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HISTORIA DA CIDADE DE SAO PAULO A CIDADE COLONIAL Antonio Arnoni Prado Aracy A. Amaral Augustin Werner Bras Ciro Gallotta Carlos A. C. Lemos Elizabeth Hernani Donato Janice Theodoro John M. Monteiro José Geraldo Vinci de Moraes Azevedo Laima Mesgravis Maria Luiza Marcilio Maria Vicentina do Amaral Dick Palmira Petratti-Teixeira Rafael Ruiz Shozo Moroyama Organizagéo Paula Porea 2004 PETROBRAS PAZ ETERRA a John M. Monteiro Dos Campos de Piratininga a0 Morro da Saudade: a presenga indigena na historia de Sao Paulo AXohangaba, Iraquera, Mandaqui, Pirituba, Sapopemba, Tremembé—a sonoridade de uma memeéria tupiestdinscrita em todos os cantos da Cidade de So Paulo, fazendo parte do dia-a-dia dos milhées de habieantes que raramente param para refletir sobre as origens indigenas desta grande metrdpoe. Para muitos, a presensa dos indios evoca um passado nebuloso ou uma reconditafloresta na Amazdnia, Poucos se do conta da existén- cia de comunidades indigenas mesmo hoje no municipio, dando concinuidade a um processojé antigo de movimentos de populagioe de recriasdo de idencidades ameringlas. De modo mais surpreendente ainda, 0 censo de 2000 revelou a cffa algo inacreditével de 62 mil indios no Estado de Séo Paulo, o que tomatia esta unidade federal detentora da segunda maior popullacio indigena do pais, ficando atris apenas do Amazonas. Sabemos que cerca de quatro mil destes individuos que se declararam “indios” no levantamento censitério pertencem a comunidades bem delimitadas, embora algumas destas se afastem de uma concepeio mais tradicional de aldeia indigena, como no caso dos Pankararu que viver na favela Real Park, no bairto do Morumbi. Os demais 58 mil permanecem obje- to de especulagdo entre demégrafos, antropélogos ¢ indigenistas. Seriam cles indios “destribalizados” que se deslocaram para as dreas metropolitanas? Ou seriam descendentes de indios - aids, grande parte da populagdo do pais, segundo o “retrato molecular do Brasil” elaborado por geneticistas ~ afetados por uma febre de “orgulho indigena” na ocasido do Quinto Centenétio do descobrimento do Brasil? Seja como for, os indios hoje respondem por uma parte dscretissima da populagio metropolitana, pelo menos em termos estatisticos. E muito maior a sua participacao na for- tagio histérica de Sao Paulo e, paraelo a0 crescimento da visibilidade da populagao de origem indigena em anos recentes, esta participacio no passado tende a aumentar também, A medida que se tome objeto digno da atengio dos hi estiveram propriamente autentesna historiografia paulisa, ¢forgoso dizer. Muito pelo con- titi, j no final do século xvi, as origens indigenas faziam parte das preocupagdes do genealogista Pedro Taques de Almeida Paes Leme e do Frei-memorialista Gaspar da Madre de Deus, que buscavam identificar a singularidade dos paulistas. Na época da Inde- pendencia, pensadores como José Arouche de Toledo Rendon e José Bonificio de Andra dae Silva contemplaram o passado indigena regional em suas respectivas propostas para tama nova politica indigenista. Mais adiante, no ocaso do Império e na ascensio da iadores. Mas os indios nunca NOGUEIRA, Pablo. "A multplcagéo dos indios" (Entrevsea com Marta Azevedo), Galion, 9? 131, julho de 2002; Sérgio Danilo Pena eral “Retearo molecular do Brasil’, Cénie Hoje, 159, abril de 2000, Replica federalisa, as origens indigenas de Sao Paulo estiveram no cemne de um acirra- do debate em toro dos Guaiand, com fortes implicagdes regionalistas. Os antepassados tupis ganharam novas proporsées ~ quase gigantescas ~ nas formulagbes ufanistas de Alfredo Ellis Jr. ¢ Plinio Airosa, ao serem reinventados no contexto da Revolugao Consti- tucionalista de 1932, Nas décadas de 1940, 1950 e 1960, Florestan Fernandes esbogou as linhas gerais do povoamento do Planalto no século xv, seguindo as pistas que surgiram em seus densos estudos sobre a sociedade tupinambd. E neste mesmo perfodo, as intensas ero- cas culturais entre europeus ¢ indigenas em Sio Paulo foram objetos de algumas das mais belas piginas da histéria do Brasil, nas obras de Sérgio Buarque de Holanda” Contudo, em vez de facilitarem a abordagem da histéria das populagies ind{genas, estes precursotes no mais das vezes atrapalham. A comecar pela identificagao étnica dos “primitivos habitantes” ¢ passando pela idéia de que os antigos paulistas comavam cativos nos sertoes, basicamente para vendé-los aos senhores de engenho do litoral, per- siste ainda hoje uma longa seqiiéncia de distorcbes ¢ omissdes que, de tantas vezes repetidas, se tornaram lugar-comum. A maioria dos relatos hist6ricos localiza a con- tribuigao indigena no papel exercido pelo bom e valoroso “maioral” ou “cacique” Tibi- rigd e no “sangue tupi” que, através da mestigagem, deu origem a algumas das familias mais tradicionais do pais, Cumprida a fungio na grande narrativa da histéria paulistana, estes primeiros indios ~ que ainda retém nomes individuais, como Caiubi, Piquerobi e Bartira —cederam o lugar para os herdicos bandeirantes que palmilharam vastos sertbes ce alargaram as fronteiras de um pafs que eles sequer conheciam, Poucos estudiosos ~ com destaque para Sérgio Buarque de Holanda ~ reconheceram a importancia histéri- ca de uma maioria indigena cuja presenga se estendeu muito além dos anos iniciais da colonizagdo européia, imprimindo fortes caracteristicas na formagio econdmica, social ¢ cultural de Sio Paulo. E neste sentido que a histéria dos indios de So Paulo apresenta um duplo desafio: primeiro, 0 de desmistificar muito do que se escreveu sobre as origens de Sao Paulo ¢ sobre a subseqiiente histéria dos “bandeirantes”; segundo, o de construir uma histéria alternativa na qual a experigncia e o papel ativo dos indios possam ter algum destaque, a partir de um registro documental bastante escasso e descontinuo. Respondendo sobre- tudo ao segundo desafio, o texto que se segue busca contribuir com elementos para se repensat o lugar ~ ¢ os lugares ~ dos indios na histéria da Cidade. 1. Raizes tupis (e tapuias) [A presenca indigena na regio de S40 Paulo remonta a uma época bastante remota, impossivel de situar em razo da auséncia de pesquisas arqueolégicas aprofundadas. As primeiras informagées mais consistentes vém dos primeiros europeus que interagiram com as populagées do Planalto, porém, mesmo estes relatos suscitam mais ciividas do {que certezas. Ainda assim, podemos destacar dois aspectos fundamentais que oferecem ara uma sintese desta hiscoriograi, ver BLAJ, Ilana, A rama das tenses: o proceso de mercanilicaao de Sto Paulo colonial (1681-1721), Sto Paulo: Humanitas, 2002. cap. 1 algumas pistas importantes sobre o processo de ocupacao da regido no perfodo anterior a chegada dos europeus. Primeiro, os relatos demonstram que o principal grupo que ocupava as terras em torno do rio Tieté falava “a lingua mais usada na costa do Brasil”, isto é um dialeto da familia lingtifstica tupi-guarani. Em segundo lugat, os mesmos relatos apontam para uma presensa de grupos diferenciados, seja pelas linguas distintas que falavam, seja pela diferenciagio émnica dentro de uma mesma filiagao lingiifstica. Esses dois aspectos nao apenas sinalizam processos pré-coloniais significativos, tais como a expansio de populagées tupis nos séculos anteriores ao xvi, como também fornecem elementos importantes para a compreensio dos eventos que se desencadea- ram apés a chegada dos adventicios europeus. Convenciona-se hoje identificar como Tupiniquim as populagées indigenas mais expressivas no Planalto & época do primeiro encontro. No entanto, esse nome étnico diz mais sobre o processo colonial do que sobre a dinimica sociopolitica vigente anterior 20 contato, pois surgiti no bojo dos conflitos entre europeus ¢ indigenas. Os europeus adotaram, desde cedo, a pritica de rotular os grupos indigenas como se constituissem uunidades fixas, imutéveis desde sempre. Nas guerras envolvendo portugueses, franceses ¢ vitios grupos tupis do litoral, o quadro de aliangas impunha uma separacdo mais nfti- da de grupos que, nas palavras de Gabriel Soares de Sousa, nao havia “entre cles na lin- gua ¢ costumes mais diferenga da que tém os moradores de Lisboa dos da Beira". ‘Tupinambs, Tobajara, Tamoio, Tememin6, Tupiniquim: as distingdes tornaram-se cada vex mais estabelecidas apés a chegada dos europeus, porém acabaram sendo projetadas pelos escritores coloniais ¢ pelos historiadores modernos como marcadores de rivali- dades seculares, de édios imemoriais. De acordo com Benedito Prézia, os grupos locais de Piratininga no se chamavam Tupiniquim entre si, mas assim eram chamados por curopeus que adotavam a nomenclatura que os inimigos e vizinhos usavam para iden- tificar outros indios. Hans Staden, por exemplo, um dos primeiros europeus a disse- minar este etnénimo, chamava de Tupiniquim os aliados dos portugueses a partir da perspectiva dos inimigos Tupinamba, que o mantinham cativo'. A excmplo de outros povos tupis na mesma época, o grupo local e sua aldeia cons- tituiam a unidade social mais significativa do panorama social indigena as vésperas da fundacio de So Paulo’. As informages na documentagio do século xv1 séo ambiguas quanto ao ntimero de assentamentos indigenas que estavam em contato com os bran- os ¢ francamente imprecisas quanto & populagio deles. Segundo Anchieta, escrevendo trinta anos apés 0 estabelecimento da primeira igrejinha dos jesuitas, teriam existido doze aldeias de indios, “néo muito grandes’, nas proximidades de Piratininga na déca- " SOUSA, Gabriel Soares de. Tiatado deri do Bru em 1587.4 ed, do Paulo: Cia. Edtora Nacional, 1971p. 88 “PREZIA, Benedito. Ox ndigenas do Planalio mas ernica quinhentitasewecentiat So Paulo: Humanitas, 2000. p. 162; MONTEIRO, Joha. "Entreo etnocidio ea ernognese:idenidadesindigenas colonais".[n: MONTEIRO, J., FAUSTO, C. (org). Tmpos fai hitviase narrtivas do Nove Mund, Lisboa: Asst & Alvien (No pelo}. *Sobse os povos tupis na época da conguista ver sobrewdo FERNANDES, Florestan. Onganizagdo social das ‘pinambi. Sto aslo: Progreso, 1948; FAUSTO, Carlos. “Peagmeacos de histiae cutuea tupinamba” ln CUNHA, Manuela Carneiro da (org). Hinéria des indios no Bras. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 381-96; CASTRO, Ecluardo Vieiros de. A inconstincia de alma selsgem e ona: nsaos de antropologa, Sto Paso CCosac & Naif, 2002; ¢ POMPA, Cristina, Religido como rmduio: misiondris, pie tapuia no Brail colonial Bausu: Edusc/Anpocs, 2003 Aldea Tupinambs, om gravure que acompanha a primeira tediggo do rolato de Han do alomda rexando por Tone nonsen 25 da de 1550, Os nomes dessas aldeias ou de seus chefes se perderam, salvo alguns. O mais conhecido € Tibirigd, “principal” da aldeia Inhapuambugu, a qual foi deslocada para um sitio proximo ao colégio apds 0 25 de janeiro de 1554. Uma segunda aldeia, chefiada por Piquerobi, irmao de Tibiigi ficou conhecida pelo nome de Ururai e for- maria a base para a aldeia colonial de Sio Miguel. Outro irmio, Caiubi, ficou na histéria paulista como o “senhor de Jeribatiba’, cuja aldeia teria formado a base para 0 fruro bairro de Santo Amaro. Em outros escritos, os jesuitas ainda mencionam um “grande principal de Piratininga” chamado Tamandiba, além das aldeias denominadas Mairanhaia e Ibirapuera, sendo esta tiltima as vezes confundida com Jeribatiba’. Por mais incompletas que sejam, essas informagGes sugerem a existéncia de uma rede de aldeias ligadas entre si por relacdes de parentesco e por aliangas guerreiras. A rede nao constitufa uma unidade politica ou territorial continua mas, antes, uma com- posisio sujeita a freqiientes c, do ponto de vista europeu, inesperadas mudangas. O jesuta Luis da Gra, a0 descrever o processo de fragmentacao ¢ recomposigio de aldeias, comentou: “O que é pior, nao vao juntos”, ou seja, a dissolugao de uma aldeia signifi- cava a diviséo entre facgées. Como veremos adiante, 0 epis6dio do assalto indigena & Vila de Sao Paulo, em 1562, ofereceu um penoso exemplo daquilo que Carlos Fausto cchamou de “labilidade das fronteiras da amizade e da inimizade™ Os primeiros relatos também nos fornecem importantes informagées a respeito da organizagao social ¢ do universo simbélico dos povos tupis’. A mitologia herdica, 0 parentesco, o profetismo, os rituais, a vinganga ¢ a antropofagia constituem aspectos centrais do mundo tupi, os quais passaram a ter um impacto significativo sobre a cons- tituigdo de uma sociedade colonial. Nao cabe aqui entrar em grandes detalhes, porém é necessério chamat a atencao para certas dimensdes que permitem explicar algumas das respostas ¢ estratégias empreendidas pelos indios ante a situagio historicamente nova que a presenga européia instaurava, A documentagio, sobretudo as cartas ¢ relatos dos jesuitas, dé um destaque para os chefes e xamis, liderangas que atuavam, respectiva- ‘mente, nos planos culadas, sobretudo no que dizia respeito ao complexo da guerra e vinganga, a chefia ¢ 0 xamanismo passaram a enfrentar grandes desafios com a presenga dos brancos, levando um possivel conflito interno. Os chefes consticuiam pegas importantes nas aliancas curo-indigenas ¢ conseguiram, cm muitos casos, acomodar as tradicionais atividades guerteiras a este novo contexto. Mas os xamis, apesar de respeitados por virios dos europeus ¢ mestigos que se adaptavam aos “modos gentilicos”, passaram a ser estigma- tizados ¢ perseguidos como “feiticeiros”, sobretudo depois da chegada dos jesuitas. Os chefes ~ pelo menos alguns deles ~ abracaram as mudangas ¢ participaram de alguns de ico c metafisico do universo tupi. Fungdes complementares ¢ arti- ANCHIETA, José de, S, J. "Breve informagio da Brasil [1584)", In: ANCHIETA, Texto icericos VIOTTI, H. A. (org). S.J. Sto Paulo: Edighes Loyola, 1989, p. S34 Ver, entre outos, ANCHIETA. "laformagio dos casamentos dos indios. In: Texas istics p. 77: VASCONCE- LOS, Sima de, SJ. Vida do eenervel Padre Jos de Anita (1658. Porto: Lello & Imios, 1953 “ FAUSTO, C. Op. cit, p. 384. (Os extudos mais dealhados destas fonts sio de Horestan Fernandes, Ver, sobretde, Ongaicasao social dev tpi hambds “Um balang ceca da conteibuigio etnogifica dos conistas, Ins FERNANDES, F, Iveta cai ga wo Brae otroensaoe, Peabo: ores, 1975 26‘ sCAUS EPIRATININGA AO MOO DASAUDNDE seus beneficios, ao passo que os xamis organizavam a tiltima linha de defesa contra a invasio européia. Os Tupi do Planalto também mantinham relagBes — ora amistosas, ora hostis— com diversos outros grupos indigenas que, embora descritos com menos minticia nos primeiros relatos, passariam a desempenhar um papel significativo na histéria de Si0 Paulo. Dentre os povos de lingua tupi-guarani, os Tupi do litoral, que no calor dos con- fligos estimulados pela busca de escravos e pela presenga francesa se auto-denominaram Tamoio, faziam freqiientes incursées Serra Acima ¢ também apareciam entre 0s cativos comados pelos Tupi seus aliados portugueses. Duramente perseguidos ¢ castigados antes, durante e depois da conquista do Rio de Janciro pelos portugueses ¢ seus aliados cememinés ¢ tupiniquins, os Tamoio deixaram de existir enquanto povo no inicio do século xvit, embora alguns escravos tamoios ainda tenham sido arrolados em inven- cérios paulistas até 1620. Tupinambs, Tobajara, Tupind (ou Tupinaé) e Tememind cons- tituiram outras denominagées étnicas presentes na documentagao, porém se referem a grupos tupis que nio habitavam as imediagées de Sao Paulo, sendo objeto de contatos em expedigécs para regises mais distantes cm todas as diregdes. Havia, no entanto, outro grupo de lingua tupi-guarani que figurava com destaque na época dos primeiros contatos curo-indigenas e que passaria a ocupar um espao maior ainda na historia de Sio Paulo colonial, a partir do final do século xv1. Deno- minados Carijé, tratava-se de grupos Guarani que ocupavam faixas de um extenso territdrio para o sul ¢ sudoeste de principal motivo para a ocupagio do Planalto pelos jesuttas tenha sido a expectativa quanto 2 conversio dos Carijé". O miimero expressivo de jesuftas que se concentraram na Capi Nobrega, “é por aqui a porta e 0 caminho mais certo e seguro para entrar nas geragbes do sertio, de que temos boas informagées”. Mas, se os jesuitas estavam interessados em alcangar os Carijé do vasto interior, Anchieta sugeria que o reciproco também era ver- dade. Ainda em 1554, deu noticia de que um principal carijé, jA cristdo e “que ne- nhuma coisa tem de indio”, veio a Piratininga “com muitos criados seus, e nao veio seno a buscar-nos para que vamos a suas terras a ensind-los””. Inimigos dos ‘Tupi, os Carijé apareciam no Planalto nao apenas como migrantes, mas antes como guerreiros ec cativos. Ademais, por quase cem anos apés a fundagio do Colégio, os colonos tam- bém disputavam estes mesmos Carijé como base preferencial para seu sistema de trabalho, o que produziu um fluxo crescente de migrantes voluntatios ¢ involuntérios para o Planalto, substituindo a populacio tupi que desaparecia. Finalmente, os grupos das imediagées de Sio Paulo que falavam outras linguas também desafiam a classificagdo étnica, sobretudo porque ficaram conhecidos nos re- gistros coloniais a partir de nomes em lingua tupi. Em 1585, o jesufta perito em linguas indigenas, Manuel Viegas, arrolou quatro grupos distintos que tiveram um contaco significative com os Tupi e, portanto, com os portugueses do Planalto, “[T}oda esta Paulo. De acordo com Mario Neme, talvez 0 rania de Sao Vicente a partir de 1553 visava justamente esta nova seara: para NEME, Méci, Nota de revit da hidria de So Paulo, Soo Palo: Anbambi, 1959, p. 157-93 NOBREGA, Manuel da."S.J.aD. Jodo ut, outubro de 1553". In: LEITE, Serafim. SJ. (rg). Monumenta Bras lige. Roma: ts, 1956, 5 v2, p. 15; "Anchiera a Indcio de Loyola, 15.8.1954"- In: ANCHIIET, José de. S.J} Cartas cornspondénciaatvaepasiva. VIOVTI, HA. (org). Sio Paulo: Edigbes Loyola, 1984, p. 60. gente tem uma lingua, de que eu jé sei muito”, informava o Padre Viegas, ao se referir aos Guaiand, Catajé Ibirabaquiyara e Maromomi, Seriam todos povos de lingua jé, pelo que suigerem os vocabulos que ele eproduziu numa carta, do vocabulétio bilingtie maromomi- portugués, que infelizmente se perdeu”. Os Maromomi (também conhecidos como Guarulhos) figuravam de modo constante ao longo do periodo colonial, inicialmente ‘como os integrantes da aldeia missionaria de Conceigdo dos Guarulhos e, posteriormente, como integrantes da forca de trabalho dos colonos. Os Guaiané foram objetos de algumas desctig6es mais detidas, embora imprecisas ¢ fandamentadas num contraste com os Tupi, nos relatos quinhentistas, Suas relagdes estrcitas com os Tupi, ora como cativos, ora como aliados, levaram a confusio etnogrifica que aparece jd nos relatos do final do periodo colo- nial”. © contraste com 0 mundo tupi, no entanto, ¢ inconfundivel, como no relato de Gabriel Soares de Sousa: “Nao vive este gentio em aldeias com casas arrumadas, como os tamoios seus vizinhos, mas em covas pelo campo, debaixo do chao, onde tém fogo de noite e de dia efazem suas camas de rama e peles de alimarias que matam”™. A referéncia do Padre Viegas aos Carajé ¢ um pouco obscura, porém sabemos que 605 Ibirabaquiyara (também conhecidos por Ibirajarae Bilreiros)ficaram conhecidos por outra denominagio tupi: Caiapé. Povos de nome incerto, passariam a escrever, junto com os Tupi ¢ Carij6, as paginas iniciais da histéria de Sao Paulo. GUAIANA, TUPI OU TAPUIA? Em 1888, o jurista Joao Mendes de Almeida (1856-1923) provocou um certo mal-estar na Sociedade dos Homens de Letras de Sio Paulo 20 afirmar que os “dominadores” de Piratininga nao foram os Guaiang, Baseando esta afirmasio num manuscrto atribuido a Anchieta, 2 meméria lida por Joao Mendes dew inicio, inocensement, a uma grande polémica sobre as origens de So Paulo. Naquele ‘momento, acteditava-se piamente que os “antigos povoadores” do Planalto eram os “Guaianases’, que “Tibirigd era o maioral delesc, portanto, que as principais familias paulistanas descendiam direramente desces indios. A histéria se complicou mais ainda quando Capistrano de Abreu e Teodoro Sampaio, autores de respeito, postularam que os Guaiand seriam os ancestrais dos modernos Kaingang, Nao car dow o consra-ataque de alguns intelectuais paulistas, como J.C. Gomes Ribeito e Afonso A. de Freitas, apegados Aqui que Sérgio Buarque de Holanda chamou de "radigio insistente, mas sem apoio, orn: dda 6 de fins do setecentos", que confundia os Guaiand com 0s “Tupiniquim do Campo de Pirat- ings’. Freitas ~ jornalista, esrior ¢ conhecido “escafandrista do passado”— dedicou um livrointeio 40 assunto, buscando refurar a nogio “de serem os amorsvcs ¢ hospitaleiros Guaiands tapuias € nfo tupis’. Uma parte do debate residia no esforgo de desmentir a possivel associasao entre os modernos paulistas os Kaingang dos series, estes objero de uma p ia de exterminio promovida por aqueles. Mas o problema de fundo dia respeito& defesa das nobres tadigSes regionals face 3s criticas oriundas dde outros estados, Na estera da Revolugéo de 1932, entio jovem tupindlogo ¢ex-combatente Plinio "Citado em PREZIA, B. Op. cits p. 63-4 ' Sobre esta controvésia, ver MONTEIRO John, "Taps, rpuias hist de Sao Paul. Revsicando a velha ques to gusians”, Sao Paulo, Novos Exdos Cebrap, v.34, p. 125-35, 1992. Para um estudo mats detalhado do relatos antigo, ver PREZIA, B. Op cit “SOUSA, G.S. Op. it, p. 115. Ai d rosa, numa conferncia epleta de cas imagens natvsas fulminou conta “douttna fla" do | ‘maranhense Joo Mendes por “ara face dos pauls pecha de descendente de puis”, Também rio poupou o cearense Capistrano ¢ 0 baisno Teodoro Sampaio, “filhos das estados brasleieos que foram, sabidaments, cntros notivcs de tribos tapuias”. O debate foi perdendo o imo, porém ainda hoje muitos desavisados seguem a equivocada "cradisio insistene” 2, Murubixabas e caraibas na conquista de Piratininga (Os povos indigenas da regido tomaram conhecimento dos europeus bem antes da fun- dagio de So Paulo. As embarcasées francesas, espanholas portuguesas que navegavam pela costa nas décadas que sucederam a viagem da armada de Cabral ocasionaram trocas esparsas ¢ descontinuas, a partir das quais os indigenas conheceram, pouco a pouco, © «stranho e variado universo dos brancos. No mais das vezes, os enconttos foram répidos e inconseqtientes. No entanto, por meio das informagbes dos amerindios que foram levados 4 Europa e, sobretudo, a partir dos ndufragos, renegados e degredados brancos que foram despejados na costa antes das primeiras tentativas de colonizagio efetiva, os povos indige- nas comegaram a integrar esta parte desconhecida da humanidade a seu repertério cultu- ral simbslico, Para tanto, do mesmo modo que os europeus langavam mio de categorias estranhas 20 mundo eupi para enquadrar préticas saci ~ &0 caso da feitigaria e dos feiti- ceiros, por exemplo ~, 0s indios também buscavam termos familiares para descrever os ceuropeus. E bastante conhecido, gracas & literatura indianista, o par de nomes “pers” ¢ “mait” para designar portugueses¢ franceses respectivamente, Mas a palavra que mais vin- gou para designar os europeus foi caratba, referéncia aos grandes pajés que, a exemplo dos demiurgos da mitologia herdica tupi-guarani, possuiam dons excepcionais. Com suas armas de fogo, conhecimentos exéticos ¢, sobretudo, doengas letais, os europeus certax mente suscitaram a comparacio nos anos iniciais do contato'’. Porém, com o passar do tempo, o termo caraiba foi perdendo suas conotagies migico-religiosas e vulgarizou-se para simplesmente designar a categoria genética de brancos, mesmo entre povos nao-tupis. Um desses caraibas foi Jodo Ramalho, portugués que ficou no litoral brasileiro provavelmente por volta de 1512. Enere o naufrigio ¢ a chegada de Martim Afonso de Sousa em 1532, pouco sabemos da vida desta figura singular. Certa aleura, ele foi acolhido por Tibirigé, tornando-se genro deste chefe cupi gracas 4 unio com Mbicy ou Bartira (Potira). J em 1532, quando serviu de intérprete para a comitiva de indios que se encontrou com os fundadores da Vila de Sao Vicente, detinha um certo prestigio entre seus parentes tupis, Passados mais vinte anos, era capaz de “reunir cinco mil indios em um s6 dia”, de acordo com o aleméo Ulrich Schmidl, de passagem pelo Planalto em 1553. Na mesma época, a primeira impressio do Padre Nobrega descrevia Ramalho como um verdadeiro selvagem: “Toda sua vida e de seus filhos segue a dos indios... SFAUSTO, C. Op. cits p. 386, yousnenoxteins 29 “Tém muitas mulheres elee seus filhos, andam com irmas e rém filhos delas tanto o pai quanto 05 filhos. Seus filhos vao & guerra com os indios, ¢ suas festas sio de indios € assim vivem andando nus como os mesmos indios”". JOAO RAMALHO E BARTIRA ‘Muito se cem escrito sobre o portugués Joao Ramalho (.1490-1580), porém, os detalhes a respeito de sua biografiacontinuam um tanto obscuros. Sabemos, com certeza, que ele se estabeleceu no Planalto ances da chegada da expedigio de Martim Afonso de Sousa em 1532, Mas quando? E-como? Segundo reeréncias 20 testamento de Ramalho, supostamente lavrado em Sao Paulo atrés de maio de 1580, nasceu em Vourela, Comarca de Viseu,filho de Jodo Velho Maldonado e Catarina Afon- 0, Nao se specifica a dara, mas, pela declracio feta em 1564, quando recusou o cargo de vereador “por passar dos setenta anos’ alguns bidgrafos estabelecerem 1493 como a data provavel de seu nascimento, Na época em que veio ao Brasil, uns sewenca anos antes do testamento (e no noventa, ‘como afirmou Frei Gaspar), estavacasado “com uma mosa que se chamava Catarina Fetnandes das ‘Vacas”e acreditava que ela estivesse grivida quando partiu, Nao se sabe ao certo se veio parar no lioral sul-americano como néufrago ou como degredado, porém parece provavel que cenha sido deixado por uma das viiasexpedigées portuguesa ou catelhanas que fariam 0 reconhecimento da costa entre 1510 ¢ 1515, No Brasil juntou-se com a india Isabel (“que cle chama de crada”,segun- doa eransrigdo do testament), filha do chefe Tt “Teve, com Isabel, cinco filo ees filhas. Em 1532, quando jd vivia “15 ou 20 anos” entre os indi, servu de “lingua da terra” nas telages entre Martim Afonso de Sousa eos indios, desempenhando, 4, vivendo com ela “quarenta ¢ tantos anos". «partir de entio, um papel central na consoldagao da presenga européia na Capirania, O que dizer, entio, sobre Isabel Dias, ambém conhecida como Mbicy ou ainda Bartira (corruptela de poryra, flor)? Para a escritora Adalzira Bieencourt, “éa mulher que deve descerrar as cortinas do pértico da Histria da Mulher Paulista, pois que seu sangue vem passando de geracio em geracio pelas vas da gente da nossa terra, formando os bandeirantes que alargaram as fonteitas da Patria, sangue que até hoje ircula nas weias dos estadistas, dos agicultores, dos indus dos operirios, eda juventude gloriosa de Sio Paulo! Bartra-Flor, seu nome ficard nas piginas da Histéra, como ji est gravado no sangue herdico dos bandeirantes de todas as eras’. Para Ramalho, no entanto, mio era snem Eva nem Julieta. Foi sua “tiada", 0 que nos diz muito sobre as rlagdes que deram inicio & historia de Sio Paulo. is, dos poet Chefe influente ¢ guerreiro respeitado, Ramalho portava-se como tupi até certo ponto, Com a fundagio de So Vicente eo estabelecimento dos primeiros engenhos de agticar no litoral, Ramalho passou a desempenbar a fungio de intermeditio, atendendo a0s interesses no apenas de seus parentes indigenas como também dos europeus que passavam a demandar ntimeros cada vez. maiores de cativos para a nascente economia colonial, Nos anos finais da década de 1540, ja existiam seis engenhos e mais de trés mil “SCHMIDL, Uvich, Rela de la conguista del Rio dela Plate y Paraguay. Tad. K. Wagner. Madri Alianza, 1986, . 106; "Nobrega a Lus Gonsalves da Cimara,15.6.1953". Monument Brailiaev.1, p. 498. 30 DOs eAMFEs PRAIA NO MORRO DA SAUDADE escravos indios no litoral vicentino, conforme o relato de um negociante portugues! tomada desses cativos nos chamados “saltos” alimentava a transformagao da guerra in gena, sobretudo a partir da rcorganizagio das aliangas que resultou na consolidagao dos ‘Tamoio, uma nova forga de oposicao & presenga portuguesa nessa regio. Num primeiro momento, esse novo quadro de guerra e aliangas fortaleceu a relacdo entre os portu- queses e os Tupi que eram parentes de Ramalho, porém, esse sistema de aliangas iria se mostrar precitio com o desenrolar dos contflitos. Fsse papel exercido por Joao Ramalho, de mediador entre interesses tao diferentes, foi posto & prova na década de 1550, sobretudo apés a o estabelecimento da Vila de Santo ‘André da Borda do Campo, em 1553, ¢a fundagio do Colegio dos Jesuitas no dia de Sao Paulo, em 1554. Emendando a sua opinio inicial, que inclufa acusagdes de incesto, Nébrega passou a ver Ramalho e seus filhos mamelucos como figuras indispensiveis: 0 mais velho, André, conferia “mais auroridade a0 nosso ministério, porque [Joao Rama- Iho] é muito conhecido e venerado entre os gentios, e tem filhas casadas com os princi- pais homens desta Capitania, e todos estes filhos ¢ filhas sio de uma india filha dos maiores e mais principais desta terra". A partir de sua relagio com Tibirig4 e com outras Tiderangas indigenas do Planalto, Ramalho facilitou a criagio dos dois novos assentamen- tos, a Vila luso-tupi de Santo André ¢ a misao luso-tupi de Sao Paulo de Piratininga. Pata os indios, esses dois eventos sinalizaram 0 processo de ocupagdo permanente do Planalto pelos portugueses. Por si s6, os ntimeros exiguos de missiondrios e de colonos nao representavam uma ameaca 8 continuidade dos indios, porém, seus respec- tivos projetos — 0 de conversio eo de exploragio do trabalho ~ visavam a subjugagao ¢ transformacio das sociedades indigenas. Ja conheciam bem as atividades portuguesas no litoral, mesmo porque participavam do circuito de fornecimento de cativos. Ainda assim, os chefes aliados continuavam interessados em manter a alianga, comando um rntimero cada ver maior de portugueses como genros. Do mesmo modo, demonscraram uum fascinio pelos abarés, estranhos homens de preto que pareciam possuir os atributos dos grandes caraibas. Itinerantes, senhores da fala, performaticos, castos, abstémios € dados a rituais claborados, os jesuitas se destacavam imediatamente dos outros brancos. ‘A despeito das préticas inusitadas que introduziam, os jesuftas pareciam entender os Indios e, desde o inicio, conviviam os modos antigos com os novos. Uma vez fundada a casa de Piratininga, o Padre Nébrega mandou buscar os meninos indios que estavam, no litoral ¢ “sabiam jé ler, escrever, ¢ cantar muitos deles’. Segundo o cronista jesuitico de Vasconcelos, “juntavam-se & noite a cantar pelas casas cantigas de Deus em propria lingua, contrapostas as que cles costumavam cantar vas, ¢ gentilicas”™ Mas a aparente harmonia dos tempos iniciais logo cedeu lugar para conflitos de espécies, Os proprios jesuitas atribuiam os problemas 3 obra do deménio: nas wras de Vasconcelos, “em todos os bons prinetpios costuma Satands entrepor seus ps "Lule de Géis aD. Jodo a, 125.1548", ARQUIVO DO ESTADO DE SAO PAULO. DacumentosInteresiantes pans a Hira e Corumes de Sao Paulo. 48, p. 9-12 “Nabrega a Luls Gongalves da Cimara,31.8,1555", Monumenta Bruilae, v. 1, p. 524, NEME, M. Notas de Revieio da Hisria de Sdo Paulo, 193-208, “VASCONCELOS, Simo de. 5... Crénice ds Companhia deforms [1663] 3 ed, Pesipolis: Vores, 1977.2 ¢ % p.257. cembustes na matéria da salvagao das almas”. O primeiro e mais grave problema residia nas doengas que, em surtos repetidos de variola, sarampo c tantas outras moléstias, assolavam as populagdes em contato mais direto com os europeus. Espalhava-se a noticia, alids nao intciramente sem fundamento, de que “os padres Ihes causavam a morte, que no morriam assim em seus sertoes™, Nesse sentido, além da mortalidade, as doengas semeavam a discérdia, colocando a autoridade dos jesuitas em confronto com o papel dos curadores indigenas, numa espécie de “guerra entre xamis”. No plano politico, o precétio sistema de aliangas comegou a se dissolver na turbu- lenta década de 1550. Os entreveros entre colonos interessados na exploragio do traba- tho escravo e os missionérios interessados na salvagio das almas manifestaram-se jé nesta Epoca, inaugurando uma longa seqiiéncia de disputas, “Arvore ruim, frutos piores”, segundo os jesuitas, Joio Ramalho e seus filhos mamelucos representavam, na verdade, a taiz de um dos lados do conffito que iria durar mais de um século. De fato, a capaci- dade dos padres em persuadir os ind trava a sua contrapartida na capacidade dos mamelucos em persuadir os indios a se fixarem junto as propriedades dos colonos. Segundo Vasconcelos, a0 abordarem os indios no sertio, os primeiros mamelucos “persuadem com a destreza de sua lingua aquele rebanho ignorante, que larguem os padres homens estrangeiros, e degradados para «estas partes por gente vadia: e que maior honta thes seria sujeitar-se a homens destros em arco e frecha como eles, que a uns estranhos covardes”'. Mais tarde, jé no século xv1t, os mamelucos apelariam para outro expediente, segundo acusagées dos jesuitas, chegando a0 ponto de se vestirem de batinas pretas para ludibriar os pobres indios. Mas os indios nao eram tio ingénuos, nem eram os mamelucos tao espertos. Con- forme reconhecia 0 proprio Padre Vasconcelos, a0 perceber a centralidade da guerra na sociedade tpi, © que estava em jogo eram as aliangas que os indios buscavam em condigdes que se deterioravam cada ver mais para eles, 4 medida que a presenga curopéia se aprofundava. As liderangas indigenas apresentavam estratégias das mais diversas para enfrentar essa nova situagio, ora buscando os padres para evitarem 0 cativeiro, ora buscando os colonos para poderem continuar as suas atividades guerreiras, ora se posicionando de maneira independente contra todos os europeus. Tudo indica que guerra indigena passava por mudangas significativas neste novo contexto, Embora as narrativas descrevam as chuvas de flechas ¢ a tomada de cativos para os festins cani- bais, também fzzem mencio a apropriacdo de armas européias pelos indios ¢ do seqiies- ‘ro das mulheres indigenas que viviam entre os brancos. Do ponto de vista dos curopeus, a desordem que se instaurara no decorrer da déca- da de 1550 foi parcialmente corrigida em 1560, quando se juntaram os dois pequenos ricleos europeus, extinguindo-se Santo André da Borda do Campo ¢ elevando Si0 Paulo a Vila. Para a populagio indigena, no entanto, foi muito mais significativa uma outta inovacio introduzida pelo governador-geral Mem de S4, que esteve em Sio Paulo em 1560, reproduzindo a iniciativa implantada nas imediagdes de Salvador a partir de 1557: as aldcias d'EL-Rei. Ao aldear os indios “amigos” em unidades fixas, buscava-se no apenas redesenhar as relagdes territoriais no Planalto, como também criar uma a “descerem” do servo para as miss6es, encon- Diem, 1p. 287-8, * Wider,» 1, p. 258 fonte de mao-de-obta “livre”, ¢, sobretudo, colocar uma reserva de stiditos & disposigéo da Coroa para defender o tertitério contra os evencuais assaltos de inimigos indige: franceses e castelhanos, Coube aos jesuitas do Colégio a administragio dessas aldeias, spiritual quanto no “temporal”, 0 que inclufa o controle sobre a repar- tigao dos trabalhadores entre os colonos. Conforme veremos adiante, o estabelecimen- 10 € 0 desenvolvimento dessas comunidades estiveram na raiz de uma série de conffitos envolvendo liderancas indigenas, jesuitas, colonos e a propria Coroa. Nasceram com a Vila de So Paulo duas aldeias neste novo formato: Sa0 Miguel Pinhciros. Esse processo de deslocamento das populagées nativas nos anos iniciais da ocupagio tanto no aml portuguesa do Planalto surge com clareza no texto da sesmaria outorgada a Antonio Ro- drigues de Almeida, em 1560. O “pedago de terra” nesta doagdo partia de um lugar préxi- ‘mo ao “mosteiro de Piratininga” ~ provavel referéncia ao Colégio — “até entestar com rocas de Fernao Alves, onde foi o primeiro Tugipar” findava “no rio da Tapera do Cacique” Tugipar é variante do vocébulo tupi aportuguesado para sijupar ou tijupd, referéncia a uma choga ou choupana de indios que, pelo contexto, jd nao existia mais. Jé a Tapera do Cacique também ¢ referéncia a um sitio abandonado ou a uma ruina, possivelmente do “Cacique” Martim Afonso Tibiricé, pois o rio mencionado na sesmaria era o Anhangaba Se as autoridades contavam com a anuéncia de Tibirigé, Caiubi e Piquerobi nessa reorganizagao da ocupacio fundisria, oucras Facgdes indigenas, inclusive cristas, se posi- cionavam de maneira contréria. Escrevendo a rainha na época da mudanga de Santo ‘André para Piratininga, os vereadores da extinta Vila esclareceram: Este ano de 1560 veio a esta Capitania Mem de Sé, governador geral ¢ [...] mandou quea Vila de Santo André, em que antes estévamos, se passasse para junto da casa de S. Paulo, que é dos Padres de Jesus, porque nés todos tho pedimos por uma peticao, assim por ser o lugar mais forte e mais defensével, assim dos contrérios como dos nos- sos indios, como por muitas outras coisas, que a ele ea nds moveram'. Precisavam se defender, portanto, nao apenas dos “contrérios", que ameagavam cada ver mais no contexto da guerra movida pelos Tamoio do litoral, mas também “dos nos- sos indios’ “Todas essas tenses manifestaram-se de maneira clara durante a revolta indigena que ceclodiu em 9 de julho de 1562. Segundo os relatos dos jesuitas, “os indios Tupis do sertio, que jé andavam meio arruinados, com esta ocasiéo acabaram de se declarar por conttarios, ¢ iam cada vez mais reforgando-se com o poder de outras aldeias circunvizinhas, que estavam neutras, ¢ de muitos outros, que de nés fugiam por descontentes”. De um lado, juntavam-se nao apenas aqueles que ainda resistiam & sujeigao, mas também os indios que haviam sido catequizados e que agora conspiravam para destruir ¢ expulsar os ad- venticios, Do outro, porém, os defensores da Vila contavam com a lealdade do muru- bixaba, “chamado em seu gentilismo Tibiricé, e no batismo Martim Afonso, Principal "Sesmasiade 22 de janeiro de 1560, transcritaem PAES LEME, Pedro Taques de Almeida. Nobilianguia Pista Hisdvica e Genealigia. 5* ed Belo Horizonte: Kats, So Paulo: Edusp, 1980. 3, vp. 220+ Transetto em LEITE, Seri. S.]- Hstria da Companhia de Jous no Brasil. Lisboa: Portugaia, Rio de Janciro Civilizagdo Brasileira, 1938-1950. 10, v. 1, p. 284 JOnNAL MONTEIRO 33 ‘voniambec (Cunhambebe), chafe Tupinambs inimigo os portugueses. Ao contrario dos lusitanos, quo nao ‘eompusoram regisvos visuals neste periodo, 05 relatos {rancetes foram acompanhads deilustragoes evocativas dos aspectos da sociadade incigena que of europeus Julgavam mats importantes e cursos. ‘Aner Thovet, Cosmographie Univerell, 1875. Fazendo fogo. A imagem raune referéncias Amitologia heroic» deseigoes textuais a sociedade tupinambs. O xara, 0 chefe guerreio ‘2 mulher provedora de mantimentos Fguravam de manera sgnifieativa nas organs de S80 Peulo. ‘Andié Tevet, Cosmographie Universal, 1575, 34 osenos De RATINEA AO MORRO D4SAUDADE de Piratininga”™, Outro grande lider dos indios, Joao Ramalho, foi nomeado “por vozes em eleigao” para o cargo de “capitio de guerra’, ralvez um pouco a contragosto, pois demorou quase um més para tomar posse, j4 nas vésperas do cerco™. Bascada em relatos jesuiticos do periodo, a descrigao do ataque por Simao de Vas- concelos evoca de maneira dramética aquilo que estava em jogo: Eis que a0 romper da alva do dia (...] dao os inimigos de improviso sobre a Vila de Pi- ratininga, com tio grande estrondo de gritos, assobios, bater de pés, e arcos (como cos- tuimam) que parecia se vinha o mundo abaixo, e se arruinavam os montes vizinhos. Todos eles pintados, e empenados, jactanciosos, prometendo-se a vita, deixando nas costas canalha de velhas carregadas de panelas, ¢ asados, em que diziam haviam de coset a catne dos cativos, segundo as leis de seus costumes barbaros. Porém tracou diferente- mente 0 Céu porque os nossos sairam a recebé-los com no menos brio, e esforgo, com, bandeitas da Igreja de Deus, pela qual pugnavam. Era para ver pelejar as frechadas irmaos contra irmaos, sobrinhos contra tios, primos contra primos, ¢filhos contra pais. Irmios contra irméos, sobrinhos contra tios, filhos contra pais: 0 narrador genera~ liza 0 conflito imediato entre Tibirigé, seu “irmao carnal” Ararai (Piquerobi) ¢ seu sobrinho Jaguanharé, mas, na verdade, ao adotar o idioma do parentesco, se aproxima de uma perspectiva indigena sobre a ruptura das aliangas. Varios aucores, do século xv1 a0s dias de hoje, tém sublinhado o papel singular das relagbes de parentesco entre por- tugueses, indios ¢ mesticos, néo apenas nas aliangas como na formagéo da prépria sociedade coloi século xv1 e a0 longo do xvir, os colonos de Sao Paulo referit-se-iam varias veces aos indios como “compadres” ou “parentes ¢ amigos””. O desfecho da revolta de 1562 obviamente nao restaurou o controle indigena sobre Piratininga, mas também nao 0 obliterou por completo. E significativa, por exemplo, a atitude pouco crista de Martim Afonso Tibiricé apés a morte de Jaguanharé e a toma- da de alguns cativos entre os revoltosos que batiam em retirada. Dois cristaos renega- dos que haviam sido aprisionados pelo principal Tibitigd, “vendo-se abarbados com a morte, gritavam pelos padres, e alegavam que eram catectimenos seus: porém em balde, porque Martim Afonso Tibirigé Ihes quebrou a cabeca com a espada [isto é, tacape], dizendo que tal delito nao era merecedor de perdéo”™. Mas 0 péndulo havia se deslo- ‘cado de maneira decisiva para o lado dos europeus. Alguns meses depois da revolta, no dia de Natal de 1562, 0 proprio Martim Afonso Tibirigd entregou o tacape, derrotado pelo mais poderoso ¢ insidioso aliado dos adventicios: a doenga. Essa linguagem néo seria superada tio cedo, pois, mais adiante, no “VASCONCELOS, 6, Op. cts ¥.2.p.745. ®NEME, M. Op. cit, p, 207-08, VASCONCELOS, 8, Op. ct, ¥. 2, p.76-7. Veja, por exempl as abordagens do chamado “cunhadio” ou “cunhadagem” em HOLANDA, Sérgio Buarque de, “Expansio paulista em fins do século xv prinepios do xv", Boles de Instn de Administra, x. 29, 1948, em CORTESAO, Jaime, Raporo Tavares a firmagdotervitaral do Brasil. Rio de Janeiro: ME, 1958, p. 62 70 e, mais recentemente, em FERNANDES, Joso Azevedo. De Cunhi a Mameluca, Joao Pessoa Ed. vFrs, 2003. “VASCONCELOS, §. Op it 2, ps 137, 3. Curupira e abaré Ao que consta, Tibiriga caiu vitima de “cimaras de sangue”, uma disenteria, mas deze- nas de milhares de seus contemporaneos foram levados pelo pustulento Curupira, repre sentagao indigena do “mal das bexigas’, que corria pela costa entre a Paraiba e So Vicente naquele ano de 1562. A esta pandemia de variola se somou, no ano seguinte, um surto de sarampo que, junto com vérios outros contégios que encontraram nos indios um “terreno virgem”, semeou a desordem no universo indigena. Os indios que sobreviveram aos flage- los muitas vezes carregavam as marcas do sofrimento no corpo, sendo descritos na docu- mentagio como “bexigosos” ou “bexiguentos”. Conforme lembra Luiz Felipe de Alencas- tro, 0 dramético impacto dessas doengas também ficou inscrito no portugués do Brasil, que ‘raz uma corruptela de origem tupi para identificar a varicela: catapora,o “fogo que salta”, Assolados por essas perdas, 0s Tupi do Planalto encaravam os abarés jesuitas de modo ambivalente. Foram muitos que, movidos pela noticia de que os padres traziam morte, buscaram refigio no servo, derrubando as casas ¢ espalhando pimenta ou cin- zas para no serem perseguidos pelas entidades maléficas. Essas priticas acabaram sendo registradas nos catecismos em linguas indigenas, por meio dos quais os evangelizadores buscavam coibir os rituais nativos. Por exemplo, no catecismo em cari do jesuita Luis Mamiani, que, embora elaborado no final do século xv num contexto bem distinto, seguiu 0 modelo desenvolvido a partir dos primeizos encontros c embates na conversio dos Tupi, enconcra-se um interessante didlogo entre o mestre ¢o disefpulo, Ao pedir um deralhamento de quais seriam as “observancias vis ¢ abuses” dos antepassados indige- nas, o mestre recebe a seguinte resposta do catectimeno: Curar os doentes com assopro; Curar de palavra, ou com cantigas; Pintar 0 doente de jenipapo, para que nfo seja conhecido do diabo e o nao mate; Espalhar cinzas & roda da casa aonde esté um defunco, para que o diabo dai nfo passe a matar outros; Borar cinzas no caminho, quando se leva um doente, para que o diabo nio vi atrés dele: Esfregar uma crianga com porco do mato ¢ lavé-la com Alo, para que, quan- do for grande, seja bom cacador e bom bebedor; Nao sair de casa de madrugada, para nao se copar com a bexiga no caminho; Fazer vinho, derramé-lo no chio ¢ var- rer oadro da casa para corret com as bexigas™ Em Sao Paulo, no século xvr, os primeiros jesustas pouco podiam fazer para comba- ter as doengas, porém, no mediram esforcos para desenraizar a obstinada perseveranca dos “costumes invererados”, os quais constitufam, para Anchieta, 0 principal impedi- ‘mento para a conversio. Primeito, defrontaram-se com a dificil tarefa de aprender as lin- guas indigenas, pois este conhecimento constitufa, segundo Nébrega, “a mais principal cigncia para cd mais necesséria". A diversidade lingiistica do Planalto, como em outras Fate neologisme corrompe o voesblo tupi pata Fogo, tad. Sobre as epidemiss, ver ALENCASTRO, Lui Felipe de, O esto dor viventer formas do Brasil no Atlinico Sul. Sio Paulo Companhia da Lets, 2000, p, 127-33. ‘Citado em MONTEIRO, J, “Traduzindo tradigGes:gramaticas, vocabulirose catecismos em linguasnatvas na América portugues In; BRITO, JP. (org). Os indir, ns Lisboa: Museu Nacional de Exnolgia, 2000, p. 42. 35 56 _0SAAMOSDE MRATININGAAO MORRO DA SAUDADE partes do Brasil, apresentou um desafio, porém os jesuitas estabeleceram uma politica lingiistica que fazia da “Lingua mais usada na costa do Brasil” o scu principal instrumen- to. Houve um esforgo, por parte do Padre Manuel Viegas, de sistematizar a lingua dos Maromomi, ou Guarulhos, porém, o vocabulirio que ele desenvolveu se perdeu, infeliz~ mente’ Prevaleceu mesmo o aprendizado do cupi, ¢ esta lingua passou a mediar as relagbes entre europeus e quase todos os povos indigenas que faziam parte da esfera colo- nial. Esse aspecto é particularmente relevante para o caso de Sio Paulo, porque mesmo apés 0 declinio e desaparecimento das populagées tupis, a “lingua geral” (com variances dialewais) continuou a vigorar entre uma populagio indigena de origens étnicas das mais variadas, A persisténcia da lingua ~ ¢ dos “Iinguas”, ou intérpretes ~ para além da sobre- vivencia étnica dos Tupi em varias partes do Brasil é sugerido no preimbulo do Padre Anténio de Aratjo para o primeiro Catecismo na lingua brasilica, publicado em Lisboa, em 1618, Coma publicagao do catecismo ¢ o esforgo dos padres, segundo Aratijo, “jé nao so 0s linguas de todo acabados, como quase o sio 0s {ndios em as mais das Capitanias”™: O dominio das linguas verndculas, no Brasil ¢ em outras partes do mundo em que existiam missbes jesuiticas, era “ciéncia necesséria’, sobretudo para dar conta da dificil tarefa da traducéo dos simbolos e dos sentidos da doutrina cristé. Mas a transmissio dessa doutrina apoiava-se em outros instrumentos, pois os jesuias logo perceberam que seria necessério adotar priticas performaticas, marcadamente indigenas, para alcancar um minimo de éxito, Ao defender as estratégias inacianas das acusagées langadas pelo bispo Sardinha, que se opunha a este tipo de tolerancia dos costumes birbaros, Nébre- ga expressou bem o sentido ampliado da traducao: Se nds abragarmos com alguns costumes deste gentio, os quais nio sio contza nossa f8 catdlica, nem sao ritos dedicados a idolos, como é cantar cantigas de Nosso Se- rnhor em sua lingua pelo tom e tanger seus instrumentos de musica que eles usam em suas festas quando matam contrérios e quando andam bébados; ¢ isto para os assim o pregar-Ihes a seu modo em certo tom andando passeando ¢ batendo nos peitos, como eles fazem quando quetem persuadir alguma coisa e dizé-la com muita eficdcia; ¢ assim tosquiarem-se (9s meninos da terra, que em casa temos, a seu modo. Porque semelhanga ¢ causa de amor. E outros costumes semelhantes a estes" atrair a deixarem os outros costumes essenciais. A teattalidade dos ritos ea gestualidade dos discursos surtiram um impacto sobre os indios, pois permitiram a expressao de elementos fundamentais da cosmologia, memoria ¢ identidade indigena dentro do novo contexto colonial. Os autos teatrais escritos por Anchieta também entrelagavam elementos cristéos ¢ indigenas, permitindo entrever algo da perspectiva nativa sobre o processo da conversio. Encenados em ocasiées espe- ciais, sobretudo na recepgao de autoridades eclesidsticas e civis, os autos condenavam PREZIA,B. Op. cit. p. 63. ‘Gitado em MONTEIRO, J. M. Op. itp. 40, Sobre exe instrumentos de tradusio, ver também POMPA, C. Op cit p. 84-97, € 0s etudos em ROSA, Mara Carla e FREIRE, sé Ribamar Bess (rg). Linguas gras plltica linge categuete na América do Sul no periods colonial. Rio de Janeiro: Eder, 2003. ‘Nalbrega 2 Sisto, 17.9.1552°, Momumente Brae, v1, p. 407-8, alguns dos costumes inveterados, como a poligamia 0 canibalismo, porém também facultavam um espaco para a perseveranga de outros, como a guerra e a vinganga™. No entanto, na esteira de triunfantes episédios de conversio e do aparente éxito junto aos meninos indios nos anos iniciais, tanto Nébrega quanto Anchieta passaram a se mostrar bastante incomodados com a “inconstincia” dos indios que aceitaram 0 batismo com entusiasmo, mas logo em seguida retomaram as antigas tradigdes. Dentre estas, segundo Anchita,destacavam-se as guerras movidas pea vinganca, 2 inconstan- cia na fé “uma natureza tao descansada que, se nao forem sempre agulhoades, pouco bastard para nao irem & missa nem buscarem outros rem Refletindo sobre a experiéncia dos primeitos anos em sua Breve informagao do Brasil, escrita em 1584, Anchieta avaliou que a conversio dos indios do Planalto nao cresceu tanto como a da Bahia, “porque nunca tiveram sujeigio, que é a principal parte necesséria para este negécio, como houve depois na Bahia em tempo do governador Mem de Sa”. Longe do otimista Anchieta de 1554, que apregoava a conversio na base do amor, o autor da “Informagio” pendia mais para o temor: “[T]odos estes impedi- mentos ¢ costumes so mui fceis de se Ihes ttar se houver temor e sujeigao™ Apesar da resistencia dos indios, as aldeias adquiriram, pouco a pouco, as feigoes de assentamentos coloniais, demarcando claramente a distincia entre os indios cristios e os “do sertio”. Um primeiro elemento, como vimos, diz respeito ao redesenho territorial, pois todas as aldcias foram dotadas de terras, as quais seriam objetos de disputa por sécu- los. Pinheiros ¢ Sao Miguel, apesar de estabelecidas em 1560, sé se consolidaram territo- rialmente em 1580, ao ganharem sesmarias de seis léguas em quadra. A doagio de terras, longe de reconhecer direitos tradicionais dos indios, ances afirmava uma nova relacdo de sujeigao. No texto das cartas de sesmatia, 0 capitéo-mor da Capitania de Sao Vicente sublinhou que estes indios ganharam terras por “a maior parte deles serem cristios € terem suas igrejas ¢ estarem sempre prestes para ajudarem a defender a terra e a susten- té-la”™, Nao se sabe o local exato dos primeiros micleos dessas aldeias, pois foram sujeitos a mudangas ao longo do tempo. A igreja de Sio Miguel, por exemplo, tinico vestigio ‘mais contundente desses primeiros assentamentos, foi erguida apenas em 1622, quando recebeu um contingente de indios que foi deslocado de Itaquaquecctuba. ‘Um segundo elemento crucial no redimensionamento das sociedades indigenas enquanto sujeitos coloniais reside no carter multictnico que as aldeias acabaram assumindo. No inicio, existia uma certa continuidade entre os assentamentos pré-colo- niais tupis ¢ as primeiras aldeias, porém, diante do quadro de epidemias, revoltas e apresamento de indios, esas aldeias passaram a incorporar contingentes guaiands e cari- 5 para a sua salvacio”. * Sobre o tatra inacano, ver NASCIMENTO, Celso Gesteemeier do. "Ralzes distances José de Anchicta 0 Mo- delador de Imagens”. In: WRIGHT, R, (org). Tansfrmand odeuss. Campinas: Editor Unicamp, 1999, p. 479. S54; sobre a vinganga, hi o artigo clsico de CASTRO, Fauardo Viveirs de ¢ CUNHA, Manuela Carneio da “Vingansa ctemporaldade: os tupinamba”. Braslia, Amuro Antopolgico,v. 85, p. 57-78, 1986, ANCHIETA, J. Op. cit. p. 50 ¢ 63. Sobre a“inconstancs’ vero artigo de CASTRO, Eduardo Vivetos de. “O_ sxirmore ¢ a mura’, republicad em A incomancia da alinaseloagem e ours enaios. A questio do “amor” © emo” €tatada de forma pioncira em NEME, M, Note de revian de hitria de Sho Peal, p. 281-303 ecm PECORA, Alcs, “Carts 3 Segunda Escolistis", In; NOVAES, A. (ong). ons margem de ocidente. Sao Pauls (Companhia das Lets, 1999, p. 373-414, Sesmaria de 12.10.1580, Registre da Ciara de. fa Paul 1p. 38455, 38. DOSCAMPOS DE MEATININGA AO MORRO DA SAUENDE j6s, entre outras etnias mais dificeis de discernir etnograficamente, como os Biobeba, Andante ¢ Pés-Largo. A terceira aldeia principal, Nossa Senhora da Conceigo dos Guarulhos, ja nasceu a partir da mistura em meados da década de 1580, abrigando cate- caimenos maromomins (guarulhos), guaiands ¢ ibirabaquiyaras (caiapés do Sul). Este também foi o caso do quarto assentamento desse tipo, Nossa Senhora da Escada de Barueri, formado no inicio do século xvii a partir do “descimento” de um grupo Cari- j6 (Guarani) pelos padres Afonso Gago ¢ Joio de Almeida. A convivéncia, pouco tran- aiila, entre etnias inimigas foi objeto de reeeio numa reunido da Camara em 1612, 20 observar que, na aldeia de Barueri, “havia quinhentos ou seiscentos negros carijés e pés largos inimigos uns dos outros"? ‘A reestruturacéo do trabalho indigena foi outro elemento importante na confor- magio do indio colonial e constituiu 0 cerne das acirradas disputas que marcaram 0 periodo formativo de So Paulo, E bem conhecida a historia da legislagao indigenista ¢ dos conflitos entre jesuitas ¢ “moradores” em torno da mao-de-obra nativa, porém, 2 documentagao é menos clara quanto a atuacao dos indios nesse contexto. Segundo a informagao do Padre Pedro Rodrigues, que esteve nas aldeias nos anos finais do século xvi, etam 0s jesuitas que “repartem os indios de servigo e fazem-se depositirios do jornal J. Quem vem pedir indios para servigo pede-os 2o padre o qual chama um principal, ‘qual com os Portugueses os vai buscar e lise concertam na paga”™. Surge com clareza, nessa pequena descrigéo, o papel de mediagio destinado as liderangas indigenas que, 20 lado dos padres responsiveis © dos capities brancos, buscavam controlar © acesso 20s indios das aldeias, seja enquanto trabalhadores ou como guerteiros prestes a ajudarem na dlefesa da terra. Em varias situagées, como “amigos e vizinhos" dos brancos, guardavam lacos pessoais e relagées de parentesco na prestagao de servigos na esfera colonial. Em ou- tras, no entanto, agiam de modo independence ou com a anuéncia dos jesuitas para difi- cultar 0 acesso & mio-de-obra e para contestar 0s abusos praticados por muitos colonos. Nesses casos, os chefes langavam mio de seu poder de barganha junto as autoridades e, quando 0s interesses nao eram atendidos, ameagavam usar a violéncia Em 1607, os vereadores da Camara receberam a visita da lideranga Anténio Obozio que, eleito pelos demais principais, “como mais antigo falasse por todos” em protesto contra a nomeagio de Joo Soares como capitao dos indios. Apés elencar os abusos pra- ticados por Soares, que despachava para o litoral os indios carregados de mercadorias “sem thes pagar scus trabalhos” ¢ levava as mulheres das aldeias para sua propriedade particular, Anténio advertiu & Camara que os indios iriam matar Joao Soares, caso nao tomassem providencias. Salienta-se neste episédio a dupla face da estratégia dos princi- Pais, pois, por um lado, fizeram questio de sublinhar que “eles costumavam e sempre costumaram obedecer mandados de capi gas”, porém, por outro, mostearam que a ameaca da revolta mantinha-se presente”. ‘Aca de 28.4.1612, Ata dt Cmana, 2 312 *Citado em MONTEIRO, J. Negros da ter: indie ebandeianter ns orgen de Sto Pele. Ss Paulo: Companhia das Lets, 1994, p. 4. Ibidem, p. 49-50. Esta postura de obedineia 20 ei, porém cambeém de defesa dos interests indigenas,édetalha dds no cazo do Rio de Jancizo por ALMEIDA, Mata Regina Celestine de. Metamorfoe:ndigenasidetidade eel re nas aldeias coloniais do Rio de Jancr. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 150-168, Ao enfrentar nao apenas a mediagio dos jesultas, como também a necessidade de con- tar com a cooperacio dos “principais” indigenas, os colonos buscaram, desde cedo, suprir sua demanda pela mao-de-obra de outra maneira. O apresamento direto de indios cons- situiu, em certo sentido, um prolongamento das guetras que marcaram as primeiras décadas da presenga européia no Planalto, Os colonos contavam com a colaboragio de chefes indigenas nas “entradas” rumo ao sertéo, porém, as préticas escravistas também suscitavam a resistencia, No aval nada imparcial de Anchieta, “[o] que mais espanta aos Indios eos uz fugir dos portugueses ¢ por conseqiiéncia das igreas sio as tranias que com eles usam obrigando-os a servir toda a sua vida como escravos, apartando mulheres de maridos, pais de filhos, ferrando-os, vendendo-os ete.”®. Ainda assim, aquilo que podemos chamar de resisténcia indigena nasceu de um quadro bem mais complexo, envolvendo indios das aldeias e indios do sertio, colonos ¢ jesuitas, a autoridade régia ea autoridade local. As informagies fragmentadas que existem a respeito da revolta ocorri- da em 1590 na aldeia de Pinheiros sio sugestivas dessa complexidade. Tudo indica que algumas facgdes de indios aldeados em Pinhciros ¢ Sio Miguel decidiram apoiar “os do sertio”, que estavam “alevantados”, com o objetivo de expulsar 0s brancos. De modo sur- preendente, “os do sertéo” formavam uma alianga inesperada de Guaiang e Tupie, junto com os das aldeias, juntavam gentios e cristios. Nao hé grandes detalhes sobre essa insu- reigio, mas ficou registrada a destruigio de um dos simbolos da subordinacio ¢ da devogio dos aldeados, ao ser despedagada a imagem de Nossa Senhora do Rosétio. Abafa- do 0 levante de Pinheiros, o conflito mais geral se arrastou por mais alguns anos, pois “houve rebates de contrrios ¢ os nossos estao [a]temorizados de os indios virem sobre nds”, A guerra conduzida por Afonso Sardinha e outros colonos, apoiados por guerreiros sob seu controle direto, completou o processo de conquista de Piratininga, pouco mais de quarenta anos apés a elevagao da pequena choga que serviu de igreja em 1554. Assim, a iltima insurreicio dos povos indigenas do Planalto sinalizava a conclusio de uma fase da histéria de Sio Paulo, A mudanga mais significativa residia no colapso das aliangas que haviam garantido a presenga dos caratbas e abarés. A mais dura repressao se dirigia 20s préprios Tupi, segundo os vereadores da Camara, “porquanto eram nossos vizinhos e estavam amigos conosco ¢ eram nossos compadees e se comunicavam conosco gozando de nossos resgates e amizades e isto de muitos anos”*. Desencantados com os novos “vizinhos e amigos’, restava aos indios uma tiltima tentativa de restauragio do con- trole sobre a regio, Mas nem os Tupi, nem os outros grupos que ocupavam o Planalto antes da fundagio de Sio Paulo, reuniam forgas para canto. Enfrentando o criplice assalto dos colonos com seus guerteiros indigenas, das soldados de Cristo e dos contigios invisiveis, os indios softeram uma seqiiéncia de derroras ao longo das iltimas décadas do século xv1, levando A quase total destruisio dos povos indigenas que ocupavam o Planal- to na época da fundacio de Sio Paulo. Nesse sentido, as origens de Sio Paulo vin- culavam-se ao fim dos Tupi da regiéo enquanto povo independente, porém, isso nao sig- nificava o fim da populagio indigena no Planalto. Muito pelo contritio, pois, além dos ANCHIETA J. Op. ct p64 “°“Traslado de uma provisio de Afonso Sardinha para it 20 sertio", 10.10.1592, giro Geral dt Climara de Sto Pula,» p. 59. Arar da Cara, 1, p44. 49. ooscaNros Dr ATHENA Aa MORRO A SAUDADE sobreviventes que viviam nas aldeias d’El-Rei, miimeros até maiores de indios arrancados dos sert6es fizeram com que, no decorrer do século xvii —0 século das bandeiras~, pre- senga indigena continuasse a definir os contornos basicos de So Paulo, 4, O trato ordinério desta terra Em 1681, 0 vereador “mais mogo” da Camara Municipal de Sao Paulo, Lucas Ortiz cde Camargo, pediu aos colegas a sua substituigao no cargo para poder “ir buscar remé- dio no sertio que € 0 trato ordindrio desta terra”, Buscar remédio no sertio, buscar remédio para a pobreza: freqiientes na documentagao colonial paulista, essas expresses sinalizavam, invariavelmente, o apresamenco de indios por expedigoes montadas nas vilas da Capitania, Indispensavel na reposigio de uma forca de trabalho frégil, a qual pet- ‘manecia sujeita a repentinos abalos cpidémicos, as expedigles de apresamento conduzi- das pelos colonos de Séo Paulo, durante o século xvut, atingiram niveis de intensidade igualados apenas pelos seus congéneres na Amaz6nia durante este mesmo perfodo. A exemplo do Maranhio e Pari, onde as tropas de resgate eas expedigbes extra-oficiais con- tribufram para uma catistrofe demografica de grandes proporgdes, o sistema de trabalho ‘montado em Séo Paulo também foi responsivel pela destruigao de intimeros grupos indi- genas nos sertées préximos ¢ distantes da Vila. Entretanto, se essa imagem de dizimagio tem servido de corretivo eritico para a imagem imaculada do heréi bandeirante, enquanto desbravador dos sertoes ¢ dilatador das fronteiras da América Portuguesa, ainda diz pouco sobre a histéria dos indios. Por mais violento que fosse, 0 “trato ordindrio da terra” jamais se pautou pela destruigao deliberada de populagées indigenas, mesmo porque os colonos dependiam da mao-de- obra nativa para virtualmente todos os afazeres. Conforme escreveu um observador por- tugués no final do século xvi, em seu relatério para a Coroa, os paulistas careciam dos indios “por ser tal a propriedade daquela gente, que 0 que nao tem gentio para o servir vive como gentio sem casa mais que de palha sem cama mais que uma rede, sem oficio nem fabtica mais que canoa, linhas, anz6is ¢ flechas, armas com que vivem para se sus- tentarem ¢ de tudo 0 mais so esquecidos..."*. Em suma, para este portugués, 0 que distinguia os colonos dos indios era a exploragio do trabalho destes por aqueles. ‘Adcmais, os indios nao foram apenas vitimas inocentes da cobiga ¢ crueldade dos homens de Sao Paulo, pois também foram participantes ativos na construgio de uma sociedade marcada pela pluralidade étnica e pela profunda desigualdade social. As dezenas de expedigSes que penetraram os sertées durante o século xv1t introduziram dezenas de milhares de indios as casas e propriedades rurais que se esparramaram pelos bairros paulis- tanos. Ao constituir a esmagadora maioria dos habitantes do Planalto, os indios egressos dos sertées buscaram, de virias maneiras, recompor as suas vidas ¢ identidades dentro do estranho novo mundo do qual passaram a fazer parte. Tarefa nada ficil, pois, a exemplo © Aas Ciara, 7. p92, 12.681 “CARVALHO, Bartolomeu Lopes de. “Manifesto a, Majestade sobre os lndios cativs pelos moradores de Sio Paulo", citado em MONTEIRO, J Negros a ert, p. 135. das comunidades escravas que brotaram em outras partes das Américas, as condigdes mostravam-se pouco favordveis para se estabelecer qualquer semblante de estabilidade. {As expedigées de apresamento remontam as origens de So Paulo, porém, cresceram em freqiiéncia e intensidade nos anos finais do século xv, em razo da escassex. da mao~ de-obra tupi, seja pelo declinio da populacao, seja pelos obstéculos que o sistema de repar- tigio do trabalho apresentava. A exemplo de outras capitanias, 0s colonos contavam com a agdo de chefes indigenas aliados de mamelucos especializados na profissio de “pombeiro” para conduzit indios do sertao as unidades de produgio dos europeus. ‘Com a expansio das atividades econémicas apés a pacificacio do Planalto, no decorrer da década de 1590, e sobretudo com a ocupagio de terras nos bairros que brotavam cada vez ais distantes do primitivo nicleo paulistano, os colonos passaram a montar expedighes visando o apresamento para sustentar as suas novas empreitadas agricolas ¢ pastoris. De ramanho e alcance dos mais variados, a viagens pata o sertio rapidamente intro- duziram uma nova populacio indigena ao Planalto para substituir a populagao tupi. Com énfase no apresamento dos Carij6, esses empreendimentos atingiram o seu ponto mais alto nas primeiras quatro décadas do século xvit, com as grandes “bandeiras” ca- pitancadas por Manuel Preto, Antonio Raposo Tavares, André Fernandes, Fernao Dias Paes e varios outros. Cada um desses colonos concentrou um ntimero consideravel de Indios sob o seu controle pessoal, sendo distribuidos muitos outros em proporgées menores para os demais membros das expet sociedade colonial assentada numa maioria indigena, porém, movida por relagdes entre colonos e indios muito diferentes do que no século xv1" ‘A composigio da populagio indigena que surgiu desses deslocamentos também era marcadamente diferente, tanto em termos étnicos quanto em termos de sua estrutura. Mesmo favorecendo o apresamento dos Carij6, que falavam uma lingua muito proxi- ma A dos Tupi, as repetidas expedigées para os sertes produziram uma impressionante diversidade étnica na populagao indigena do Planalto. Um grande niimero de nomes éxnicos, abrangendo mais de cem grupos diferentes, foi registrado nos inventarios tes- tamentos desse perfodo. Essa tendéncia cresceu, sobretudo, apés 1640, quando o apre- samento dos Carijé entrou em declinio, devido & derrota de vérias “bandeiras” que coparam com a resisténcia armada de Indios ¢ jesuitas nas misses do Sul. Com a reorientacdo das expedig6es para outros sertées, comegaram a reaparecer com maior freqiiéncia indios guarulhos e guaiands. Algumas das expedigdes mais ambiciosas, como a de Sebastiao Paes de Barros para o Tocantins, remetiam a Sio Paulo uma con- fusio de linguas e nomes, muitos dos quais incompreensiveis para o pesquisador mo- derno, pois podiam ser referéncias a povos, aldeias ou chefes" Demiograficamente instavel e marcada por uma diversidade étnica em constante mu- danga, a populacao indigena de So Paulo, que resultou das freqiientes incursbes para 0 sertio, no constitufa uma maioria informe ou homogénea. Os indios introduzidos 4 Vila através de expedigbes de apresamento ou dos “descimentos” conduzidos por missionarios Jes. Essas iniciativas produziram uma ® Sobre ete proceso, ver em maiores detalhes MONTEIRO, J. Neror a er, sobrecudo capieulo 2. © Inventtioingdito de Catarina Tavares, Patna, 1671, ARQUIVO DO ESTADO DE SAO PAULO. laveatitios io publicados, casa 12 “a da Cidade, 08 restos mortais de tas" foram transladados para aul Folhe de rosto da Ante spaces cats ons o fesuita popularizando 3 idsia de destuigao dos incios. Theodor de Bry, 1617 "om 1595. Composta rowan ose 463 destinaram-se a formas bem distintas de insergio na sociedade colonial, seja nas aldeias €'ELRei, nas propriedades particulares dos colonos ou nos conventos do incipiente niicleo uurbano. Do mesmo modo, com o crescimento de uma populago nascida nestas unidades, impunha-se a distingio entre esses “crioulos” ¢ os que safram dos sert6es ainda gentios. Num litigio de meados do século xvut, um colono deixou claro esta nogio, ao alegar que “é sabido que vale mais uma pega do povoado do que quatro do sertio vindas de novo”? Este quadro tornava-se mais complicado ainda com a presenca de mestigos de condigio juridica incerta, pois, ainda que a justica colonial apregoasse o principio de que o filho segue a condicdo da mae (partus sequitur ventrum), os paulistas nem sempre obedeciam este preceito, tratando de mancira diferenciada mamelucos ¢ bastardos, Ainda que fossem produtos do mesmo processo de mistura, irmaos podiam se encontrar em condicoes juridicas totalmente distintas. ‘Ao longo do século xv1te por uma parte do xvi, a vasta maioria dos indios vivia em situagées de dependéncia direta junto as unidades de producio dos colonos particulates. Essa cra uma decorréncia dircta do sertanismo, é claro, ¢ 0s colonos reivindicavam com veeméncia o direito de explorar o trabalho daqueles que cles haviam trazido do sertio com tanto trabalho e sactificio, “Estavam tao firmes os moradores daquela Vila em que 0s indios exam cativos”, escreveu um visitador jesuita em 1700, “que ainda que o Padre Eterno viesse do céu com um Cristo erucificado nas mos a pregar-lhes que eram livres 0s indios, 0 nio haviam de crer”™. Mas o controle sobre o destino dos indios dependia no apenas das conviegdes dos colonos, como também foi o resultado de uma luta politi- ca e juridica que atravessou mais de um século e que estava na raiz de sérios conflitos opondo nao apenas colonos, jesuitas ¢ a Coroa, como também colonos contra colonos e jesuitas contra jesuitas. A expulsio e resticuigdo dos jesuitas entre 1640 e 1653, a luta entre facgbes familiares as tensbes entre os figis vassalos de Sio Paulo e a Coroa sio episédios que brotaram da disputa pelo controle sobre os indios”. O carater da dependéncia permaneceu incerto por boa parte do século xvut, sendo definido em termos mais claros apenas a partir da Carta Régia de 19 de fevereiro de 1696. Antes dessa disposigio régia, os colonos mantinham os indios sob seu controle em flagrante desacordo com a legislagio vigente, qualificando a posse sobre os indios “forros" em documentos legais com a explicagzo legal de que estava conforme 0 “uso ¢ costume da terra”. Escrevendo no inicio do século xix, 0 corégrafo Aires de resumiu de maneira hicida o aspecto contraditério da administracio particular: “Os Paulistas, posto que nao davam aos indios domesticados o nome de carivns, ou eseraves, mas s6 de administrados, concudo dispunham deles como tais, dando-os em dotes de casamentos, ¢ a seus credores em pagamento de dividas”® al “Protexo de Domingos de Geis", 1653, ctado em MONTEIRO, J, Negros da tea, p. 154-55, Vista do Padse AntBaio Rodrigues, SJ, 25.1.1700, ceado em MONTEIRO, J. Negrr da tems, p. 147. Soba expulst, vee MONTEIRO, J. Negros da tera. 141-7. As cages entre ox pals ¢ Coro neste po do eeebem wm enfogue inovador em MONTEIRO, Rodrigo Bentes,“A Rochsla do Brasil Sin Paulo ea Aclamagio Amador Bueno como Espelho da Realera Portugues’. So Paulo, Revita de Hisar, 141, 1999. p. 21-44 “CASAL, Manuel Altes do. Corogfia Brice (1817.2 ed. Rio de Jaset: José Olympio Edicora, 1945, 1, p. 5, Sobrea waliago de indo para o pagamenco decedores, ver NAZZ.ARI, Mure." Transion Towards Slvery: Chang. ing Legal Practices Regarding Indians in Seventcenth-Century So Paul”. The Ameria,» 49.0.2, p. 131-58, 1992. © uso do termo “pega” para descrever um indio na documentagao do século xvu sina~ izava com clareza a equivaléncia entre a administragio particular ea escravi que essa mesma documentagio adotasse subterfigios para ocultar a caracterizagao de indios enquanto propriedade aliendvel. Por exemplo, a partir do final da década de 1670, provavelmente em resposta& inspecio judicial do ouvidor do Rio de Janeiro, a partilha de {ndios nos inventérios comegou a atribuir valores de “alvidragao”, isto é, uma avaliagio do valor dos “servigos” a serem distribuidos entre os herdeiros. O jesuita AntOnio Vieira, em suas citicas aquilo que considerava ser uma escravido mal-disfargada, insurgiu-se contra «essa pritica em especial, argumentando que estes valores nao correspondiam & remune- ragio devida aos indios, mas antes representavam simplesmente os pregos de escravos", Pela leitura dos inventdrios ¢ testamentos, existiam alguns escravos romados legitima- mente de acordo com a legislaéo em vigor, porém, eram poucos, na verdade um nimero {nfimo diante das milhares de “pecas do gentio da terra” arroladas nos mesmos inventatios. ‘Assim, por exemplo, nos anos iniciais do século xvut ainda se encontravam escravos toma- dos nos conflitos que marcaram as décadas finais do século xvi, incluindo cativos das etnias Tamoio, Tupiniquim, Pé-Largo e Biobeba. As campanhas dos mercendrios paulis- tas no Nordeste produziram alguns escravos legitimos nas décadas de 1670 ¢ 1680, enquanto as guerras justas declaradas contra os Paiagud, Caiapé ¢ Goi por volta de 1730 cestavam representadas nas listas de escravos em inventitios paulistas do periodo™. A si Gao contraditsria dos demais indios administrados por particulares manifestava-se repet damente nos testamentos dos colonos, como no exemplo do casal Anténio Domingues ¢ Isabel Fernandes, em 1684: declaravam possuir der. indios que “sao livres pelas leis do Reino e s6 pelo uso e costume da terra sao de servigos obrigatérios”. Estes indios foram repartidos entre os hetdeiros, como também haviam sido os de Maria do Prado em 1663, conforme ela estipulou em testamento: “Declaro que nao possuo escravo algum, cativo ‘mas somente possuo como é uso noventa almas do gentio da cera as quais tratei sempre como filhos ¢ na mesma formalidade os deixo a meus herdeiros"™ Os indios administrados aparecem em quase todas as propriedades inventariadas durante o século xvi Alguinas delas consticuiam verdadciras aldeias indigenas, pelo menos no aval de Pedro Taques de Almeida Paes Leme. Faz-ele referencia, por exemplo, aaldeia de Guanga, cujo “senhor”, no inicio do século xvur era Francisco Ramalho, o Tamarutaca, neto de Joao Ramalho. Ainda na primeira metade desse mesmo século, a propriedade de Amador Bueno da Ribeira “teve grande tratamento € opuléncia por dominar debaixo de bato do sertio se inham con- vertido 4 nossa Fé, pela industria, valor ¢ forsa das armas, com que os conquistou Amador Bueno em seus reinos ¢ alojamentos”. Pedro Vaz de Barros comandava a fazenda de Quitatina, que “era como uma vila, pelo grande ntimero de casarias, ¢ bem arruadas, que sua administragao muitos centos de indios, que de gentio bé MONTEIRO, J. Negrosda Tem, p. 147-53, Esta questo €estudada em maiores detahes por AMBIRES, Juarez Donizet. Os jesutas¢« adminstragto das indios por particularesem Sio Paulo no ilkime quattel do séeulo 0 Dissertagio de Mesteado, Sio Paulo: tc-usr, 2000, MONTEIRO, J. Opt, 1994, p. 137, Sobre a nogio de gure just” eos contomnos leas do cativeiro, ver PER: RONE-MOISES, Beatriz. “Indios livres nds esravoe, Irs CUNHA, M. Carneiro da (orp). Hina des indios i Brasil Sio Paulo: Companhia das Lets, 1992, p. 115-132. Citado em MONTEIRO, J Op. ct. p. 140, JOnNM. MONTEIRO 45 rela havia, com uma capela, onde se oficiavam os sacramentos por se compor aquela fazen- dda de mais de seiscentas almas™. A documentagao seiscentista também aponta para varias ptopriedades com posses acima de 350 indios. Em 1652, por exemplo,a primeira apuracdo dos bens de Antonio Pedroso de Barros, assassinado pelos indios, revelou que os Carijé, em sua propriedade de Juqueri, estavam divididos em “lotes”, cada qual com seu principal. Nao foi possivel, aquela altura, contabilizar os mais de quinhentos indios da propriedade, por estarem rebelados, mas alguns anos depois foi feito uma lista de 318 cativos carijés", ‘Ao se defrontarem com as centenas de indios nos inventérios e testamentos dos anti- {g08 paulistas, os historiadores tém demonstrado dificuldades em dar conta daquilo que Sérgio Buarque de Holanda chamou de “grande propriedade, pequena lavoura”™ Para qué tantos indios, se a producio era tio modesta? Uma parte importante dos traba- Ihadores indios, sem diivida, destinava-se & agricultura, que viveu uma consideravel expansio durante o século xvi. Mas o trabalho na lavoura constitufa apenas uma parte das atividades exercidas pelos indios durante o periodo colonial. A mao-de-obra indi- _gena mostrou-se indispensével em todas as etapas da ocupacao das terras pelos europeus e seus descendentes mestigos, da abertura de caminhos 3 limpeza dos terrenos, 3 cons- trugdo das casas, capelas e outras benfeitorias que pontuavam a paisagem paulistana, ‘Uma das principais atividades, certamente a menos agradave, dizia respeito & tarefa de carregar pessoas e produtos entre as propriedades rurais ¢ a vila, ou, de forma mais dramitica, entre a vila ¢ 0 litoral. E conhecida a imagem evocada por Antonio Vieira, ao se referir &s “céfilas” de indios “sobrecarregados como azémolas” que transitavam entre Sdo Paulo ¢ Santos. De fato, o trigo, as carnes salgadas ¢ outros produtos que safam das unidades rurais compunham as “cargas” que os indios transportavam em ces- tos nas costas. Cada carga, no auge da comercializagio do trigo em meados do século xvrt, era composta de dois alqueires (cerca de 72,5 litros) de peso varidvel, em graos ou farinha. Nao € toa que Vieira se revoltou com esta exploragao: além do peso excessivo, © caminho antigo do Padre José guardava outros desafios. Foram muitos os europeus, do Pattiarca da Etiépia, que visitou o Planalto em 1707, ao Morgado de Mateus, em 1765, que experimentaram a aventura registrada por Simao de Vasconcelos em meados do século xv1r, 20 ser carregado numa rede de Cubatio ao topo da serra: “O mais do espago nao ¢ caminhar, &trepar de pés e ios, aferrados 3s rafzes das érvores, ¢ por entre quebradas tais, ¢tais despenhadeiros, que confesso de mim que a primeira vez que pas- sei por aqui, me tremeram as carnes, olhando para baixo”. A exploragao dos indios de carga certamente atingiu o seu auge no periodo de maior concentragao da mao-de-obra indigena, pois, ajulgar pelo aumento constante das tarifas no aluguel de carregadores a partir do final do século xvtt este servico se tornava cada ver mais proibitivo™ AES LEME, 2 Op. cit, 1 p.75 6.3, p. 203. "Testamento Invetiri de Antonio Podroso de Baros, 1652. ARQUIVO DO ESTADO DE SAO PAULO, Jmen= tirioveTextamentoy, v.20, p. 6-253, Docamento complexo, 0 inventério merece um esud 3 part, A pacha dos Indios, feta apenas em abril de 1670, quase vinte anos apésrebelito dos indios,eonsta das piginas 239-51 “HOLANDA, Sérgio Buarque de, Mongéer, 3d. amp. Sto Paul: Brsilense, 1990, p, 181 Tata-se da edi pis tama do primeiro capitulo revisido pelo autor, © VASCONCELOS, 5. Crince de Compania de Jers, 1, p 252 * MONTEIRO, J. Op. ety p- 123-26. 46 Gos cMMnos DE PRATININGA AO RRODASALOADE Os oficios mecinicos também ocupavam um niimero considerdvel de indios arte- ios. Alguns colonos patrocinavam oficiais em suas propriedades, como nos casos dos grandes proprietétios José Ortiz de Camargo, Lourengo Castanho Taques ¢ Guilherme Pompeu de Almeida. O inventario de Camargo, de 1663, arrolou cinco sapateiros, dois ferreiros e dois carpinteiros entre os indios que passavam para os herdeiros. Outros se- nhores preferiram colocar seus indios artesios no mercado a ganho, vivendo da renda que estes servigos arrebanhavam. E bastante provavel, no entanto, que os indios rece- biam pelo menos uma parte do pagamento, como sugere o testamento de Anténio Vieira Tavares que, antes de morrer, accrtou a divida que tinha com “um negro ferrciro por nome Salomao pelo feitio de uma foice”. Alguns indios chegaram a ter especializa- es mais raras, como um “fizedor de imagens”, da aldeta de Itaquaquecctuba, ou um “fazedor de colheres de chifte”, em Barueri. Do mesmo modo, ainda que certamente numa escala menos grandiosa do que 0s “indios construtores de catedrais” do México colonial, pintores, talhadores ¢ escultores indigenas contribuiram a seu modo para a claboragio das capelas ¢ igrejas da Sio Paulo colonial”. A documentagao também é sugestiva da proliferacdo de atividades mais indepen- dentes, como a manutengao de rocas ou a venda de doces,frutas, legumes ¢ mesmo car- nes, 3s vezes atravessando produtos sujeitos a contratos de abastecimento com a Camara Municipal. Jerénimo de Brito, em seu testamento de 1644, concedeu a cada homem de seu avultado plantel uma foice, enxada e machado “para fazerem suas rogas para se sus- tentarem”. Quanto ao comércio, as freqiientes proibicdes publicadas pela Camara Muni- cipal visando coibir 0 comércio com os “negros da terra” sugerem a presenga continua de indios quitandeiros e atravessadores nas ruas da Vila ¢ nos caminhos rurais Para além das ocupagées ligadas de alguma maneira & producao, os indios cum- priam um papel muito significativo no sertanismo e em outras tividades que deman- davam o exercicio das préticas guerreiras ou da violéncia menos organizada. Foram os bandeirantes que levaram a fama de grandes sertanistas e dilatadores das fronteiras da América Portuguesa, mas as suas expedigGes s6 se tornaram vidveis a partir da partici- ago maciga de quadros indigenas em todas as etapas. No século xvr e no inicio do XVII, 0s portugueses ¢ mamelucos de So Paulo contavam com a mobilizagio de grupos intermediérios aliados, basicamente independentes, ou da ago de “pombeiros” para conseguirem cativos. Com as mudangas na organizagio na escala do apresamento, as “armagées” favoreciam a exploragio de quadros préprios, aparecendo na documentagio uitas referéncias a {ndios considerados “grandes sertanistas”. Alguns indios também ficavam encarregados de plantar rogas nos caminhos para o sertio, como no caso de Ana ‘Tobajara, que na década de 1670 cuidava das “plantas de Urucujé”, no caminho para os sertées das fururas Minas Gerais". * bidem, p. 172-3; FERREIRA, Mata Theresa Cortéa da Rocha. Aldeamentesindigenas pias no final do Perdo- do Colonial. Dissertago de Mestado, So Paulo: rics-Usp, 1991. p. $3: GRUZINSKI, Serge. "Os indi cons: tetores de catedrais:mestigagem, tabalho ¢ produgio na Cidade do México, 1550-1600". In: PAIVA, E. F. ANASTASIA, C. M.J (orgs). O tabtho mestgn: manna de pia formas de iver sculos Xa i So Palo Annablume, 2002, p. 323-39, “Ver a dscussio em MONTEIRO, J. Op. cit p. 172-3. Wider, p99. Os raros autos civeis que sobreviveram desta época revelam contendas entre colonos que mobilizavam capangas indigenas para praticar violéncias. O exemplo mais conhe- cido € 0 do facinora Bartolomeu Fernandes de Faria, cujos indios criminosos, incluindo © temivel e bexigoso José Grande Carijé, nfo apenas mataram um sem-niimero de desafetos do senhor, como também perpetraram o espetacular assalto ao armazém de sal em Santos, em 1710. Outro caso ilustrativo foi movido alguns anos antes por Francisco Cubas contra os herdeiros do poderoso José Ortiz de Camargo. De acordo com a acusagao, os indios de Camargo teriam invadido uma fazenda no bairro de Nossa Se- hora do O, destruindo o gado e as plantagées, inclusive atacando o flo de Cubas “com armas ofensivas ¢ defensivas, com vozes dizendo mata, mata a Joao Cubas”, Um dos indios foi morto “com muitas frechadas que lhe deram ¢ lhe quebraram a cabeca e des- piram e roubaram a casa e sitio” JOSE GRANDE CARIJO, CAPANGA Preocupacio tio presente entre os paulistanos de hoje em dia, a violéncia possui ralzes profundas ‘que remontam aos tempos colonias, perfodo marcado pela brutalidade do apresamento, pelos cas- Cigos birbaros, pela vendeta entre familias e pela agio freqliente de justiceiras. Dentre as preciosi- dades ainda inéditas do seu vasto acervo, 0 Arquivo do Estado de Sio Paulo possui uma polpuda devassa criminal datada de 1718, reference 20 lendétio “régulo” Bartolomeu Fernandes de Faria. No final do século xvi e inicio do xvut, este paulistano montou um impressionante séquito de capan- gasde virias origens, mostrando as cores e os nomes da divesidade da épocs: 0 mameluco Joio Fe nandes, Damo Carjé, Manuel Ruivo Bastard, Pedro Mulato Papudo, Francisco Malhado (este “ilkimo nascido na Affica). Mas o maior dees foi José Fernandes, que, segundo um de seus dela- tres, "€ um catié bexigasa maior de cingicnea anos a quem o dito Bartolomeu Fernandes de Faria ctiou, que 0 tem servido em todas suas insoléncias © mortes que tem mandado fazer". Dessas Insolencas, destacou-se a agie armada de outubro de 1710, na qual Faia e seu exércico particular de duzentos indios, negros ¢ mestigosarrombou os armazéns do sal. Em seu depoimente depois de reso, José Carié nao mencionou o incidente do sal, mas relembrou outrs ousadia cometida por cle ¢ seu “amo” Bartolomeu Fernandes: em 1712, invadiram a resdéncia do ouvidor porcugués Antdnio da Cunha Souto Maior. Este potseguia Faria, conformne cle proprio escreveu 0 rei, com 0 ineuto de acabar com “as inqetagdes que a malignidade deste homem pode causarnessas terra [Nio conseguiram atingr o ouvidor, mas os agressores deixaratn un recado bem paulista, langando tuma chuva de lechas sobre casa, Finalmente preso no calabouso da forcleza da Barra em Santos 0 indio José Fernandes deivou regstrada pelo menos parte de sua vida de crimes a mando do se hor cujo sobrenome adotars. A histériaé, contudo,incompleta, intetrompida por outa “tradigio” regional: havia sobrevivido as bexigas © a imimeros confiontos armados, porém no resistiu aos smaus-tratos da justisa no calabouso, ‘0 cxemplo de Faria € discutido em MONTEIRO, J. “Sal, Jastign Sociale Autoidate Régis: Sto Paulo no Inicio do Século vn”. Nicer, Tempo, 8, 1999. p. 23-40; para o incidenteenvolvendo os indios de José Ortr de Cama go, ver MONTEIRO, J. Op. et, 174 48 oscutros oF mRATIMINGA AO MORRO‘DA SALIDA ‘Ao quebrar a cabega do pobre indio Agostinho, os invasores de Nossa Senhora do © demonstravam a sobrevivéncia de priticas guerreiras e de uma linguagem simbélica indi- gena no interior da sociedade colonial. Na devassa contra Bartolomeu Fernandes de Faria seus capangas, uma das testemunhas relacou uma cena que também ¢ evocativa da per- sisténcia de praticas guerreiras indigenas incrustadas na cultura da sociedade colonial. ‘Apés o brutal assassinato de dois homens praticamente indefesos, os matadores voltaram para o sitio de Fernandes, que “esperava por eles ¢ indo tocando uma caixa de guerra e dando muitos tiros ¢ salvos ¢ 0 dito Bartolomeu Fernandes os recebeu com grandes fes- tase alegrias dando banquetes e aplaudindo muito as ditas mortes’. Outra testemunha acrescentou que o delito foi motivo de festa especialmente entre “os negros”®, Na violéncia e nas atividades guerreiras que marcaram a historia colonial paulista, surgiram, portanto, indicios de sobrevivéncias do univers 0 mesmo tempo, esses exemplos também revelam as reformulagdes desse mesmo uni- verso que, afinal de contas, havia sido estihagado pelas impiedosas epidemias e pela con- guista e subordinagao dos indios, A mudanga do sertio 20 “povoado” representava um ena pré-colonial. Porém, deslocamento nao apenas no espaco, mas também de um horizonte sociocultural a outro. Obrigados a conviver com pessoas de outras origens étnicas, batizados ¢ douttinados na lingua geral, sujeitos a regimes e ritmos de trabalho antes desconhecidos, 0s indios egres- s0s dos sertdes faziam no mais das vezes uma viagem sem volta, Para os que sobrevive- ram as dificuldades epidemioldgicas dos primeiros meses de cativeiro e para os que nasce- ram jé no povoado como “crioulos”, surgiam novas formas de sociabilidade, orientadas pelas relagdes de dependéncia, pelo compadrio, pela relagio com a Igreja. Em sua biografia do jesuita Belchior de Pontes, Manuel da Fonseca fornece um rico relato que evoca aspectos cruciais do dia-a-dia dos indios nas propriedades particulares, dos paulistas durante o século xvit, © Padre Belchior, durante um perfodo, dedicava- se & fazenda de Amador Bueno da Veiga, a qual “contava de ordinério quase trezentos Indios, podendo entrar o seu sitio naqueles tempos no miimero dos populosos bairros, de que se compunha a Capitania: ainda que hoje [1752], pela variedade dos mesmos tempos, apenas se sabe 0 lugar, onde existiu aquela abrasada ‘Tidia’. A riqueza de Amador Bueno ~ ¢ de todos os paulistas do século xvut ~ fundava-se “nos indios, que traziam do sertio ¢ ele por si mesmo, e por seus procuradores recebia grandes levas, con- tinuou no mesmo auge, enquanto Ihe duraram as entradas”. Apesar dos “amiudados contégios” que diminuiam a populacéo indigena, foi possivel manter ntimeros consi- deréveis por meio do apresamento. Belchior de Pontes assistia na fazenda, sobrerudo apds a chegada de “novos catectimenos”, mostrando-se um sucessor slo zelo dos primeiros jesuitas do século anterior. “Elevava muito o seu zelo a destreza na lingua; porque como Ihes falava em idioma que eles entendiam, aplicavam-se com algum gosto as doutrinas, e se faziam capazes em breve tempo dos mistérios, que Ihes ensinava’. Também a exem- plo dos antecessores, pregava junto com o amor o terror: “Ajuntando & eficécia das ra- 26es, com que procurava emendé-los, o rigor dos castigos, que lhes proferizava’®. Parasuma anise mas detalhada desta devas ver MONTEIRO, J. Op. cit FONSECA, Manel da, S.J. Vide do Venere! Padre Belcior de Pots [1752]. Ba. asimila, S30 Paulo: Melho- p.106-7, ramentos, 19 Na doutrina dessa multidao de indios, a qual faltava “se nfo a luz da Fé, a0 menos 0 claro conhecimento dos seus mistérios", o Padre Pontes evocava a atuagao de Anchie- 1@, num interessante jogo envolvendo nao apenas a meméria jesuitica como também a meméria indigena. Munia-se do Catecismo na lingua brasilica para ensinar os indios, “para que nao s6 fosse mais fécil a sua inteligéncia, mas também com maior agrado as decorassem, seguindo-se destas continuadas fadigas grandes frutos”. De acordo com 0 bidgrafo, o Padre Pontes ficava rodeado, nessas ocasides, bém de portugueses”, Em vérias ocasides celebrava a missa fora das igrejas da Vila, nas capelas particulares: “Era infalivel a doutrina depois da missa, guardando sempre ‘ume de explicar os sagrados mistérios aos indios na sua lingua”. Um exemplar do Cate- cismo impresso nao bastava, pois Pontes distribufa em “caderninhos de papel” partes da doucrina crista que estava compondo em lingua geral, “temetendo-os aos pérocos mais distantes, para que eles, repartindo-os aos fregueses, Ihes fizessem doutrina sem traba~ Iho”. Também usava livros ilustrados em seus ensinamentos, com imagens do inferno que muito impressionavam os indios'. Darismatico, o jesufta era chamado de Pai Pontes pelos indios, que reputavam ele ser um homem santo. O bidgrafo relativiza nesse ponto: “Este conceito de Santo era mui vul- gar entre eles”. Ainda assim, a presenga constante desse padre “armado com o seu brevié- rio ao tiracolo”, chamava a atengio dos indios, que assistiam com interesse os exerci de mortificagao aos quais Pontes submetia-se, pois “tratava o scu corpo como a inimigo”. Um exemplo disso foi na aplicagao de formigas nos lengéis, que para a india que 0 obser- vava representava um “até entdo nao visto género de descanso”. A abstinéncia sexual tam- “ndo s6 de indios, mas tam- cos- bém era componente importante, porém, &s vezes posta & prova por catectimenas mais cousadas: “Na aldeia de Ieapecerica houve uma india tao presa de um desordenado afeco, que chegou a entrar-Ihe no cubiculo, e a propor-the o seu depravado intento."* De qual- quer modo, a privagio e devogio deste homem-santo o aproximava aos homens dda mitologia herdica ¢, portanto, achava um lugar seguro ¢ diferenciado entre os indios. E certo que os indios valorizavam os dons deste cara(ba, que curava as “enfermidades, € era tanta a sua caridade, que aprendendo de alguns curiosos as medicinas, as escrevia, para que a seus tempos Ihas pudesse aplicar”. Em 1695, por exemplo, numa terrivel epi- demia de sarampo que atingiu a grande fizenda de Pedro Vaz. de Barros e Maria Leite, cle preparou um ritual para curar os doentes ¢ para que “os sios ficassem preservados de tio terrivel contégio”. No fim, na melhor tradigio performitica dos jesuitas, Pai Pontes “saiu ao terreiro e, pondo os olhos no Céu, disse: Basta, Senhor; basta de castigo”®. Outra dimensio de sua fama entre os indios residia nas profecias que pronunciava, ecoando mais uma veo a reputagio do Padre Anchieta, as vezes fazendo previs6es que se aproxi- mavam muito as histérias que Simio de Vasconcelos divulgou em sua biografia de Anchicta em meados do século xv1t, certamente uma das leituras prediletas do Padre Pontes". Nas entrelinhas da biografia, contudo, é possivel entrever que este jesuita "idem, p.1NS. “ thidem,p.\4, 43.143, Quanto ds Formigas,apesar do esranhamento da india, a provasso do padeeaproximava se um tipo deste de passagem praticado em virias sociedad indigens conhecides pels antigos pauls © Wide, p.128°9. ‘= VASCONCELOS, S. Op iz Para semelhangas com a biografia do Pate Belchior, vr sobretudo 0 cap. 11 enfientava os mesmos problemas que seus antecessores do século xvt: a persisténcia dos inveterados costumes, a “inconstancia’ na fé, a doutrina mal compreendida. O Padre Pontes estava particularmente atento 4 conversio incompleta dos indios, muitas veres batizados apenas formalmente. Ao ver passar 0 indio Patricio, carregando tum feixe de lenha, Ponces observou para a sua prima, Justina Luis: “Sabe irma que este Patricio é pagio”. Justina protestou que nao era possivel, porque ela viu o pai dela tra- zer este indio do sertao e mandar batiza-lo. O jesuita nao desistiu: Chamou-o, e perguntando-he se era batizado, respondeu que nao sabia. Inscou 0 Padre: Pois nao vos lembra quando vos batizaram? Respondeu ele que bem Ihe lem- brava, porque quando o batizaram, jé era bastantemente crescido, ¢ tinha idade suli- ciente para se lembrar. Pois que dissestes, continuou o Padre, quando vos botaram ‘gua na cabeca, meteram sal na boca, e fizeram as mais ceriménias daquele Sacra- mento? Respondeu o {ndio que Ihe no parecera batismo tudo quanto The tinham feito; porque quando Ihe langaram gua na cabega considerara que talver estaria menos asseado, e que por isso o lavavam: e que quando Ihe meteram o sal na boca, se persuadira que faziam zombaria dele, ¢ que por isso 0 langara fora, © 0 cuspira”. Episédios como esse faziam que o Padre Pontes ganhasse uma fama especial entre 60s indios, porque se dizia que o paf sempre descobria os pecados encobertos. Pelo menos era essa a mensagem transmitida de geragdo em geragao, segundo a biogeafia, revelando mais uma vera convivéncia entre o tradicional ¢ 0 novo: “Um indio da Aldeia de M’boi entre as histérias que contava aos outros para confirmar os conselhos, que costumam os antigos dar aos mogos no tempo das suas recreagdes, e que nunca calassem pecados nas confissdes, que fizessem com o Padre Pontes” Nao hi, infelizmente, muitos outros indicios a respeito dos conselhos dos antigos, porém, é possivel identificar a persisténcia de uma meméria indigena, seja na preser- vacio de vocébulos da lingua geral, seja na reprodugao de imagens que circulavam nao apenas nas hagiografias dos jesuitas. Um exemplo disso surge de maneira inesperada no diério de viagem de Teordnio José Juzarce, que participou de uma das primeiras expe- digdes a Iguatemi, em 1769. Chegando & Cachoeira de Avaremanduava, Juzarte foi informado que este nome se traduzia como “onde foi a pique um jesuita”. A versio dos indios nao era bem assim, no entanto. Segundo contaram a Juzarte, o jesuita acidenta- do teria sido “um religioso de virtude chamado o P. José de Anchieta, 0 qual andava catequizando aos indios”. Achando que o abaré havia se afogado, despacharam um mer- gulhador indio para resgatar 0 corpo, Chegando ao fundo, o mergulhador achou 0 padre “vivo sentado numa pedra rezando no seu brevirio, ¢ por isso ficou o nome a esta cachoeira de Abaramanduaba”’” O entrelagamento entre universos sociais, culturais e simbélicos distintos afetou profundamente a composicao da sociedade paulista nesse perfodo em que a vasta maio- “FONSECA, M. Op cit, p. 155-7, bide, p. 159, JUZARTE, Teorbno Jose. Didi de nang: 2000. p. 35 lo Rip Te, Rio Grande, Parand e Rio Ignatemi So Paulo: Edusp JomRsM MONTERO 51 ria dos indios de So Paulo vivia sob o controle direto de colonos particulares. No entanto, apesar da crescente diversidade étnica que as expedig6es para o sertdo intro duziam nos arredores do povoado paulistano, predominava um padrio marcadamente tupi-guarani, revelado sobretudo no uso ¢ na difusio da lingua geral, porém, também presente na tendéncia de chamar todos os indios administrados de carijés, mesmo aque- les de origens nitidamente ndo-guarani, Nesse sentido, a forte descontinuidade entre os séculos xvi e xvit - marcada primeito pelo destruigio da populagio nativa c, posterior- mente, pelo repovoamento do Planalto com indios oriundos de outras regides — foi de certa maneira atenuada pela persisténcia de tragos lingifsticos, préticas religiosas hibri das e mesmo de uma certa tradigio de resisténcia”. Pelo cariter fragmentério da expe- rigncia indigena nas propriedades particulares, contudo, ¢ dificil discernir com clareza este processo. Para tanto, é necessirio também enfocar a histéria das aldeias d’El-Rei ‘que, por grande parce do periodo colonial, mostrava-se estreitamente ligada 3 histéria das propriedades particulares. DA L{NGUA GERAL AO DIALETO CAIPIRA Muitos aurores, com destaque para Sérgio Buarque de Holand, jé chamaram a atengio para o uso ge- neralizado ca “lingua geral” até meados do século xvat em Séo Paulo, fruto da presenga preponderante de indios na popullacso. Sisrematizada no século x1 pelos jesuitas em seus vocabultis, graméticas carecismas, a “lingua braslica” ganhou novas fegBes com o tempo, sfrendo adaptages ¢conrupyes pea prsenga de outros idiomas ne Planalto, sobrenudoo portugués 0 castelhano eum sem-nvimero de linguas indigenas que chegavam com o regreso das expodicBes de apresamento, O portugues filado pelos antgos pauls er salpicado de palavras expresses indigenas, além de possuir alterages na fanetica que também denunciavam a ifluénca epi, E bem conhecido o hottor do bispo de Pernam- buco ao tentar converse com o srtanista Domingos Jorge Velho, ‘porque nem falar sabe", A ideia de ‘que 0s bandeirantes’falavam uma forma daltal do portugués fi aventada por Joaquim Ribeiro ein 1946. ver sendo estudads com ainco por Hcitor Megale e sua oqupe de pesquisadores. A lingua ger ~ ou sa, 0 up lado —soficu um decinio eipido no século xvi, em Fungdo da queda da populacio indigena, da presenga mais marcante de portgueses¢aficanos em Sio Paulo e da policca pombina «que nio 56 promoviao uso do portugués como também expulou os jesus. Resqucios do tupiflado petsniram por muitos anos, no encanto. No final do século xr, ainda se ouviaversos em tupi em cteretés de rocczos nos rredores da Cidade, segundo Couto de Magalhaes (1837-1898). O foleorista Amaden Amaral (1875-1925) também rgistou sobrevivéacia a lingua geal 0 compar o seu pecioso «studo Ocal capin (1920). Composto numa momento em que o Estado reccbia um fluxo muito sig nifiativo de migrants europeus,sobrerudo italiano, lvro de Amaral buscava conserva paras poste- Fidade aquilo que, segundo ele, “acha-se condenado a desaparecer em prazo maisou menos bree”. Ainda hoje, contudo, « modo de filare 6 vocabulirio dos paulistanosevocam tags da lingua gral edo dile- to caipra, Mesmo para quem quise estudara vlha lingua alc, no fltam alguns professores de rupi « tupindlogos amadores que mantém viva a tadigio que Anchietainiciou hi 450 anos. Ni fi posivelaprofundar aqui a questo da resisténcia durante este prlodo, porémn fornego amplose variados cexemnpls em Negro de Tera eapiealo 5, 52 Dosesaos DE HRATININGA AO MORRO DASAUDADE 5. Aldeias d’E|-Rei, indios vassalos Ao longo do século xv11, uma minoria expressiva da populacio indigena continuava ulada as quatro aldeias da Coroa fundadas no século xv1 e inicio do xvit nos arredores da Vila: Pinheiros, Sio Miguel, Conceigéo dos Guarulhos ¢ Barueri. No encanto, entre a primeira expulsio dos jesuitas, em 1640, ¢ a reforma instituida em 1698, grande parte dessa populagio foi retirada das aldeias ¢ incorporada aos quadros, das propriedades dos colonos, ao mesmo tempo que suas terras foram retalhadas ¢ ocu- padas por interesses particulares. Embora pouco precisas, as informagées sugerem que as aldeias abrigavam mais de cinco mil indios em 1640, sofrendo uma queda vertigi- nnosa a partir de entio. Em 1679, quando a Coroa demandava o servigo dos aldeados para duas expedig6es, uma de nacureza militar ea outra em busca de metais preciosos, descobriu que os 2.800 casais de 1640 haviam diminuido para meros 290. Mesmo este tilimo nimero se mostrou exagerado, porque quando oficiais da Camara de Sio Paulo inspecionaram as aldeias nesse mesmo ano de 1679, encontraram bem menos ocu- pantes: contabilizaram 58 indios em S30 Miguel ¢, no ano seguinte, apenas 17 em Barueri. O caso mais sério era o de Conceigio, cuja ocupacio por moradotes nao indios redundou na criagio da freguesia de Guarulhos em 1685” AA dispuca pela mao-de-obra das aldefas havia comegado jé nos anos finais do século xv, porém, ficou mais acirrada com a expansio das atividades agricolas nas primeiras décadas do xvi. Conforme vimos, os colonos expandiram a sua forga de trabalho por meio do apre- samento, mas nao contentes com os milhares de Guarani tomados nos sertes dos Carijés € do Guaird, buscaram apropriar-se dos aldeados também. O grande apresador, Antonio Raposo Tavares, em sua propriedade de Quitatina, nao apenas contava com mais de cem indios sob a sua administragao particular como também empregava vatios indios da aldeia vizinha de Barueri, segundo consta no testamento de sua esposa, Beatriz Bicudo, em 1632”. Os jesuitas, responsaveis pela administragao das aldeias, impunham restrigées & repartigio dos trabalhadores, o que atigou a ita dos moradores, Estes conseguiram eliminar 0 obstéculo jesuitico a comegar pela aldeia de Barueri, em 1632, completando a operagio ‘ito anos mais tarde, com a expulsio dos padres. Apés a expulsio, os colonos passaram a contar com as agéncias dos capities brancos das aldeias — freqiientemente, parentes dos principais moradores dos baittos circunvizinhos — e dos capities indios. No caso de Con- ceigéo, por exemplo, um dos principais invasores de terras indigenas ao longo do rio Baquirivu, Geraldo Correia Soares, conseguiu ser nomeado capitao-branco da aldeia em 1663, contando com o apoio do capitao indio, Diogo Martins Guarulho” © caso de Barueri foi diferente, no entanto, porque em vez de prestar apoio aos colonos, as liderangas resolveram contestar os interesses destes na justica. Espremidos centre as Vilas de Sao Paulo ¢ Santana de Parnaiba, que disputavam a administragio da aldeia apés o alijamento dos jesuftas, ¢ préximos as principais propriedades produroras Estes dados foram apresentados a0 Conselho Ultramarine por Salvador Cortcia de Si, “ester de vist. Cia do erm LEITE, S. Op. cit, 1938-1950, v. 6, p. 239-40, “Testamento de Beatrix Bieudo, 1632. ARQUIVO DO ESTADO DE SAO PAULO, Inventiros¢Texamentss7 MONTEIRO, J. Op. itp. 205 de ttigo, os indios entraram em confronto, em 1656, com o poderoso fundador de Par- nafba, André Fernandes, para definir os limites das terras da aldeia. Os indios alegavam ser ocupantes daquelas terras havia mais de oitenta anos. No ano seguinte, foi condu- zida uma inquirigao de testemunhas, cujos depoimentos indicavam que a aldeia fora estabelecida por iniciativa do governador Francisco de Sousa, por volta de 1609. Foram resguardadas as terras da aldeia, que foram poupadas em grande parte, mesmo na época fem que a Camara de Sio Paulo passou a aforar terras de indios aos moradores Apesar de expulsos das aldeias reais pelos colonos, é importante observar que os jesu tas acumularam outras propriedades que acabaram funcionando como miss6es que abi gavam centenas de indios. Em varias ocasides, durante os séculos xvii e xvutt, 0 Colégio de Sao Paulo recebeu doagées significativas de colonos particulates. O primeiro caso em que uma avultada propriedade particular foi transformada em missio ocorreu em 1615, quando Afonso Sardinha e Maria Gongalves doaram a sua propriedade de Carapicuiba para os inacianos. A Capela de Nossa Senhora da Graga mostrava-se modesta em seus paramentos € prataria, porém a cla estava agregada uma quantia expressiva de indios que foram descidos do sertao por Sardinha ao longo dos anos. Na doagio, o casal recomen- dava aos jesuftas que “tenham cuidado de toda a sua gente, forros goaramins, como de ‘outras nagées’. E interessante este detalhe pois, apesar de sugestivo de uma mistura de vrias etnias, sublinha a existéncia de um micleo de indios Guarulho, também chamados de Maromimim, Guaramimim, entre outras variantes. Ainda assim, nos papéis reunidos na época do confisco das propriedades dos jesuitas, apés 1759, consta que a aldeia ori nal posteriormente foi “desmembrada dos muitos indios de que pela maior parte se for- mavam as duas aldeias de Itapecerica e S. José”, assim como alguns dos escravos foram remanejados para outras propriedades dos préprios jesuitas, como a Fazenda de Santana, relatério de 1694 do reitor do Colégio, Francisco Frazao, ainda declaravaa presenga de cingiienta “cativos”, isto é, escravos africanos, porém estes teriam passado para a Fazenda de Sancana (ou talvez para as minas) nos anos subseqiientes”. A outra grande doagio do século xvit foi da propriedade de Embu, passada por Fernao Dias (tio materno do homénimo Governador das Esmeraldas) sua mulher Catarina Camacho, em 24 de janeiro de 1624. A exemplo de Carapicuiba, esta propriedade também concentrava uma populagio ind{gena bastante expressiva: decla- ravam os doadores que “tém muitos Indios da terra que desceram do sertdo e por ou- tras vias adquiriram ¢ os tém e reconhecem a todos por livres". Supde-se que essas “outras vias” fossem por compra ou mesmo por aliciamento da aldeia de Pinhciros. De qualquer modo, insistiam que os indios eram liyres, “por entenderem que em nenhu- ‘ma outra parte serao to bem tratados nem serio tio bem acomodados do remédio corporal e espiritual de suas almas que é 0 principal fim porque vieram do sertao e tam- bem por entenderem que os mesmos indios isto querem e desejam”. Diferentemente de Carapicutba, & provavel que esses indios fossem em sua maioria Carijé, isto é, Guarani, Estes foram doados “2 dita casa de Santo Incio [e] querem que os Religiosos “PETRONE, Pasquale. Adeemento: pais Sto Paulo: Eds, 1995, p. 116; LETTE, S, Op. cit, 1938-1950, w 6,p. 231; MONTEIRO, J. Op. cit, p. 142-4 Relages dos bens apreeadidoseconfiscados 0s jesuieas da Capitania de Seo Paulo, como conseqiéncia da expul= so dos estas do Brasil. Documents Interenantes, 44, 1915. . 337-78 54 DoseAMmos DE MRATNINGA AO MORRO DA SAIDADE [dela] os possuam logo ¢ tomem posse deles”, porém, nao se sabe se os jestuftas pas- saram a administrar essa propriedade de imediato. Ao que parece, foi apenas em 1668, quando a velha Catarina Camacho faleceu, que os jesuitas eferivamente tomaram posse da fazenda, pois em seu cestamento ela “declarou que na sua fazenda de Bohy [Embu] tinha uma Igreja da Virgem do Rosério muito bem aparamentada”®. Este & um exemplo, segundo Pasquale Petrone, de um aldeamento que evoluiu de “uma aldeia particular, praticamente de administrades””. Mais adiante, os jesuftas ainda acumularam uma fazenda de gado em Santana ¢, a maior de todas, a propriedade do rico Padre Guilherme Pompeu de Almeida em Aragariguama. Se os colonos particulares consideravam as aldeias como uma reserva de mao-de- obra, do ponto de vista da Coroa portuguesa, a principal fungao das aldeias era a de providenciar uma reserva de leais vassalos, prontos para servirem nas expedigies mi- litares ¢ em outras atividades organizadas pelo Estado. Em varias ocasibes, os emissérios da Coroa demandaram, junto & Camara Municipal, indios das aldeias para integrarem as expedigées pretendidas. Herdeira da responsabilidade de administrar as aldeias, a Camara agiu de modo bastante contraditério durante o século xv1t, ora honrando as demandas da Coroa, ao restituir os indios que andavam por propriedades particulares, ora lesando os interesses dos aldeados por meio de uma politica de aforamento de suas terras. Esses dois movimentos manifestaram-se no final da década de 1670, quando a Coroa despachou dois portugueses para tratar das minas de Paranagus, na falta destas, das de Sabarabucu, pois havia recebido noticias das possiveis descobertas de prata ¢ esmeraldas por aventureiros paulistas. Um dos portugueses, D. Rodrigo de Castelo Branco, acabou de fato indo para Sabarabugu, onde foi assassinado pelo genro de Fer- no Dias Paes, Manuel da Borba Gato. © outro portugués, parente de D. Rodrigo, Jorge Soares de Macedo, comandou tuma expedigao de apoio 2 fundacio da Colonia do Sacramento, apés negociar com muita dificuldade a concessio de 120 indios pela Camara de Sao Paulo. Certamente, a maioria dos indios nessa expedigao constituiu-se de carregadores, remadores e soldados rasos, muitos dos quais fugiam na primeira oportunidade. Mas varios indios perten- centes as aldeias de Itapecerica, Barueri e So Miguel no apenas participaram da cam- panha como, por ironia, acabaram sendo tomados prisioneiros pelos {ndios das misses jesuiticas que compunham as forgas castelhanas na Banda Oriental, em 1680. Vitimas de um naufrigio, os prisioneiros foram levados inicialmente para a reducio de Yapeyu ¢,cm seguida, para uma fortaleza em Buenos Aires, onde prestaram depoimentos sobre essa malfadada expedicio”, A palavra dos indios, nesse episédio singular, revela detalhes importantes sobre as percepgdes que tinham de sua posicio na sociedade colonial ¢ de sua condigao de vas- salos da Coroa. O primeiro a depor, Miguel da Silva, da aldeia de Nossa Senhora dos Prazetes de Icapecerica, dispensou o uso de um intérprete “por ser ladino em lingua espanhola ¢ portuguesa’s ademais, assinow o préprio nome nos autos. E interessante © * bide, p. 368-9. *PETRONE, P Op. cit p. 117, énfse do autos “LUNA, Carlos Correa. for.) Campa del Brasil antcedentes colonials, Buenos Aes: Guillermo Kraf Lida. 1931-1941. 3 Os documentos referente a ete epsto xté0 no v1, p. 91-281 Grupo guarani erm Estado de S80 Pau 108 no final do século x, Algumas radigbesantigas perduraram nos sees da Provincia edo ‘© omprego de setanstas guaranis em expedigoes cientifieas e paramlitares. reaparecimento da etnia Tupi neste contexto deslocado, possivelmente uma imputagio dos espanhéis que interrogavam os prisioneiros, uma ver que os inimigos dos Guarani cram categorizados como Tupi, termo remanescente dos episédios de invasao ¢ destrui- io das redugdes pelas expedicdes dos portugueses, mamelucos e tupis de Sao Paulo. Outro “ladino” em espanhol e portugués, Jerénimo Camargo, era natural de Carapi- cuiba. Ao ser questionado sobre a ocupagao da Ilha de Santa Catarina pelos portugue- ses, informou que o “homem rico” Francisco Dias Velho estava na ilha, acompanhado por “até duzentos indios da nacdo tupi por ser escravos”. Poucos dias depois, chegaram 4 fortaleza mais doze “ndios tupis tomados aos portugueses”, todos apresentando seus depoimentos na Joao Moreira, da aldeia de Sio Miguel, apesar de ladino em portugués, preferiu depor em lingua geral. No fim, a labilidade das identidades desses indios seria posta & prova novamente, pois foram repartidos entre moradores de Buenos Aires e, 20 que consta, nunca voltaram para Sao Paulo”. ngua geral, a qual, segundo o escrivao, era igual ao guarani. O indio Nao foram muito bem-sucedidos os esforgos da Camara em devolver os indios &s aldeias, para atender aos pedidos de Jorge Soares de Macedo ¢ D. Rodrigo de Castelo Branco”. Nem poderiam ser, pois nesses mesmos anos a mesma Camara praticamente loteava as terras dos indios a forciros particulares. Mas 0 processo de declinio das aldeias ELRei atingiut 0 ponto mais baixo na década de 1690, agravado pela evasio de indios para as recém-descobertas minas de ouro. Alguns dos principais paulistas que tiveram uma atuacio na primeira fase da ocupacao das Minas Gerais, seja na mineragdo, seja no atravessamento de géneros alimenticios inflacionados, contavam com indios perten- centes as aldeias nao s6 como carregadores, mas também como defensores de datas € terrenos mal definidos. Amador Bueno da Veiga, por exemplo, poderoso vizinho da aldeia de Sao Miguel e usurpador de parte de suas terras, nfo apenas mobilizou indios aldeados, como também se apoderou de varios indios que haviam sido legados por Francisco Cubas a capela de Bonsucesso, também sediada em terras de indios™. Diante da nova situagio, a Coroa buscou novamente impor alguma ordem, Em 1698, apss ter inspecionado pessoalmente a situagio das aldeias de Sao Paulo, o gover- nador do Rio de Janeito, Artur de S4e Meneses, introduziu um novo plano para a restau- ragio das aldeias, indicando Isidoro Tinoco de Sé 20 cargo de procurador dos indios para implementar a reforma, Além de novas sangées contra os colonos que detinham indios, das aldcias em suas proptiedades particulares, o plano reintroduziu a presenga siondria, porém, expressamente excluindo os jesuitas em razio das desavengas histéricas entre esta ordem religiosa e os colonos*. Pinheiras foi posta sob a administragio dos beneditinos, Barueri ficou com os carmelitas ¢ Sio Miguel com os franciscanos “capu- Sublinha-se a auséncia, é desde esta data, da aldeia de Conceiggo, & qual, por volta de 1685, passou a se confundir com a nova freguesia de Guarulhos. Apés apenas dois anos, Artur de S4.¢ Meneses forneceu um retrato do éxito do pro- grama: de apenas duzentos indios, a populagéo das aldeias atingiu mais de dois mil hos”, * Ibidem, W715, 235:7. OBLAJ, I. Op. et, p. 19-20. MONTEIRO, J. Op. et, p. 205-60 219-20 “BLAJ I. Op. cit p- 152-4; MONTEIRO, J. Op it, 1994, p. 215. roms Monet 57 residentes. Mas essa avaliagio otimista foi precipitada. Nao demorou muiro para as acusagdes de corrupsao contra Isidoro Tinoco chegarem aos reais ouvidos, levando a sua do cargo. Mas o seu substicuto foi ainda pior. Assumiu o cargo Pedro Taques de Almeida, um dos principais membros da elite paulistana que, seguindo as nobres tradigoes que seriam 0 objeto das narrativas gencaldgicas de seu descendente hom6ni- mo, usou 0 cargo para o beneficio de parentes e aliados”, A presenga dos missionérios também nao surtiu efeito de imediato e, no caso de Pinhciros, nunca chegou a ser muito significativa, porque os beneditinos tinham difi- culdades em manter um péroco residente na aldeia. Os préprios indios se queixavam desse estado de abandono, A aldeia de Barueri também passou por dificuldades, a jul- gar pela anedota oferecida por Pedro Taques a respeito da morte misteriosa do Frei Francisco de Santa Inés. Este carmelita mudou para Barueri, provavelmente no inicio do século xvi, construindo uma nova igreja que seria inaugurada no dia do orago Nossa Senhora da Escada. Contudo, “antes de adornar o templo, ¢ fazer levantar casas de taipa para vivenda dos indios em ruas, que jd tinha destinado, acabou na mesma aldeia, de repente, € com nao pequenas conjecturas de que fora veneno introduzido em um cristal que Ihe administrou um seu escravo, que o servia com aparéncias de fidelidade havia muitos anos”. Ainda assim, mesmo na auséncia de um paroco per- ‘manente, as capelas e os santos ocupavam um lugar importante na vida dos indios aldeados. Algumas devogdes cativaram 0 imaginério dos indios de maneira especial: Sao Sebastiao, por razbes mais ou menos ébvias, ¢ Nossa Senhora da Escada, presente em varias aldeias pelo Brasil, incluindo Barueri e Guararema na regiao paulista. Segun- do Leonardo Arroyo, “reza a tradigio popular que os indigenas tinham por habito colocar sobre a sepultura de seus mortos um fardel cheio de alimentos ¢ uma escada para que a subida da alma até o reino de Tupa se realizasse de maneira tranqilila. Co- rnhecedores deste fato, os padres teriam tratado de esculpir degraus ao redor da Virgem, com o objetivo de estabelecer uma ligasio entre as crengas pagis e a religido adventt- cia, de modo a facilitar a catequizagio””. No caso de Sto Miguel, uma das aldeias mais atingidas pelo esbulho de rerras, durante a segunda metade do século xvu, também demorou para os novos admi tradores tomarem o controle da situagao. De acordo com o Frei Venincio Willeke, nao hd noticias sobre a aldeia e sua populagao até 1716, daca na qual o superior da aldeia se queixou dos “ataques ¢ raptos dos indios”. Esta queixa certamente se referia a Amador Bucno da Veiga ¢ outros poderosos vizinhos da aldeia, os quais exploravam o trabalho indfgena nao apenas em suas propriedades locais, como também nas lavouras e nas lavras de Minas Gerais. Além do trabalho na agricultura e no transporte, no entanto, cesses indios extraviados das aldeias também exerciam um papel importante nos pe- quenos exércitos particulares dos porentados paulistas, inclusive no episédio conheci- do como a Guerra dos Emboabas. Em 1718, apés a prisio do “facinora” Bartolomeu Fernandes de Faria, Sa0 Miguel praticamente renasceu a0 recebet a restituigio dos indios que haviam sido “seqtiestrados” por este paulista, A maioria dos relatos afirma exonera BLA I. Op. cit, p. 251-2. PAES LEME, P. Op. cit, ¥.2,p. 8, "ARROYO, Leonardo. lj de Sdo Paulo, 2 ed, Sia Paulo: Cia. Editors Nacional, 196 58 os cAMnosD PRATININGA AO MORRO DA SALDADE que foram duzentos indios realdeados naquele momento, porém a documentagio da Epoca permite confirmar a restituico de 98 entre indios, bastardos e mulatos™ Por falta de documentago, os historiadores franciscanos Basilio Réwer e Venincio Willeke pouco esclarecem sobre a vida dos indios de Sao Miguel sob a administragao dls frades menores. Ao que parece, instalaram-se na propria aldeia um superior ¢ mais dois frades, nfo apenas para minis demais atividades dos residentes da aldeia, Estes defendiam, até certo pont, os interes- ses coletivos dos aldeados contra os abusos dos vizinhos, que se apropriavam das terras edo trabalho dos indios, bem como contra as demandas das autoridades que, em varias ocasiées, solicitaram indios para servigas diversos, inclusive militares. Os aldeados prestavam servicos piblicos, pelos quais recebiam salérios (provavelmente em forma de panos), incluindo a limpeza dos caminhos, trabalho em obras piiblicas ¢ no transporte de pessoas ¢ objetos. Os fiades buscavam controlar 0 processo de recrucamento ¢ aluguel dos indios, com grandes dificuldades, pelo que se pode depurar do relato do Frei Apolindrio da Conceigao, que se queixava das constantes demandas por parte dos capitaes-generais. De fato, nas décadas de 1720 ¢ 1730, os governantes contavam com a populagio aldeada para servir de cartegadores ¢ remadores nas viagens para as minas de Paranapanema, Minas Gerais e mesmo Cuiabé, 0 que deixava a missao “mui desti tuida’, pois, segundo Frei Apolinario, muitos jamais voltaram™. Este, certamente, era também 0 caso nas expedigdes militares, organizadas aps 1730, para combater os Paiagud e Caiapé, que atrapalhavam o fluxo do ouro das minas de Cuiabé e Goids. Na breve descrigao da aldeia de Sio Miguel em sua Epitome, Frei Apolingiio oferece pelo menos algumas informagies reveladoras da experiéncia cotidiana dos indios. No plano espiritual e educacional, o escritor franciscano ressalta a centralidade das missas rezadas ¢ cantadas, “além de todos os dias pela manha e noite se ensinar a douttina prin- cipalmente aos pequenos da aldeia, que rematam com algumas orages que com muita graga cantam; tém suas confrarias, que servem com muito zelo, tendo por orago a aldeia 0 Arcanjo de Sao Miguel, que no altar-mor se venera em linda imagem”. Neste trecho, chama a atengdo, sobretudo, a existéncia de confrarias ou irmandades entre os indios, aspecto ainda pouco conhecido da organizagio das aldeias missionrias. Mais adiante, Frei Apolinario ressalta outro aspecto marcante dessa organizacio, agora no plano temporal © superior elegia, entre os indios, “juizes, aleaide, e capitio-mor pelos quais, quando alguns andam mal encaminhados, manda prender, agoitar...”™. Presenca constante nas missoes de todas as ordens, 0 castigo corporal indica nao apenas a postura disciplinadora dos missiondrios, como também, de maneita mais significativa, o, papel de autoridades indigenas no interior das aldeias, certamente no apenas como os prepostos dos frades, Um aspecto pouco conhecido desse periodo diz respeito 2 incorporaséo de novos Indios egressos, sobretudo, das expedigdes de apresamento que os paulistas conduziam no extremo oeste da América Portuguesa, A documentagao dos anos de 1730 ¢ 1740 rar 0s sacramentos, como também para conduzir as “WILLEKE, Venancio (Fre) orm. Misses fiancicanss no Bail, 1500-1975, Petxspolis:Vores, 1974, . 120-1, Ven também, MONTEIRO, J. Op. it, "0 relato do Frei Apolindsi ¢resumido em ROWER, Basilio, oye, Paginas debistria franccana no Brasil Pers polis: Voues, 1941, p. 618-27, “Frei Apolindto,ctado em ROWER, B. Op sit, p 625. revela a presenga de indios Pareci ¢ Bororo em Sao Paulo, trazidos por sertanistas das rotas mongoeiras. A maioria dos Bororo servia aos interesses particulares como auxi- liares guerreitos, compondo os corpos militares que sairam das vilas paulistas durante estes anos para combater os Paiagus e Caiapé, povos que “infestavam” os caminhos entre Sio Paulo, Cuiabé e Goids. Muitos outros, sobretudo Pareci, se fixaram em Sao Paulo, seja nas aldeias, seja nas propriedades particulares, acrescentando um novo capitulo & histéria da diversidade cultural em Sao Paulo. Em prinefpio, todos deviam ter o destino das aldeias, porém, na década de 1730 as autoridades permiciram que os particulares mantivessem o controle direto sobre esses indios, mediante o depésito de uma fianga, introduzindo uma pritica que voltaria, com certa freqiiéncia, até meados do século x1x" Sobrevivendo sempre precariamente, as aldeias da Coroa voltariam a ser 0 objeto de pressbes régias com a chegada do Morgado de Mateus, em 1765. Na politica reformista do ministro Sebastio José de Carvalho ¢ Melo (Futuro Marqués de Pombal), 0 idioma da vassalagem ganhou novos contornos para os indios, sobretudo no que diz respeito & expectativa de contar com soldados indigenas nos projetos de ocupagao ¢ militarizagao das éreas de fronceira” Para 0s indios da Capitania de S recrutamento de indios aldeados para as expedig6es 20 Iguatemi, porém, o impacto incidiu, sobretudo, em outros aspectos. Diferentemente da Amazonia, as aldeias paulis- tas nao foram transformadas em vilas, apesar de o plano do Morgado de Mateus apon- tar nessa direcio, a0 sugerir “de se demarcarem os distritos das aldeias, de se formarem delas freguesias agregando-lhes os moradores brancos que estiverem dentro das terras {que constarem pelas sesmarias antigas serem pertencentes as ditas aldeias e nao haven- do as sesmarias se Ihes arbitrario por esta prudente estimativa aquele circuito que se jul- gat preciso para a demarcagio fazendo-se do mesmo modo com os moradores que vivem dentro a mesma uniao”, Para consolidar a populagéo das aldeias, 0 Morgado também buscava ampliar os critérios de pertencimento, sugerindo a inclusao da populagao vadia que descendia de “Carijés até o quarto grau’. Com a expulsio dos jesuitas em 1759, a Coroa pas- sou a administrar como aldeias as antigas propriedades de Embu ¢ Carapicutba (além de outras menores, como Santana, ¢ outras mais distantes, como Aragariguama) Durante o periodo do Diretério dos Indios (1758-1798), apesar de oscilagdes pon- cuais, a populacio dessas aldeias se manteve em torno de 1.500 habitantes. No entan- to, uma parte grande dessa populagio constava como ausente da aldeia em alguns anos, atingindo até 40% da populagao de Pinheiros em 1783". 10 Paulo, a politica pombalina também envolveu o "Sobre a apresimnto de pares, boron uo grupos ndigenas nas oss de Mato Grosoe Goiés, MONTEIRO, “Gord Indians ad Bad todians in Colonial Bra”, texto indo. A questo das fangs parece no conte do apres nent denies Kaingang e Calas pis 1810. Ver, por explo, a itagfo em FERREIRA, M.T.C. R. Op. it, p28 Sobre a Amari neste period, ver DOMINGUES, Angels. Quando indie eam wales coloniagioe relies de poder no norte do Brana segunda metade do scula Wn. Lshoa: cNcD?, 2000, °Citado em FERREIRA, M.T. C.R. Op. ct, p. 42. bide, p110, © Dire fo extabelecido originalmente em 1757 pata o Estado do Grio-Pati ¢ Maranhio e cstendid para todo o Estado do Brasil em 1758, No entanto foi implantado efetivamente em Sio Paulo apenas a partir de 1765, com a restaurago da Captania« 0 governo do Morgado de Mateus Sobre Dsetio em ger ver Rica Helosa de Almeida, O Direrie do Indio. Brasilia: Ed. Une, 1997. Mesmo nao sendo vilas, as aldeias adquiriram a estrutura tipica das vilas pombalinas. Cada aldeia tinha um diretor branco, um péroco (que continuava na responsabilidade das ordens religiosas autorizadas em 1698), tm capitio-mor indio, e um sargento-mor, também. indio. A estes iimos coube a distribuigo da mao-de-obra indigena e a fiscalizagio dos indios para evitar as fugas ¢ as auséncias. Na verdade, qualquer auséncia sem autorizagao cra considerada desergio ou fuga, © que podia resultar em castigos fisicos: “um més de tronco, € se faltar a isso 0 dito capitao-mor seré ele mesmo preso por outro tanto tempo no argolio do Corpo de Guarda”, Ou seja, repassava o énus de castigar os indios para os préprios indios, zo caso do capitio-mor, ele proprio sujeito a castigos caso no punisse seus seguidores”. Como era de se esperar, a nova reforma no resolveu os contflitos em torno do traba- Iho e da terra dos indios. O objetivo do Diretério Pombalino era o de tornar as vilas e aldeias rentaveis a ponto de sustentarem nao apenas a sua propria populagio, como tam- bém a0 paroco (pois, nao se conseguia pagar com regularidade a céngrua) e a0 diretor, a quem ficava uma sexta parte de todo o rendimento da aldeia. Assim, de cada jornal ret bido por um indio jornalciro (100 réis/dia), ficava apenas a terga parte ao trabalhador. S guindo priticas antigas, o recrutamento se estabelecia por meio de contratos verbais que determinavam o perfodo de auséncia, variando de um més um ano, Nos tiltimos anos do século, com a expansio da agriculrura comercial no interior da Capitania, uma parte importante dos trabalhadores ausentes circulava neste novo setor. A maioria ficava mais perto. Segundo Maria Thereza Ferreira: “Os indios recrutados para servigos fora da aldcia trabalhavam na fabricacao de lougas, telhas, servigos de escaler, construgées em geral (for- talezas, hospitais, igrejas etc.), transportes (pessoas e cargas em geral), como também em. Fazendas de terceiros”. Havia, ademais, uma certa especializacio por aldeia, também re lando a divisio de trabalho entre os sexos. Pinheiros, por exemplo, reunia trinta louceiras™ A perda de cerras neste perfodo foi um aspecto mais grave. Pouco depois da extingio do Diret6rio, © governador da Capitania recebeu a queixa do “capitéo-mor ¢ mais Indios da Aldeia dos Pinheiros’, procurando impedir a posse de um novo péroco, velho conhecido deles. “Estes homens, que vivem debaixo da protegio de Sua Majestade, ¢ que a mesma Senhora tanto recomenda aos seus generais, estao assustados com a noti- cia de verem provido 0 Padre Antonio Ribeiro (de Cerqueira] para seu Pastor”. De fato, 6s indios estavam em conflito com este padre desde 1780, quando ele havia sido nomeado pela primeira vex para preencher 0 vazio deixado pelos beneditinos, que néo davam conta de manter um paroco residente na aldeia. Ribeiro, segundo os indios, “além da mé conduta [...] tem intrigas com os indios [...] assim sobre certas terras, que Thes pretende usurpar, como por causa de uma mulher de quem tem filhos que o faz andar em perpétua rixa com algumas daquelas indias”. Desejando controlar um pouco do que hes restava, 0 capitio-mor indigena e os outros aldeados queriam se certificar de que “nao serd este Lobo enviado a devorar aquelas Ovelhas™”. A rejeigio dos indios ~ e, marcadamente, das indias “em perpétua padre sugere a existéncia de uma expectativa quanto ao padrio moral do paroco, talvez ixa’ — a este bide, p49. * Idem, p. 49-50. *Carca do governador Castro ¢ Mendonga ao Bispo D. Mateus, 176.1799 anexo sd, [1780)", Documents Ine scant para a biti sestumes de Sho Paula v.59, 1902. p. 21-4 evocativa da meméria de “homens-santos” como Anchieta ou Belchior de Pontes. No episédio de 1780, segundo relatou o diretor de Pinheiros, os indios se juntaram para impedit a posse de Cerqueira, “porque ndo queremos a Vossa Mercé para nosso Viga- rio, porque nao queremos vigirios dos seus maus costumes, ¢ amancebados”. Incon- formados, os indios ameagavam “vender os poucos bens que possuem”, preparando-se para abandonar a aldeia. Mas, para além desta falha moral, o padre nio correspondia a uma outra expectativa talvez mais importante. O padre “se fez senhor das terras de Jaguarai, as quais estao dentro da Sesmaria dos Indios”, obrigando os indios a deixar a aldeia, pela falta de alguém que “os defendesse, nem quem zelasse das desgracadas aldeias”™. 6. Familias novas de curta genealogia A extingio do Diretério dos Indios pela Carta Régia de 12 de maio de 1798 re- presentou outro momento de inflexio na atribulada histéria dos indios de Sao Paulo, talvez menos pelo impacto da legislagio em si, e mais pela presenga extraordindria de uum perspicaz observador disposto a zelar pelas desgracadas aldeias. Nomeado dirctor- geral das aldeias da Capitania, José Arouche de'Toledo Rendon conduziu 0 processo de extingio do Diretério, atendendo ao pedido do capitao-general Anténio Manuel de Melo Castro ¢ Mendonga, que contava com Arouche nao apenas por conhecer “as des- gtacas dos indios aldeados’, mas também porque “entre outras virtudes morais, tinha a dos bons desejos de fazer bem & humanidade”. De fato, a desmontagem da politica pombalina sinalizava novos tempos, marcados por uma profunda reflexio critica em totno da politica indigenista, expressa com clareza nos diversos planos de civilizagao dos Indios que comegaram a brotar nas capitanias, No mesmo ano de 1798, Arouche en- viou uma primeira versio de sua Memdria sobre as Aldeias dos Indios na Capitania de Sdo Paulo, exto esse reformulado ¢ ampliado pelo autor na época da Independencia”. ‘Uma das passagens mais marcantes da Memdria aponta para 0 fracasso das aldeias ¢ é sugestiva de uma nova perspectiva sobre o destino dos indios: [A] experiéncia mostra que os descendentes daqueles indios que nao ficaram nas aldeias, ¢ ainda daqueles que em outros tempos se escaparam delas, vivem muito mais felizes, tem mais bens, muitos servem nos corpos militares, muitos querem ser bran- cos, e alguns jd sio havidos por tais desde que o meio do encruzamento das ragas tem esquecido a sua origem. Tais so muitas familias novas de curta genealogia"® “idem, p. 21-4 RENDON, José Arouche de Toledo, “Meméria sobre as ais de ndos da Provincia de Sao Paul [1798-1823] Rio de Jancio, Revita do Instituto Hiri Geognfio Brailes. 4, p. 295-M17. 1842. 0 texto orignal de 1798 «sci no Arquivo Histrica Ultamarina. Cabe notr que na ampligio a "“Memérit, 0 ator também aualzou 0 titlo de “Capitan” para "Provincia", Para um estado mais pormenorizada deste texto, vet MONTEIRO, John, "A Memara da Aldeias de Sto Palo, [ndio, Pauls ePortugucses em Arouche e Machado de Oliveira. Viti, Dimenaset, V4, 2002. p. 17-35. © RENDON, J Op. it, p. 299, 62 poscttros DEARATINING) A’ MORRD D4 SALDAD Para Arouche, as aldeias nao tinham cumprido a sua fungio histérica, seja através da prestagio de servicos militares, seja na consolidagio da presenga portuguesa na regido. Debilicadas, as aldeias, nos itimos anos do século xvi, apenas serviam para lembrar aos portugueses do fracasso de politicas mal administradas ¢ da divida que ainda tinham em relagao & civilizacio dos indios, segundo as concepgoes da época. Nao se tratava mais de aproveitaro trabalho dos indios, tampouco. A questao principal, que se desdobraria mais tarde na vertente humanitiria e protecionista da politica indigenista residia na conducéo do processo de integragio dos indios & sociedade ocidental ou, com o advento da Inde- pendéncia, a nacao brasileira. Isto significaria, para muitos, o desaparecimento dos indios, tese essa cada vez mais accita com a vulgarizacio de teorias sociais a respeito da civilizagio dos selvagens e, bem mais tarde, fundamentadas nos principios da evolugio. Nesse sentido, a frase sobre as genealogias curtas ganha uma forga peculiar. A expressio é genial porque evoca imediatamente o furor genealégico do final do século xvii que marcava os esforgos de consolidacéo de uma identidade paulista entre as familias principais da Capitania, de genealogia mais longa. A Nobiliarguia paulistana de Pedro Taques de Almeida Paes Leme parece, & primeira vista, valorizar a presenca indigena e a mestigagem nas origens das familias paulistas. Mas, as princesas indigenas saem de cena aps a primeira geragio ¢ os casos Famosos de unides mistas e mesmo de poligamia — como no exemplo de Pedro Vaz de Barros, o Vaz Guagu ~ sio retratados como uniées informais ¢ a prole como ilegitima, geralmente indigna de arrolamento na genealogia. Os filhos de Francisco de Proenga com uma india sio nomeados por Pedro ‘Taques, mas nao se prossegue a sua gencalogia: “Estes bastardos procriaram familia dilatada em So Paulo, onde sio conhecidos os seus descendentes”” Apesar da proximidade e imiscuidade das linhagens europeéias e indigenas, no mais das vvezes Pedro Taques liga a nobreza e tradicio dos antigos paulistas ao domi indios. Assim, Amador Bueno “[¢Jeve grande tratamento e opuléncia por dominar debaixo jo sobre tantos de sua administtagio muitos centos de indios, que de gentio bérbaro do sertao se tinham convertido & nossa fé, pela indtstria, valor e forga das armas, com que os conquistou ‘Amador Bueno em seus reinos ¢alojamentos”. O processo de diluigdo da ascendéncia indi- gena tinha fundamentos histéricos, & medida que vétias familias de fato buscaram estraré- gias matrimoniais que branqueavam os descendentes. Por exemplo, Salvador Pires casou pela segunda vez. com a mameluca Mécia Fernandes, “vulgarmente chamada pelo idioma brastlico Messiugn’, neta maverna de Piquerobi, cuja avé india havia casado com portugués cuja mae mameluca casou também com portugués. Maria Pires, a filha mais velha de Messiucu, casou com o sevilhano Bartolomeu Bueno da Ribeirae, portanto, 0s filhos deste casal seiam praticamente brancos. Mas esse processo de branqueamento as vezes aparece em Pedro Taques como figura retérica: em varias instancias, o genealogista qualifica as ‘mamelucas como sendo “alvas”. O incbmodo convivio entre a mestigagem ea nobreza dos paulistas transparece no tiulo Campos “Joao Pires de Campos, levado s6 do indesculpavel petite, e infeliz destino da sua sorte, esquecido das obrigagdes do seu nobre sanguc, se ddesposou com uma mameluca, causando um geral luto de sentimento aos seus parentes, gue, lamentandbo a injiria, lhe nfo puderam atalhar 0 dano’ ** PABS LEME, B Op. ct ¥.}.p. 227. Neste pargrafo, PAES LEME, 2 Op. cit, Lp. 75:62, p.73:¥. 2, p- 86-7 ev. 2p 206, respectivamente © apagamento dos indios comecou a ganhar contornos decisivos ja na segunda metade do século xvut, conforme mostra Muriel Nazzari em seu estudo das listas nominativas do bairro de Santana entre 1765 ¢ 1825. Certamente, 0 declinio demogréfico contribuiu muito para a diminuicéo da presenga indigena, uma ver. que 6 fator principal de crescimento na populacio indigena ~ os descimentos missionatios eas expedigées de apresamento ~ deixaram de ser um fator importante jé no inicio do século xvitt. Porém, as listas estudadas por Nazzari demonstram que a manipulagio das categorias de classficagdo émica ¢ social também explicam 0 processo de “evanesci- mento” dos indios ou, mais precisamente, das categorias que identificavam a indi nidade, tais como carijé ou administrado. A maioria dos descendentes dos “carijés”, que dominavam o cendrio demogrifico do século anterior, agora estava confundida nas categorias mais difusas e imprecisas de bastardos ¢ pardos'™. Para os indios, a mestigagem apresentava uma outra ordem de problemas, como sugere a citagao de Arouche. O esquecimento das origens, porém, nao significava, neces- sariamente, a inclusdo plena na ordem social colonial ¢, muito menos, cumpria o desejo de “ser branco”. Antes, significava compor aquilo que Darcy Ribeiro chamou de “ninguendade”. No contexto especifico das aldeias, no entanto, perdia-se mais do que a identidade. Por mais empobrecidas e marginais & economia regional, as aldeias ~ que pas- saram a ser chamadas de aldeamentos no século x1x — proporcionavam uma ténue, porém, importante garantia de terras jé demarcadas e de alguns direitos diferenciados. Ao descaracterizar os indios enquanto mestigos, bastardos, pardos ¢ caboclos, as autori- dades abriam a possibilidade de espoliar as terras de uma vez, pois estas se mostravam cada vez mais cobigadas & medida que se expandia a Cidade. Esses anseios ganharam respaldo com as descrigdes de viajantes e naturalistas estrangeiros, pouco impressionados com o estado dos indios das aldeias. Auguste de Saint-Hilaire, por exemplo, aps visitar aaldeia de Pinheiros em 1819, emitiu o seguinte parecer: Anciga aldeia formada outrora por certo niimero de indigenas da nagio guaiands. As casas dessa vila sio esparsas e construidas inteiramente como a dos luso-brasileiros; mas todas so muito pequenas e em mau estado de conservagio, algumas foram até completamente abandonadas. A igreja é muito bonita na parte exterior, mas também muico pequena, Nio é licito acreditar que ainda presentemente os habitantes da aldeia de Pinheiros sejam todos individuos de raca americana perfeitamente pura, porquanto essa aldeia existe hd muitissimos anos, Muito prdxima de Sio Paulo, seus habitantes mantém relagGes freqiientes com os brancos e sobretudo, com os mulatos ce negros, assim a maior parte das pessoas que vi, quer & porca das casas, quer na estra- da, acusava evidentes tragos do seu sangue mesclado™. Implicita, neste ¢ em muitos outros retratos dos pobres aldeados durante as primei- ras décadas do século xrx, estava o contraste com os indios “selvagens” dos sertées, tidos por muitos como os verdadeiros indios merecedores das atengées das autoridades ¢ dos " NAZZARI, Muto, "Vanishing Indians: The Social Consteuetion of Race in Colonial Si Paulo", The Americas, ¥. 57,04, 2001, p. 497-524, * Citado em FERREIRA, M.T: C.R. Op. et, p. 119. G4 oscMMOs OE MRATININGS ADOARO OA SAEDANE recursos do Estado no projeto de aldes-lose civilizélos. Essa distingao estava presente na avaliagio de José Joaquim Machado de Oliveira, recém-empossado como 0 primeito Diretor Geral dos Indios da Provincia de Sao Paulo, em 1846. Ja pensando na extingéo dos aldeamentos antigos, Machado de Oliveira nomeou como advogado dos indios Joaquim Anténio Pinto Jr. que, alguns anos mais tarde, escreveu sua influente Meméria sobre a catequese civilizagao dos indigenas, na qual estas mesmas idias informavam @ politica indigenista da Provincia. Ao imaginar o indio puto li no sertdo, Pinto Jt. se decepcionou com os civilizados: “Carapicufba, Barueri, M’Boi, Escada, S. Miguel, Queluz e outros, s40 aldeamentos nominais, onde além de nio haver mais do que alguns igos, que mal se recordam da existéncia de seus antepassados, esto por tal forma confundidos na populagio atual, que dificilmente poder alguém discrimind-los, ¢ menos ainda sujeité-los as regras de um aldeamento regular” A contrapelo do julgamento precipitado dessas autoridades, a voz de protesto dos, {indios foi ouvida novamente nessa época em que se acreditava que os habitantes dos aldeamentos nao fossem mais {ndios e sim apenas sombras patéticas e empobrecidas de seus antepassados valentes e guerreiros. Em 1846, algumas liderancas indigenas aprovei- taram a visita do jovem imperador D. Pedro mt para mostrar que ainda existiam de fato. Segundo o presidente da Provincia, Manuel da Fonseca Lima ¢ Silva, foi necessirio encaminhar ao novo Diretor Geral dos [Indios “algumas representagdes que os Indios de varias aldcias fizeram subir ao conhecimento de s. Mt. o Imperador, na ocasido em que 0 ‘mesmo Augusto Senhor honrou com sua presenga & esta Provincia, tendo por elas por objeto reclamagdes contra usurpagdes feitas em terras, A que eles julgam ter o dircito de propriedade”*. Mas, a palavra final ficou com as autoridades e os aldeamentos acabaram sendo extintos. Em 1869, por exemplo, apesar de arrolar 450 habitantes nos aldeamentos em torno da Capital, o Diretor Geral dos Indios considerou que “nestes estabelecimentos tipo americano primitivo tem completamente desaparecido pelo cruzamento de racas. A lingua indigena ¢ entre eles inteiramente desconhecida, Sua cultura intelectual abso- lutamente nula””. Oficialmente desaparecidos, os indios da capital tornaram: tos de uma meméria to romantizada quanto nebulosa, como nas paginas ini conto histérico Os Guaiands, escrito em 1859 pelo entao estudante da Academia de Direito, Couto de Magalhaes: Como esses lengéis de nevoeiro que por vezes se estendem de madrugada sobre os nnossos vales, € que os primeiros raios do sol dissipam, sem que fique o mais leve vestigio, assim tém passado as geragdes por sobre a nossa rerra da América! * tide ~ Discurso Recitado pelo Exeelentisima Senhar Marchal de Campo Manuel da Fonseca Lima e Sita, Sio Paul: Tip. ddo Censor. 1847. p. 10-1 Francisco Antonio de Olivera, "Relatio dos Divers Akleamentos de nda’, ane ao Relic qu Sua Ei Se Bardo de hain paso a Adminizraci de Provincia. Sio Paulo Tip. Americana, 1869, Anexo 20.p. 6, MAGALHAES, José Vieira Couto de, Ot Gusiands, Coto histrce sobre a fundacio de Si Paulo (1860. Sto Paulo: Espindola, Siqueea e Cia, 1902, p. 7. Sobse 0 contexto deste autor, ver MACHADO, Maria Helena Peira Toledo. “Um mitdgrao no Impérie a construgio dos mits da histéria nacionalista do séulo xix". Rio de Jancivo, Bauder Histvco, 14.25, 2000 p. 63-80. Com 0s indios convenientemente no passado ou nos distantes sertBes incultos da Provincia, os poucos sobreviventes deste tiltimo assalto aos aldeamentos ¢ os muitos descendentes dos milhares de cativos tomados ao longo dos séculos xv1, XVII ¢ XVII, foram dissipados, deixando aparentemente poucos vestigios. No entanto, de maneira mais sutil, as marcas profundas de trés séculos de convivio ficaram — e, de certo ‘modo, ficam ~ inscritas tanco na paisagem quanto na cultura dos paulistanos. Abafa- do na meméria, o passado indigena sobreviveu de maneira mais insistente em esttu- turas familiares, habitos alimentares, devogées populares, inflexdes dialetais ¢ em muitos outros aspectos que dio a esta Cidade alguns dos sabores, tons e sons que lhe sio peculiares. AROUCHE E A TRADIGAO INDIGENISTA EM SAO PAULO A escravidio, a violéncia arbieeériae a exclusio social foram caracteristicas marcantes da expe rincia dos indios em Sio Paulo. Em contraposigio, muitas vores ao longo dos itimos 450 anos se levantaram face 4 tantas injustigas € em defesa dos direitos histéricos dos indios, a comesar pelos jesuitas. Coube, no entanto,a José Arouche de Toledo Rendon (1756-1834) a distingao de pioneito, entre os paulistanos, de uma longa tradigéo humaniatia efilanerdpica que marcou a constiuigéo do indigenismo no pais. Deseendente direto de apresadores de {ndios, Arouche aproveitou a sua formagio em Coimbra para desenvolver um outro olhar sobre o passado e 0 futuro dos indios de Sio Paulo, Além de seu envolvimento em atividades econdmicas (introduziu o plantio do ché em Sio Paulo), administrativas e militares (reprimiu Bernarda), destacou-se na politica indigenista a partir de agosto de 1798, quando foi nomea: do Direror Geral das Aldcias da Capitania, Tarefa nada facil, foi encartegedo de substitu as diretsizes do Diretsrio dos Indios, artefato da politica pombalina que foi extinto naquele ‘mesmo ano. Apis inspecionar as comunidades indigenas, Arouche redigiu a primeira versio de sua Memiria sobre as aldeias de indios,cujo original se conserva hoje no Arquivo Histérico Ultramarino, em Lisboa, Abismado com o estado de miséria ¢ abandono no qual viviam os aldeados, Arouche buscou na histéria da colonizagio as razes do problema. Os indios,avaliou, “tem os sentimentos abatidos nao por natureza, mas pela malicia dos outros homens”. Acre- dicando na perfecrbilidade humana e em principios universalistasreferentes t liberdade e 20s direitos, concluiu que 0 atraso € a inferioridade dos indios eram conseqiiéncias das agies humanas de maus governantes, administradores¢ religiosos. Esta postura, na contramio tanto | de poderosos interesses politicos e fundiérios quanto, de correntes cientificas que prognos- ticavam a inevitivel extingio dos indios, foi adotada depois por outtos, com destaque para José Joaquim Machado de Oliveira, Joaquim Anténio Pinto Jr. e, no inicio da Repiiblica, pelos membros da efémera Sociedade de Etnografia e Civilizagio dos fndios. Os termos ¢ as pers: pectivas mudaram, mas a tradigao persiste hoje na Cidade de So Paulo na atuagio de ones, tais como a Comissio Pr6-Indio (Fundada em 1979) ¢ o Instituto Socioambiental (sucessor do cept, fundado em 1974), entee vitias outras entidades paulistanas, que se destacam nos cenitios nacional ¢ internacional. UL 6 Conclusao A trajetéria dos indios em Sao Paulo configura uma histéria descontinua, cheia de lacunas, até porque o registro documental é totalmente fragmentado. Na verdade, sio muitas historias, pois nao se trata apenas da saga de um tinico povo pré-existente, mas das experiéncias de varios povos, familias e individuos que se deslocaram, a0 longo dos tiltimos quatro séculos ¢ meio, para esta Cidade de imigrantes ¢ de migrantes. Com a relativamente rapida destruicao das populagdes autéctones no meio-século que sucedeu a fundacio do Colégio, novas levas de cativos e catecti- menos foram introduzidas & forca por sertanistas ¢ missionérios, repovoando 0 Planalto com uma populago, em suas origens, majoritariamente Guarani, Durante a segunda metade do século xvi, & medida que os sertanistas palmilhavam novos sertées em busca de cativos amerindios, crescia rapidamente a diversidade étnica ¢ lingiistica. A despeito do predominio da lingua geral tirufa uma verdadeira Babel. No século seguinte, com a abertura das minas nas Gerais, no Mato Grosso ¢ em ois, 0 fluxo de cativos diminuiu sensivelmente, porém, nao cessou completamente, 10 Paulo neste periodo cons agregando novos elementos & diversidade paulistana. Neste periodo, tanto o cresci- mento de uma populacéo mestiga quanto o afluxo de portugueses e de escravos oriun- dos de diversas partes da Africa intensificaram 0 processo de mudanga no panorama éinico. Minoria pela primeira vez, a populagio indigena cornava-se invisivel, a partir de meados do século xvutt. Diluidos em categorias di cisas, como pardos ¢ bastardos, os descendentes da antiga maioria indigena foram se dis tanciando de suas origens. © “desaparecimento” dos indios paulistanos se consolidou nas primeiras décadas apés a Independencia, quando as auroridades da nova Provincia declararam 0s aldeamentos,tltimos redutos de uma populagio ostensivamente indige ida ver mais na nos arredores da Cidade, extintos. [ndios, a partir de entao, aparentemente sé exis- tiam nos vastos ¢ desconhecidos sertes que a Provincia herdou dos tiltimos anos da expansio portuguesa na América, ou como artefatos da meméria na construcéo de uma identidade paulista. Ao longo do Império, a presenga de indios na Cidade de So Paulo parecia se res- tringir sobretudo 20 imagindrio romantico de alguns escritores ¢ estadistas. No entan- to, havia ainda uma presenca discreta de habitantes indigenas na Cidade, a0 que parece egressos dos aldeamentos extintos. A estes somaram-se eventuais comitivas de indios vindos, por conta propria, dos sertdes da Provincia ¢ de regides vizinhas, buscando 0 presidente da Provincia ou o diretor dos indios, em demanda de recursos ou para reivin- dicar direitos. No ocaso do Império e nos inicios da Republica, a temética indigena atingiu um novo ponto alto nos acirrados debates encetados entre intelectuais sobre as origens de Sao Paulo e do povo paulista, Masa histéria das migragoes lo xix. Longe dos salbes do Instituto Histérico ¢ Geografico, do Museu Paulista ¢ da Academia Paulista de Letras, um outro movimento bem mais discreto trazia uma nova leva de migrantes — ou seriam imigrantes? — guaranis para a Capital. Complementando voluntétias ou involuntirias ~ no terminou no sécu- ‘uma longa tradigio de movimentos de populagées guaranis para esta regio, pequenos {grupos se estabeleceram em trés comunidades: Morro da Saudade, Krukutu (ambos no cextremo sul do municipio) ¢ Jaragu. Esta iltima teve sua origem junto com o Parque Estadual do Jaragud, no final da década de 1950, quando a “fundadora’, Jandira, foi «razida pelas autoridades para dar um colorido especial para a fundagio do Parque, que se deu em 1961. A comunidade permaneceu ¢ hoje luta, a exemplo dos antigos Catijé do século xvi, para negociar a preservacio de suas tradigées num contexto pouco favoravel. O processo continuo de ajuste aos tempos também se revela na transformacio do nome da aldeia situada em Parelheiros, Segundo Maria Inés Ladeira, na década de 1970 a placa Vila Guarani anunciava a entrada da aldeia; na década de 1980, jd com alguma assisténcia indigenista, os indios decidiram mudar © nome para Morro da Saudade; ¢ recentemente, seguindo a tendéncia dos tempos, clegeu-se um nome em guarani: Tekoa Tenonde Pora". A iiltima onda de migragées indigenas a atingir Sio Paulo no século xx & tam- bém ilustrativa desse processo de negociagio de tradigdes ¢ identidades. Apesar de fazer parte de um movimento muito mais abrangente, envolvendo a migracio em massa de trabalhadores vindos do Nordeste em busca de uma vida melhor no “Sul Maravilha’, as migragdes de indios Pankararu possuem elementos especificos que merecem a atengao. Os primeiros migrantes chegaram a metropole na década de 1950, trabalhando sobretudo na construgio civil de uma Cidade em franca expan- sio, chegando a participar nas obras do Palicio dos Bandeirantes e do Estadio do Morumbi. Com a chegada de novos parentes da aldeia de Brejo dos Padres, em Per- nambuco, um grupo acabou se fixando na favela Real Parque, no Morumbi. Para completar a experiéncia urbana, numa agio conjunta entre a Prefeicura e a Funai, parte desses favelados foi reassentada no Projeto Cingapura. Ainda assim, apesar da incegracéo desses indios & forsa de trabalho urbana, exercendo no mais das veves servigos como os de faxineiros, motoristas, segurangas ¢ porteiros, os lagos com as origens indigenas permanecem fortes. Mais uma vez, na contramao das idéias de integragéo e desaparecimento, encontramos grupos indigenas forjando espacos proprios de maneira criativa e combativa, apesar de condigées econdmicas ¢ sociais muito desfavoriveis, Sio Paulo, hoje, constitui uma cidade plural na riqueza de sua diversidade énica, porém, uma cidade brutal em sua geografia de exclusio social. A hist6ria da presenga indigena na Paulicéia, dos Campos de Piratininga 20 Morro da Saudade, expressa de maneira to elogiiente quanto tragica esse aspecto da formagao da Cidade. © Sobre as comunidades guaanis na Capital, ver LADEIRA, Mara Inds. Aldcias Livres Guarani do Litoral de So Paulo e da Perifria da Capital”. In: Indios no Estado de Sto Pele: esisténciae nanfiguapio. Si Paulo: Yankat, 1984, p. 123-44 e, da mesma autora, "Mbya Tekoa: nosso lugar”. Sdo Paulo em perpetva v. 3, . 4, 1989, Ve também, SIQUEIRA, Leandro. "Guaranisentam recuperarculeura perdi”. O Sto Paul 20,3.1999, (semanstio dda Arquidiocese), A Associagio Guarani Nhe'em Pord, igada 8 aldeia de Krukutu, mantény wma pgina infor: rmativa: wor.culturaguaran hpe-comlbr. Nota-se, no entanto, a catncia de informagheshistrieas sobre esta ‘comunidade mesmo em sua homepage.

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