos lisos, chama de
uma vela soprada. O carro diminuiu a
marcha. Perguntei se me amava. O
táxi parou, ela se virou para mim e
gritou. Pode ter certeza que jamais
amaria um tamanho idiota!

De que se queixava então? Por


que estava tão furiosa?

– Não estou furiosa com você!


Quem é você para que eu estivesse?
Por não ter conseguido fazer você
deixar de ser um otário, por
desperdiçar meu tempo com você,
babaca!

O chofer nos olha paciente.


Desliga o motor. Está sorrindo. A
noite não poderia ter sido
semelhante suplício para ela, mas eu
não tinha certeza. Mantinha uma
certa serenidade porque Sara era
uma mulher educada, de muito
espírito, decerto sua notável finura
não demoraria a faze-la ver que não
era para tanto. Tudo bem, eu disse
então, a gente não se ama mas
passamos bons momentos.

– Você passou bons momentos! Eu


não gozei, não gostei do filme, odiei
seu papo!

O pior é que eu também não


passara bons momentos: a
concupiscência, a vaidade e o vinho
passara-os em mim, na minha
completa desatenção. Ela entrou no
táxi e bateu a porta. Pingos
começavam a tamborilar no metal.
Abriu a janela e gritou novamente,
com a cabeça para fora. Você e
aquela putinha se merecem! O
motorista engatou rapidamente a
marcha. Ela continuava gritando mas
a distância e o ruído do motor iam
arrefecendo suas imprecações.
O táxi dobrou a Avenida Atlântica.
A deusa da tempestade cobria a
noite com seu véu.

Grossos pingos chegam a doer


mas só sinto a dor de ter eclipsado a
sublimidade de minha história com
Esperança. A chuva caía reta, o
vento não soprava mais. Outra vez a
paz em fuga. Caminhei na direção de
casa. Grandes ondas cuspidas pelos
automóveis; grande poça a margem
do asfalto. Respinga em minha calça.
Insensato! Talvez eu sentisse
orgulho em falar com alguém de
minha extraordinária ligação com
Esperança, sem levar em conta que
nossa ligação não era extraordinária
exceto para nós – uma criança que
quer mostrar a boa nota que tirou na
escola – Esperança afinal era mesmo
isso, minha aprovação para a
felicidade, apesar de todos os meus
fracassos anteriores na matéria.

Escuto. A respiração de
Esperança. Dorme no quarto
contíguo ao do Dr. Carlos. Pernas
compridas, dobradas numa cama
estreita. Sonhos em que quem sabe
eu esteja. Dedos de pés graciosos e
fortes, uma brisa pela janela, passos
no corredor, a única lâmpada acesa
na sala que dá para a subida da
favela. Braços abraçam o
travesseiro. Um dia tive aulas
particulares de matemática ali, Dr.
Carlos me salvou de pelo menos duas
repetições de ano. Um homem
simples e bom. Onde estão na
mulher e em sua filha aquela doce
generosidade? Sara chega em casa,
ferida e furiosa, passando pela porta
de Esperança. Mas todos dormiam,
logo Sara estaria dormindo também,
de manhã acordaria curada. É
solteira, experiente, fui apenas um
pequeno elo. No dia seguinte, estaria
tudo bem. Não há por que me
inquietar.

Chego em casa ensopado, com


muita dor de cabeça, espirrando.
Faço um chá de limão e tomo com
duas aspirinas. Um banho quente e
um sono rápido, bem coberto. Não
posso estar gripado no domingo da
festa com Esperança.

Não dormi logo. Quantos se


arrastam pela madrugada sem ter
para onde ir, ansiando um lugar sem
volta, prisioneiros de suas opções ou
da falta delas. Mendigos, jovens
drogados, prostitutas baratas,
acompanhantes, prostitutas de um
homem só e aliança. Loucos,
inocentes no cárcere, vítimas de
toda sorte de violência, mulheres
assediadas, mulheres estupradas, a
banalização da violência, corrupção,
a reinação da injustiça em tudo – o
silêncio da noite é síntese de todo
desespero e solidão. E crianças
miseráveis, ali mesmo na esquina,
dormindo sobre papelões ou na areia
da praia, pequenininhas algumas, os
narizinhos escorrendo – que sentido
fazia eu e Esperança felizes para
sempre? Um céu bonito, a lua cheia.
Pela manhã eu não pensava em
nada disso mas em abrigar-nos do
mundo num mundo nosso. Esperança
também o desejava? Essa mulher de
biquíni, acho que a conheço. Ah,
claro, é a atendente da loja de
discos. Ana, eu acho. Realmente, Ana
Vorontsova. Nesse momento do dia,
o sol baixo, nunca é forte a
depressão. Amanhã colocarei no
correio a inscrição no concurso, mas
preciso dar uma olhada no
regulamento antes. Um ventinho
gostoso entre os camelôs. Aliás
quantos, a cada dia mais economia
informal na cidade, qual será o
futuro do emprego? Aí penso a sério
em viver da música, mas a tentação
logo passa. Medos, medos, medos.
Como se segurança existisse. Medo,
alienação. Nem uma única criança
miserável passou no meu caminho e
assim chegaria para esperar
Esperança na esquina de nosso
primeiro dia.

O ônibus circular. A saída do


túnel. Ainda falta quase uma hora.
Passos lentos até o final da rua.
Lindas e elegantes mães cuidam dos
filhos e dos boatos. É impressão
minha ou aquela está mesmo me
olhando? Os automóveis passam-se e
impregnam-se em meu remorso.
Minha vida sem sossego. Não haverá
homem virtuoso ou em quem se
possa confiar? Um bairro cercado
onde o crime sobe e se fortalece e o
entardecer será belo se não houver
um assalto ou assassinato, e não só,
não, não só: aqui está essa verdade,
comigo, o tímido, o covarde, o
lascivo. Um refrigerante no bar em
frente ao parquinho. O dinheiro no
balcão. Obrigado.

Na tarde esvoaçam expectativas,


pairam defronte do cartaz do cinema
Studio. Segundos, uma pausa. Vozes,
luzes, cheiros de bar, barulhos de
mercado e o súbito peso do vento
contrário. Dobrei na rua Francisco
Sá, e uma das mulheres me olhou
maternalmente. Sim, a senhora
ainda é muito desejável. Circundo o
quarteirão e chego na entrada do
prédio pelo outro lado. Já estou aqui
te esperando, amor.

Ei-la. O vestido de alças, uma


nuvem de crepe. Esperança.
Abraçamo-nos longamente, lento
pranto silencioso, refugiados um no
outro, arrebatados da rua. Fui
despedida, disse ela. Perguntei-lhe o
motivo. É que Dona Tereza não pode
mais pagar três enfermeiras, ela
gosta de mim mas sou a mais nova
etc. Não há nenhuma dúvida que
está prestes a chegar o conhecido
vale, o vale que se segue à
demasiada montanha. Não é preciso
ser psiquiatra para prever e não será
para curar, uma paz autêntica e nada
mais será o lítio adequado, chega de
paliativos e de violações à veia
poética. Hei! Não fique com essa
cara! Uma grande sombra desliza
lentamente pela calçada, a cor do
asfalto torna-se dum negro azulado e
amargo.
Impossível suportar um silêncio
assim. Ela estava mesmo pensando
em deixar o emprego. A alma
libertada de novo em grilhões. Aliás,
diz Esperança, pensara também
sobre nós. Mas agora vamos para
Santa Tereza e não se fala mais nisso
até o fim da festa. Um crepúsculo
tremendo, afasia. Mas criei talvez
uns acordes e percorreu minha
mente um canto melancólico.
Distância. Profundeza. Ela me olha o
tempo todo, atenta, quase
reverente. Silenciosa e tão
eloqüente. Sorria.

Na ladeira sinuosa, a casa


iluminada. Vácuos de lua. O calor de
sua mão me leva entre o desejo
súplice do que era e do que seria e
assim entramos na sala sacudida e
incensada. Onde estamos? É a casa
de Sandra, amiga de Esperança que
a trouxera para o Rio havia quatro
anos para trabalhar em seu
restaurante vegetariano, quando
Esperança fez o corso de
enfermagem. Um drinque. Móveis
afastados: o cento da sala vazio. E o
êxtase renovado: uma dança.

Uma jovem a chama e se afastam


abraçadas. E aí, Vanessa? Onde
Esperança estava, no balanço da
música, surge a loura de blusa
escura. Joga os braços para o alto e
sacode os quadris. Quando
eventualmente os abriu, seus olhos
encontraram nos meus. Pulsações
dum interesse casual. Matiz após
matiz ao ritmo da música. Esperança
me chama e me aproximo da janela.
Passando. O cheiro forte e
almiscarado foge para as
constelações. Ao atravessarmos a
sala, as mãos dadas tem também um
efeito em meu coração. Só não diga
mais que me ama, sussurra, fico
sensível demais nessas horas. Não
direi. Mas naturalmente escuta isso
em meus olhos.

A rua lá fora era estreita e a hera


subia pelos muros.

Sandra e Esperança foram


arrumar o quarto das crianças para
nós. São duas as filhas que dormiam
profundamente durante a festa.
Keko e eu conversávamos na
varanda. Calmo e feliz, todavia algo
algum dia o marcou. Perguntei a ele
se o costumavam dar festas, ele
respondeu que na verdade nem
gostava de festas, mas sempre lhes
cabia alguma despedida. Há algum
tempo tinha sido para uma amiga
que trabalhava no curso de idiomas
onde era professor. Eu gostaria de
ter sido professor, um dia foi meu
sonho. Esse emprego na biblioteca
não deixa de ter tais conotações.
Subitamente ele ficou triste de
verdade, triste por causa das
despedidas. Contou-me sobre a
amiga, uma camponesa mineira. Ela
foi para a Itália. Portanto aquela era
uma outra despedida. Para o antigo
namorado dela. Ele foi para Angola.
Você gostaria dele, diz Keko. Acha-
nos parecidos. A última vez que
mandou notícias, estava em
Portugal; escrevera um grande
romance. No começo, entusiasmado.
Depois desanimou pelas dificuldades
da publicação. Uma pena, porque
para Keko o livro era bom e poderia
ter lhe servido como redenção.
Refleti a respeito. Ele procurou nas
gavetas e me passou umas folhas
datilografadas. Segurei o
manuscrito. Também gostei do que
pude ler, mas permaneceu a dúvida
quanto à redenção mencionada.

Eu e Esperança a sós no quarto,


nossa festa particular. Minha paixão
no meio da música quando param
seus espasmos. Talvez o vinho.
Abraçou-me forte, quase dormindo.
Que gostoso, ela disse. Depois de um
tempo: Você gozou? Gozei com teu
gozo, respondi. Ah, querido, ela
disse, e perguntou onde eu estava
na festa de seus quinze anos. Virada
de costas, dois bichinhos. Acordei
ainda daquele jeito, já sem o efeito
do vinho, exceto por uma leve dor de
cabeça. Ela acorda também. Um
carinho.

Um relógio. Uma hora. A cortina


filtra a tarde. Vozes de crianças na
sala. Amor, vamos tomar um belo
café. Depois um lugar onde
possamos conversar. Ah, mas eu não
quero sair de casa. Então teríamos
de expulsar o Keko e a Sandra. Seria
possível? Provavelmente nem será
preciso. Eles costumam sair nos
feriados com as crianças. Você nem
sabe: eles são separados, Keko não
mora aqui. Saímos do banheiro e as
meninas caíram em cima de
Esperança. Esperança, olha...
Esperança, eu aprendi a... Brinca
com a gente de... Sandra teria a teria
livrado, se Esperança quisesse. Saiu
do quarto e disse, Queridas, deixem
a Esperança em paz. Mas Esperança
não queria essa paz. Olhou o
desenho de Tanja, escutou o que
Chezy aprendera e ensinou-lhe mais
a respeito, brincou com elas de...

Sandra se horroriza com o caos


em que sua cozinha se tornara sob a
luz implacável do dia, para onde
convergem todas as festas. Meus
Deus, acabaram com tudo, não
temos nem para o almoço. Keko
precisava acordar o Paolo e pedir a
chave do carro deles para irem ao
supermercado. O japonês de pijama
aproximando-se informa que o Paolo
e a Rosalice não haviam dormido ali.
Não? Ah, Meu Deus...

Ofereço-me para ir, quero


comprar o jornal. Trará o suplemento
de fotografia. Sandra olha para
Esperança como a lhe pedir
permissão. Esperança sorri. Tudo
bem, diz, ele gosta de fazer compras
sozinho, a pé. Como ela sabe, se
sabe, não sei. Olha para mim e
descubro que sou um neófito em
minha própria alma. Sandra pede
que eu espere pelo menos ela fazer o
café. Não se preocupe, bebo num
bar.

Fui como estava, com uma


bermuda vermelha de Esperança e
uma camiseta branca de Keko. Ela
tinha quadris e ele não tinha ombros.
As coisas que Sandra queria eu podia
encontrar num mercadinho próximo
mas meu jornal apenas no centro da
cidade. Comprarei tudo lá. Tomei o
bondinho pelo estribo. Na volta, nos
arcos da Lapa, praticamente
suspenso no ar, o jornal debaixo do
braço e as sacolas nas mãos,
protegido por meus sonhos, passei a
viver como uma folha que será
deixada na janela perfeita antes de
seguir seu curso no vento até a
relva.

Depois do almoço. Keko e Sandra


saíram com as crianças. Esperança
solta os cabelos e senta-se no sofá.
Vai me contar suas conclusões a
nosso respeito. Pois é, pensei muito
sobre nós. Estou em suspenso
enquanto ela fala. Tem sido uma
jornada dura para mim, diz. Foi difícil
abrir mão da infância e da
adolescência, da menina em mim. Do
lar que queria. Do desejo de filhos.
Enfim. Essas coisas de mulher que
ainda não sofreu o quinhão
reservado à maioria das mulheres.
Repete: passaram meus quinze anos
e você não apareceu. Ela tem um
passado, e bem recente.
Independência e segurança vêm
primeiro em meus planos. Nosso
amor significa a dependência de
você. Tento lhe dizer que no dia
seguinte começaria num bom
emprego. Com relação à música,
sabia que não tinha futuro, não
tenho pretensões a respeito. Uma
face severa de reprovação diante de
mim.

Alguns instantes de silêncio.


Esperança inspira com força. Como
sou tímido e fraco, talvez se
simplesmente a beijasse. Decerto
outros agem assim. E ela decerto
está preparada para isso. Nenhuma
pretensão em relação à música?

– Pois deveria ter.

Uma nova face. Ao lado dela não


deveria esperar vida em comum.
Preparei-me para o pior mas nosso
futuro renasce. Diz que foi bom ter
sido demitida perto da semana
santa. Precisa refletir sobre algumas
coisas e é o tempo ideal. Eu não
entendia nem quis entender. As
coisas como são. Se está me
convidando para ir a Nova Friburgo,
vamos. Só questionei como ficaria
meu emprego. Esperança foi firme.
Magda conhece metade dos médicos
do Rio, me arranjaria um atestado.

No momento em que me dei conta


que seus lábios não haviam
pronunciado claramente uma palavra
de separação, meu alívio sobrepujou
minha razão. Ela nada prometera. A
perspectiva de uns dias longe da
cidade grande, num lugar idílico
como Esperança disse ser o sítio
onde passou a infância, por que não?
Crepúsculo abissal quando à noite
descíamos no bondinho. Quando
atravessávamos os arcos, Esperança
depositou sua cabeça em meu
ombro.
Em casa para fazer a mala
encontrei um clima estranho. Minha
mãe e minha tia caminham inquietas
de uma lado para o outro,
cochichando. Cheiro forte de sopa.
Parece de feijão. Evidentemente, o
assunto me diz respeito. Fecharam-
se no quarto de hóspedes, entrei no
meu. Não conseguia me concentrar
na escolha das roupas. Previsão de
frio na serra. Enfiei as roupas de
qualquer jeito na bolsa. Mal o fiz,
entraram. Já sabemos, meu filho.
Sinto a pele dos dedos que se
esfregam. Sabiam? Por que não me
disse?, diz minha mãe. Um frio que
sobe do estômago para o coração.
Ela continua. Eu sei que nunca
conversamos muito, meu filho, e que
nesse caso não há muito que possa
ser feito, mas...

Eu já imaginava que Sarah, como


arranjara um meio de fazer com que
Esperança fosse despedida,
tampouco se calaria com minha mãe.
Mas onde a levará isso? O que
pretende? Que vingança, que
vantagem, que volúpia? Fazer-se de
vítima? Jogar minha mãe contra
mim? Fazê-la me deserdar? Obrigá-
la a me fazer romper com Esperança
e ficar com ela, com Sarah? Insana
guia da vendeta. E sei, meu filho,
disse minha tia, que você entende
que não pode mais ficar na casa de
sua mãe e... Já estou mesmo saindo.
Ela retrucou: Você está zangado
conosco? Ora essa! Eu é que devia
estar zangada com você! Sei que
falhei muito como mãe mas sempre
te amei e fiz tudo pelo seu bem, não
me vá atribuir mais isso!

Eu também amava minha mãe


mas não parecia mais possível
erguer uma ponte sobre nosso
abismo de mundos, aprofundado
agora pelo estranho mal-entendido
que ricocheteava pelas palavras.
Meu Deus!

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