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Walter Gomide Junior" A Masica e Trés Tipos de Movimento da Alma: modalismo, tonalismo e atonalismo E posstvel que haja uma maneira de analisar o fendmeno musical sem um apelo explicito 4 temporalidade. Entretanto, por mais que tal andlise enrique- ¢a a compreensao usual que se tem da musica, vista ndo s6 como algo propiciador de deleite estético, mas sobretudo como uma linguagem prenhe de sentidos peculiares, haveria af um claro distanciamento da experiéncia musical do Ocidente, segundo a qual o tempo se identificaria com a propria possibilidade expressiva da misica. A {intima relacao entre tempo e musica nado passou desapercebida pela tradi¢ao filoséfica ocidental. Analisando a musica em suas dimensées ritmica, melédica e harmonica, Hegel, na Fstética, faz uma estreita associagao entre a intui¢ao fundamental do eu ¢ a vivencia do tempo no contexto musical. Hegel verifica que a pulsacao ritmica — a métrica de uma musica —, em conjunto com a melodia e a harmonia dos sons musicais, perpassando a consciéncia, permite que a intui¢ao fundamental do cu, como aquilo que € desperto no tempo por intermédio do som, ocorra: Oeu real, propriamente, pertence ao tempo com o qual, se fizermos abstragao do contetido concreto da consciencia, ele coincide: ele nao ¢ entzo nada mais do que este movimento vazio pelo qual ele se coloca como outro e suprime esta alteridade; ele ndo conserva mais do que a si mesmo, o eu real e tinico. O eu esta no tempo © o tempo € 0 ser do sujeizo, Mas como é 0 tempo e n4o 0 espaco que fornece 0 elemento essencial onde 0 som adquite existéncia e valor musicais, e como 0 tempo do som é também 0 tempo do sujeito, o som penetra no eu, percebe-o em. sua existéncia simples, coloca-o em movimento e o leva cm seu ritmo cadenciado, enquanto que as outras combinagdes de harmonia e de melodia, como expressdes Doutorando em Filosofia na PUC-Rio ‘0 que nos faz pensar 6, novembro de 2003, 38 | Walter Gomide Jinior de sentimentos, completam e precisam 0 efeito produzide sobre 0 sujcito, contribuindo para comove-lo e desperté-lo. (Hegel, Estética, p. 103.)' Vale notar que Hegel enfatiza que a musica, vista como compésito de ritmo cadenciado, harmonia e melodia, é um principio de movimento do eu. Como qualquer outro movimento, também os movimentos do eu necessitam de um. contexto que possibilite deslocamentos, que preservem a unidade fundamen- tal do que é movimentado. No caso da musica, tal pano de fundo contextual é o tempo c € nele que o eu se desloca, uma vez sob efeito da experiencia musical. Segundo Hegel, o ritmo musical dinamiza o eu, que € entao acordado, confundindo-se com o préprio devir temporal e, por conseguinte, estando essencialmente em movimento. Este movimento subjetivo € feito de acordo com a vivéncia de sentimentos, dada pela ago conjunta da harmonia e da melodia. Conforme sejam os matizes expressivos de tais sentimentos, o movi- mento do eu se direcionara, tormando uma forma especifica, resultante da forca expressiva da musica, em seus componentes meldico-harmonicos. Desta forma, pode-se dizer que, enquanto o ritmo impulsiona o eu, colocando-o em movimento, — grosso modo, visto aqui como consciéncia individual ou subje- tiva —, a harmonia e 2 melodia direcionam o eu em movimento, levando-o a vivéncia de estados de alma determinados. Talvez Hegel, na citagao mencionada, estivesse descrevendo a experiéncia subjetiva da audi¢do musical. Obviamente, a interpretagao que aqui apresen- to do texto de Hegel ¢ livre, nao estando preocupada em analisii-lo estrita- mente, 4 luz do complexo sistema filos6fico estipulado por Hegel, embora haja 0 postulado de que tal interpretagao nao esteja em explicita contradiga0 com teses hegelianas fundamentais.? Assim, tomando-se 0 pressuposto de que o que Hegel descreve £ vivencia psicoldgica ou subjetiva da musica, é pertinente lancar a hipdtese de que o tempo desta descrigdo possa ser interpretado nao como um fluxo continuo de instantes, algo como o tempo métrico da experiencia fisica, mas como aquilo que o sujeito ou o eu vivencia como temporalidade; ¢ neste tempo subjetivo 1 A Estetica nto faz parte das obras filoséficas de Hegel. Trata-se de uma coletinen de notas ‘manuscritas preparat6rias para cursos ministrados na Universidade de Berlim, relaivos 20 peti- odo de 1818 a 1829, reunidas por seu editor Hotho. A primeira publicagao de tais manuscritos ‘ocorreu em 1835, quatro anos apos a morte de Hegel, sob o titulo de Vorlesungen aber die Acsthetih. As traducdes de Hegel que aqui aparecerem sto de responsabilidade do autor que, para tanto, wilizou a colettnea francesa Esthetique. Textes Choisis. 2 Para Hegel, o tempo & a subjetividade abstrata. Desprovida de qualquer conteddo, a conscitncia —ou 0 eu — coincide com o tempo, que nada mais ¢ que o devir intuido, Sobre » pensamento de Hegel, ver N. Hartmann, Die Philosophie des Deutschen Idealismus, vol. 2. ‘A Misics e Tits Tipos de Movimento da Alma ‘ou interno que se da o movimento do eu, uma vez sob o eleito do som musi- cal, Por conta de seu subjetivismo, a concepcao hege mete a Santo Agostinho. A concepcao agostiniana de tempo apresenta a temporalidade como resul- tante de um certo movimento do espfrito. Para Santo Agostinho, o tempo é uma dada distensao da alma? , que, evadindo-se da experigncia presente do mundo, Tanga-se aos momentos de expectativa ou lembranga, gerando assim a vivencia interna — ou psicolgica — do futuro ou do passado (Confissoes, XI, 23-26). Quando nos apercebemos do tempo, em sua triparticao passado-presente- futuro, estariamos, na realidade, experimentando um movimento interno da alma que, saindo da intuigao imediata das coisas presentes, projeta-se ao que est4 por vir ou remete-se ao que foi. Desta forma, 0 ndo-ser tanto do passado quanto do futuro adquirem um é: 0 ser presente na alma como lembranca dos fatos passados ou como expectativa das coisas futuras. Segundo uma tal and- lise da temporalidade, o tempo, entendido como fluxo ocorrente no tripolo passado-presente-futuro, ndo existe a ndo ser como algo atrelado a estes des- locamentos da alma — a j4 mencionada distens4o — que conferem ser ao que nao € mais e ao que ainda sera; por conseguinte, o componente subjetivo do tempo agostiniano torna-se patente: na de tempo nos re- O que agora claramente transparece € que nem hé tempos futuros nem pretérites, E impréprio afirmar que os tempos sao trés: pretérito, presente ¢ futuro. Mas. talvez fosse proprio dizer que os tempos s4o trts: presente das coisas passadas, presente das presentes e presente das futuras. Exister, pois, estes trés tempos na minha mente que nao vejo em outra parte: lembranga presente das coisas passadas, visto presente das coisas presentes e esperanca presente das coisas futuras. Se me é licito empregar tais expressées, vejo ent2o trés tempos e confesso que sto tres. L...] Diga-se também que ha tres tempos: pretérito, presente ¢ futuro, como ordinaria ¢ abusivamente se usa. Nao me importo nem me oponho nem critico tal uso, contanto que se entenda o que se diz e nao se julgue que aquito que ¢ fururo JA possui existencia, ou que o passado subsiste ainda, Poucas sto as coisas que exprimimos com terminologia exata. Falamos muitas vezes sem exatidao, mas entende-se o que pretendemos dizer!", (Confissoes, XI, 20.) Como se vé, em Santo Agostinho o tempo € resultado de um movimento da alma, que da ser presente as coisas passadas ¢ futuras. Essencialmente, ¢ a 3. Segundo Santo Agostinho : “[o] tempo nao é outra coisa senao distensdo; mas de que coisa o seja, ignoro. Seria para admirar que nfo fosse a da propria alma”. (Confissdcs, XI, 26.) 39 40 ‘Walter Gomide sanior alma, distendendo-se do presente, que ocasiona esta atribuigao de ser ac que no € mais € ao que sera; eo tempo é este movimento de distensio antmica, esperando ou lembrando-se a partir da experiéncia direta do presente. Se esta distensao da alma ocorre sem necessariamente um direcionamento ao que foi ou ao que sera, apenas projetando-se para fora do presente, entio temos af um movimento subjetivo que acarreta uma certa alteracio da dina- mica interna do tempo, entendida como atualizagdo presente, na alma, das coisas passadas e futuras, © que talvez tenhamos neste caso seja um desloca- mento subjetivo que atribui ser presente nao ao que foi ou sera, mas aquilo que, desconectado de uma historia temporal na direcdo passado-presente- futuro, se atualiza no espfrito sem ser a lembranca ou a expectativa; nestas condigdes, 0 que a alma, ou 0 eu de Hegel, presentifica so imagens e emogdes de contextos puramente posstveis, deslocados do tempo compreendido como linha de comunicagio entre os fatos passados e futuros, passando pelo instan- te atual, Seja como for, o tempo ligado a este movimento interno da alma para fora do presente, sem que isso implique em lembrangas ou expectativas, € a temporalidade subjetiva, que compreendo ser a mais adequada para uma and- lise da experiencia interna proporcionada pela musica, é talvez neste tempo que o eu citado por Hegel, ao coincidir com o puro devir, € posto em movi- mento pela ago do som musical. Caberia agora mostrar os tipos de movimento que a alma experimenta uma vez despertada pela musica. Para tanto, apela-se a uma subdivisio dos movimentos antmicos, proporcionados pela musica, em trés grandes grupos, cada qual responsavel por um espectfico deslocamento temporal da alma: os movimentos modal, tonal e atonal. A cada um destes movimentos, estao associadas estruturas musicais orientadoras da propria composicao musical. Antes de serem caracteristicas de genero ou estilo, tais estruturas sao principios formais, técnices, que gui- am a manipulacdo do som musical, entendido, como Hegel o faz, como cons- tituido de ritmo, melodia ¢ harmonia. Ligados a tais princtpios formais tipi- cos de cada movimento, estao atitudes e concepgdes em face do proprio papel expressive da musica. De forma simplificada, pode-se mesmo usar estas es- truturas para tripartir a historia da musica ocidental, verificando-se perfodos de prevaléncia de uma atitude modal, outro em que o tonalismo se superpoe ¢, finalmente, um ultimo em que o atonalismo ganha expressio. Em primeiro lugar, cabe discorrer um pouco sobre a mtisica modal, carac- terizando o movimento temporal que a alma realiza quando sob sua influen- cia, Para tanto, € pertinente lancar a hipdtese — simplificadora, diga-se de A Musica e Tets Tipos de Movimento da Alma passagem, da propria complexidade do modalismo*— de que a musica modal, pelo menos em uma de suas manifestagdes ocidentais mais proeminentes, 0 canto gregoriano, prima por realcar aspectos melédicos do som, em detri- mento de seus componentes ritmico-harménicos. Para se estruturar uma melodia, é necessario ter certos principios que orientem a ordenagdo das notas — ou sons melédicos basicos — de uma escala. Em linhas gerais, uma escala esté definida quando se estipulam as distancias intervalares entre notas dispostas em ordem crescente de alturas ou freqiencias’. A bem da simplicidade, aqui s6 abordarei a musica modal que nos foi transmitida pela tradicao helenica. Segundo os gregos cléssicos, cada escala — ow tom — encerra dentro de si modes, que nada mais sto do que disposi- ‘g0es de intervalos descendentes pertencentes a escala. Tal disposicdo intervalar define uma seqdéncia numérica que, adicionada a critérios expressivos de execucdo ea uma hierarquia entre os seus graus constitutivos, caracteriza um ethos, um estado de espirito instigado pela melodia modal. Para deixar isso mais claro, tomemos como exemplo o tom hipolidio, de género diatdnico®, que consiste em uma escala descendente, duplamente oitavada, indo de Id a la: 14—sol - f4 - mi — r6- d6- si- la -sol - f4 ~ mi- 16 - dé - si~ 14. ‘Unna interessante apresentacdo do modalismo, visto em sentido bem mais amplo do que aqui é mostrado, encontra-se em J. M. Wisnik, O Som eo Sentido— Uma Ouira Hisiéria das Masicas, cap. I. Bem amplamente, uma escala € um conjunto de sons ordenados consoante a suas aturas ou frequigncias relativas, isto €, conforme o mimero de vibragoes periédicas por segundo de cada ‘som que a constitui, Um intervalo entre sons de freqdéncia fe J’, sob o ponto de vista fisico, € a relacdo JP. Musicalmente, um intervalo é medido pela unidade tom, a qual admite subrwsltiplos ¢ miltiples, como 0 quarto de tom ou ¢ iritono — intervalo de tres tons. Em geval, adata-se a convencdo de tepresentar um intervalo musical de um tom pelo numeral *1", € os seus submiitiplos ou maltiplos por numerais que correspondam a divisto ou a muliplicacao efetu- ada com o tom inteiro — assirn, o quarto de tom se representa pelo numeral 1/4" ¢ 0 tritono por “3°, Tais distancias musicais tanto podem ser contadas indo de uma nota mais grave para uma mais aguda — intervalo ascendente —, como saindo de uma mais aguda a outra mais grave — intervalo descendente. Alem disso, quando, fsicamente, a relacao intervalar € igual a2, © intervalo anslogo musical é o de uma oitava ou de seis tons inteiros (ver R. de Candé, Histéria Universal da Musica, pp. 455-456). © complexo sistema musical grego nos foi legado, principalmente, pela obra de Aristoxeno de Tarento, do século IV A.C. Segundo Aristoxeno, a base da musica grega é uma escala descen- dente de sons continuos — isto é, uma em que, entre duas notas sucessivas, hé intervalos menores que 0 melo-tom —, na qual, entre a nota mais grave ea mais aguda, hd uma distancia intervalar de doze tons inteiros — escala duplamente citavada. Tal escala — ou tom, conforme a denominacte grega — era construtda mediante a justaposigao de quatro telzacordes — conjun- to de quatro sons em escala —, gerando-se assim, conforme a natureza intervalar de tal tetracorde, ‘05 gtneros da escala. Basicamente, havia (rés generos conhecidos entre os gregos antigos: o 4 a ‘Walter Gomide Janior Nesta escala hipoltdia, se tomarmos a oitava descendente que vai de mia mi, verificaremos que ela instancia a estrutura intervalar 1i%111%, isto ¢, na passagem de mi para ré, descemos um tom; de ré para dé, mais um tom € descido; de dé para si , meio tom é abaixado e, uma vez completan- do a oitava descendente, teremos seguido o caminho aritmético indicado pela sequéncia acima descrita. Qualquer improvisac4o melédica que utilize uma sequencia de notas ob- tida de um tom pela observancia do referido padrao aritmético, acentuando na improvisacao, tal qual um ponto de referéncia melédico, a nota que inicia e encerra a oitava € uma instanciagao do modo dérico. (De Candé, 2001, p. 91.) Conforme a tradicao musical grega, cada modo € responsével pcr um ethos, um estado de animo instigado pela audicdo musical’ . A alma, posta em movi- mento pela melodia modal, sai do instante presente — conforme a distensio agostiniana — e vivencia uma realidade descolada do fluxo temporal, que 2 atinge sob a forma de emogées e imagens — a experiencia estética de um ethos, de um estado animico associado a um modo. Apés a aco da mtsica, a alma volta a linha do tempo, avaliando o instante em que se encontra — intufdo pela atengao as coisas presentes — como o término de seu desloca- mento subjetivo Uma vez propiciando um deslocamento para fora do presente ¢ a vivencia de imagens ¢ emogdes desconectadas do dinamismo temporal, as melodias diatonico — distanclas intervalares do tetracorde sendo } 1 ¥s—, 0 cromatico (4 4 feo enarmanico (2% ¥4), Cada tom grego tem algumas notas que sie fixas, sendo estas as duas notas limitrofes — a primeira ¢a ultima, que sfo a mesma nota em oitava duple—, assim como © quarto ¢ quinto graus (paramese ¢ mese) presentes na oitava central do tom- isto ¢, a oitava descendente que vai da ultima nota do primeito tetracarde até a tltima nota do terceiro tetcacorde. As outras notas do tom sao varidveis, preenchendo-o conforme o intervala caracteristico do ‘genero que se queira. O tom hipolfdic tem como notas fixas 0 Id (no caso, coincidentemente, as duas nota limitrofes © a mese sendo iguais) € 0 si (paramese); em genero diatonico, 0 tom hipolidio transforma-se na escala que vai, descendentemente, de ld a Ia, percorrendo somente notas brancas, isto €, sem sustenides ou bemois (R. de Candé, op. cit., pp. 87-94). Segundo Pindaro de Tebas, do século Va.C, os mods de uma escala sao expressbe: legitimes de qualidades ou estados da aluna. Por conseguinte, a0 musico caberia, em suas improvisagbes, a arte da imitagao (mimesis) destas qualidades, dando-Thes forma sensivel, sor.ora; em sua intelighbilidade, tais qualidades s20 supre-sensiveis, uma vez que se canslituem cm estruturas aritméticas fixas (ver Lovelock, Histéria Concisa da Musica, p. 14; De Candé, ibid, pp. 71-72). Um dos seguidores de Pindaro, Damon de Atenas, foi o grande propalador desta doutrina, tendo sido por seu intermédio que Platio tomou citncia da visto mimética da musica, expondo. a.em seus dialogos Repablica ¢ As Leis (De Cande, ibid, p. 73). ‘A Misica ¢ Tets Tinos de Movimento da Alma modais servem a contento como motores de sublimagao espiritual, podendo gerar uma ruptura com a transitoriedade das coisas sensiveis, elevando 0 es- pirito a contemplacao e a experiencia afetiva com as realidades eternas. Nao foi & toa que a musica litargica crista, sistematizada principalmente por Santo Ambrosio (séc. 1V a.C) —e Gregorio Magno (séc. VI. a.C)—adotou o medalismo, como princfpio diretivo®, exaltando os modos que suscitassem a paz eterna, celestial — 0 ethos proveniente da contemplacdo, pela musica, do ser infinito de Deus, Santo Agostinho, que com muita probabilidade foi testemunha au- ditiva de tal musica liturgica, assim se expressa sobre os efeitos em sua alma da melodia modal sacra de seu tempo, exemplificada nos cAnticos littirgicos: Os prazeres do ouvido prendem-me ¢ subjugam-me com mais tenacidade. Mas Vos desligastes-me deles, libertando-me. Confesso que ainda agora encontro algum descanso nos canticos que as vossas palavras vivificam, quando sto entoadas com suavidade e arte. Nao digo que fique preso por eles. Mas custa-me deixa-las quando quero. Para que essas melodias se possam introduzir no meu interior, em companhia dos pensamentos que thes déo vida, procuram no meu corago um lugar de certa dignidade. Quando ouco cantar essas vossas santas palavras com mais piedade e ardor, sinto que o meu espirito também vibra com devogio mais teligiosa ¢ ardente do que se fossem cantadas de outro modo. Sinto que todos os afetos de minha alma encontram, na voz € no canto, segundo a diversidade de cada um, as suas préprias modulagées, vibrando em razdo de um parentesco coculto. (Confissoes, X, 33.) Embora Santo Agostinho aqui se refira a musica vocal praticada na igreja, percebe-se um compromisso com um movimento da alma, instigado por uma melodia que a leva a vivéncia de um ethos. Isto a faz presente ia observacio de que as mesma palavras santas, cantadas com “mais ardor e piedade”, fazem esptrito vibrar com mais devocao religiosa. Apesar de tal trecho nao indicar cla- ramente que se trata de palavras entoadas melodicamente em um modo piedo- 50, indica o princfpio de que a alma se movimenta para Deus com uma intensida- de proporcional 4 religiosidade da melodia, Além disso, a mesma alma se reco- nhece nas melodias cantadas por meio de aletos, o que € um dos aspectos fundamentais do modalismo. Como forma geral do movimento subjetivo incitado pela misica modal, proponho um esquema que procura conectar a experiencia de tempo em San- 8 Ver W. Lovelock, op. cit., pp. 13-16 a 44 | Walter Gomide sinior to Agostinho ¢ a teoria do ethos musical, conforme sua apresentagdo grega. Seja dada uma melodia composta em um modo que instigue o ethos X — visto como a experiéncia subjetiva ou psicolégica suscitada por ial modo, No infcio da apreciacao auditiva de tal melodia, a alma esta em repouso, atettta aos [atos presentes. Com o decorrer da experiéncia estético-musical, com tal modo posto em movimento melédico, sai do estado inerie, depreende-se do instan- tee é levada a vivenciar, sob a forma de emogées e imagens, o ethos X. Durante a apreciacdo de X, a alma se distende do mundo, desligando-se do presente. Quando a execu¢ao melédica dé-se por encerrada, retorna ao fluxo linear do. tempo, deixando o ethos X em um instante cuja posteridade em relagio ao instante anterior € reconhecida ja pelo apelo a lembranga, Esquematicamente, © movimento modal tem a seguinte forma, ilustrativa do percurso feito pela alma enquanto envolvida pelo modo instigador do ethos X: T9XT, Em T, a alma esta no mundo, atenta aos fatos presentes. Ao internalizar a melodia modal, a alma desloca-se, suprimindo o instante, passando & experi- éncia do ethos X. Ao final da apreciacao melédica, volta a intuir de forma direta o mundo; e isto faz com que a alma se posicione no instante T,. Apesar de tal esquema parecer, a principio, uma redugao desprovida de sentido de uma experiéncia estética e psicolégica — o postulado movimento modal da alma — a um simbolismo vazio, logo se verificar4, tratando-se do atonalismo, que nao € de todo impertinente o uso de tal recurso esquematico. Mas, antes disso, cabe descrever agora o movimento tonal, Néo julgo temerario afirmar que o tonalismo surge de uma espécie de desdobramento dos principios modais. Mais precisamente, a musica ociden- tal comeca a ser guiada por uma atitude tonal quando privilegia, em detri- mento dos outros, os mados jonico ou edlio, com uma relativa superioridade do jonico’. 9 Além do modo jonico, o modo cétfo também fol incorporado ao tonatismo. Tal modo consiste na distribuigto intervalar 1% 1 1 % 1 1;€0 modo que estd associado, por exemplo, a uma improvisagto realizada em uma oitava que va de {4 a Id, a0 qual a tradigio tone! atribuiu um thos de dramaticidade ow tristeza (ver Nattiez, JJ. Music and Discourse, Toward 2 Semiology of Music, pp. 118-126). A tese de que, mesmo considerando o modo edlic como parte integrante do tonalismo, ha uma clara prevalencia do modo jonico, reside no fate de que » modo eétio, como apropriado pelo tonalismo, soften uma espécie de jonificagdo: eleva-se meic-iom a sétima menor ov eélia pata que, assim, as mesmas possibilidades melédico-harmonicas dio modo jonico facam-se presentes no modo menor. ‘A Musica e Tres Tipos de Movimento da Alma | 45 ‘Ja tomando as definicdes modais hodiernas, 0 modo jénico é a distribui- cao de tons e semitons quando se ascende uma oitava musical indo de dé a dé, considerando somente as notas brancas ou sem acidentes, isto é, notas sem sustenidos ou beméis: dé -ré- mi - {4 - sol - 14 - si - do. Isto é, o modo jonico consiste na sequéncia de tons 11%#111%, queé a estrutura formal da escala maior da musica ocidental moderna. Em sua distribuicao intervalar, o modo jénico coincide com o dérico grego, com a distingao de que o primeiro consiste de intervalos ascendentes, enquanto 0 ultimo de descendentes. Quando se adotou 0 jnico como o modo por exceléncia da composi¢ao, musical, o que realmente foi endossado nao foi tanto um ethos jonico, mas as possibilidades de, com tal modo, se efetivar nuances expressivas que até en- tdo estariam ausentes da estética modal: suscitar no ouvinte a experiencia de emocées contraditorias, que causariam a vivéncia interna de uma tensdo, abran- dada em seguida pela resolugdo da contradigzo que Ihe € causa. Com isto quero dizer que o movimento tonal ¢ aquele que, mediante uma acentuagao dos aspectos harménicos da miisica — uma determinada légica de encadea- mento de acordes, pautada na resolugdo em um acorde perfeito maior ou me- nor de uma tensao ocasionada, geralmente, pelo uso de um tritono—, provo- ca na alma um deslocamento que a faz sair do instante presente para se direcionar a experiencia de um dado ethos que se subdivide em momentos éticos antagénicos, gerando-se assim um incdmodo na alma que sé se resolve quando a integridade do ethos inicial € recomposta. Em linhas gerais, a forga expressiva da musica tonal, através de uma mani- pulagio adequada dos modos jonico ¢ eélio, pautada em um jogo de encade- amento de acordes — uma novidade introduzida pelo tonalismo—, reside em explorar os aspectos contraditorios da alma, harmonizando-os, resolvendo- os, Enquanto na atitude modal prevalece o movimento da alma que, ao sair do tempo presente, sé diteciona a um ethos indiviso, no tonalismo a alma é posta em contato com trés aspectos de um mesmo ethos: dois que, por conta de instigarem aspectos contraditérios da alma, causam-lhe tensdo e um que a relaxa, por resolver a contradigao anterior. De acordo com o esquema anteri- ormente apresentado para o movimento modal, o tonalismo induzitia 0 se- guinte percurso: T,3P3P'>P">PoT, 1 | Welter Goi tne Em T,, a alma esta no instante presente. Ao iniciar a sua distensao por efeito da acao musical, ¢ levada ao estado P — 0 ethos jonico ou edlio —, 0 que € conseguido pela acentuacao harmonica de um acorde perfeito maior ou menor chamado de tonica, correspondente ao primeito grau dos modos jénico ou edlio. Em seguida, apercebe-se afastando-se de tal ethos, sendo levado a uma posigao P’, a qual se assemelharia a um desenvolvimento expressivo de P. Para tanto, enfatiza-se um movimento harménico que vai do acorde de tonica até outro também perleito maior que corresponde aos quintos graus jonico ou edlio, conhecido pelo nome de dominante. Mediante modulagoes que par- tem do acorde de dominante até o de subdominante — associado aos quartos graus jOnico ou edlio — a alma agora é levada a sentir-se em uma posicao antipédica & anteriormente ocupada; vivencia agora a posicao P”, propulsora de um reposicionamento em diregto a P. Na passagem de P” a P’, explora-se 0 tritono, que é a distancia intervalar de trés tons, existentes entre os graus IV e VII do modo jénico ou escala maior. Tal intervalo acentua a oposicao afasta- mento-aproximacdo, em rela¢ao aos primeiros graus jonico ou célio, que a alma experimenta estando em P’ ¢ depois em P”. Por conta disto, o tritono — como outros intervalos chamados de dissonantes— suscita a experiencia esté- tica da contradigao, da tensao entre polos contrdrios, suavemente resolvida por um retorno ao ponto inicial do movimento: 0 repouso harmonico no acor- de de ténica. Apés este caminho por tres momentos do ethos P, a alma encer- ra seu movimento para fora do presente, voltando a intuir os fatos instanta- neos em T,_ Hegel, em sua ja citada Estética, preconiza que a musica ideal € aquela que, embora possa despertar aspectos contraditérios da alma — como a alegriae a tristeza —, proporciona um movimento interno pautado pela medida, além de instigar uma alegria equilibrada Seu dever [o da musica] € também o de moderar [...] as afecgées da alma |... se ela [a alma] nao deseja, como uma bacante, ser arrastada ao rutdo desordenado e a0 tumulto turbilhonar das paix6es, ou permanecer nas afligdes do desespero. Pelo contrario, nas passagens de alegria e contentamento, assim como na mais profunda dor, a alma deve permanecer ainda livre e feliz nos desenlaces melédicos. Tal € a caractertstica da |... musica ideal, da expresso melédica de Palestrina, Durante, Lotti, Pergoleze, Gluck, Haydn, Mozart. A alma jamais perde a calma nas composicées destes mestres. O sofrimento nao é, por isso, nelas menos expresso; mas ele se esvai em uma harmonia interior. Uma clara medida impede cada movimento de se precipitar em algum extremo, e mantém (odo |...] contetido em uma forma bem ligada.(Hegel, op. ct.. p. 111). A Misica e Trés Tipos de Movimento da Alma Embora a musica ideal de Hegel leve a alma a experimentar emocoes contra- ditorias, como a alegria ¢ a tristeza, ela o faz de forma equilibrada, a qual realca uma alegria repousante que, tal qual um ima, atrai para si as tensdes da vivéncia subjetiva de paradoxos. E interessante salientar que Hegel menciona que a verdadeira musica — exemplificada, em suas palavras, por composi- goes de autores em que a atitude tonal, em maior ou menor intensidade, se faz marcante — é dotada de uma “harmonia interior” que dissipa a tristeza, uma vez que esta é um momento de um percurso subjetivo cuja referéncia é a alegria. Como observa José Miguel Wisnik, o ethos do modo jonico ¢ alegre, brilhante e vivaz; e, por conta desta alegria radiante, ele teria cafdo nas gracas do homem setecentista, preocupado que estava em romper com as tradi¢des musicais legadas pela igreja crista, baseadas no uso de modos circunspectos ¢ austeros’®, Assim, Hegel teria notado a dinamica expressiva da musica tonal, com seu jogo de oposigdes ocorrendo dentro de uma atmosfera de alegria ¢ vivacidade — a predominancia da aimosfera jonica em relagdo as demais, inclusiva a edlia, triste e sombria. Por intermédio da sintaxe tonal, a alma deixa o instante presente, indo ao enconto de estados de espitito que revelam uma de suas caracteristicas fun- damentais: a contrariedade de sua condigao, A grande contribuicao da perspec- tiva tonalista foi a exploragdo expressiva de oposigées sugeridas pela propria disposigao de tons e semitons tipicas do modo jénico. Tal estética do antago- nismo que se resolve harmoniosamente — ausente na musica modal — é sintetizada na expressao “tens4o-relaxamento”, uma espécie de sintese dos efeitos no espirito dos princfpios tonais postos em execucao. O movimento tonal, como descrito aqui, admite inumeras variagdes. To- davia, o pressuposto de que um pélo de resolucao de tensdes esteja orientan- do a alma enquanto esta se desloca em uma temporalidade subjetiva € a pro- priedade invariante da atitude tonal. Sempre que a alma se movimentar guia- da pela triangulacao T,> P+ PP PoT, sendo P o ethos jénico ou edlio, pode-se afirmar que o seu movimento esta sendo proporcionado por um dinamismo tonal. Por conseguinte, qualquer mo- vimento da conscigncia instigado pela musica e que se desenvolva sem tal 10 Além do lado semantico do modo jonico — o seu ethos —, Wisnik acentua que também as possibilidades harmonicas presentes na estrutura nica teviam sido decisivas para que tal modo Drevalecesse sobre os demais, inclusive o eélio (Wisnik, op. cil., pp. 126-132) ar 48 2 Walter Goride JOnior triangulagdo sera atonal. Daf o modalismo, com seu movimento caracteristico, no qual a alma deixa a instantancidade para gravitar, sem afastamentos e apro- ximagdes, em tomo de um dado ethos, constituir uma espécie de “atonalismo”. Otonalismo, como diretriz de orientac4o composicional, varreu o século XIX e atingiu a exploracdo maxima de suas potencialidades no inicio do século XX. Entretanto, isto nao impediu que alguns compositores tivessem certes comporta- mentos desviantes em relacdo a estética tonal. De Wagner a Stravinsky, pasando por Debussy, a presenga de obras em que a triangulacdo tonal ¢ deixada de lado em nome de atitudes modalistas ou mesmo de uma completa ruptura com as premissas tonais € patente. Isto torna-se compreenstvel se entendem2s que, den- tro do préprio tonalismo, as ferramentas para a sua implosio jé estdo dadas, bas- tando, a tanto, que o pouso tonal, dissipador de tensées, seja abandenado. Se no movimento tonal o repouso é esquecido, abrindo-se o movimento tnangular T,9 PPP PST, tem-se entao um movimento da alma que, saindo da atengao do tempo pre- sente, é levada a distender-se conforme o esquema seguinte T,9P PPT, Descartando-se 0 retorno ao centro tonal, acentua-se na alma a tensao, os aspectos contraditorios, sem que os mesmos sejam harmoniosamente dissi- pados''. O que se verifica entdo ¢ a énfase no antagonismo inconcluso, o que deixa a alma em contato psicolégico com sua natureza contraditéria. Sob tais condigdes, a alegria equilibrada da musica ideal de Hegel nao mais se faz presente como pano de fundo do deslocamento animico e, ao invés disso, a consciéncia submete-se a uma estética da tensdo, da contradigao nio resolvida pela recorréncia a uma tonica. © dodecafonismo serial de A. Schoenberg? € 0 atonalismo em sua expres- sdo mais sistematizada, Bem sinteticamente, enquanto 0 tonalismo se amparava no pressuposte de que as dissonancias presentes do modo jonico ou edlio, em Anton Webern (1883-1945), compositor austrisco da escola dodecafonica, sobre a implosao do sistema tonal, diz 0 seguinte: “era tho excitante voar em direcdo as mais longinquas regides tonais, para depois retornar ao ninho aconchegante da tonalidade original! E, de repente, nfo se voltou mais — esses acordes astutos tornaram.se equ(vocos! Era muito agradavel 1udo isso, mas finalmente nao se considerou imprescindivel retornar a t6nica” ( Webern em: Wisnik, ibid, pp. 164-165). ‘A musica dodecafoniies abandona por completo a sintaxe tonal, substiluindo-a por uma baseada nna manipulagdo de séries de doze sons da escata cromética ~ a escala que se abiém, por exem= 3 ‘A Misica e Tets Tipos de Movimento da Alma especial as que decorrem do tritono vertical, s4o naturalmente levadas a desapa- Tecer em um repouso no acorde de tonica, o que sugere uma estética em que as oposigdes que se inserem na alma, por uma dinamica tonal, sto quase que apenas momentos distintos de um mesmo ethos, 0 atonalismo dodecafonico de Schoenberg pretendia uma musica em que as dissonancias fossem elevadas & categoria de diretivas do movimento da alma. Assim, as consonancias que porventura aparecessem no percurso atonal da alma em movimento, teriam de ser vistas como aspectos acidentais; a tensdo seria a ver-dadeira referéncia do movimento instigado pelo atonalismo schoenberguiano. Hans Eisler, um dos disctpulos de Schoenberg, assim se expressa sobre a nova estética dodecafonica: Para o ouvinte nao iniciado, a miisica de Schoenberg nao soa bela porque espelha co mundo capitalista, tal qual é, sem adornos, ¢ porque de sua musica emerge a face do capitalismo com os olhos do capitalismo fixamente apontado para nos [...] Quando sua miisica ¢ ouvida nas salas de concerto da burguesia, estas salas j4 nao sao [os lugares onde alguém se emociona com sua prépria formosural,,c sim, € nelas que se ¢ forcado a pensar sobre 0 caos ea feiura do mundo. (Eisler, ibowitz, op. cit., p. 22.) Descartando o cardter politico-panfletario das observagdes de Eisler — ex- pressamente condenado pelo proprio Schoenberg! >—, fica o chamado a esté- tica dodecafonica calcada na estranheza, oriunda de uma melodia e harmonia rascantes, sem repouso tonal. Uma vez que o dodecafonismo se guia por uma total equivaléncia dos doze sons da escala cromatica, dispostos em séries construidas com alto grau de liberdade, mas utilizadas com regras fixas, um Upico movimento dodecafonico seria o seguinte: TB KBP GP Ky Ky XG XP GP YP XG FX, FAP T, plo, ascendendo-se uma oitava através de intervalos sucessivos de meio-tom. O criador do dodecafonismo foi Arold Schoenberg (1874-1951), compositor judeu-austrfaco que, no perto~ dode 1913 a 1923, desenvolveu tal sistema afim de romper com princfpio tonais. Sobre o serialismo de Schoenberg, e seu estrite atonalismo, Wisnik nos diz: *O dodecafonismo recusa, antes de mais nada,on definitivamente, a escala diatdnica { a estrutura intervalar do modo jonico). O seu funda- mento é a aplicagao intensiva da escala cromética, cujos doze semitons iguais serdo usados de modo a evitarsistematicamente a emergencia de notas polarizadoras ¢ de Ihierarquia intervalares. [1 Na construgso da série deve-se evitar, em principio, aqueles intervalos estruturadores da cordem tonal, como a oitava, aquinta ea terga, com sua tendencia ao acorde perleito. Em vez disso, tende-se as sttimas maiores, as nonas e as as segundas menores, 20s trftonos, pontos mais atritantes, do sistema intervalar cromatico” (Wisnik, ibid, p. 165). Em carta aJ. Rufer, datada de 18 de dezembro de 1947, Schoenberg manifesta o seu desconten- tamento com as opinides pollticas de Eisler, o qual, segundo Schoenberg, deveria se preocupar a 0 Walter Gomide Junior Em T, a alma esta atenta ao presente; distende-se, entdo, em um movi- mento que a faz passar por doze atmosferas sucessivas, pingadas quase que livremente da escala cromatica, dotadas de plena autonomia, sem «ue nenhu- ma destas exerca qualquer papel de ima atrativo ou repouso, Com isso, a0 percorrer estas atmosferas éticas — doze nuances expressivas, com coloridos e matizes proprios — a alma nao experimenta afastamentos ou aproximacoes em relacdo a um ponto determinado: como nao ha uma referéncia melédica ou har- monica — isto, ¢, como ha auséncia de um ethos oriundo de um modo que oriente a melodia ou de um entrelacamento de acordes destinado a um fecho, a.um retomo para uma tonica —, 0 movimento schoenberguiano, ocasiona- do tanto por elementos melédicos quanto harménicos, ¢ constitu{do de sal- tos, de posi¢des que entre si mantém uma relacdo de descontinuidade. A unida- de da alma sé é recuperada em T,, quando volta a intuir o instante, ligando-o aT, pela faculdade unificadora da memoria. A tensao que disto surge € 0 resultado de uma espécie de fragmentagdo da alma que, durante sua projecao para fora do instante presente, vé-se dilutda em doze partes desconexas, independentes entre si; a perda intencional de um ponto de referencia tonal desintegra a alma em seu deslocamento dodecafonico. E interessante notar que alma, posta em movimento por uma musica dodecafonica, experimenta uma instigante perda de sua unidade, dle sua inte- Bridade, que s6 € adquirida novamente com o retorno da aten¢ao ao presente. Voltando ao intuir o tempo presente, a alma resolve, por assim dizer, as descontinuidades que viveu durante sua distens@o atonal, Retornando a aten- ¢do para o que de fato é no mundo, a alma consegue rearticulas-se, reinte- grando os seus fragmentos, postos em relevo pela estética dodecafonica. O préprio Schoenberg percebera que o atonalismo, em seus primoérdios, teria de abrir mao de pecas de grande duragio, de longos movimentos para fora do tempo presente. Devide a seu efeito perturbador, as obras atonais teriam de ser curtas, por conta da falta de um elemento que thes conferisse unidade, de uma ténica que permitisse descansar a alma de tensdes. Sobre isto, Schoenberg nos diz: Em minhas primeiras obras no novo estilofo atonalismo incipiente de Schoenberg, ainda nfo caracterizado como serialismo dodecafonico] foram sobretudo fortes 0s impulsos expressivos que me guiaram [...] na elaboragao formal, mas também, mais com @ musica ¢ menos em reformar 0 mundo (R. Leibowttz, ibid, p. 23). Hans Eister era membro ativo do partide comunista alemao, sendo de sua autorin o Hino da jt extinia Alema- nha Oriental (0. M. Carpeaux, O Livro de Ouro da Histéria da Musica, p. 473) ‘A Masica e Tres Tipos de Movimento da Alma | 51 € néo em Ultimo lugar, um sentido da forma e da légica herdado da tradicfo € bem educado pela aplicacdo e pela conscincia. Estas formas se tornaram posstveis gracas a uma restrigdo que me impus desde o primeiro instante, isto é, 0 de me Testringir as pequenas pegas, fato que na época justificava a mim mesmo como uma reagdo ao estilo “longo”. Hoje posso explicé-lo melhor, como segue: a abstencao face aos meios tradicionais torna imposs{vel projetar grandes formas, pois elas ndo podem existir sem uma articulagao precisa. (Schoenberg em:Leibowitz, ibid, p. 95.) Por descartar o princfpio de resolugdo tonal, o atonalismo proporciona na alma a vivencia intensa de tensdes que nao se harmonizam na énfase de um ponto referencial — a tonica. Entretanto, as harmonias e melodias atonais encontram no préprio retorno ao instante a sua resolucao, repousando no tempo presente, a alma volta para si esquecendo-se de suas contradicoes, integrando-se por meio da intuigao direta do mundo. Tal qual um pouso tonal doador de unidade, 0 retomo a temporalidade subjetiva faz com que a alma se lance novamente em um movimento ordenado que vai da atencao presente a lembranga ou a expectativa. Por conseguinte, a alma que se movi- menta para fora do tempo dissonantemente, precisa do instante temporal como © remédio que cura as feridas expostas em seu trajeto por tensoes atonais. Conforme Schoenberg: “O tempo cura todas as feridas, mesmo aquelas aber- tas pelas harmonias dissonantes”. (Schoenberg em: Leibowitz, ibid, p. 29) Referéncias Bibliograticas: Carpeaux, ©. M. O Livro de Ouro da Historia da Musica, Rio de Janeiro, Ediouro: 2001, De Candé, R. Historia da Musica Universal, vols. 1 e 2. Tradugao de Eduardo Brandao. Sao Paulo, Martins Fontes: 2001; Hartmann, N, Die Philosophie des deutschen Ideatismus, vol 1, Berlim, De Gruyter: 1929, Hegel, G. E Esthétique. Textes Choisis. Ditigée par C. Khodoss ¢ J. Laubier. Presses Universitaires de France, Paris:1964; Leibowitz, R. Schoenberg. Tradugao de Hélio Ziskind. Sao Paulo, Perspectiva:1981; Lovelock, W. Historia Concisa da Musica. Tradugao de Alvaro Cabral. Martins Fontes: Sao Paulo: 1987; 52 ‘walter Gomide sGnior Nattiez. J. M. Music and Discourse. Toward a Semiology of Music. Translated by Carolyn Abbaie. Princeton University Press, New Jersey: 1990; Santo Agostinho. Confissdes. Coleco Os Pensadores. Traducio de J. Oliveira, S.J..e A. Ambrésio de Pina, S.J. Sao Paulo, Abril Cultural:2000; Wisnik, J. M. O Som e o Sentido—Uma Outra Historia das Masicas. Sao Palo, Compa- nhia das Letras:1989.

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