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DOIS TRATADOS SOBRE O GOVERNO Jobn Locke Tradugao JULIO FISCHER Martins Fontes 5do Paulo 2005 Livro IT. pois é evidente que a pessoa vendida nao estava submetida a um poder absoluto, arhitrario e despético. O senhor nao podia ter o poder de maté-la a qualquer momento, ¢ eslava obrigado a liberta-la de seu servigo depois de um certo tempo; € 0 se- nhor de tal servo estava tao longe de ter poder arbitrario sobre avida dele que nao podia mutilé-lo a seu bel-prazer, ¢ a perda de um olho ou dente acarretava sua libertacio (Ex 23). CAPITULO V? Da propriedade 25. Quer consideremos a 1azd0 natural - que nos diz que os homens, uma vez nascidos, tém direito 4 sua preser- vacao e, portanto, 4 comida, bebida e a tudo quanto a natu- reza lhes fornece para sua subsist€ncia’ — ou a revelacdo — que nos relata as concessdes que Deus fez do mundo para Adao, Noé e seus filhos -, € perfeitamente claro que Deus, 2. Em Ex 21, a lei mosaica regulamenta o tratamento dispensado aos ser- vos comprados: estes devem ser libertos no sétimo ano, © ano do jubileu, € nao podem ser mortos; € terdo alforria se o senhor os mutilar. Hobbes atenta para tal lei, ¢ Grécio chama-a de “imperfecta servitus”, II, V, 30 (1742, 264). $25. 1. Obviamente, este importante capitulo é essencial para a argumenta- cao de Locke e, também obviamente, faz parte de sua polémica contra Filmer = ver notas neste parigrafo € em II, § 38 etc. Olivecrona lé de outro mado as linhas 9-17 e a datacio do capitulo. Nada existe, contudo, a indicar que ele tenha sido escrito em 1689 ou em qualquet época posterior 4 forma inicial do Livro, muito embora talvez tenha sido revisado posteriormente. Cabe lembrar que esse capitulo esti incluido naquela parte da 14 edicao que pode ter sido modificada durante © processo de impressio. Afora isso, parece-me licito supor que o capitulo deva ser datado do periodo compreendido entre 1679 € 1681. 2, Essa discussdo acerca da propriedade ¢ mencionada em 1, § 87, enquan- toa linguagem de 1, § 86, ¢ semelhante aqucla empregada aqui, Kendall, 1941, 77, mostra que falta légica na passagem do termo “homens”, aqui utilizado, no sentido de individuos, para “humanidade”, que aparece na linha 8 405 Dois tratados subre 0 governo como diz 0 rei Davi (S] 115, 61), deu a terra aos filbos dos ho- mens, deu-a para a humanidade em comum®. Supondo-se isso, porém, parece ser da maior dificuldade, para alguns, entender como pode alguém chegar a ter a propriedade de alguma coi- sa, Nao me contentarei em responder que, se é€ dificil conce- ber a propriedade com base na suposi¢ao de que Deus deu o mundo a Adao e 4 sua descendéncia em comum, é impossi- vel que qualquer homem, a ndo ser um monarca universal, te- nha qualquer propriedade baseando-se na suposigaéo de que Deus tenha dado 0 mundo a Addo e seus herdeiros ¢ suces- sores, excluindo-se todo o resto de sua descendéncia‘. Contu- do, esforgar-me-ei por mostrar de que maneira os homens po- dem vir a ter uma propriedade em diversas partes daquilo que Deus deu em comum 4 humanidade, e isso sem nenhum pac- to expresso por parte de todos os membros da comunidade’. 26. Deus’, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razdo, a fim de que dela fizessem uso 3. As referéncias biblicas a um comunismo original, ou melhor, contra a primazia da propriedade privada, sao amplamente discutidas no Primeiro watado, ver |, §§ 21 @ seguintes. O texto extraido de SI 115 esta citado em I, § 31, como parte de uma alusao a teoria de Filmer. 4. Comparar com 0 Primeiro tratado. Olivecrona, 1975, sustenta que esta frase ¢ a anterior foram incluidas posteriormente ¢ que o pardgrafo e 0 capitulo foram escritos sem que Locke conhecesse a posicdo de Filmer, tese esta com a qual nao posso concordar — ver nota seguinte, 5. Esta frase confirma que o presente parégrafo ¢ todo o capitulo sobre a propriedade foram escritos tendo Locke as obras de Filmer em mente e com vistas a uma refutagdo cabal delas, Isso porque foi Filmer quem levantou a dificuldade de que 0 comunismo origina! ndo poderia dar lugar a proprieda- de privada sem o consentimento universai da humanidade. As discussdes em Hobbes (a Epistola Dedicatoria de De Cive, 1647, expde a questao com mais clareza), Grécio (1625, Il, ii, 2) ¢ Pufendorf (1672, IV, 3) ndo dao a esse ponto © carater nodal que $6 Filmer Ihe atribui, $26 1. Comparar e confrontar a discussdo dos bens da natureza, neste pard- grafo, com Pufendorf, De jure Naturae, 1672, IV, iv, 13, € as idéias que o pro- prio Locke expusera, mais mogo, em seu oitavo Bnscio sobre a let da natu- reza, marcadamente diferentes destas: Von Leyden, 1954, 210-1. 406 Livro H para maior beneficio e conveniéncia da vida. A Terra, € tudo quanto nela ha, é dada aos homens para o sustento e © conforto de sua existéncia. E embora todos os frutos que ela naturalmente produz € os animais que alimenta perten- gam a humanidade em comum, produzidos que sao pela mao espontanea da natureza, e ninguém tenha original- mente um dominio particular sobre eles 4 exclusao de todo © resto da humanidade, por assim estarem todos em seu es- tado natural, é, contudo, necessario, por terem sido essas coisas dadas para uso dos homens, haver um meio de apro- priar parte delas de um modo ou de outro para que possam ser de alguma utilidade ou beneficio para qualquer homem em particular, O fruto ou a caca que alimenta o indio selva- gem, que desconhece o que seja um lote* e é ainda possui- dor em comum, deve ser dele, e de tal modo dele, ou seja, parte dele, que outro nao tenha direito algum a tais alimen- tos, para que lhe possam ser de qualquer utilidade no sus- tento de sua vida’, 27. Embora a Terra’ ¢ todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma proprie- No original, ¢nclosure, que também pode ser enclosure, literalmente, cercamento, Termo que usvalmente relere © proceso pelo qual, no fim da Ida- de Média e por todos os séculos XVI, XVII ¢ XVIII, as terras comunais foram sendo privatizadas, na Inglaterra, de maneira bastante desigual. (N. do R. T) 2. Comparar com IL, § 28, nota € referéncias. $27 1. Compare-se como Locke introduz a tese da relacao entre trabaiho e propriedade neste parigrafo, no anterior ¢ nos seguintes, com o modo de Tyrrell: “Ainda que suponhamos haverem sido a terra e seus frutos inicial- mente concedidos em comum a todos os seus habitantes, dado que © primei- ro mandamento de Deus ao homem foi ‘crescei e multiplicai-vos’, tinha ele seguramente um direito aos meios de sua preservacio e a propagacéo da espécie, de modo que — ainda que os frutos da terra ou os animais para sua alimentagao fossem todos comuns -, uma vez que algum homem adquisisse, por seu proprio trabalho, uma poreio de qualquer um dos dois que pudesse atender a suas necessidades ¢ As de sua familia, tal porcéo tornava-se de tal modo propriedade sua que homem algum poderia, sem cometer flagrante 407 Dois iratados sobre o governo injustica, roubs-lo de tais necessidades” (1681, segunda paginacio). Tyrrell menciona, a seguir, “esse tipo de comunidade”, preservada entre os america- 0s, 0 animal seivagem morto pelo indio (comparar com II, § 30), 6 peixe por ele pescado (ihid.), o fruto de suas arvores € sua carne de cervo (IT, § 26). A despeito dos paralclismos, contudo, a exposigio de Tyrrell se di em outro contexto. Seguindo © exemplo de Grocio, ele refere-se a0 axioma est6ico acerca dos assentos no teatro ¢ enumera uma série de outros argumentos referentes 3 propriedade ignorados por Locke: para ele, a tese do trabalho nao € o iinico método racional para s¢ fazer uso dos frutos da terra, mas sim. uma justificati- va para se preservar a propriedade adquirida, Tyrrel! nio fala do homem como proprietatio de si mesmo (comparar com nota em If, § 32. Tais pontos, bem como o conhecido relacionamento entre eles (ver acima), permitem supor que Locke talvez tenha sugerido essa linha de pensamento a Tyrrell, que a teri adotado sem se dar exatamente conta de seu significado para Locke. Nao € impossivel, porém, que eles tivessem chegado a essa posicao dle forma inde~ pendente, pois numa obra publicada em 1680, mas descrita no titulo como tendo sido “escrita em sua maior parte muito anos arras Richard Baxter afir- ma, em termos mais vagos, porém similares: “A propriedade aniecede natural- mente ao governo, 0 qual ndo a concede, mas regulamenta-a em nome do hem comum: todo homem nasce proprietario de seus prdprios membras, € a natureza torna-o proprietrio de seus fifhos, scu alimento outras justas aqui- sigdes de seu esforga, Por conseguinte, governante algum pode privar 05 ho- mens de sua propriedade, salvo por alguma lei de Deus (como na execugao da justiga por meio de seu confisco) ou pelo proprio consentimento deles, dire- tamente ou através de seus delegados ou progenitores, e a vida dos homens ¢ sua liberdade constituem a parte principal de sua propriedade. E esta a justa propriedade ¢ a Iiberdade reseradas aos povos € as quais niio Ines $30 tomar das por Deus (pelo poder que Suas proprias leis conferem ao governante) nem ‘abandonadas pelo priprio consentimento deles referido acima” (Baxter, 1680, 54-5; ver Schlatter, 1957, 39, € comparar com o trecho da Holy Commonwealth, de Baxter, citado por Gough, 1950, 80). © que Baxter aqui afirma sobre a vida, a liberdade ¢ a propriedade revela que tinha a mesma definigio hibrida de propriedade que Locke, uma definigao ao mesmo tempo ampla € especifica; ver Introducio, p. 147, ¢ nota em II, § 87, Podemos encontrar varias outras alusoes mais vagas ao que & cha- mado, de forma muito genérica, a teoria do valor baseado no trabalho (em Petty, 1662, por exemplo, de quent Locke tinha a edicdo de 1667 (H. € L. 2839) ‘ow mesmo em Hobbes; ver Gough, 1950, 81) mas ¢stas sfo as tinicas passa- gens em livros que ele possa ter lido, segundo meu conhecimento, a revelar alguma semelhanca sistematica, Ver também a indicacao em 1, § 42 408 anita con acme titi a Livro If dade em sua propria pessoa’. A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo, O trabaibo de seu corpo e a obra de suas mios, pode-se dizer, sao propriamente dele. Qual- quer coisa que cle entio retire do estado com que a natu- teza a proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-Ihe algo que é seu, transformando-a em sua proprieda- de, Sendo por ele retirada do estado comum em que a na- tureza a deixou, a ela agregou, com esse trabalho, algo que a exclui do direito comum dos demais homens. Por ser esse trabalho propriedade inquestionavel do trabalhador, homem nenhum além dele pode ter direito aquilo que a esse traba- Ibo foi agregado, pelo menos enquanto houver bastante € de igual qualidade deixada em comum para os demais. 28. Aquele que se alimenta das bolotas que apanha de- baixo de um carvalho ou das ma¢as que colhe nas 4rvores do bosque com certeza delas apropriou-se para si mesmo. Ninguém pode negar que 0 alimento lhe pertenga’. Pergun- 3 Repetido em Il, § 173, ef. Walwyn, o partidario do igualitarismo cita- do por Macpherson, 1962, 140. §28 1. Comparar com Pufendorf, De jure Naiurae, 1672, IV, iv, 13: “Quercus erat nullius; quae deciderant glandes cjus fiebant, qui legisset.” Gough, 1950, chama a ateng4o para esse paralelo ¢ para a interpretagdo que Blackstone propde do conflito entre Locke, de um lado, ¢ Pufendorf ¢ Gracio, do outro, fim suas teses sobre a origem da propriedade. Isso porque, a despeito da coincicléncia acima referida quanto as bolotas, Pufendorf segue © exemplo de Grécio ao atribuir 2 origem da propriedade a um acordo universal ¢ ndo 20 tribalho, Em sua edigao do De Jure Naturae, de Pufendorf, Barbeyrac regis- tra sua concordincia com os pontas de vista de Locke nessa questao, € SUS" tenta ter sido ele 0 primeiro 4 formulé-los, antes mesmo do Unico outro ator citado por ele, C. G. Titius, de Leipzig (1661-1714). Observa, também, que a analise de Locke teve origem em sua refutagio de Filmer: Barbeyrac, 1734.1, 576-7. Barbeyrac correspondia-se com Locke (ver Introdugao p. 108, nota 2), nenhum homem do inicio do século XVIIT estava em melhores condigées, de modo geral, do que ele para conhecer a relagio de seus escritos com os juristas da lei natural ¢ com toda a tradicdo da teoria social ¢ politica. 409 is ratadtos sobre 0 yoverno to entéo quando passou a pertencer-lhe: Quando o digeriu? Quando © comeu? Quando o ferveu? Quando o levou para casa? Ou quando o apanhou? Fica claro que, se 0 fato de co- lher 0 alimento nao o fez dele, nada mais 0 faria. Aquele tra- batbo imprimiu uma distingdo entre esses frutos e€ 0 co- mum, acrescentando-lhes algo mais do que a natureza, mae comum de todos, fizera; desse modo, tornaram-se direito particular dele. E podera alguém dizer que nao tinha direi- to algum a essas bolotas ou magds, de que assim se apro- priou, por nao ter tido o consentimento de toda a humani- dade para fazé-las suas? Terd sido um roubo tomar desse modo para si o que pertencia a todos em comum? Fosse tal consentimento necessario, o homem teria morrido de fome, nao obstante a abundancia com que Deus © proveu. Vemos nas terfas comuns, que assim permanecem em virtude de um pacto, que € 0 tomar qualquer parte daquilo que € co- mum e retiré-la do estado em que a deixa a natureza que da inicio 4 propriedade, sem isso, o comum nao tem utilidade alguma. E 0 tomar esta parte ou aquela nio depende do consentimento expresso de todos os membros da comuni- dade. Desse modo, 0 pasto que meu cavalo comeu, a relva que meu servidor cortou € o minério que retirei da terra em qualquer lugar onde eu tenha um direito a ele em comum com outros homens tornam-se minha propriedade, sem a cess4o ou © consentimento de quem quer que seja. O fra- balbo que tive em retirar essas coisas do estado comum em que estavam fixou a minha propriedade sobre elas’. 2. Locke emprega nestas quatro ultimas sentencas a linguagem do pro- cesso da enclosure dos campos, do loteamento das terras comuns do tradi- cional solar em propriedades particulares, caracteristica extremamente mar- cante da historia econémica inglesa no século XVI, no XVII até certo ponto, e que se acentuou no XVIII; ver também IL, §§ 32, 35, 37 € 42. Isso nao é muito coerente com sua afirmagdo sobre os lotes ¢ os indios em II, § 26, pois eles viviam no estado de natureza, antes de ocorrer um pacto, O termo “comuns’ deve significar aqui a terra comum do tradicional sistema senhorial, assim 410 | | | | Livro H. 29. Se se tornar o consentimento explicito de todo mem- bro da comunidade necessario para qualquer um que se aproprie de qualquer parte daquilo que é dado em comum, os filhos ou os servidores nao poderiam cortar a carne que seu pai ou senhor ihes concedeu, em comum, sem atribuir acada um seu pedaco particular. Embora a 4gua que corre da fonte seja de todos, quem poderia duvidar que a que esta no jarro € daquele que a retirou? O trabalbo dele tomou-a das mdos da natureza, onde era comum e pertencia igualmen- te a todos os seus filhos, e, com isso, dela apropriou-se. 30, Assim, essa lei da raz4o torna o cervo propriedade do indio que © abateu; permite-se que os bens pertengam aqueles que lhes dedicou seu trabalho, mesmo que antes fos- sem direito comum de todos’. E entre aqueles que se con- sideram a parte civilizada da humanidade, que fizeram e multiplicaram leis positivas para determinar a propriedade, essa lei original da natureza que determina 0 inicio da pro- priedade sobre aquilo que era antes comum continua em vigor. E, em virtude dela, qualquer peixe que alguém pes- que no oceano, esse grande bem comum ainda remanes- cente da humanidade, ou qualquer Ambar que alguém nele apanhe, é, pelo trabalho que © retira desse estado comum em que o deixou a natureza, transformado em proprieda- de daquele que para tal dedicou seus esforcos. E mesmo entre nés, a lebre que alguém caga € considerada proprie- dade daquele que a est4 perseguindo. Pois, sendo um ani- mal ainda tido por comum, que ndo € propriedade particular permanecendo “por pacto’, Como Locke deixa claro em Il, § 35, somente os homens da propriedade senhorial, e nfo qualquer um, podiam normalmente pastorear, yramar € escavar a terra, €, mesmo estes, somente se o costume do lugar o permitisse, Um pobre exemplo de comunismo. As linhas 24-6 contém © tinico exemplo que aparece em Locke da transferéncia de trabalho de um homem para outro. Ver a discussao em Macpherson, 1962, ¢ Laslew, 1964 § 30. 1. Comparar com I, § 86, Tully, 1980, € Wood, 1984. 411 Dois tratados sobre 0 governo de homem algum, quem quer que tenha © trabalho de encon- tra-lo e persegui-lo, removeu-o, com isso, do estado de na- tureza, no qual era comum, e dé inicio a uma propriedade. 31. Talvez a isso se objete que, se 0 ato de colher uma bolota ou outros frutos da terra etc. da direito a eles, qual- quer um podera agambarcar tanto quanto queira. Ao que eu respondo que ndo. A mesma lei da natureza que por este meio nos concede a propriedade, também limita essa pro- briedade, Deus deu-nos de tudo em abundéncia'(1 Tm 6, 17) € a voz da razdo confirmada pela revelagdo. Mas até que ponto ele no-lo deu? Para usufruirmos. Tanto quanto qual- quer pessoa possa fazer uso de qualquer vantagem da vida antes que se estrague, disso pode, por seu trabalho, fixar a propriedade. O que quer que esteja além disso excede sua parte € pertence aos outros, Nada foi feito por Deus para que o homem estrague ou destrua. E assim, considerando- se a abundancia de provisdes naturais que por muito tem- po houve no mundo e quéo poucos havia para gasta-las, e a que pequena parte dessa provisdo o esforgo de um unico homem poderia estender-se e agambarcé-la para prejuizo dos demais, especialmente mantendo-se nos limites fixados pela razao do que poderia servir para seu us0, pouco espa- go poderia haver para querelas ou contendas acerca da pro- priedade assim estabelecida. 32. Mas, sendo agora a principal questdo da proprieda- de nao os frutos da tetra e os animais que destes subsistem, e sim @ propria terra, como aquilo que tem em si e carrega consigo todo o resto, creio que est4 claro que, também neste caso, a propriedade & adquirida como no caso anterior. A ex- lensdo de terra que um homem pode arar, plantar, melho- rar e cultivar e os produtos dela que é capaz de usar cons- §31 1. Comparar com 1, § 40. 412 Livro if. tituem sua propriedade. Mediante o seu trabalho, ele, por assim dizer, delimita para si parte do bem comum!. Nem lhe invalidara 0 direito dizer que todos tém a ela igual titulo e que, portanto, ele néo pode apropriar-se, ndio pode delimi- tar sem © consentimento de todos os membros da comuni- dade, de toda a humanidade?. Quando deu o mundo em co- mum para toda a humanidade, Deus ordenou também que o homem trabathasse, e a pentria de sua condi¢do assim o exigia, Deus e sua razdo ordenaram-lhe que dominasse a Ter- ra, isto é, que a melhorasse para beneficio da vida, e que, dessa forma, depusesse sobre ela algo que lhe pertencesse, © seu trabalho. Aquele que, em obediéncia a essa ordem de Deus, dominou, arou e semeou qualquer parte dela, acres- centou-lhe com isso algo que era de sua propriedade, ao que os demais nao tinham qualquer titulo, nem poderiam to- mar-lhe sem causar-lhe injuria. 33. Tampouco seria essa apropriagdo de qualquer par- cela de terra, mediante a melhoria desta, prejudicial a qual- quer outro homem, uma vez que restaria ainda bastante e de boa qualidade, e mais do que poderiam usar os que ainda nao possuiam um lote. De modo que, na verdade, nunca houve menos para os outros pelo fato de ter ele delimitado parte para si, pois aquele que deixa para outro tanto quan- to este possa usar faz como se ndo houvesse tomado abso- lutamente nada. Ninguém poderia julgar-se prejudicado pelo fato de outro homem beber, mesmo que tenha tomado um bom gofe, se houvesse todo um rio da mesma 4gua sobran- § 32 1. Tyrrell estende a teoria do trabalho a posse de terra da mesma forma que Locke, mas com a mesma diferenca, O trabalho confirma a propriedade do homem sobre aquilo que possui legitimamente — “uma vez que o proprie- tario tenha se apossado dessa terra € a ela concedido seu trabalho e esforgo”, homem algum pode tomé-la (1681, 112, 2* paginacao). Ver nota em IE, § 27. 2. A linguagem do loteamento rural; ver Il, § 28 e referencias. 413 Dots tratados sobre o governo do para saciar sua sede. E 0 caso da terra e da 4gua, quando ha bastante de ambos, é perfeitamente o mesmo. 34, Deus deu o mundo aos homens em comum,; mas uma vez que Ihes deu o mundo para beneficio deles e para a maior conveniéncia da vida que dele fossem capazes de extrair, ndo se pode supor que tivesse Ele a intengdo de que permanecesse comum e inculto para sempre. Deu-o para o uso dos diligentes e racionais (e 0 trabalho haveria de ser o seu titulo de propriedade), e nado para a fantasia e a cobi- ¢a dos rixentos € litigiosos. Aquele que tivesse para melho- Yar terra tao boa quanto aquela que ja estivesse tomada nao precisaria queixar-se nem deveria meter-se com a que ja es- tivesse melhorada pelo trabalho alheio; caso o fizesse, fica- tia claro que desejava 0 beneficio dos esforcos alheios, ao qual ndo tem direito, e nado ao solo que Deus lhe dera em comum com outros para trabalhar e do qual haveria tanto sobrando quanto 0 que ja fosse possuido, ¢ mais do que ele poderia usar ou do que seu esforco poderia abarcar. 35. E certo! que nas ierras que sao comuns na Ingla- terra ou em qualquer outro pais onde haja, sob um gover- no, uma multidao de pessoas que dispdem de dinheiro e comércio, ninguém pode cercar ou apropriar-se de nenhu- ma parte delas sem o consentimento de todos os membros da comunidade, pois sio deixadas em comum por pacto, ou seja, pela lei da terra, que nao deve ser violada. E embo- ra tais terras sejam comuns com respeito a alguns homens, nao o s4o em relacdo a toda a humanidade, mas constituem §35 1. Locke parece reconhecer aqui a impropriedade do loteamento rural para sus argumentacdo (ver nota em I], § 28), mas insiste. Suas afirmagdes sdo precisas porém vagas, ¢ & interessante que sejam empregadas as palavras “pais” (presumivelmente com o significado mais antigo de “localidade*) ¢ “pa- roguia", onde se poderia esperar que falasse em “terra senhorial’, 414 hemaaat a Livro I propriedade’ conjunta deste pais ou daquela paréquia. Além disso, o que sobrasse, depois desse cercamento, nao seria tao bom para o resto dos membros da comunidade quanto o todo, quando todos podiam fazer uso do todo, ao passo que, no inicio e no primeiro povoamento do grande bem comum do mundo, o caso era bem diferente. A lei sob a qual o homem estava antes era favoravel 4 apropriagdo, Deus ordenou, ¢ seus desejos forgaram-no ao trabalho. Este era a sua propriedade, que dele nao poderia ser tirada onde quer que a tivesse fixado. Logo, vemos que 0 tratar ou cul- tivar a terra e o ter dominio sobre ela est@o intimamente li- gados. Uma coisa da titulo 4 outra. De modo que Deus, ao ordenar o cultivo, deu com isso autorizagdo para a apro- priagdo. E a condicao da vida humana, que requer trabalho e materiais com os quais trabalhar, inoduz necessariamen- te a propriedade particular. 36. A natureza fixou bem a medida da propriedade pela extensdo do trabalho e da conveniéncia de vida dos ho- mens. O trabalho de nenhum homem seria capaz de domi- nar ou apropriar-se de tudo nem poderia o seu desfrute con- sumir mais que uma pequena parte. De modo que era im- possivel a qualquer homem usurpar dessa forma os direitos de outro ou adquirtir uma propriedade em prejuizo do vizi- nho, que ainda teria espaco para uma posse tao boa e tao grande (depois que 0 outro houvesse tomado a sua) quan- to a que havia antes da apropriacao. Tal medida confinava a posse de cada homem a uma propor¢ao bastante modera- da, tanta quanto ele pudesse apropriar para si sem causar in- jaria a quem quer que fosse, nas primeiras eras do mundo, quando os homens estavam mais em perigo de se perde- 2. “Propriedade”: no original, “property” — alteragdo feita por Locke do termo “propriety’ em 1698; comparar com o titulo do capitulo VII do Primeiro tratado. 415 Dois tratados sobre o governu: rem por se afastarem da companhia dos demais, nos vastos ermos da Terra de entao, do que de serem pressionados pe- la falta de espaco no qual plantar’. E a mesma medida pode ainda ser admitida, sem o prejuizo de quem quer que seja, por mais repleto que o mundo pareca estar. Pois suponha- mos um homem, ou uma familia, no estado em que se en- contravam quando o mundo comegou a ser povoado pelos filhos de Addo ou de Noé; caso ele plantasse em alguma das terras incultas do interior da América, veriamos que as pos- ses que poderia amealhar para si mesmo segundo as medi- das que apresentamos nao seriam muito grandes e tampou- co, mesmo nesses dias, prejudicariam o resto dos homens ou Ihes dariam motivo para se queixarem ou se julgarem lesados pela usurpagdo desse homem, embora a raga dos homens se tenha hoje espalhado para todos os cantos do mundo e exceda infinitamente 0 pequeno numero [que] ha- via no principio’. Além disso, sen trabalbo, a extensio de terra é de téo pouco valor que ouvi afirmar que na propria Espanha permite-se que um homem are, semei¢ ¢ colha sem ser perturbado em terras sobre as quais ele nao tem outro direito além do de fazer uso delas. Ao contrario, os habitan- tes sentem-se obrigados para com aquele que, com seu es- forgo em terras abandonadas e conseqientemente incultas, tenha aumentado o volume de graos de que eles tinham ne- cessidade. Contudo, seja come for isso, a que nao quero dar maior importancia’, uma coisa ouso afirmar: que a mesma §36 1. O texto da edigdo Everyman, em que ha um erro na numeragao dos parigrafos a partir de Ui, § 20, abre um novo parigrafo (de niimero 36) apos “plantar”, omitindo o “E” — ver nota em II, § 20 2. A exigiiidade das posses humanas no inicio dos tempos biblicos comentada em I, § 136. A presenie passagem afirma com todas as letras © pressuposio de Locke segundo 0 qual o estado de natureza na America de seu tempo se assemelharia & condigao dos tempos patriarcais; comparar com nota em I, § 130. 3. A apropriagdo particular de terras incultas nesses moldes era possivel por toda a Espanha ao tempo de Locke e, aparentemente, ainda ¢ costume 416 Livro I. regra de propriedade segundo a qual cada homem deve ter tanto quanto possa usar estaria ainda em vigor no mundo, sem prejuizo para ninguém, conquanto hd terra bastante no mundo para o dobro dos habitantes, se a invengao do dinhei- ro e 0 acordo tacito dos homens no sentido de lhe acordar um valor nao houvesse introduzido (por consenso) posses maiores e um direito a estas. Mostrarei mais detalhadamente, no decorrer deste escrito, como isso se deu’. 37. f certo que, no principio, antes que o desejo de ter mais que o necessario houvesse alterado o valor intrinseco das coisas, que depende apenas da utilidade destas para a vida do homem, ou antes que os [homens]' houvessem acor dado que um pedacinho de metal amarelo que se conserva sem se perder ou apodrecer valeria um pedago grande de carne ou todo um monte de grdos, embora os homens ti- vessem 0 direito de apropriar-se, mediante o seu trabalho e cada um para si, de tantas coisas da natureza quantas pu- dessem usar, isso nado poderia ser muito, nem em detrimen- to de outros, se restasse ainda a mesma abundancia para aqueles que usassem do mesmo esfurgo”. Ao que eu gostaria ha Andaluzia, Em Aragio, era necessario que o terreno situado em uma area montanhosa fosse desmatado em sessenta dias, para tornar-se propriedade do agricultor, na Catalunha, tal titulo de propriedade tomava-se definitive tao logo o terreno houvesse sido lavrado, mas caducava caso ele permanecesse inculto por trés anos; em Castela, 0 trabalhador apenas podia tomar © suli- ciente para si ¢ sua familia. Ver Costa, 1898, 250-63. Devo essa referéncia e informagdes 20 dr. J. H. Elliott, Compurar com If, § 184 4, Ver IL, § 45 & nota, € IT, §§ 46 ss. § 37 1. “Homens”: acréscimo do editor. 2, Daqui até o fim do parigrafo (’...bem cultivadas"), a passagem foi aerescentada em duas paries a0 exemplar de Christ Church, para recordar, mais uma vez, ou mesmo justificar 0 cercamento das terras cormunais; ver nota em Il, § 28. Macpherson (1951, 559; € 1962, 212 em diante) considera que esse trecho tera sido acrescentado por Locke a fim de eliminar a “limitagao de suficigncia’ na aquisigao de propriedade, que vigia antes da introducdo do dinheiro. 47 Dots tratados sobre o governo de acrescentar que aquele que se apropria de terra median- te o seu proprio trabalho nao diminui, mas aumenta as re- servas comuns da humanidade, pois as provisdes que ser- vem ao sustento da vida humana produzidas por um acre de terra cercada e cultivada sao (para falar moderadamente) dez vezes maiores que as que rende um acre de terra em co- mum inculta de igual riqueza. Portanto, pode-se dizer ver- dadeiramente, daquele que cerca terra e tem mais abundan- cia das conveniéncias da vida em dez acres do que teria em cem deixados a natureza, que dé noventa acres 4 humani- dade, pois seu trabalho fornece-lhe agora, de dez acres, as provisdes que antes eram produto de cem acres em comum. Avaliei, porém, a produgdo da terra melhorada muito por bai- xo, em apenas dez para um, quando é mais aproximada- mente de cem para um. Pergunto-me se nas florestas selva- gens e nas vastiddes incultas da América deixadas 4 natureza, sem nenhuma melhoria, lavoura ou cultivo, mil acres ren- dem aos habitantes necessitados e miseraveis tanto quanto dez acres de terra igualmente fértil em Devonshire, onde sao bem cultivadas. Antes da apropriagao da terra, aquele que colhesse tan- tos frutos selvagens, matasse, apanhasse ou domasse tantos animais quantos pudesse’; aquele que empregasse seus es- forgos em qualquer dos produtos espontaneos da natureza, bem como qualquer maneira de alter4-los em relagdo ao es- tado em que ela os deixou, colocando nisso qualquer par- te de seu trabalbo, adquiria dessa forma uma propriedade sobre eles. Porém, se eles perecessem na posse dele sem se- rem devidamente usados; se os frutos ou a caga apodreces- sem antes que pudesse consumi-los, ele estaria ofendendo 3. A passagem até o fim do parfigrafo é citada por Kendall, 1941, 72, como exemplo notério do “direito ‘publico’ de interferéneia na liberdade € propriedade de particulares’, contradizendo, pois, a Jeitura individualista da teoria lockeana da propriedade; ver Introdugao, p. 153. 418 on abi Livro H. as leis comuns da natureza, e tornava-se passivel de puni- cdo; teria usurpado a parte de seu vizinho, pois nao tinha nenbum direito, além daqueles ditados por seu uso, a qual- quer deles, para que pudessem proporcionar-lhe as conve- niéncias da vida. 38. As mesmas medidas regiam também a posse da ter- ra: © que quer que ele plantasse, colhesse, armazenasse e usasse antes que se estragasse era de seu direito particular; 0 gado e os produtos do que quer que ele cercasse ¢ pudes- se alimentar e usar também eram dele. Mas se a relva den- tro de seu cercado apodrecesse no solo, ou se o fruto de seu plantio perecesse sem ser colhido e armazenado, esse pe- daco da terra, nado obstante sua cercadura, seria ainda visto como abandonado, e poderia ser a posse de qualquer outro. Portanto, no principio, Caim poderia tomar tanto solo quan- to pudesse arar, torna-lo propriedade sua e, mesmo assim, deixar bastante para alimentar as ovelhas de Abel'; uns pou- cos acres serviriam para as posses de ambos. A medida, po- rém, que aumentavam as familias e o esfor¢go fazia crescer as reservas destas, suas posses cresciam com suas necessi- dades. Contudo, isso se dava sem haver ainda nenbuma pro- priedade fixa do solo de que se utilizavam, até que se uni- fam, assentaram-se em conjunto e construiram cidades; en- tao, mediante consentimento, vieram, com o tempo, a fixar os limites de seus diferentes territérios e a concordar acerca dos limites entre eles e os vizinhos, e, por meio de leis em seu proprio seio, fixaram as propriedades dos que viviam na mesma sociedade. Pois vemos que na parte do mundo que foi habitada em primeiro lugar e que € portanto, provavel- mente, a mais bem povoada, ainda no tempo de Abraao os §38 1. A sentenca, até aqui, é a pardfrase de uma citagdo que Filmer faz do Mare Clausum, de Selden; ver edigio de Laslett, 63-4. © uecho aparece na integra, € comentado, em I, § 76; ver nota ali. 419 Dois tratados sabre 0 governo homens vagavam com seus rebanhos ¢ manadas, que eram suas posses, livremente de um lado para outro; e assim pro- cedia Abrado num pais onde era estrangeiro. Logo, fica cla- ro que pelo menos uma grande parte da terra era comum, que seus habitantes nao Ihe davam valor nem reivindica- vam a propriedade sobre qualquer parte além daquela que usavam. Mas, quando nao houve mais espaco suficiente no mesmo lugar para suas manadas se alimentarem juntas, eles separaram-se, por consentimento, tal como fizeram Abraao e Lot (Gn 13, 5¥, e expandiram seus pastos na direcao que mais thes conveio. Pela mesma razdo, Esat afastou-se do pai e do irmao e foi plantar em Monte Seir (Gn 36, 6. 39. Portanto, sem supor nenhum dominio particular ou propriedade de Addo sobre todo o mundo, 4 exclusdo de todos os demais homens, o que de modo algum pode ser provado nem pode fundar a propriedade de pessoa algu- ma, mas supondo-se que o mundo foi dado aos filhos dos homens em comum, vemos como o trabalbo podia confe- rir aos homem titulos a diversas partes dele para seus usos particulares; do que nao poderia haver divida alguma quan- to ao direito, nem ocasido para disputas’. 40. Tampouco é estranho, como talvez possa parecer antes de se considerar o assunto, que a propriedade do tra- balbo seja capaz de superar a comunidade da terra, pois é 0 trabalho, com efeito, que estabelece a diferenca de valor 2. Ver I, § 135: paralelo literal 3, Ver 1, § 117. Os paralelos deixam evidente que o presente paragrafo foi escrito com a argumentucdo € o texto de Filmer em mente. Locke aqui €s- boga sua interpretacdo da passagem do estado de natureza para o de socie- dade em termos da histéria biblica. §39 1. Paragrafo também claramente dirigide contra Filmer: sua argumen- tacao ocupa grande parte do Primeiro tratado, o qual seguramente seria men- cionado neste ponto, caso ja estivesse escrito na época. 420 4 Livro Hl. de cada coisa. Considere alguém qual é a diferenca entre um acre de terra em que se plantou tabaco ou acucar, semeou-se trigo ou cevada, e um acre da mesma terra em comum, sem cultivo algum, e vera que a melhoria do trabalbo forma, de longe, a maior parte do valor. Penso que seria um cAlculo bem modesto dizer que, dos produtos da terra tteis para a vida do homem, 9/10 decorrem do trabalbo, ainda mais, se esti- marmos corretamente as coisas como chegam para 0 nosso uso e computarmos as diversas despesas que nelas ha, tanto o que nelas é puramente devido a naturezae o que decor- re do trabalho, verificaremos que na maioria delas 99/100 serio devidos ao trabalho. 41. Nao pode haver demonstragao mais clara disso do que a feita pelas diversas nacdes americanas, que sao ricas em terra e pobres em todos os confortos da vida; as quais a natureza abasteceu tao generosamente quanto a qualquer povo com os materiais da fartura, ou seja, um solo fecun- do, apto a produzir em abundancia o que poderia servir de alimento, agasalho e deleite. E contudo, por nao ser melho- rado pelo trabalho, ndo tem um centésimo das convenién- cias de que desfrutamos. E 0 rei de um territério largo e fér- til de 14 alimenta-se, veste-se e mora pior que um trabalha- dor diarista na Inglaterra. 42, Para deixar isso um pouco mais claro, acompanhe- mos em suas varias alteracdes algumas das varias provisOes ordindrias da vida antes que cheguem pata © nosso uso, € vejamos quanto de seu valor advém do esforco humano. Pao, vinho e vestudrio so coisas de uso diario e muito abundan- tes; no entanto, bolotas, 4gua € folhas ou peles seriam nos- s0 pao, nossa bebida e vestuario, se 0 trabalbo nao nos pro- porcionasse estes artigos mais titeis. Pois aquilo que no pao vale mais que as bolotas, no vinbo mais que a Agua € no ves- tudrio ou na seda mais que as folhas, peles ou musgo € inteiramente devido ao trabalho € a0 esforgo, sendo uns 0 421 Dois tratados sobre 0 governo alimento € o agasalho que a natureza sem assisténcia nos for- nece, @ 0S Outros as provisGes que nosso esforco prepara para nés, e aquele que calcular o quanto estas excedem Aquelas em valor vera que 0 trabalho forma a maior parte do valor das coisas de que desfruatamos neste mundo, E o solo que produz os materiais € escasso demais para ser le- vado em conta em qualquer parte desse valor; pode no ma- ximo representar uma pequena parte dele, tao pequena que, mesmo entre nés, a terra que é deixada inteiramente a natureza, que nao tem melhorias como pastagem, lavoura ou plantagdo, é chamada, como de fato é, de “inculta’, € veremos que os beneficios que rende sao pouco mais que nada’, Isso mostra o quanto se deve preferir a abundancia de homens 4 vastidao dos dominios, e que a grande arte de governar consiste na ampliacdo das terras e no uso correto destas. E o principe que seja sabio € divino © bastante para estabelecer leis de liberdade que garantam prote¢4o € esti- mulo ao honesto esforco da humanidade, contra a opressio do poder e a estreiteza de partido, tornar-se-4 em pouco tem- po duro demais para scus vizinhos; mas isso seja dito so- mente de passagem. Voltemos ao argumento em questio*. § 42. 1, Outta referencia ao cultivo em campo aberto na Inglaterra; ver TH, § 28, nota e referencias. A terta “inculta” (no original, wast (wasfe)] da linha 22 era a extensio senhorial situada fora dos campos, normalmente uma Area de pas- toreio com algum valor, € a critica implicita de Locke ao sistema esti, nova: mente, um pouco deslocada neste contexto, muito embora seja interessante 0 fato de ele fazé-la. 2, Da nota anterior a esta, temos um acréscimo as margens do exemplar de Christ Church e datado do final da década de 1690 (provavelmente poste- rior a 1698), perteacendo, portanto, ao petiode de atividade de Locke aa Junta Comercial — ver Laslett, 1957 (i), Altamente indicativa de sua atitude nessa ins- tituigdo, e da politica que defendia para ela € para o rei Guilherme III em sua juta contra a Franca, € sua insisténcia numa populagdo numerosa (comparar com 3, § 33 € nota) como fonte de poder, em oposigaa 4 idéia de que seria o territério que o proporcionaria, € também sua critica 4 “estreiteza de partido", ‘A referencia a um principe *sabio € divino (godlike) (comparar com II, § 166) revela o sentido em que Locke, o inimigo da monarquia divina, aceitava a metifora da divindade para 0 governante que correspondia 2 suas idéias. 422 Livro IL 43, Um acre de terra que produz aqui vinte alqueires de trigo e outro na America que, com o mesmo trabalho agricola, produza o mesmo, tém, sem davida, o mesmo va- lor intrinseco natural. Contudo, o beneficio que os homens recebem de um, num ano, vale uma libra, enquanto do outro nao vale possivelmente nem mesmo um péni, se todo o lucro que um indio dele obtivesse fosse avaliado € vendi- do aqui; pelo menos, posso dizer, em verdade, nem 1/1000. £ portanto o trabalho que confere a maior parte do valor @ ierra, sem 0 qual ela mal valeria alguma coisa. E a ele que devemos a maior parte de seus produtos tteis; por tudo isso a palha, o farelo e 0 pao desse acre de terra valem mais que o produto de um acre de terra igualmente boa, mas aban- donada — sendo tudo efeito do trabalho. Pois nao devemos contar no pao que comemos apenas os esforcos do lavra- dor, a labuta do trilhador e do ceifeiro e o suor do padeiro. O trabalho daqueles que domaram o poi, que escavaram & forjaram 0 ferro € as pedras, que derrubaram e prepararam a madeira empregada no arado, no moinho, no forno ou em qualquer outro utensilio, que sao em vasto niimero neces- sarios para que esse grao fosse semeado, colhido € transfor- mado em pio, tudo deve ser lancado a conta do trabalbo, e recebido como efeito deste a natureza e a terra forneceram apenas OS materiais, quase valor em si mesmos. Seria espan- oso 0 catdlogo das coisas que 0 esforco fornece @ usa em cada pao antes que este chegue a nossas 40s, se pudéssemos de- terminé-las: ferro, madeira, couro, casca, tabuas, pedras, tijo- los, carvao, cal. tecidos, tinturas, piche, alcatrao, mastros, cof- das € todos os materiais usados na construgdo do barco que trouxe qualquer dos artigos usados por qualquer dos traba- Thadores em qualquer fase do trabalho; seria quase impossi- vel, ou pelo menos longo demais, computar tudo. 44, De tudo isso fica evidente que, embora as coisas da natureza sejam dadas em comum, © homem (sendo senhor 423 Dis tracts sobre 0 governe —— ______ de si mesmo e proprietdrio de sua prépria pessoa e de suas acées ou de seu trabalho) tinha j4 em si mesmo o grande fundamento da propriedade, e que o que formava a maior parte do que ele empregava para o sustento ou conforto do seu proprio ser, quando a invengdo e as artes aperfeigoa- ram as conveniéncias da vida, era perfeitamente dele, e nao pertencia em comum aos demais. 45. O trabalho’, portanto, no principio, de um direito de propriedade sempre que qualquer um houve por bem emprega-lo no que era comum, que durante muito tempo foi a maior parte e ainda é mais do que a humanidade pode utilizar. No principio, os homens, em sua maioria, conten- tavam-se com aquilo que a natureza desassistida oferecia as suas necessidades. E embora depois, em algumas partes do mundo (onde o aumento da populagdo e da riqueza, com o uso do dinheiro, tornou a terra rara, e portanto de algum valor), as diversas comunidades estabelecessem os limites de seus diferentes territérios e, por meio de leis em seu seio, regulassem as propriedades dos homens particulares de sua sociedade — assim, por meio de pacto e acordo, estabelecen- do a propriedade que o trabalho e 0 esforco haviam come- cgado -, e as ligas que se haviam formado entre diversos Es- tados € reinos, rejeitando expressa ou tacitamente qualquer reivindicagao ou direito a terra em posse de outros, aban- donassem por consentimento comum suas pretensdes ao direito natural comum, que tinham originalmente a tais ter- ritérios, e desse modo, por meio de um acordo posttivo, es- labelecessem uma propriedade entre si préprios em diferen- tes partes e parcelas da Terra, mesmo assim, ha ainda gran- des extensGes de solo disponiveis (cujos habitantes nao se uni- ram ao resto da humanidade no consentimento ao uso de §45 1. Inicio da argumentacdo prometida em II, § 36, ¢ que se estende até © § 51; comparar com Il, § 184. 424 Livro It seu dinheiro comum?”), que estao incultas e sao mais do que as pessoas que nelas vivem usam ou podem usar e, portanto, ainda sio comuns, embora isso dificilmente possa aconte- cer naquela parte da humanidade que consentiu no uso do dinheiro. 46. A maior parte das coisas realmente titeis a vida do homem, como as que a necessidade de sobreviver fez os primeiros membros das comunidades do mundo buscarem, como hoje fazem os americanos, sao em geral coisas de curta duragdo que, se nao forem consumidas pelo uso, apo- drecem e perecem por si mesmas. O ouro, prata e diaman- tes sdo coisas a que a imaginagao ou um acordo atribuiram o valor, mais que o uso real e o necessdrio sustento da vi- da‘. Ora, dessas boas coisas que a natureza forneceu em comum qualquer homem tinha direito (como ja foi dito) a tanto quanto pudesse usar, e tinha propriedade sobre tudo quanto pudesse afetar com seu trabalho; a ele pertencia tu- do aquilo que seu esforgo pudesse abarcar para alterar do o£ a humanidade toda ¢ nao um grupo ou sociedade particulares que consente no uso do dinheiro, isto &, dos metais preciosos. Locke j4 © afirma- ra em seu primeiro escrito acerca do dinheiro (ver nota no § 46), mas o fato € utilizado no presente paragrafo, de forma um tanto obscura, no intuito de relacionar a origem da propriedade dos individuos sobre objetos € terras com a posse de regides da terra por nacdes ou Estados. Fra tradicional considerar, lado a lado, essas duas formas de posse, como fizeram, por exemplo, Grocio ¢ Pulendosf. §46 1, Comparar com Il, § 184 € nota, bem como Consideragdes sobre juros e dinbeiro, de Locke, obra esbocada em 1668 ¢ publicada em 1692 (ver Intro- dugio, p. 40 € nota). “Pois que a humanidade, tendo consentido em atribuir um valor imaginario ao ouro ¢ a prata, em razdo de sua durabilidade, escassez e dificuldace em serem falsificados, converteu-os, por consenso geral, em pe- nhores comuns.” Trata-se de um consentimento universal, que abarea o mun- do todo, pois se insiste nos estrangeiros (Works, 1801, V, 22). Ha alguma seme- Tanga entre a interpretagao lockeana da origem € das fungdes do dinheiro ¢ a de Matthew Wren em Afirmacdo da monarquia, 1660 (ver p. 22 em diante). Locke possuia esse livro (H. € L., 3188). 425 Dois traiados sobre 0 governo estado em que a natureza o deixara. Aquele que colhesse cem alqueires de bolotas ou de magas tinha, por conseguinte, a propriedade delas; eram seus bens assim que fossem colhi- das. Era necess4rio tio-somente cuidar para que nao se estra- gassem antes que as usasse, do contrario teria colhido mais que a sua parte e roubado a parte alheia. E era com efeito uma tolice, bem como uma desonestidade, acumular mais que © que se era capaz de usar, Se cedesse uma parte a ou- tra pessoa, de modo que nao se estragasse inutilmente em suas m4os, essa parte também teria sido usada. E também, se trocasse algumas ameixas que se teriam estragado em uma semana por nozes de que se poderia alimentar durante um ano, nao causaria dano algum; nao desperdicaria a reserva comum nem destruiria uma parte dos bens pertencentes aos outros, conquanto nada perecesse inutilmente em suas miios. Mais uma vez, se trocasse suas nozes por um pedago de metal cuja cor Ihe agradasse, ou sua lenha por uma pe- dra brithante ou um diamante, e as guardasse consigo por toda a vida, nao estaria invadindo o direito alheio ¢ poderia acumular tantas dessas coisas duraveis quanto She aprou- yesse; 0 exagero nos limites de sua justa propriedade nao residia na extensdo de suas posses, mas no perecimento inii- til de qualquer parte delas. 47. Desse modo! instituiu-se o uso do dinbeiro, um ins- trumento duravel que 0 homem pudesse guardar sem se estragar € que, por consentimento miituo, os homens acei- tassem em troca dos sustentos da vida, verdadeiramente iteis mas pereciveis. §47 1. Comparar com as Consideragées. 0 dinheiro tem um valor, na medi- da em que € capaz, por meio da toca, de prover nossas necessidades, pro- porcionarnos os confortos da vida e, nese sentido, tem a natureza de uma mercadoria (1801, 5, 34. 426 Livro IE 48, E assim como os diferentes graus de esforco logra- ram conferir aos homens posses em proporgées diferentes, essa invengdo do dinbeiro deu-lhes a oportunidade de con- tinud-las e aumenté-las. Suponha-se uma iJha, separada de todo comércio possivel com 0 resto do mundo, onde vives- sem apenas cem familias, mas houvesse ovelhas, cavalos e vacas juntamente com outros animais titeis, frutos sauda- veis e terra bastante para fornecer graos para cem mil vezes mais pessoas, mas nada houvesse que servisse — seja por sua abundancia, seja por seu carater perecivel — para ser usa- do como dinbeire. que motivos teria qualquer pessoa para aumentar suas posses além do necessdrio ao uso de sua fa- milia em provisoes abundantes para o consumo desta, fosse naquilo que seu proprio esforco produzisse, fosse no que pudesse trocar com outros por artigos uiteis € pereciveis do mesmo tipo? Onde nao ha nada que seja ao mesmo tempo escasso ¢ duravel, € tio valioso que possa ser acumulado, os homens nao sao capazes de aumentar suas posses de ter- ra, pot mais ricas que estas sejam ou por maior liberdade que tenham para toma-las. Pergunto, pois, que valor daria alguém a dez mil, ou a cem mil acres de terra excelente, ja cultivada e também bem abastecida de gado, em pleno in- terior da América, onde nao tivesse esperangas de comércio com outras partes do mundo que the trouxessem dinheiro pela venda dos produtos? Tal terra nao valeria a pena cercar, e veriamos como essa pessoa devolveria a selva comum da natureza o que quer que excedesse 0 suprimento das con- veniéncias da vida em tal lugar para sie sua familia. 49. Portanto, no principio, o mundo inteiro era a Amé- rica’, ainda mais que hoje, pois nada semelhante ao dinbeiro era conhecido em parte alguma. Descubra-se qualquer coi- sa que tenha o uso eo valor do dinheiro entre OS vizinhos € $49 1. Comparar com M1, § 108. 427 Dois tratadas sobre 0 governo ver-se-4 que o mesmo homem comegara logo a ampliarsuas posses. 50. Como, porém, 0 ouro e a prata, por terem pouca utilidade para a vida humana em comparacdo com 0 ali- mento, as vestimentas € 0 transporte, derivam o seu valor apenas do consentimento dos homens, enquanto o traba- lho ainda dé em grande parte sua medida’, vé-se claramen- te que os homens concordaram com a posse desigual e des- propercional da terra, tendo encontrado, por um consenti- mento tacito e voluntario, um modo pelo qual alguém pode possuir com justica mais terra que aquela cujos produtos possa usar, recebendo em troca do excedente ouro e prata que podem ser guardados sem prejuizo de quem quer que seja, uma vez que tais metais ndo se deterioram nem apo- drecem nas maos de quem os possui. Essa partilha das coi- sas em uma desigualdade de propriedades particulares foi propiciada pelos homens fora dos limites da sociedade e sem um pacto, apenas atribuindo-se um valor ao ouro e 4 prata e concordando-se tacitamente com 0 uso do dinheiro. Pois, nos governos, as leis regulamentam o direito de proprieda- de, e a posse da terra é determinada por legislages positivas. 51. Desse modo’, penso eu, torna-se muito facil conce- ber sem a menor dificuldade de que modo péde o trabatho, §50 1. Daqui até o fim do parigrafo, o texto foi amplamente corigido no exemplar de Christ Church, a ponto de tornar ininteligivel o texto das linhas 7-11, exceto por comparagao com 0 texto da 1* edigao reunida, de 1714, e da 4 edigio, de 1713. A versio original impressa € muito estranha, contendo cons- trugdes como “o consentimento dos homens cancordou", que foi objeto do comentario de alguns estudiosos — por exempio, Kendall, 1941, 84. Macpherson, 1962, expressa aigumas observagées incisivas sobre esse trecho, enquanto justi- ficagdo implicita ou dectarada da acurnulagdo capitalista; ver 209-10. §51 1. Yon Leyden compara este parigrafo ¢ os 31 e 36 com as teses sobre a propriedade formuladas no oitavo Ensitio sobre a lei da natureza, também de Locke (1954, 204-15). 428 Livro Il. no principio, dar inicio a um titulo de propriedade? sobre as coisas comuns da natureza, e de que modo 0 gasto das mesmas para nosso uso limitava essa propriedade. De ma- neira que nao podia haver nenhum motivo para controvérsia acerca desse titulo nem sombra de diivida quanto a exten- sdo das posses que ele conferia. © direito ea conveniéncia andavam juntos, pois o homem tinha direito a tudo em que pudesse empregar seu trabalho, e por isso nao tinha a ten- tacdo de trabalhar para obter além do que pudesse usar. Isso ndo deixava espaco para controvérsias acerca do titulo nem para a violacao do direito alheio. A porcdo que o homem to- mava para seu uso era facilmente visivel e seria inttil, bem como desonesto, tomar demasiado, ou mais do que o ne- cessario*. CAPITULO WP Do poder paterno 52. Talvez se possa censurar como uma critica imperti- nente, num discurso desta natureza, apontar improprieda- 3 Resa frase, curiosamente repetitiva, pode também resultar de uma confusio no manuscrito de Locke, nao corrigida aqui. 3, Com o fim deste pardgrafo e capitulo encerra-se tambérn a parte da 18 edigao que pode ter sofride problemas de impressiio em 1689; comparar com nota em 1, § 167, & Laslett, 1952 Civ), 1954 GD. § 52 1. Este capitulo esta obviamente dirigido contra Filmer, mencionada pelo nome no § 61; portanto, parece daramente pervencer a redagdo original de 1679, Sua argumentagao € apresentada com mais detalhe no Primeiro fra- tado, hé repeticdes de frases ¢ de citagdes biblicas. B notavel o quanto Locke é evasivo, ao longo de todo o capitulo, com respeito ao 5° mandamento, Nao hd como duvidar de que 0 referido mandamento fornecta uiua s6lida base biblica para o patriarcalismo tradicional e de modo geral para 4 sujei¢ao $o- cial. Ver Laslett, 1965, cap. 8; Schochet, 1969; Dunn, 1969 G@, especialmente pp. 74-6. 429

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