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‘THE INTERNATIONAL TRANS-AVANTGARDE, Achille Bonito Oliva ~ A arte da iiltima geragao atua na érea da_transvanguardia, onde a linguagem ¢ considerada um instrumento de transig&o, de passagem de uma obra e de um estilo para outro. Se for aceita a idéia de que a vanguarda dos tltimos 20 ou 30 anos se desenvolveu ao longo das linhas evolucionistas do Darwinismo linguistico, procurando precedentes nas realizagées das tendéncias das primeiras décadas do século, entéo deve-se fazer uma distingo com respeito & transvanguarda, que atua fora destes limites obrigatérios, seguindo uma atitude némade que rovou ser capaz de reverter a linguagem do passado. ‘A desmaterializago da obra e a impessoalidade de execugo que caracterizou a arte dos anos 70 (desenvolvendo propostas pioneiras de Duchamp) deram lugar para o trabalho rtesanal e para um prazer de execugéo que reintroduz a tradi¢aéo da pintura na arte. A transvanguarda rejeita a idéia de um processo artistico voltado inteiramente para a abstracao conceitual. Introduz a possibilidade de néo considerar 0 curso linear da arte anterior como obrigatério, optando por atitudes que levam em considerag&o linguagens que tinham sido anteriormente abandonadas. Esta recuperago no significa identificag&o com os estilos do passado, mas a habilidade de selecioné-los, na convicgdo que, em uma sociedade em transig&o em diregdo a um fim indefinivel, a Gnica opgo aberta € aquela oferecida por uma mentalidade némade e transitéria. Assim como 0 positivismo filoséfico (que penetrou e em boa parte determinou o desenvolvimento da civilizag&o ocidental, acelerando mudancas sociais e econémicas em termos de experimentago tecnolégica) recentemente foi colocado em questo, 0 mesmo também ‘ocorreu com sua implicago cultural: a histeria em direc&o ao “tipicamente novo" da vanguarda tradicional, efeito cultural desta filosofia. Isto levou ao colapso 0 otimismo histérico da vanguarda, a idéia de progresso inerente & sua experimentago com novas técnicas e novos materiais a esvaziar. A atengdo dos artistas da transvanguarda esta policentrada e dispersa por uma area ampla. Estes artistas no mais procuram confrontaggo direta. Ao invés disso, eles se engajam em um movimento lateral continuo cujo caminho cruza toda contradigo e todo lugar comum, incluindo o da originalidade técnica e operativa. Em suma, as neo-vanguardas acreditaram no principio da dialética, considerando @ arte como superagao e reconciliagao das contradigSes e das diferengas. A transvanguarda, em contraste, é uma grea indefinida que retine os artistas, no com base em tendéncias e afinidar linguistics, mas em funglo de uma atitude artistica e filoséfica que enfatiza sua propria Centralidade e advoga a recuperaco de uma razo intema nao limitada pelos obstéculos da arte do passado imediato. Esta encontrava o valor da propria atuagao no desenvolver coerente e orguthoso dos precedentes linguisticos e ideologicos das vanguardas historicas. ‘A transvanguarda nfo se vangloria do privilégio de uma linhagem direta, Sua estirpe familiar se estende por precedentes de descendéncia e proveniéncias diversas, englobando no somente tais antecedentes nobres como a vanguarda do inicio do sec. XX, mas também nao t&o ilustres, como o artesanato e artes menores. Os artistas da transvanguarda entenderam que o desenvolvimento cultural tanto pode se expandir para cima como para baixo; que as raizes antropolégicas, mesmo que independentes uma das outras, tendem a afirmar a biologia da arte, a necessidade de uma espécie de criatividade preocupada em tomar a propria experiéncia como a insténcia de sedugo e mutag&o. ‘A segunda metade dos anos 70.e 0 comego dos anos 80 foram profundamente afetados por esta mentalidade. A arte tem se beneficiado de numerosos meios expressivos, especialmente na pintura, com 0s recursos conectados a linguagem de sinais e de cores. Aplicando sua capacidade metaférica e menonimica (sendo esta Litima a habilidade de transferir ‘u alterar o sentido entre as partes e 0 todo) e auxliado por um contexto altamente estratificado (que propicia um clima antropolégico mais abrangente, contribuindo para as firias abstratas da imaginagio e para um maior alcance de implicagSes linguisticas e sociais), a nova imagem encontrou um habitat natural na histéria da arte e dos estilos. ‘A estrutura da nova producto artistica & marcada por uma intertextura de subjetividade nem autobiogréfica nem pessoal, mas que representa a resposta da arte aos Tiolivos Pessoais purificados do uso de uma linquagem consciente e controlada, A linguagem no 6 nunca a medida de uma condigdo totalmente subjetiva: antes, é 0 agente irtnico de uve visto ue contém o prazer-de sua prépria presenga e as razSes para sua propria persisténcia, Persisténcia e emergéncia s8o caracteristicas da nova imagem, entendida como @ lade, por uma lado, de recuperar os processos tradicionais da arte. a felicidade constant firma, por outro lado, efetuar rejeigbes e diferenciacBes entre os feitos anteriores, A arte ragdo redescobre o prazer de uma inaturalidade aberta, que consiste, em parte, na ‘ecuperagao de linguagens, posig6es e metodologias pertencentes ao pasado. A Faléncia do discurso politico e do dogma ideolégico causou a superagso de se entender a arte como uma atitude progressista. Os artistas compreenderam que o$ principios do Pensamento progressista podiam ser reduzidos, numa anélise final, a uma progressao interna, ou evolugéo da linguagem por linhas de fuga, paralelas & fuga ut6pica da ideologia. A arte do assado imediato procura tomar parte na mudanga social pela expansio de novos processos ¢ ovos materiais, afastando-se da pintura e do tempo estatico da obra. A arte atual tende a nao tor llusbes do que ha fora dela e volta-se sobre suas proprias pegadas. Naturalmente, isto no impSe fechamenti pintura pela moldura. A sEnsiblidade do trabalho evoca ecos do exterior no campo da linquagem. Une motivos espaciais € temporais as razbes da arte através de instalagbes de pintura, colagem e desenho. © processo € favorecido pela desintegragdo da idéia unitéria da obra, uma Projegdo das visbes unitérias do mundo. Agora que @ arrogancia morreu, o artista no mate retende pateticamente preservar 0 mito de uma integridade impossivel ticavel Trabalhar em fragmentos significa preferir vibragdes de sensibilidade ao monolitico conteuido ideolégico. Estas vibragies so necessariamente descontinuas. Levam’o arista a uma produgdo feita de numerosos acidentes linguistico, além da coeréncia légica de Poesia. Fragmentos séo sintomas de um @xtase de dissociago. So sinals de um desejo da continua mutago. Esta continua mutagéo toma-se possivel quando 0 artista retoma & centralidade 2 arte. A obra entéo toma-se 0 ponto onde as alteracdes da sensibilidade fluem juntas. Mas este ‘Sensibilidade no exclui a emoeao da mente, nem esboga a tensao da cultura. De fato, a obra une em si a meméria cultural € visual de outras obras no como uma cllagdo, mas Como uma investigagao mével dos médulos linguisticos precedente. Fragmentos indicam a possibilidade de contruir, imagens pedaco por pedaco, fora Ga légica do projeto, mas dentro dos limites de uma concepgao de histéria da arte que € aberta & Qualquer retomada. Da mesma maneira que cairam os imperativos ideolégicos, cairam também os Impedimentos aos modelos linguisticos anteriores. Esta retomada n&o significa identificago mas, Possibilidade de um dueto e um duelo animado também de outras colisées de linquagem. Os fragmentos apresentam a op¢o de injetar na obra saudaveis doses de inconstancia. © artista usa a imagem como a uniéo de diversas correntes, como o agente de yma centena de fatores que guiam o impulso criativo. Este toma-se o novo tema da obra: o artista € um veiculo através do qual transita a sensibilidade que, em seus desiocamentos, conduz @ obra, Esta, em sua ultima persisténcia, 6 0 fruto de um processo de trabalho que redescobre a élica de um tempo de execugo perdido no processo da arte conceitual, A descontinuidade da sensibilidade leva também a produg$o de diferentes imagens unidas por uma prética que nunca se repete, Estas imagens tomam a aparéncia de figuragéo, de sinais abstratos, de opuléncia de material e de cor sem jamais se submeter 2 Padronizagao. A obra sempre responde a exigéncia da ocasio irrepetivel, porque irrepetivel é a relago sempre inconstante do artista com seus préprios melos de expresso, Esta caracteristica também toma a obra alemporal, no sentido de que nunca é Capaz de representar o artista no presente. Se tanto, a faz o sintoma de uma fragmentagao Sensivel do fazer artistico. Descrigo @ decorago séo os emblemas que adomam a obra, lando-se da posigo obrigatéria de uma Gnica fung&o. ‘A descrigio ¢ 0 significado de uma tens&o que tende a se apresentar sob a forma ge uma clareza cordial, para chamar a atengéo extema sobre si. A decorago é a marca de um estilo, que encontra na abstragao e na repetiglio de motivos fantasiosos, a maneira de car um campo de fascinagdo e de indeterminagdo que n&o procura impor seu préprio significado. Em ambos 08 casos, a imagem é liberada de sua conotago tradicional, E ainda o resultado de uma ‘condensago simbélica, 0 significado de uma idéia mascarada sob forma visual que assume. Na Produgo da ultima gerac8o, a imagem nfo condensa em si um significado forte: 6 uma "imagem confusa" que nBo mostra mais de maneira arrogante as sedimentagSes derivadas de uma ondig&io excepcional, mas que revela o aspecto explicativo de uma presenca menor. - Este cardter menor & um trago explicito do trabalho criativo. E 0 frulo de uma mentalidades livre de supersti¢ao. A obra intencionalmente prescinda de cardter, no tem alitudes herGicas @ nem lembra situagdes especiais. Ao invés disso, apresenta pequenos eventos ligados @ sensibilidade individual e circunscritos a peripécias entretecidas com ironia e sutlinditerenga ‘A nova arte, entéo, viola a expectativa derivada de sua fungo usual como veiculo de significado. Adquire o livre arbitrio para ser um capricho, para descrever estados intemnos de ‘Sensibilidade sem implicar uma condic&o psicolégica. Um componente de ‘ironia sustenta sua presenga explicit Explicitamente, pela miniaturizago do evento apresentado, colocando a obra a servico de uma micro-sensibilidade que nada dramatiza, pois necessita de energia histéria para isto. Um saudavel Colapso histérico depurou a linguagem de todo valor ideolégico ou simbélico, em favor de um uso fluido e intercambiével. Implicitamente, o elemento irdnico ¢ dado pelo uso da obra como um lugar de continuas mudangas de significado, uma cadeia intermindvel que segue a jomada da imagem através de peripécias ligeiras e intensas. A ironia surge justamente da invers&o que uma Posigdo tradicionalmente metaférica produz sobre algo que & mais especificamente metonimico e Conseqiientemente livre de capacidade simbélica. A imagem 6 comprometida por uma neutralizagdo de seu significado mais forte, como o pretexto para uma representacdo onde o abstrato @ 0 figurativo so equalizados. Tudo toma-se pretexto signico, numa concepgo que vé constentemente a linguagem sem desniveis, horizontalmente. Privar a linguagem de significado sempre significa algo: neste caso € 0 sintoma de uma mentalidade que no mostra mais preferéncias, mas tende a Considerar a linguagem da pintura inteiramente intercambiavel, libertando-a de qualquer fixacao, em favor de uma pratica que valoriza a inconstén Se cada linguagem tem sua propria exemplaridade intema, um valor conotativo, logo, sua perda produz uma privagdo ideolégica que é tanto resultado como resultante daquela perda, e implicitamente, A obra apresenta um resultado intencionalmente heterogéneo, aberto para a cor, & ‘matéria, ao signo figurativo e ao abstrato. O principio de prazer substitui o principio de realidade, aqui entendido como economia gratificante do trabalho artistic. A obra toma-se uma manifestagao opulenta que nao mais tende a economia, mas ao desperdicio; e que nao reconhece ‘mais uma area reservada para qual se dirigir. A contigiiidade dos diferentes estilos produz uma corrente de imagens, todos {rabalhando na base de mudangas, que so mais fluidas que planejadas e que se movem em Saltos repentinos. Em todo caso, a imagem oscila entre inveng&o e conveng&o. A convengao ¢ 0 momento em que a linguagem € favorecida como estilo, em que 0 artista recupera o sinal mais Que o sentido, ao nivel da superficie. A inveng&o é iniciada pela contigiidade e pelo encontro nao Previsivel das diferencas linguisticas e assonancias, que no causam dissonéncias ou laceracées, @ no determinam campos de perturbag&o visual, mas, estabelecem a possibilidade de um fluxo ‘nao esperado, entrecruzado e animado por uma sensibilidade frivola, ‘A obra é um micro-evento que sempre tem seu inicio no interior de uma imagem, © centro de radiago da sensibilidade. Portanto a invengo néo é explicita, obvia ou mente linguistica. Sua originalidade consiste em trazer & tona as laténcias sentimentais, Culturais e conceituais, condensadas sob estes encontros e contiguidades. Outro nivel de convencionalidade intuitiva é 0 do uso da linguagem visual ligada 40 uso de sinais, desenho, cor e espago pictérico; e da consideracao do espago extemo como uma rea potencial de extensdo, em que os fragmentos da obra so refletidos sem a presenca de Pontos de referénci Mas a obra no & um mosaico de formas; uma imagem sempre permanece como Consequéncia. A forma, por definigo, condensa dentro de si numa unidade inextricdvel a idéia e 0 Signo visual; uma imagem € a metamorfose de um conceito que toma a aparéncia de ‘epresentagdes figurativas, que podem diferir muito uma das outras. A obra desliza em diregdes miitiplas, que se entrecruzaram, liberando energia as vezes contrapostas a outras suscitadas contemporaneamente. Esta situago cria uma alteragao cémica da metéfora, do sentido que se desfigura através da imagem. A alteragSo funciona 140 0 significado, no destoc!?amento de seu emprego pela inércia metonimica. De maneira este processo de abrandamento, as imagens v&o se beneficiar’de uma tenséo inteiramente baseada na vicissitude de prazer, composta de mobilidade e pequenos gestos.feitos com atenc&o. A atengo certamente néo significa prudéncia associada com cuidado ou discernimento; preferiveimente é uma capacidade de perceber as relagbes € as ligagdes entre os diversos aspectos que a obra envolve. De fato, a obra possul uma inconsténcia interior, que surge do uso volivel da linguagem, isto €, dos fragmentos que formam a constelagao orgénica final. Combina quente e frio, concreto abstrato, dia e noite em uma intertextura etema e universal. A obra perde sua compustura tradicional quando liberta de rigidez formal de uma arte como um todo ideal. Agora, em contraste, esté repleta de tensdes de diversas proveniéncias que ndo podem ser explicadas de lidade de sua poética. Se tem um significado, este significado é de uma tengo disseminada, de uma sensibilidade que se abre como um leque para auxiliar e encorajar numerosas desatengdes. © uso da metonimia permite & imagem assumir um significado mével ‘que cresce progressivamente da economia intema da linguagem, através de assonéncias visuais e Passagem de sinais, que tomam a obra um campo que, por definicdo, apoia seu valor sobre as S relagbes moveis. A acentuagdo deste cardter mével toa possivel um significado precério e instavel, construido por uma corrente continua de sinais que no funciona de acordo com uma mecanica rigida e previsivel. Deste modo 0 significado ¢ confundido, atenuado, tomado relativo e relacionado ‘com outras substéncias seménticas que flutuam por trés da recuperagao de inumeros sistemas de . Dai resulta uma espécie de suavidade da obra, que n&o mais fala peremptoriamente, nem baseia sua atragdo na estabilidade ideolégica, mas dissolve em digressGes multidirecionais. As numerosas diregbes séo as da linguagem e seus pontos de recuperacao que, neste estagio, Podem mais ser circunscritos, pois estéo sujeitos a uma procura assidua, a um intenso cortejar sem preferéncias ou prevengSes. A nova arte ocasiona um reservatério sem fim onde abstrato e figurativo, vanguarda e tradig&o coexistem. A arte dos anos 60 produziu através de “apresentagdo" de materiais reais uma imagem de energia e uma referéncia & natureza. A arte dos anos 70 foi a soma da apresentagdo e da representaco,. uma intersecc&o de natureza e cultura. Agora a arte tem finalmente escolhido a rea de representago, abolindo referéncias concretas a0 real, ou substituindo a natureza dos roduzidos na arte, pelo artificio de materiais estritamente pictoricos. A \de fisica da obra e sua orientag&o quanto a materiais mais intimamente ligados & tradiggo artistica vem de uma consideragao histérica que ndo permite ilus6es quanto a expanso além da moldura, além de sua propria condi¢ao especifica ou além da criagdo artistica A forga mitica da arte deliberadamente perde sua tenséo monolitica em favor de uma imagem que € tanto intensa, quanto desconcentrada, desiocando-se entre estilos e linguagens recuperados. A nova arte revive a ambivaléncia do jogo poético como descrito por Heideger: "A poesia parece um jogo e todavia ndo 0 é. O jogo une os homens, mas de tal que cada um esquega de si mesmo". (Poetry appears as play and yet is not play. Play brings men together, but in such a way that each one forgets himself.”) jo Flash Art n° 104 - OuUNov 1981 - In Oliva, Achille Bonito - The Intemational Trans- Avantgarde ‘Traduzido por: Maria Izabel Branco Ribeiro

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