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TEXTOS O desejo borderline CChistopner Bollos A personalidade borderline busca inconscientemente a turbuléncia emocional Embora doloroso e perturbador, 0 estado de tumulto é desejado, e, paradoxalmente, © encontrar-se num estado de angtistia produz gratificacao. obra de Christopher Bollas, psicanalista norte- americano que se formou e estabeleceu clinica em Londres, tem sido objeto de um interesse cres ccente, inclusive no Brasil. Desde A sombra do ‘objeto (7987), seu primeiro livro, este pensador inquieto néo tem cessado de produzir e publicar, contribuindo para a comunidade psicanalitica com diversos livros, ‘alguns ja traduzidos para o portugues. Em 1997, na ocasiéo de suc passagem por Sao Paulo, Bollas conce- deu a Percurso uma entrevista rica em diversos aspectos, revelando um analista sensivel, original e critico, e es- pecialmente atento e preocupado com os problemas relativos ao movimento ¢ a formacao psicanaliticas. “Mesmo reconbecendo suas afinidades com 0 Grupo In- dependente da Sociedade Briténica de Psicanalise, na qual fez sua formacao — tendo integrado, inclusive, 0 grupo que organizou e publicou a obra pistuma de Winnicott -, optou por uma ndo-participagao mats in- cisiva nessa Sociedade: “escolbi manifestar-me contra 0s movimentos oficiais dentro da Psicandlise; sou contra qualquer forma de kleinismo, lacanismo, winmicotismo, com exceedo do freuclismo". Ao mesmo lempo, observa mos tima presenca crescente do autor no cendirio inter- nacional. A suas passagem por Sdo Paulo surpreende a msitos (que fregitentaram seus semindrios elinicos em tm aspec- {0 curioso: por vezes esperavarse que alguns pacientes fossem tomados como casos borderline, mas acabacim ‘sendo tratados por Bollas como formas de histeria, Al- guns colegas habituadas ao pensamento do autor qui ‘onaram-no sobre esse ponto, perguntando sobre se acl nica do fronteirico havia perdido valor a sews olbos, ja que agora ‘tudo parecia ser bisteria’. Bollas respondeu que bavia tum exagero e um uso indiscriminado do diag- néstico de borderline, 0 que serviu como uma verdadeira interpretagao sobre os descaminbos do movimento psica- nalitico; ratava-se de um importante alerta, especialmente vindo de um anatista afim ao Middle Group. Ora, 0 autor prepaarawa, nessa ocastdo, 0 seu mais recente toro ~ Hyste- ste rabano fl apresentacdo no 99° Gongretco da IPA (Assosacdo Petanaiie Inemacena), Sto Frencleo, EUA, 1005. Tadbrdo: Kata Fotis Igusis: Revedo: Elana Borges Pera Lele, Man Dewak, Lian Quin © Deco Gurnks, ‘Decl Gurtinke é membre do Departament de Psicande do Insite ‘Sedes Saplertae, do qual 6 professor dos cursos de Pacenaie © Patoesomdten Heat e doavan palo Ist. de Pocologa da USP, ater doe tir Do sento 2 vauma: psioossama eaciozbes (Ed ‘Gaza do Pscsogo) © A piso e seu ojato-rog: esto picanaliico sobre a foucomania (Ea Voz) Pereurson 30 12008 EIS ria =, e declarou estar tendo uma aproximacdo bastante fecunda com 4 psicandlise francesa, reconbecida por ele como a principal fonte que Sustentou e renovot 0 lugar desta es- rutura clinica na psicandilise pés. _freudiana. Na introdugao do tivo, le ‘mos: ‘pensar 0 bystérico por meio das lentes tedricas da personatidacte bor- derline bavia se tornado Jem mea- dos da década de 1980, nas BUA} uma expécie de tragédia”®. O analista sen- sivel os movimentos da historia da Psicandlise escutots neste fenémeno “uma demanda inconsciente da co- municlade terapeutica de se reconsi- derar a bisteria”. Haveria sempre um fund bisté- rico nos casos frontetricos? Bollas, atento aos riscos do combecido fené- ‘meno da “curvatura da vara’, respon- ddeu prontamente a esta pergsunta da Percurso: “indo!” Os fronteiri¢os continuam a existir? B fundamen- tal distinguirmos a bisteria da pa- tologia borderline, guardando e sabendo reconhecera especificidade de cada um dos quadros clinicos. Em um dos semindiios de Sao Paulo, Bollas respondeu a mesma indaga- 940 fazendo referencia a um trabalbo seu entdo recém-publicado, “Border. line desire’, no quall procurava apre- sentar algumas idélas a respeito da especificidade do fronteirico. E este © trabalbo que Percurso escolhew para traduzir e trazer a seu priblico leitor, Trata-se de artigo conciso, instigante e expressivo, que tem como eixo conceitual uma bipstese de base a respeito do objeto priméirio. do paciente bordetline; a partir desta, Bollas procuira compreendera adiceao pantclar deste tipo de organizagito psiguica ao tumulto e as tempesta- des emocionais: 0 individwo estdi sem pre em busca de tim efeito que é, no _fundo, a prépria forma do objeto pri- ‘mario e, portanio, 0 tinico meio de tmnir-sea ele. Oartigo fala diretamente ao clinico, em especial aes analistas exturides pelo “‘tunnuto de transferén- cia" de certas andtises, marcadas por esia forma particular e demoniaca da compulsao a repeticao. A traducdo que se segue ba- seta-se na versdo original do artigo, publicada na revista International Forum of Psycho-analysis (7.5, pp. 5-10, 1996). Posteriormente, Bollas ‘9 inclut como capitulo de um livro, “The mystery of things”, com pe- quenas modificacoes e alguns aecréscimos, inserindo também uma vinbeta clinica; entretanto, perde- ram-se, ao nosso ver, alguns deta- Ibes significativos nesta nova versdo: duas notas foram suprimi- das, wna que faz referéncia as tdétas de Green em O trabalho do negati- Vo, e outra que menciona um tra- batbo anterior do proprio Bollas ~ “0 Gdio amoroso” — no qual pode- ‘mos reconbecer claramente a ges- tacéo das idéias de “Borderline desire”. Tratam-se de pequenas pis- las que 0 autor se dew 0 direito de pagar, quem sabe para aumentar a graca da nessa “caca ao tesouro”: Decio Gurfinkel Alguns anos atrs, tendo avan- ado bastante na andlise de uma paciente borderline, pareceu-me que suas freqiientes tempestades emocionais ~ ocasides de fragmen- taco profunda — eram um estranho objeto de desejo. Quando ficava transtomada a0 tembrar-se de algum episédlio de sua vida, ou devido a algo que eu havia dito ou no dito, havia feito ou nao feito, seus senti- mentos dlisparavam naquela inten sidacle enraivecida “jt instalaca”, 20 familiar aos que trabalh: cientes borderline; mas com esta paciente, além disso — por ela set, or sorte, alguém excepcionalmente consciente de si mesma ~ tomavirse claro também que, uma vez atingi- a, esta experiéncia era ardente- ‘mente abracacla, O que isto significa, € 0 que nos.ensina a respeito de alguns ou talvez de todos os indos borderlin? Em geral, conferimos um cara- ler figurative aos objetos do mun do interno. Um bom objeto, um mau objeto ou um objeto bizarro nos evocam, de alguma maneira, um 6 outro especular. E se © objeto pr miirio nao for assim to figurative? Nao me refiro aqui a qualquer ob- jeto, jf que evidentemente todos concebemos objetos inte mos; mas © s€ 0 objeto primirio - 0 objeto paradigmatico de todos os objetos, constituido no primeiro ano de vida = for experimentado no s6 como disruptive, mas como a propria disrupeao, € portanto representado ieee objeto primario nao for assim tao figurativo? E se for disruptivo, experimentado como a propria disrupcao, e portanto representado por um tumulto emocional? por um tumulto emocional? E se 0 Sats essencial deste objeto prima fio estiver calcado menos em seu carter especular do que no tumul- to emocional que ocorre no self quando se o tem em mente?" Um afeto ocupa o lugar de algo que estatia por nascer: a matriz. de um objeto “comum”, 0 “materta para representar. Os sentimentos Si0 0 pr6prio objeto. Conseq| temente, os colapsos do bordertine, caracterizados pela fragmentagao do go, criam uma relagio com 0 ob- jeto tristemente irénica: apesar de temido, ele permanece sendo 0 ‘objeto primirio e, portanto, inevi- tavelmente desejado. ‘Um dia, so sentir que eu havia feito um comentario insensvel, mi- nha paciente langou-se, repentina € inesperadamente, em uma fitria profundamente desorganizadora Além de té-la forgado a abandonar a trégua em que se encontrava — se hd um tempo com saudades, al- sguém que conhecesse muito bem € que receberia suas evacuacdes de fezes e vomito conforme ela se ati- rasse para dentro dele; tratava-se de um movimento forgaco “para den- 110" do objeto, a ser aleangado por um entregarse a s invasivas. “Voce se apropriou do meu comentario com intenso prazer, Meso cue aquta paciente perseguisse seu objeto agora sob a forma de uma turbuléncia de elementos fragmentados — sentia-se mais proxima de mim quando eu me tornava aquele que motivou tal angistia. caracterizada pela idealizagio que fazia de mim ~ para Fazé-la crer que agora eu era inttil ¢ indigno de con- fianga; além de ter provocado uma intensa dor relacionada a minha perda; além de t@-la feito sentir que havia'me mutilado, ¢ agora seria infestada por minha vinganca; € além dos muitos outros fios que foram entrelacados a fim de se atin- gir tal estado emocional, esta turbu- lencia também parecia ser deliciosa. Era como se ela houvesse encon- trado um outro de quem jf estives- como se eu Ihe tivesse oferecido a oportunidacle de, mais uma vez, ser levada a agitarse", eu disse. Mes mo que ela perseguisse seu objeto agora sob a forma de uma turbu- ncia

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