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A obra-prima da literatura italiana do sécuto xix & 1 pro- ‘messi sposi [Ox noivos}, de Alessandro Manzoni. Quase todos italianos odeiam esse livro porque foram obrigades a l-lo n iwon a ler f promessi sposi ante: meus professores me abrigassem, ¢ adoro esse ro Em determninado ponto do livro, dom Abbondio, um cura ano do. século XV cujo trago principal &a covardi {4 voltando para casa e recitando seu breviério quando vé “uma coisa que absolutamente ado esperava nem desejava ver” — qual seja, dois bravi que o esperam. Naquela época, os bravi ram mereenérios ou aventureiros. bandidos a servigo dos aris- tocratas espanhéis que dominavam a Lombardia. sendo usados [Por seus patrdcs para perpetrar os mais sujos dos trabalhos su- jos. Outro escritor poderia querer aplacar nossa impaciéncia de Ieitor e dizer-nos logo o que estéi acontecendo — poderia “ir a0 «que interessa”. Manzoni nao. Ele faz uma coisa que 6 leitor tal- ‘vez ache inacreditivel, Reserva algumas paginas, ricas em de- talhe hist6rico, para explicar quem eram esses bravi. Depois volta para dom Abbondio, porém nio © coloca imediatamente ‘em contato com 0s bandidos. Ele nos mantém esperando: Era ébvio que os dois homens mencionados anteriormente esta- ‘vam espera de alguém: entretanto, a coisa de que dom Abbon- dio menos gastou foi ver-se obrigado a perceber por certos in- icios inequivocos que estavam a sua espera. Pois, quando apareceu, 05 dois s¢ entreolharam, levantando a cabega num ‘movimento que condizia claramente com as palavras: “E el [Fntioo homem que estava escarranchaalo no muro se levantau, ppostando-se na estrada: 0 outro afastou-se do muro a0 qual se fencostava, ¢ ambos comegaram a andar na dirego do padre. ‘Dom Abbondio ainda mantinha o brevidrio abeno a sua frente, ‘como s¢ extivesse endo, mas sempre espiava por sobre o livro 58 fim de observar 0 que os dois faziam, Quando os viu aprox o remese dele, mil pensamentos desagradavets o assaltaram de vediato, Primeiro, perguntou-se rapidamente se haveria um desviovem algum lugar entre ele ¢ 0s bravi, Fosse para a diitty Fosse para a esquerda; entetant, Iembrourse com claeza de ‘que ndo existiam tais atalhos. As pressas, vasculhou a mente @ ta te verificar se havia incorrido no peeado de ofender ho tens poderasos ou Vngativos: porém, mesmo nesse instante de iAigée, encontrou um pequeno consolo 20 constatar que tiaha s a encefencta absolutamente tranguila. E, no obstane, os bravé se aproximavam, fiando-. © padre enfiou os dedos indicador medio da mio esquerda no colarinh, como se 0 ajitasse: © passou-os pelo pescogo, a0 mesmo tempo ém due contraindo Pe isbios, virow a cabega e, pelo canto dos olhes, €spiou Pars tes, para oponto mais dstante que conseguia alancar, a fim de verse alguém vinha naquela drega0. Mas nfo avistou ninguén ‘thou por sobre o muro para os campos: ninguém. Diigin pa aa frente um alhar mais cuidadosor ninguém, a nio ser os dois ravi. ‘O que haveria de fazer” (© que hé a fazer? Vejam que essa pergunta ¢ enderegade nfo 46.4 dom Abbondio, como também ao leitor, Manzoni € rnestre em salpicar sua narragdo com repentinas ¢ astutasinter- pelagdes ao Ieitor, ¢ essa & uma das menos sorrateias, © que ect teria feito no lugar de dom Abbondio? A‘ estd um exer: plo tipico de como um autor-modelo, ou 0 texto, pode: convidar r reitue a dar um passeio inferencial. A tética da delonga serve jpara estimular esse passeio. Notem, ‘ademais, que no cabe aos. Witores se perguntarem o que deve ser feito, pois 6 cvidente ‘que dom Abbondi nao tem como escapar. Os leitores podem jgualmente querer enfiar dois dedos no ‘colarinho — nfo para ajeité-lo, ¢ sim para dar uma espiada na ‘continuagao da hist6- te fo convidados a imaginar 0 que os dois bravi querem de ‘um homem tio inofensivo ‘normal. Bem, eu no vou Ihes con- tar, Se ainda ndo leram Os noivos, esta na hora de ler. De qual- quer modo, devem saber que tudo no romance: deriva desse en- contro. 30 Contudo, poderfamos nos perguntar se Manzoni precisa inserir aquelas pdginas de informagio histérica sobre os bravi. © Ieitor fica temtado a salté-las, € claro, € todos 0s i Oy noivas de fato ay saltaram, pelo menos na pri ho entanto, aestratégia narrativa leva em consideragdo até mes po necessério para virar as paginas nio lidas, porque © autor-modelo sabe (ainda que 0 autor empirico ndo soubesse expressi-lo conceitualmente) que numa obra de fieg#o 0 tem- po figura sob trés formas: 0 tempo da hist6ria, o tempo do dis ‘curso ¢ © tempo de leitura, © tempo da historia faz parte do contetido da histéria. Se © texto diz que “mil anos se passam”, o tempo da historia sio mil anos. Mas, no nivel da expressao lingustica, ou no nivel do discurso ficeional, © tempo de escrever (¢ let) a frase € muito curto. E por isso que um fempo do discurso ripido pode expri- mir um tempo da hist6ria bastante longo. Naturalmente, con- trario também pode acontecer: vimos na conferéncia anterior que Nerval precisou de doze eapitulos para nas contar © que aconteceu em uma noite e um dia; e, depois, em dois capitulos curtos nos contou © que aconteceu no decorrer de meses ¢ anos. Entre 0s tedricos da ficgao, hd um certo consenso de que 6 facil estabelecer 0 tempo da hist6ria.” Do momento da parti- da ao momento da chegada A volta ao mundo em oitenta dias. de Julio Verne, dura oitenta dias — pelo menos para os mem- bros do Reform Club que estéio esperando em Londres (para Philcas Fogg. que estd viajando para o leste, dura 81). Todavia, 6 menos fécil determinar 0 tempo do discurso. Devemos bases- Jo na extcnsio do texto escrito ou no tempo que a Ieitura de manda? Nao podemos ter certeza de que essas duas duragSes so cxatamente proporcionais. Se tivéssemas de calculé-lo a partir do ntimero de palavras. 0s dois trechos que vou ler para vooés exemplificariam 0 fendmeno narrativo que Gérard Ge- nette chama de “isocronia” Seymour Chatman chama de “ee na” — ou seja, onde a histéria ¢ © discurso tém duragdo relati- vamente igual, como acontece com os dilogos. O primeira exemplo foi tirado de um romance policial do tipo hard boiled. 0 ‘um género narrativo em que tudo se resume em acto ¢ o leitor nio tem um minuto de sossego. A descrigdo ideal nesse tipo de romance é a do massacre do dia de sio Valemtim: alguns segun- dos, ¢ todos os inimigos so liqlidados. Mickey Spillane, que nesse sentido era 0 Al Capone da literatura, desereve no final ‘de One lonely night (Uma noite solitéria] uma cena que tinha de ocorrer em alguns instantes: COuviram meu grito € 0 rugido medonho da metrallsadora ¢ as balas varandlo ossos e tripas e foi a Gltima coisa que ouviram Cairam ao tentar correr e sentirum suas entranhas saltarem para fora e se esparramarem contra a parede. Vi a cabeca do general ‘espatifarse em fragmentos brilhantes © mothados e salpicar 0 chlo, O cara do metr6 tentou deter as balas com as miios € se dissolveu num pesadelo de buracos azuis.” Eu seria capaz de executar 0 massacre antes de terminar a leitura do trecho, mas podemos nos dar por razoavelmente sa- tisfeitos. Vinte e seis segundos de leitura para der segundos de massacre € um bom tempo. No cinema, em geral, temos uma correspondéncia precisa entre o tempo do discurso ¢ © tempo da hist6ria — um bom exemplo de cena. Mas vamos ver agora como Ian Fleming descreve outro fato horrorizante, a morte de Le Chiffre em Casino Royale. ‘Quviu-se um nitido “ffFt", como o de uma bolha de ar escapan- cdo de um tubo de pasta de dentes. Nenhum outro ruido, e de pente Le Chiffre ganhou mais um olho, um tereciro olho no mesmo nivel dos outros dois, bem no ponto em que © nariz rosso comegava a projetar-se sob a testa. Era um pequeno olho preto, sem palpebras nem sobrancethas. Por um segundo, os tres ‘olhos percorreram a sala ¢ entdo pareceu que © rosto inteiro es- ‘cortegou e caitt sobre 0 joelho. Os «ois olhos laterais se volta- ram trémulos para 6 teto.* ‘A hist6ria se passa cm dois segundos — um para Bond atirar ¢ o outro para Le Chiffre fitar a sala com seus trés olhos —, mas levei 42 segundos para ler essa passagem. Quarenta dois segundos para 97 palavras em Fleming € proporcional- 6 mente mais lento que 26 segundos para 75 palavras em Spilla- ne. A Ieitura em vor alta ajudou a Ihes dar a impressio de uma descrigio em ritmo lento, que num filme (de Sam Peckinpah, por exemplo) teria durado muito, como se o tempo tivesse pa- rado. No texto de Spillane, senti a tentagio de acelerar 0 ritmo dde minha leitura, a0 passo que ao ler Fleming diminui a velo- idade. Eu diria que Fleming é um bom exemplo de “esticade- em que o discurso se torna lento em comparagiio com a ve~ locidade da histéria. No entanto, a “esticadela”, como a cen: nao depende do niimero de palavras, e sim do ritmo que 0 tex- to impoe a0 leitor. Além disso, numa leitura silenciosa temos a tentago de nos apressar em Spillane, enquanto em Fl WS levados a saborear (se & que podemos ussir essa palavra para uma descrigdo tao apavorante). Com os termos que esco- Ihe, as metaforas, as maneiras como fixa a ateng30 do leitor, Fleming o obriga a olhar de modo muito incomum para um ho- mem que leva um tiro na testa; em contrapartida, as expres- ses ulilizadas por Spillane evocam visdes de massacre que ja Pertencem as lembrangas de nosso leitor ou espectador. ‘Temos de admitir que a comparagio do ruido de um silenciador com ‘6 de uma bolha de ar e a metfora do terceiro olho e os dois ‘olhos naturais que-em dado momento olham para um ponto que © terceiro no pode ver sao um exemplo daqueta desfamiliari« zacéo enaltecida pelos formalistas russos. Em seu ensaio sobre o estilo de Flaubert,’ Proust diz que impressiio cle tempo. F. Proust, quie se estender na pessoa agitandasse € virando-se na cama, admira com entusiasmo o final de A edi cagdo sentimental, que tem de: melhor no uma frase, mas um ‘espago em branco. diz ele. Proust observa que Flaubert, apés dedicar numerosas pir sinas a deserigdo dos atos mais insignificantes de seu protago- nista Frédéric Moreau, acelera a0 aproximar-se do final, quan- do apresenta um dos momentos mais dramsticos da vida de Frédéric. Ap6s 0 golpe de Estado de Lufs Napoledo, Frédéric o testemunha uma carga da cavalaria no centro de Paris, observa excitadamente a chegada de um esquadrio de dragées “debru- ados sobre seus cavalos, as espadas desembainhadas”, vé um policial de espada em punho atacar um rebelde que cai morta, “E Frédéric, boquiaberto, reconheceu Sénécal.” esse ponto, Flaubert encerra 0 capitulo, ¢ 0 espago em branco que se segue parece a Proust um “imenso vazio". De- pois, “sem sombra de transigdo, enquanto-a medida do tempo subitamente passa de um quarto de hora para anos, décadas”, Flaubert eserev Ele viajou. Conheceu a melancolia dos barcos a vapor, 0 frio despertar nna barraca, 0 tédio das paisagens e das rufnas, o amargor das amizades interrompidas. Ele voltou. Freqientou a sociedade ¢ teve outras amantes. Todavia a Jembranga sempre presente da primeira as tomava insipidas; € ademais a violéncia do desejo, a prépria flor do sentimento, se perdera."* Poderfamos dizer que Flaubert acelerou paso a passo 0 tempo do discurso, primeiro para transmitir a aceleragaio dos acontecimentos (ou do tempo da hist6ria). Mas entio, depois do eypago em branco, ele inverte © processo e produz um tem- ‘po de hiisiGria longusSsimo num tempo de discurso brevissimo. ‘Acho que aqui temos um exemplo de “desfamiliarizagao” que info é obtida semanticamente, sim por meio da sintaxe, € ma qual o leitor é obrigado a “mudar de marcha” através daquele vvazio simples porém enorme, Portanto, o tempo do discurso € o resultado de uma estra- tégia textual que interage com a resposta dos leitores e Ihes im- poe um tempo de leitura Nesse pomto, podemos voltar & pergunta que fizemos em relagio a Manzoni. Por que ele inseriu aquelas paginas de in- formagaio histérica sobre os bravi, sabendo muito. bem que 0 leitor as saltaria’? Porque até mesmo o ato de saltar leva tempo, 63 0 pelo menos dé a impressdo-de levar algum tempo pura eco- nomizar mais tempo. Os leitores sabem que esto saltando (tal. ver em siléncio prometam a si mesmos que depois vio ler aquelas piginas) e devem deduzir ou consciemtizarse de que estio saltando paginas que contém informagdes essenciais, O autor nio apenas insinua ao ieitor que fatos como 0s que se ps ‘@narrar de fato aconteceram, mas também mostra a medida em que aquela pequena histéria esté arraigada na Hist6ria, Se o lei. tor entende isso (ainda que tenha saltado as paginas sobre os bravi), 0 gesto de dom Abbondio (enfiar os dedos no. colari- ho) se torna muito mais dramdtico. Como um texto pode impor um ritmo de leitura? Vamos ‘entender isso melhor pensando no que acontece em arquitelura nas artes figurativas,

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