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SONIA ALBANO DE LIMA a intérprete musical participa da execugdo de uma obra, quando dimensiona a sonoridade de cada nota na frase musical de forma equilibrada, relaciona de forma harmoniosa todas as frases que compdem o discurso musical ¢ dirige a sua sensibilidade para manifestar a obra em sua inteireza. COM nm mon cere Mts} professor Walter Bianchi tem se desen- Roun a Mate Gener ac EU De CMS MTCC OCU LT Cerne Gorm GROOM cic Meecg Dee oer Mee eens Coe eee oe RoC sods Prue Me ten Meiners Peete Mee essere On Petre ire cerns cnt ere OE Comte TRC Pm atte io Ion CSU CMI UM ecu TEC Cord ene mene de musica. O professor Omar Zoboli COM eu cre CN LCS Suiga, pediu insistentemente ao profes- PUM EUS Re mato feceeca Mac Ttc Rs (a STOR U COM ol eso S6 em 2003, o professor confecciona a STEMI Me tere coMcen cont om ee nC Moco c mC RTC! nenhum relato desse trabalho pedagégi- co, nenhuma documentagao, nenhuma Roloc ecrer Mecte Miele Mico sce os COM Mme cae) publicagao desta pesquisa, © Copyright, Sonia Albano de Lima, 2005 cara | Raquel Matsushita piacramaco | Set-up Time Artes Graficas revisAo | Maria Luiza Favret IMPRESSAO E ACABAMENTO |Grafica Aladde Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lima, Sonia Albano de Uma metodologia de interpretagao musical / Sonia Albano de Lima. — Sio Paulo : Musa Editora, 2005. — (Musa miisica ; 6) Bibliografia. ISBN 85-85653-79-5 1. Bianchi, Walter 2. Musica - Estudo ¢ ensino 3. Musica - Interpretagio - Metodologia I. Titulo. II. Série. 05-7213 CDD-781.4601 Indices para catélogo sistematico: 1. Interpretacao musical : Metodologia 781.4601 2. Musica : Interpretagio : Metodogia 781.4601 Todos os direitos reservados. MUSA EDITORA Rua Cardoso de Almeida 985 05013 001 Sao Paulo SP Tel/fax (5511) 3862 2586/3871 5580 musaeditora@uol.com.br www.musaeditora.com.br www.editoras.com/musa www.musaambulante.com.br Para Flavia Albano de Lima, minha filha amada Ao meu querido amigo Walter Bianchi, na expectativa de que minhas palavras tenham traduzido fielmente a sua metodologia de ensino. Para Maria Elisa Risarto pelo auxtlio incondicional prestado ao trabalho. SUMARIO Conversa com o leitor 9 CAPITULO I | Subjetividade e interpretagéo 15 CAPITULO II | A relagdo da mtisica com a linguagem verbal 51 CAPITULO 11 | Lei natural ¢ interpretagao 81 Fontes Entrevistas 96 Duo de piano 171 Referéncias bibliograficas 207 CONVERSA COM O LEITOR Exta publicacao lem o intuilo de repassar aos estudantes de miisica ai maticlologiade:cuterarstaptis musical dusoobiils polo professor ¢ amigo W. Bench evido «i farka bibbografia o ao interesse cada vez mais acentuado que 05 pesquisadores contemporianeos vim destinando @ interprotagao, alimente: inicialmente uma cerla apreensiio na publicagao deste trabalho. Entretanto, por mais que eu tivesse humildade para reconhecer minhas linitagées frente ao material jé evistente, ele, paradoralmente, apresentuva-se iil sob o ponto de vista pedagégico, considerando a amplitude das propostas que so inter relacionavam ao alo de inlorpretar: signos estilicos; a hermenéutica enquanto sistema de invesligacao; a ambigitidade nos processos a aA 2 ps Rs AN lag interpretar; a unicidade ¢ placa idade interpretativa; a andlise diferenciada do fanémeno sonoro na mitica tonal e na misica atonal, a3 profundas modificagaes dos padrses de anélse na misica contemporénea. intengao foi eminentemento prareolbyica. Por isso, foi necessiria uma roflesao acurada das fontes coletadas para difundir esta melodologia © verificar 0 quanto ela poderia auxiliar o inténprete musical. Al larga exporiéncia de W/ Bianchi como professor de ensino musical profissionalizante fox com que ex buscasse, na sua pritica, a importancia de um trabalho pedagégico dirigide diretamonte para a performance. Vesse intento, foi necessério analisar certos conceitos perifiricos ao alo de executar. a 5 . Durante o desenvolvimento a a ou mo questions’ s0 as roflexoes apresentadas nao se configuravam inapropriadas aos meus propisites. Algumas veces, parecow-me quo a subjetividade imanonte Masao mais aprofundada de cerlos conhecimentos importantes para a drea. Muitas vezes eu me perguntei se 0 trabatho deserwolrido pelo professor poderia ser considerado uma metodologia de ensino, pois 46 como la he tsa scar dantides una, cilenen @ wma funcionalidade pedagégica (Fazenda, 2001). Era importante que eu buscasse nessa metodologia, 04 movimentos que configurassem sua pralica, a maneira de melhor ao ato do interprelar impedia uma ro} estuda-los, como eles aconteciam 0 de que mancira se inter- relacionavam. Fi nessa dialitica que entend: a dubiedade aparonte do discurso pedagigico do professor Walter Bianchi. Coabitavam de maneira harmoniosa, no mesmo individeo, dois universes ilusoriamente dispares - um discurso verbal eminentemente subjelivo e intuilivo © um drecionamento pedagégico em sale de aula extremamente objetivo ligico. Uma pesquisa que unisse esses dois mundos parecou-me bastante desafiadora. Comparado & praticidade do suas anlas, 0 seu discurso verbal era wm tanto contraditério, entretanto, convivendo com esse pedagogo durante abjuns anos, pudo vivenciar 0 quanto ora nocessirio ao intégprete inleragir continuamente no processo de ‘fazer’ e ‘pensar a inlerprelagao musical. Havia tanta cooréncia na sua forma Givacignar as aul. tanta ligica na aplicacao dh seus ensinamentos, que admitir uma ruptara entre o seu pensar o fazer miisica projudicava a certeza de um trabalho pedagéyico benéfico ¢ diferenciado. Depoimentos coldlados de vérios alunos comprovavam a imporkéncia do sua metodologia e 0 quanto ele era singular, Lembro-me das palauras do contrabairista Miguel Drombrowshi: ‘Gosto do tor aulas com 0 Wianchi. A forma como ole se expressa mirsicabnente é sempre inesporada. Eu nunca consigo imaginar que caminho ole vai dar pura a frase. a A tarefs inicial de apenas colotar 08 ensinamentes do professor em dal de vant pareceu-me insuficiente, pois fancionaria como um manual desprovido de qualquer imporlancia pedagigica - iunh PacalEnaPgn ate bales “Hhadice Gs nice LO ele pale professor (Bianchi, 2003) o 0 artigo publicade Waber Branchi: uma 1 de énlerprelacao eed em Se Pe (Lima, 1998). Cram irrisdrios para revelar a esséncia dessa metodologia e compreender como o professor via o fonémeno interpretativo. lapear o seu pensamento musical pareceu-me a estralégia mais acertada e a methor maneira de iniciar a pesquisa. As observagées de Svani Fazenda, nesie momento, foram bastante encorajadoras: “quanto se empobrecem as praticas intuitivas quando abandonadas & sua prépria sorte. Muitas se anulam ao permanecer no senso comum, e muitas vezes sao ignoradas no que anise imiaes beh; alé mesmo polos propessores que as praticam (Fazenda, 1994, p. 32). Cansiderei também como objetivo da minha anilse « afstividads db professor para com seus alinos Rferindo-se ao génio basctiell do seu mestre Mocst Tabb ab diclaras meus alunos so meus amigos. Tide. sessenta anos de orquestra e dozenas A anos snlinando, nunca fiquet nervos. Cnsinando milsica, esqueco tudo ¢ deiso os da sala de aula” (Lima, 1999, p. 115), Ese comportamento amistoso sempre trazia para 05 estudantes, sequranga, prazer, esmero interpretativo e responsabilidade wal Ouse iB iecinutlved ealliie” sew siuarpiefiie wetecle i em suas maos excelontes intérpretes. Preocupou-me 0 futo de essa metodologia aplicar-se mais inlentamente as obras do period phiadice, samdadion « pés-romantico’ . Walter Beanchi nunca se sentin alraido pela inlerpretastio cle obras do periods barroco ¢ conlempordneo, sempre privilegiou o tradicional estilo roménlico de inlerpretar. Esse comporkamento esta muito relacionado a sua historia de vida. Ele inicion sou aprendizado musical aos 6 anos de idade, com seu pai. Aad NA: anid redtana:matriculads ‘no Consapvuicts “Dransitica Wiusicul de: Sao aulosina claise de obod, diplomando-se toh a orientagao do AMberto alas Cdudon ainda com os propessores Alferio Mignone ¢ Kafeel Bernabei. 105 13 anos ingressou na Orquestra Sinfonica do Seateo Municipal de Sao Paulo. Mais tarde foi oboista da Orquestra Sinfonica de Porto AMlegre, Orquestra Sinfonica do Estado de "Ge, Pauls; alemide desenibleen at alivtdades dasoltstace camenata: Em 1948 recebeu uma bola de estudos do governo dos €stados Lids oc she Coot, Sails of Was’ do Heli onde estudon com o célebre oboista Marcel Tabuteau e 0 pianista Whilae Solote. dese wco:ao acu babalko de inlenprelacao musical. Joi professor do oboé, misica de camara o interprolagao musical no Whuseu de Arte de Sao Paulo, Escola Livre de Wiisica Pre Arte, Academia Paulbsta de Whasica, Universidade do Extado de Sao Paul, Escola Lire de Musica Tom fobim Faculdade de Masica Carlos Gomes. Participou de inimeres pistivais de misica om Campos do fori, Brasilia, Curitiba, Maringa, Prados, TJatuc ¢ Gramado. Foi jiri do Conciea CWorade, Ercole de Wsiica de Prracicaba'e do Snctituto Wusicelm 1 Vide pergunta 26 das entrevistas de Manzo, Miranda, Marques Lima e Risarto, que apontam a importincia do professor para estudar mais intensamente 0 repertério clissico € romantico. dominicais "Grandes Concertos para a gfuventude” na aticha. Em 1981 « 1982 foi convidado polo maestro Eleazar de Carvalho para sero coordenador pedagdyico do Festival de Mfisica de Gramado @ sou assistente do regéncia. Whnistrou uérios cursos @ sominérios de ecubiess wank Pian! SNL. Seon tele thades Canada e Papa. Foi diretor artistico do 9 Frstival de Sntonprotagio Musical e Masica de Camara na Escola Nfunicipal de Misica e ha alguns anos 6 professor de musica de camara na Ecal a Municipal de Whcsict, de: SaoiP aude. Thda a sua vida musical foi direcionada para um aprendizado ¢ ites docandiaiembnantentante Jecniczabats ‘larcades tis consasadtocios europous. Ele sempre lecionou om escolas de misica propsionabrzantes, Ville Lobos, om Aragatuba, produtor ¢ diretor dos a a @ 05 cursos que ministrou fora do pais tiveram os mesmos objetivas. Sou depoimento\moitra a sua slema proocupagio com a arte de inlerpretar: “Eu trabalho diretamente com 0 som para obter uma boa inlorpretagao. Eu brabalho fazondo. Lendo uma parlilura, alé posto indicar previamente 0 que precisa ser feilo para se obler uma boa interpretagdo, mas os detathes sonoros eu 36 obtanko durante a execugaio” (Branch, 06/99, p. 7). lara a produgao deste trabalho, além da pesquisa biblogrdfica, colele: oilo depoimentos de ex-alunos em fila cassete, que foram editados posteriormente; islabora} dois videos que documentam suas ‘aisles; lranscrovi alguns exomples colotados das minhas aulas e da pianista Maria Elisa Risarto, contendo a notacao expressiva ulilizada pelo prs tranicrevi quatro aulas dadas para o duo de piano composto pelo pianista Roberto Dante Cavalheiro « por mim, erecutande a Sonala em Si b maior para 4 mios, Ks58, do WA. ({/ es eo pianista Maria Elsa Rsarto « cinco entrevistas com 0 professor. PA peiguita’nto tim a inteneao de inovar nom damonstear todo 6 conhocimento musical desse mestre. Ele simplesmente revela a metodologia de ensino de wm professor brasileiro que pode sor aplicada om parte do repertirio musical, para que no se perca mais uma wie de bette Ela nao lenciona idles um comportamento performatico, apenas anaben alguns roferonciais considerados importantes para ole: aes ralencu: Shicialmente pensei em lovar esta pesquisa para_um programa de porgraduagio. As tentativas foram shel ras, Depois de alyum lempo, constalei que a dimensito valorativa deste trabalho nito estava em outro bagar senio na fangao prareoligica desta melodologia. Si enlao que me comprometi com sua publicagao. A partiv dai, busquei aalitar-men trabalho da froma mais impasioal posstvel. Se acobhi salisfatoriamente boa parte dos ensinamentos desse professor & porque me convenci da importancia deles para a inlorpretacao musical Quoro firalizar este didlego declarando que, durante todos esses anos, nto manifestei ao professor a minha inlengao cle publicar a sua 71a, indepondontomento das entrevistas realizadas e dos exemplos musicais colelades, Mfuito pelo contrério, incentivei-o a produzir o sou proprio lure. Essa atitude concedew-me 0 priviligio de divigir minha pesquisa de forma autsnoma, afastada de qualyuer compromisso afetivo, pedagégico ou profissional para com 0 mestre. Junto para o itor como para o préprio Wianchi, 0 que vai aqui escrito & inusitado @ de minha inteira responsabilidade, pois é resultado das minhas proprias investigagoes. Sonia Albano de Lima CAPITULO I Subjetividade e interpretacao La (380, a inlenprelagao musical nito é absolaia. Se ale feese abiolele, 0 intirprele nto axithia. Una tinica gravapio poria fir & ir pio, A misica 6 um objeto presente gue se madyfea om todo momento de acordo com a personalidade ea sensibildade de cads patoa. Sito juslifera as insimeras goovacées da mesma partitura. fou Em musica ninguén 6 dono da verdade. E claro que nio se pode admitir absurdos musicais, mas tudo que esté [odamentade deve ser respeiladr (Biancui, 16/96, p. 20) O perfil histérico do homem ocidental demonstra que 0 pensar musical sempre foi mais valorizado que o fazer musical. Esse compor- tamento epistemolégico vem de longa data e comporta reflexes das mais variadas. As razbes primeiras dessa problemdtica situam-se na maneira como o homem ocidental vem pensando a misica. Ele no s6 separa o pensar do fazer musica, como também desqualifica a pré- tica musical como atividade capaz de produzir conhecimentos. Essa mentalidade, em parte, estd retratada no pardgrafo que se segue: Quando se pensa nas bases tedricas das relagdes sonoras estabele- cidas por Pitégoras (c. 560-c. 470 a. C.) ou nas consideragdes sobre a fungdo da mtisica na Republica de Platao (c. 428- c. 348 a. C.), a musica, tomada isoladamente, é encarada dentro de um contexto situado muito mais entre 0 que poderfamos chamar de ciéncia ¢ cosmologia do que na pritica musical como a entende- mos hoje. Boécio (c. 480-c. 524), pensador e estadista romano, via uma nitida separacao entre a musica mundana, espécie de har- monia das esferas celestes, inaudivel aos homens, a musica huma- na referindo-se & harmonia interior do homem e€ a musica instrumentalis, a musica executada pelo homem, numa imitagao imperfeita das outras duas categorias. Essa classificago de Boécio vai se estender por toda a Idade Média ¢ aponta para uma distin- Gio entre 0 conceito de mtisica enquanto ciéncia ligada a visao cosmolégica da época ¢ a musica prdtica, aquela entoada nos coros da Igreja, cuja principal finalidade era a de auxiliar na difusao da fé religiosa. (lazzetta, 1993, p. 2) Umberto Eco também confirma essa tradigao ao falar sobre os escri- tos do pensador ¢ estadista romano Boec Ao falar de musica, Boécio entende por tal uma ciéncia matemd- tica das leis musicais; 0 miisico é 0 teérico, 0 conhecedor das regras matematicas que governam o mundo sonoro, enquanto 0 executor, muitas vezes, mais ndo é do que um escravo privado de pericia © 0 compositor € um instintivo que nao conhece a beleza inefavel que s6 a teoria pode revelar. $6 quem julga ritmos ¢ me- lodias 4 luz da razao pode ser considerado musico. Boécio parece quase felicitar Pitégoras por ter empreendido um estudo de misi- ca relicto aurium judicio, prescindindo do julgamento do ouvido. [...] Trata-se de um vicio teoricista que caracterizaré todos os teé- ricos musicais da Idade Média. (Eco, 1989, p. 43) Silvio Zamboni, no entanto, ao tratar do problema da produgio de conhecimento na arte ¢ na ciéncia, admite que, enquanto faces do conhecimento, elas se ajustam ¢ se complementam perante o desejo de obter enten imento profundo. Nao existe uma suplantagao de uma forma em detrimento da outra; existem, sim, formas comple- mentares do conhecimento: A existéncia do cardter racional em arte se revela inegdvel quando se promoye a interposicao ¢ a comparacao entre a arte e a ciéncia enquanto formas de atividades do conhecimento humano. {...} Pesquisa ¢ premeditacao ¢ essa, por sua vez, é racional. Entendo também que uma das caracteristicas fundamentais da pesquisa € 0 grau de consciéncia ¢ do pleno dominio intelectual do autor sobre 0 objeto de estudo ¢ do processo de trabalho, mas com isso néo pretendo negar a existéncia da forga intuitiva ¢ sensivel contida em qualquer processo de trabalho, seja em arte, seja em ciéncia, (Zamboni, 1998, p. 9-10) A problematica ainda persiste, nao s6 pelo fato de 0 signo musical conter uma iconicidade implicita que impede a verbalizacao lingiiis- tica do texto musical, como também na conduta epistemoldgica do positivismo cientifico, que busca imprimir ao trabalho artistico uma racionalidade similar aquela atribufda as ciéncias exatas, desqualificando a pratica musical como atividade produtora de conhecimentos. Essa mentalidade encontra sérios entraves na prdtica interpretativa, uma vez que a sua esséncia se processa na execugao ¢ na interagao continua entre a sensibilidade do intérprete ¢ a obra criada, Igor Stravinsky, um dos compositores mais ferrenhos na defesa da fidelidade do texto mu: al, nao ignorou os elementos secretos que 17 habitam a partitura, independentemente de 0 compositor adotar ou nao uma preciso de escrita. Ele admite que a dialética verbal 6 im- potente para expressar com inteireza a dialética musical. Esta se pro- cessa em larga escala pela experiéncia, intuicao ¢ talento do intérprete —critérios altamente subjetivos — e pelo cumprimento de certos pro- cedimentos estéticos que se padronizaram durante a histéria: El pecado contra el espiritu de la obra comicnza siempre por un pecado contra la letra, y conduce a esos errores eternos que una literatura del peor gusto y siempre floreciente se ingenia para au- torizar. Segiin clla, el crescendo trae consigo, como se sabe, la aceleracién del movimiento, mientras que el diminuendo no deja nunca de ir acompafiado de un retardar del sempo. Se sutiliza so- bre lo superfluo; se busca delicadamente el piano, piano piantsssimo; se pone orgullo en obtener la perfeccién de matices intitiles, preocupacién que va generalmente acompafiada a un movimiento inexacto. [...] El secreto de la perfeccién reside, ante todo, en la conciencia de la ley que una obra impone a quien la ejecuta. Y henos aqui de nuevo en el gran tema de la sumisién que hemos evocado tan a menudo durante estas lecciones. Esta sumisién exi- ge una flexibilidad que a su vez requiere, con la maestrfa técnica, el sentido de la tradicién y, por encima de todo, una cultura aris- tocritica que no es facil adquitir. (Stravinsky, 1977, p. 124-7) Por mais que os compositores manifestem o interesse de controlar os modbos de frui¢ao de suas obras na partitura, os sfmbolos musicais permi- tem uma linguagem interna que pode ser explorada tanto pelo composi- tor como pelo intérprete ¢ também pelo préprio ouvinte, permitindo a multiplicidade de interpretagées. As partituras também so modificadas em cada ediga0. Os modos de escuta sao alterados pelo tempo, em razao da extingo, modificagio ou evolugao dos instrumentos de orquestra e do emprego de novos instrumentos elétricos ¢ eletrdnicos, conferindo & massa sonora um novo timbre, uma nova cor e uma nova destinagio. O cumprimento dos andamentos indicados na partitura é 0 exem- plo mais nitido da zona hibrida que habita os procedimentos 18 | interpretativos. O tempo que a miisica expressa torna um pouco aleaté- ria a indicagdo de andamento expressa pelo compositor, principal- mente nas obras anteriores ao final do século XVIII. O andamento tem de ser ajustado a certas particularidades da obra e do intérprete. Na verdade, os problemas interpretativos nao habitam o universo do puro racionalismo. A interpretagao musical atua na zona hibrida do racional e do intuitivo e nao exclui nenhuma delas. Ela se formata no fazer, e neste fazer ela se mantém, interagindo constantemente na sensibi dade do intérprete ¢ no objeto interpretado. Os problemas que circundam a interpretacao musical empolgaram alguns fildsofos e teéricos dos anos 30 até o péds-guerra, perdendo terreno nas décadas seguintes. No Brasil, a tematica tem despertado interesse nos cursos de mestrado e doutorado em performance, objetivando-se, com isso, a equiparagao epistemoldgica das pesquisas em praticas interpretativas com as pesquisas musicoldgicas, conside- radas pela tradigao académica mais afetas & cientificidade positivista. A anilise, ainda que superficial, dos procedimentos interpretativos musicais no decorrer dos tempos permite afirmar que a tradica0 oral vigente na Antiguidade gradualmente cedeu espago a tradigao escrita, incorporando ao universo da partitura as multiplas ¢ varia- das indicagoes interpretativas. A transmissao oral dos conhecimen- tos musicais foi suplantada por uma necessidade de reprodugao fi- dedigna do processo criativo musical. A idéia de um registro musical preciso conferiu & musica um sentido de materialidade e possibili- tou o deslocamento cronolégico entre a produgao sonora e sua re- cepgao (Iazzetta, 2001). Esse comportamento demarcou sensivelmente o ter positor, do intérprete e do ouvinte. Se na Antiguidade nao havia uma separagio explicita e até cronolégica entre os que ouviam e aqueles ‘6rio do com- que faziam a musica, na tradi¢gao escrita cada yez mais coube ao com- positor a tarefa de criar; ao intérprete, a execugao de uma producao escrita composta em tempo cronolégico distinto; e ao ouvinte, uma 19 leitura contemplativa da obra, bastante diferenciada da leitura funcio- nal da musica antiga.' Assim, 0 distanciamento cronolégico entre criagdo € execugao musical, a reprodugao fidedigna da idéia musical na partitura € 0 comportamento epistemoldgico no intuito de confe- rir 4 mtisica o patamar de ciéncia determinaram os novos rumos da interpretagaéo musical. Na tradicao escrita observamos 0 nascimento de um intérprete musical cada vez mais subjugado a partitura, afastado da pratica improvisatéria ¢ da liberdade de express4o, costumes bastante fre- qiientes na tradi¢ao oral. Mesmo assim, os novos referenciais nao fo- ram capazes de excluir a cumplicidade participativa do intérprete no ato da execugao e muito menos afastar as alteragées performaticas oriundas de fatores histérico-culturais introduzidos na sociedade. No decorrer dos séculos, a musicologia trabalhou para resgatar 0 universo sonoro ¢ estético da muisica antiga; no entanto, outros eram os instru- mentos — ainda que reconstituidos — outra era a afinacdo, os timbres, © tempo ¢ 0 espago, outra era a histéria da humanidade. Paulo Couto e Silva relata em que medida, na tradigao escrita, a capacidade de improvisagao dos intérpretes do passado ¢ a liberdade de execugao foram abolidas. Se na tradigio oral eram praticas plena- mente aceitaveis, com 0 tempo transformaram-se em procedimentos interpretativos condenados: A notagio musical, que ao pértico do séc. XVI se achava bastante desenvolvida & base do pentagrama, nao traduzia qualquer infor- magio do compositor quanto & interpretagao de sua obra. Nem indicagao de andamentos, nem dinimica, nem qualquer outro dado além da pura representagao dos valores sonoros sObre a pauta, 1 Entende-se por muisica funcional toda a produgao que tem fins extra musicais, isto & uma miisica que nao se constitui num objeto autSnomo ¢ independentea ser considerado €usuftufdo como tal (miisica pela mtisica). Suas condiges de aparecimento e realizagio esto estreitamente vinculadas a um objetivo que se serve dela, mas que nao nos remete necessariamente a ela (Casnék, 1992). 20 Nao havia também o costume de se gravar simultineamente todas as vozes numa mesma partitura, de modo a permitir uma visio vertical e conjunta da obra. Nem mesmo se difundira 0 uso da barra de compassos. Mais ainda, a interpretago de cada uma das vozes era preparada separadamente, e muitas vézes sob a livre orientagao dos respectivos cantores, como se sc tratasse de uma composi¢ao isolada. Isso, alfés, explica a coexisténcia, numa mes- ma obra, de melodias de caracteristicas as mais diversas, escritas em diversos modos, e com os textos, no raro, em idiomas dife- rentes. (Couto ¢ Silva, 1960, p. 12) Esse trajeto histérico conduziu o intérprete musical para duas dire- goes interpretativas distintas: uma que privilegia o texto musical, a figura do compositor, ¢ outra que faz revelar a liberdade e criatividade do intérprete. A classificac4o de Enrico Fubini parece-nos a mais acer- tada: interpretes conservadotes e intérpretes progressistas. Tanto uma linha metodolégica, quanto outra, propiciaram a interpretagao musi- cal discuss6es clamorosas a respeito da uniformidade e diversidade de inverpretacao; fidelidade ou recriagao do texto, liberdade interpretativa; equilibrio expressivo nos processos interpretativos; subjetividade e ob- jetividade terpretativa; tradicio e contemporaneidade. Mais contemporaneamente, integraram-se discussio procedimentos cpistemoldgicos de outras dreas do conhecimento que possibilitaram uma investigacao interdisciplinar para a performance Nao faltam tedricos contumazes para as duas faccoes, mas tanto \uma corrente como outra permitem a adogao de medidas intermedidrias que se justificam plenamente diante da subjetividade que se agrega ao ato de interpretar. W. Bianchi é um seguidor convicto da corrente progressista, admite plurissignificancia da linguagem musical e a subjetividade coman- dando os procedimentos interpretativos: “Interpretagao musical é vocé ‘eriar’ a sua prdpria personalidade musical, ou melhor, ‘criar’ a sua » depois de filtrar a musica na sua sensibilidade. Interpretacao ¢ ‘criagao” (Bianchi, 2003, p- 16). Ele aceita as idéias prdpria interpreta de L. Pareyson quando afirma que a musica s6 encontra sentido na execugio, ela é que manifesta 0 texto musical em sua plenitude, mes- mo que haja a possibilidade prévia de uma interiorizagio sonora por parte do intérprete ¢ do compositor: “Se a musica nao for materializa- da, que valor tera? E preciso que exista a musica executada, para vocé comprovar a existéncia dela. [...] E nese momento (no momento da execugao musical) que acontecem as varias interpretag6es, os inter- relacionamentos de frase” (Bianchi, 16/96, p.13-7). Para Luigi Pareyson, a leitura de qualquer obra de arte também se dé no momento da execugio, ainda que ela s6 possa se mostrar como tal a quem souber ler ou verdadciramente executé-la. Nao existe ou- tro acesso a obra de arte sendo pela execucdo, mesmo que esse traba- Iho esteja dividido entre um mediador e 0 ouvinte: ‘A miisica se revela a quem a executa ou Ié a partitura ou a Ié a0 piano ou a escuta em uma sala de concerto, justamente porque 0 autor a sonorizou, fazendo-a, no modo que ela mesma dele exigia [...] Mas nem as pessoas dos executantes nem a independéncia da obra devem ser concebidas como realidades iméveis fechadas em si mesmas, pois de outro modo nao seria jamais possivel aquele ato em que a obra se revela ao intérprete a0 mesmo tempo em que este a executa. [...] A obra de arte, portanto, é uma forma, um movimento acabado; noutras palavras, um infinito recolhido em um ponto bem definido. Sua totalidade resulta de uma concluséo ¢, por conseguinte, exige ser considerada nao como o fechamento de uma realidade estética ¢ imével, mas como a abertura de um infinito que se fez inteiro recolhendo-se em uma forma. Tem a obra, portanto, infinitos aspectos, que nao sao apenas “partes” ou “fragmentos” da obra, pois cada um deles contém a obra toda inteira ¢ a revela em uma determinada perspectiva. (Pareyson, 1993, p. 213-7) Essa maneira de pensar a obra de arte conduz o intérprete € 0 leitor a intimeros posicionamentos estéticos que unificam conceitos interpretativos aparentemente contraditérios, a saber: definitividade e provisoriedade interpretativa; unicidade e pluralidade interpretativa; determinicidade e independéncia da obra de arte, e tantos outros (Pareyson, 1993, p. 211-62). Admitindo a teoria da congenialidade de L. Pareyson, Bianchi vé que a interpretacao musical nao esté nem no arbftrio do intérprete, muito menos nas informagées gréficas da partitura. Ela é a conjuga- sao desses dois universos, que estado em constante fruigao. Ainda que © professor nao expresse no seu discurso 0 ideal tedrico do filésofo italiano, 0 apégrafo do inicio do capitulo confirma essa ideologia. Sendo assim, mesmo considerando a sensibilidade fator importante para o desenvolvimento da interpretagao musical, parte da sua metodologia esta voltada para a resolugao de problemas estritamente musicais, quais sejam: articulacdo, dindmica, pontuagao, andamento e fraseado (Bianchi, 2003, p. 53-62). Muitos teéricos’ estudaram a frase musical de forma criteriosa, de- senvolvendo pesquisas que sao preciosas tanto para os intérpretes mu- sicais como para os compositores. Algumas delas privilegiam mais diretamente a harmonia subjacente ao texto, outras a melodia, outras a tradigao histérica, outras a ritmica. W. Bianchi, pelo fato de ser um oboista, dirigiu toda a sua atividade interpretativa ao estudo minuci- oso da melodia. As grandes progressdes melédicas, frases extrema- mente complexas, melodias muito extensas, melodias secundarias adyindas de células ritmicas ou harménicas do contexto musical de- vem ser esmiugadas em sua estrutura mais elementar, para uma corre- ta execugao: O problema da interpretagdo est4 sempre na melodia. O segredo da boa interpretagio é uabalhar bem a melodia. A beleza da exe- cugio musical esté na melodia. A musica comegou no canto, de- 2 Entre outros: RIEMANN, Hugo. Fraseo musical, Barcelona-Buenos Aires: Labor, 1928. Trad. Mtro. Antonio Ribera y Maneja. TOCH, Ernst, La melodia. Barcelona: Labor, 1989. ROSEN, C. A geragdo romdntica, Sao Paulo: Edusp, 2000. pois vieram os instrumentos de percussao e mais tarde os outros instrumentos. O estudo minucioso da teia melédica resolve todos os problemas interpretativos, Na miisica de vanguarda a coisa é diferente, mas, até a musica de vanguarda, 0 problema da inter- pretacao est sempre na melodia. E como um cientista que estuda a placa de sangue no microscépio, ele sabe 0 que € substancial e 0 que € acessério. [...] Via de regra, a melodia mais aguda ¢ a prin- cipal, € a mais importante, mas existem excegdes. Muitas vezes temos um contracanto ¢, nesses casos, necessariamente cle tem que estar subjugado & melodia principal. O contracanto se serve da melodia principal para florear a frase. As vezes nés temos uma variagdo melédica que também tem que estar subjugada & melo- dia principal. A melodia principal comanda tudo. Tudo o mais é acessério. (Bianchi, 06/99, p. 5-7) Mesmo admitindo a sensibilidade do intérprete como um dos iti- nerdrios da interpretagao musical, outros procedimentos do professor vistumbram técnicas interpretativas e procedimentos estéticos bas- tante vivenciados pela tradigao musical. Podemos afirmar com segu- ranga que o emprego do sinal de dinimica — piano liso — utilizado pelo professor em trechos repetidos é, na yerdade, um desdobramen- to do recurso sonoro “eco” largamente empregado durante o século XVIII. O objetivo desse recurso no passado era conferir & massa sono- ra maior contraste: Durante el siglo XVIII, el contraste forte-piano era todavia una ley de la ejecucién dindmica que no necesitaba escribirse; todas las repeticiones de frase se hacfan normalmente piano. [...] La cuestién esencial para el intérprete actual es: ;Cémo se utilizaba en general la dindmica en la época preclésica? ;Dénde, aparte del eco, se utilizaba el piano, y dénde el forte? La negligencia de los antiguos compositores para indicar la dindmica hd llevado a ciertos intérpretes a limitar la utilizacién més elaborada de estos recur- sos. Por otra parte, otros intérpretes asumen que los maestros pretendian indudablemente una gran variedad de inflexiones dindmicas, y, por lo tanto, se ven justificados al sobreimponer unos matices dindmicos en sus lecturas, para bien o para mal. [...] D. G. Tiirk, en su Excuela de piano, opina que cada repeticién de un periodo debe hacerse piano; andlogamente, si cl perfodo se ejecuta piano la primera vez, la repeticién deberd hacerse forte. ] falta de indicaciones dinémicas (na partitura), va a resultar equivoca hasta el punto de la distorsién. (Dorian, 1986, p. 136-7) O piano liso € utilizado pelo professor em qualquer repert6rio inter- pretado e tem a mesma intengao sonora projetada por F. Dorian. Um exemplo dessa pratica est4 no trecho editado da Sonata em Si b maior para 4 maos, de W. A. Mozart, K. 358 - I Movimento’, compasso 7. Exemplo musical n° 1 Sonata em Sib maior para quatro maos, W. A. Mozart, K 358. I" Movimento; cp. 4a 10. § Os exemplos editados que serio anexados na pesquisa foram extrafdos das minhas anotagdes de aula e das anotagées de aula da pianista Maria Elisa Risarto. Mesmo sendo exemplos dirigidos para os pianistas, demonstram especificidades que também podem ser aplicadas aos demais instrumentos ¢ até mesmo 20 repertério orquestral, considerando a natureza harménica do piano. A notagio expressiva utilizada pelo professor esté na cor vermelha para contrastar com 0 texto original. saa ies , : a Eu nio posso fazer essa cadéncia de uma sé vez. Quase todo No repertério romantico temos a Valsa péstuma em Mi menor de io F - y mundo faz isso, esta errado. Existe um desenho e depois uma F. Chopin. No compasso 4 a melodia repete uma oitava acima, por- aaa i terminagio. No desenho eu conto o ntimero de notas, normal- tanto, onde est o crescendo, fazer um piano liso, ou eco, criando ac dees : mente, o ponto de apoio vai cair na nota mais aguda, salvo raras excepdes, ‘Toda a frase vai ser impulsionada, para essa ynota, Quan- do vocé chegar nesse primeiro ponto de apoio, tudo se desfaz uma sonoridade diferenciada dos primeiros trés compassos. novamente. Assim, tanto 0 comego como o final sio executados de forma mais lenta. Isso cria a sensagao de onda. E mais natu- ral vocé pensar em acelerar para um ponto de apoio e depois acalmar, porque isso segue mais 0 movimento da natureza. (Risarto, 27/00, p. 28) accel_@ ‘quasi cadenza desacelera Exemplo musical n® 2 Valsa Péstuma em Mi menor de E. Chopin; cp. 1 a 8. A liberdade expressiva dos intérpretes do barroco também esté ex- ail) pressa nos procedimentos interpretativos desse professor quando ele faz. uso de pequenas alteragées de andamento empregadas nas pro- Exemplo musical n° 3 gressdes harménicas e melddicas para revelar com precisao 0 que é Noturno n® 3 de F. Liszt, cp. 25. principal e acessério na frase musical. Ele freqiientemente utiliza esse recurso estilfstico em trechos cadenciados ¢ nas grandes ornamenta- oes roménticas, atribuindo maior duragao as notas de apoio ¢ menor Observaremos, no decorrer do trabalho, que 0 professor nao faz as notas de passagem ou seqiiéncias ornamentais. Risarto explica esse essas alteragdes de tempo e dinamica de forma intuitiva. Ele utiliza procedimento no compasso 25 do Noturno n. 3, de F. Liszt: uma classificagao numérica que vai graduar os crescendos, diminuendos, acellerandos, ritenutos das frases. O Scherzo n® 1, op. 20, c. 305-311, éum exemplo de acellerando gradual: Quando voce quantifica as coisas a qualidade sonora ¢ bem me- thor, As cadéncias, por exemplo... Antigamente cu fazia uma ca- déncia maquinalmente, mecanicamente. Agora cu trabalho cada cadéncia de forma a saber onde acclerar, onde apoiar, onde retar- dar. E um trabalho bem mais Idgico. Por exemplo, cu tenho uma cadéncia com varios pontos de climax. O que fazer? No primeiro apoio eu fago — acelerando 1, no segundo — acelerando 2, no tercei- ro — acelerando 3 ¢ assim sucessivamente. Dessa forma, quando executo essa cadéncia eu crio para 0 ouvinte uma sensagio de onda, uma sensagio de fluxo e refluxo. Eu comeso mais lento, para acelerar gradualmente. O mesmo pode ser aplicado nos ritardando. Por exemplo, tenho 12 notas para retardar, utilizo a mesma regra. (Risarto, 27/00, p 21) Molto pid lento solto voce e ben legato Bxemplo musical n? 4 Scherto n* 1, op. 20, cp. 305-311 de F. Chopin. a8 Nas frases, 0 primeiro elemento estudado pelo professor ¢ a articula- ¢do'. Ela é abordada nas mais diferentes formas, desde a utilizacao de uma posigio de mo mais curvada pelo pianista, com 0 intuito de obter menor peso, até o emprego da sflaba /z pelos instrumentistas de sopro, para criar uma atmosfera musical mais suave. Ela deve dimensionar de forma harmoniosa o peso do instrumento com a qualidade sonora pre- tendida ¢, para isso, a escrita contida na partitura é insuficiente, deven- do o intérprete fazer uso de outros recursos técnicos: Quando existe um grande ntimero de notas, semicolcheias, etc. geralmente os intérpretes tocam apoiando a primeira semicolcheia de cada grupo. Nao est errado, mas dessa maneira a execugdo nao fica muito clara. O apoio na primeira nota de cada grupo de semicolcheias retém um pouco a velocidade. Ele funciona mais ou menos como um breque na frase. Se vocé utilizar uma outra articulacao, a peca passa a ter maior fluidez, mais limpeza, mas clareza. Nesses casos cu desprezo 0 apoio dado & primeira nota de cada grupo, de forma que as notas seguintes vao formar uma es- pécie de anacruse para a primeira nota dos grupos de semicolchcias subseqiientes. Essa forma de execugao limpa muito a execusao, além de ser um recurso que poderd ser empregado em todos os instrumentos. Lembra! Vocé sentiu isso quando executou 0 Con- certo de Mozart. (Bianchi, 3/99, p. 5) O trecho editado do Concerto em Ré menor de W. A. Mozart, K. 466, exemplifica essa pritica. { O Legato, staccato, portato, non legato sio as principais articulagbes utilizadas por W. Bianchi, sem esquecer os matizes que a vor humana ¢ os diversos instrumentos podem fazer. Para os pianistas, esse toque se processa na forma como ele utiliza a posigio das mos. Nos instrumentos de corda, é 0 golpe de arco que comanda as articulagées. Nos nstrumentos de sopro, a articulagio esti relacionada com o ataque das sflabas 1, di Iu pelo interpretante. Nos instramentos de percussio, 0 segredo esté nas virias baquetas utilizadas pelo intérprete. (Bianchi, 3/99) Concerto in D minor for the Pianoforte Exemplo musical n® 5 Concerto em DMinor para piano de W. A. Mozart. K. 466, cp. 104- 108. Risarto admite que esses apoios trazem ao texto mais fluéncia e expressividade: Nos apoios, por exemplo, nao sé aqueles que determinam o di- max, mas outros que dao sentido aos dedos... Por exemplo, um desenho de semicolcheias nos Estudos de Chopin... Vai existir uma linha melédica X, mas nos desenhos de quatro semicolcheias, ou oito fusas, se voc’ apoiar certo o frascado, vai ficar bem mais facil. © Bianchi sempre diz. para jogar a primeira nota fora, cla ¢ 0 apoio. A frase vai recomegar na segunda nota. Essa maneira deixa 0 trecho bem mais melodioso e de ficil execusao. Para mim isso foi uma novidade, A mao passa a ter maior equilibrio ¢ cada uma das notas passa a ser trabalhada, mesmo que sejam notas de acompanhamen- to. A qualidade sonora é triplicada. (Risarto, 27/00, p. 23) Essa técnica pode ser empregada nas tercinas ou grupos irregulares, onde o fraseado sempre vai apoiado na primeira nota do grupo se- guinte. A primeira nota do primeiro grupo irregular é desprezada enquanto apoio ¢ os demais grupos terao 0 apoio na primeira nota do grupo subseqiiente. Essa conduta cria a sensagéo de maior virtuosismovide Estudo n® 2, op. 25 de F Chopin. c. 1 a3. Presto (J=112) Ser SS ees ' ve 7 p Mole legato r= lixemplo musical n° 6 Fstudo op. 25, Nr 2, B, Chopin, ep. 1 a 3. A violista Yara Bianchi de Miranda revela a importancia desses ensinamentos: “Nao deixei de aprender aspectos importantes de inter- pretacao musical e até mesmo certos aspectos técnicos ligados a articu- lagao e fraseado no meu instrumento, ligados a técnica de arco” (Miranda, p. 15). A afirmativa também foi confirmada pela pianista Denise Peres Manco (Manzo, p. 28). No entanto, Bréulio Marques Lima aponta a falta de critérios técnicos do professor para as cordas, embora considere originalfssima a indicag@o numérica que cle utiliza para graduar os pro- cedimentos interpretativos (Marques Lima, p. 14-5). Outra alteracao de articulagao utilizada pelo professor esta na Valsa n° 14, Mi menor, op. péstuma, F. Chopin — cp. 25 a 56, quando ele pede articulagao diferenciada no ritornello. Assim, se o intérprete usou © portado na primeira execucio, vai utilizar um Legatéssimo na segun- da, ou vice-versa. Esse procedimento técnico pode ser utilizado em quase todas as obras do perfodo classico ¢ do romantico. Considerando a dindmica como a arte de graduar a intensidade sono- ra, W. Bianchi vé os crescendos e decrescendos da obra como um dos fatores mais importantes para atingir a sensibilidade do ouvinte. A di- namica provoca variagGes de cores no som e, se articulada de forma equilibrada, pode levar 0 discurso musical a produzir sensagdes andlo- gas as do discurso literdrio, com suas ondas de tensao e repouso: “Para mim mtisica é emogao. O que é emogao? E 0 aumento de vibragao da nossa sensibilidade. Nesse ponto cu vejo a relagao da miisica com a linguagem falada. A sensagao ¢ a mesma. Na medida que vocé me en- volve no seu discurso, aumenta a minha emocio, a minha sensibilida- de” (Bianchi, 16/06, p. 5). Maria Elisa concorda com essa idéia e tam- bém vé a relacZo que o texto musical tem com 0 texto literério: Quando estou falando, naturalmente cu acentuo determinadas pa- lavras ¢ preciso respirar em outras. Na mtisica acontece 0 mes- mo. Imagine um cantor executando um trecho musical com inti- meras notas que devem crescer. Existe uma Iégica para cle conduzir aquela frase. Ele néo pode cantar aquele trecho sem nenhum cres- cendo, vai contra a légica da frase ¢ daf ela vai soar falsa, ilégica. No piano isso é mais dificil, porque a execugao pode estar plena- mente correta, mas 0 pianista pode nao conduzir aquele crescen- do nota a nota. Ai a frase vai soar sem légica. [...] Se a frase for ldgica ela vai ser natural e, se natural, o ouvinte, ainda que nao entenda nada de fraseologia musical, vai acompanhar o raciocinio do intérprete. (Risarto, 27/00, p. 7) Bianchi recorre a indicagio numérica para dosar a sonoridade pre- tendida, 0 que traz para o discurso musical uma objetividade nao referendada pela maioria dos professores de musica: Antes de estudar com o Bianchi eu ficava um pouco perdida na maneira de como executar determinados trechos musicais. Eu sem- pre busquei a légica das coisas, assim, por intimeras vezes eu me defrontava com informagdes que nao apresentavam nenhuma |6- gica. Eram informagées puramente subjetivas, tipo: “aqui vocé deve cantar mais para criar maior emocao, aqui vocé deve dimi- nuir a sonoridade para criar uma sensacao de tristeza...” Isso nao € nada légico. Nao havia uma nogao exata de degrau, de controle sonoro. Eu fazia o que estava escrito na partitura, mas nao tinha controle de fraseado, apesar de ter uma técnica bem definida [...] Na maioria das vezes, os professores nado sabem explicar para os alunos como eles devem se comportar diante dessas liberdades. Eles nao tém uma técnica de interpretaco tio apurada. Af sim prevalece o intuitivo. Ou eles divagam demais, ou seguem estrita- mente a dinamica que estd indicada na partitura, E nessa hora que cu afirmo que 0 trabalho do Bianchi nao € intuitivo, porque cle metrifica tudo. Por exemplo, eu tive aulas com a Magdalena Tagliaferro... Eram aulas maravilhosas, cla dava aos alunos idéias de interpretagao espléndidas. Ela utilizava um imagindrio fantésti- co, mas essas informagdes nao cram técnicas. O Bianchi vé as dificuldades musicais na interpretagéo ¢ as resolve empregando férmulas estritamente musicais. Ele nunca vai dizer para vocé fa- zer um crescendo imaginando uma cachocira, ou qualquer outra coisa que estd fora do universo musical. As vezes cu me pergunto: serd que se eu tivesse uma dificuldade em crescer determinada frase, outro professor iria graduar metricamente aquele trecho, como faz o Bianchi? (Risarto, 27/00, p. 4 e 29) O echo editado do Concerto em Ré menor de W. A. Mozart, K. 466, para piano, demonstra a intengao do professor de controlar mais atentamente cada nota da melodia principal ¢ das melodias acess6ri as. Os ntimeros referendados dao 0 escalonamento para o crescendo e decrescendo da frase. Concerto in D minor for the Pianoforte ‘movimentar notas, figar 8 Solo, 8a" repetidas Exemplo musical n° 7 Concerto em DMinor para piano de W. A. Mozart. K 466, cp. 95-100 A indicagao numérica foi a maneira mais légica que o professor en- controu para graduar os procedimentos interpretativos. Ela esta pre- sente nao sé na dinamica, mas também nas alteragées de tempo, nas alteragSes ritmicas, na execugao das cadéncias, nos ornamentos, nos {'upos irregulares e até nas frases musicais. Para ele, o controle sonoro obtido com essa indicagao é suficiente para imprimir ao texto maior fluidez ¢ naturalidade, sem esquecer a independéncia que ela projeta para o intérprete durante a execucio. Nas entrevistas coletadas, todos os alunos admitiram que, depois le estudar com o professor, adquiriram hdbitos interpretativos mais seguros. O flautista Bernhard Fuchs relata que aprendeu com 0 pro- fessor a importdncia de se estabelecer a coeréncia em cada frase mu- tical. Quando as frases musicais esto cquilibradas, a interpretacao {orna-se mais cocrente ¢ as dificuldades técnicas desaparecem (Fuchs, p19 © 33). O trompista Celso Rodrigues destaca que o trabalho Ininucioso de W. Bianchi traz.0 sentido da obra ¢ desenvolve a per- ‘epplo musical (Rodrigues Benedito, p. 7). A pianista Maria Emilia Gongalves declara que o professor desenvolveu um método de inter- }etagao mais cientifico e seguro; ele trabalha a muisica além do ‘inpo intuitive, onde o lado sensorial foi profundamente explora- tlo de forma pratica ¢ objetiva, buscando um enquadramento nas diversas estruturas musicais (Goncalves, p. 14). A pianista Denise Manzo admite que adquiriu em suas aulas maior dom{nio da lin- {agem musical e esse fator liberou a sua criatividade. Anterior- Mente cla fazia um fraseado de forma intuitiva, com o professor ela sprendeu a escolher previamente os rumos que quer dara frase musical (Manzo, p. 10-1). A violista Yara B. de Miranda declara que 0 método do professor se tletica pela aplicabilidade e que amadureceu musicalmente nas suas iy (Miranda, p. 9-10). O pianista Geraldo Brandao vé a impor- UWiiela do trabalho de W. Bianchi na bagagem musical que ele passa ## alunos (Brandao Ribas, p. 38). O camerista Braulio Marques de Lima declara que deixou de ser tio técnico e passou a valorizar muito mais a interpretagao, conferindo a frase musical maior atengdo (Mar- ques Lima, p. 11 ¢ 19). Maria Elisa Risarto afirma que obteve ferra- mentas mais poderosas para aplicar na sua execucao e que suas aulas capacitaram-na a ter uma interpretagdo musical mais pessoal. Consi- derou ainda o fato de cle ser um professor brasileiro que desenvolveu uma metodologia que esta sendo ensinada em varios paises da Europa ¢ Estados Unidos com grande sucesso (Risarto, p. 9-10 ¢ 25). O Preltidio n. 4, op. 28 de E Chopin, c. 1-3, é um exemplo de crescen- do, onde a indicaggo numérica determina a intensidade sonora da frase. fe xe Exemplo musical n® 8 Preliidio n* 4, op. 28, cp. 1-3 de F, Chopin O trecho n® 3 da Sonata em Sib maior para 4 maos, K. 358. I Movi- mento— Allegro é outro exemplo de graduago numérica utilizada pelo professor nas indicag6es de dindmica. Nos compassos 10 ¢ 11 ¢ impor- tante que se faca uma pequena inflexao nas notas si, sol e mi de cada grupo de semicolcheias do piano 1, para concluir no Md do compasso 12, Essa graduagéo numérica trard para a miisica o estilo da época. !xemplo musical n® 9 Sonata em Si 6 maior para quatro maos, K 358. ! Movimento — Allegro; cp. 10-15. W. A. Mozart. Na pontuagao Bianchi também vé a similaridade da miisica com a Higa falada: Todas as pontuagdes que nds temos na Literatura devem ser segui- das na Musica, pois que Mtisica nao deixa de ser, como na frase literdria, também uma frase musical. Intimeras vezes nés interpre- tamos um didlogo musical, com suas perguntas e respostas, suas interrogacoes, suas exclamagoes, suas virgulas, seus pontos e virgu- las, suas reticéncias, seus acentos e seus pontos finais. Temos de tocar da mesma maneira como se estivéssemos interpretando uma Poesia ou um Texto Literdrio. [...] Quando existe a palavra junto com a miisica, af se torna mais facil podermos interpretar, em vir- tude de que o sentido das palavras nos dé a idéia exata para criar- mos uma atmosfera adequada. Nesse caso, a muisica esté em fun- gio do texto, como na Opera, onde a misica um ambiente propicio as palavras cantadas. (Bianchi, 2003, p. 54-5) Na Sonata em Si b maior para 4 maos de Mozart, trecho n. 2, ties um exemplo de pontuagao utilizado pelo professor. O fa do ‘parvo LO mao direita do piano 1, est4 desempenhando a mesma Hingio do si da mao esquerda do piano 1, ou seja, final de frase, fiiftanto, ele nao pode ser atacado. Na verdade, o fé tem dupla fun- 37 ao — é conclusao da frase anterior e in{cio da frase seguinte, por isso, © toque deve ser mais leve. E necessdrio fazer a separacao das frases nessas notas. Para o professor, é como se houvesse uma virgula nesse trecho. Exemplo musical n® 10 Sonata em Si b M. para quatro mis de W. A. Mozart, op. 4-10. Sao comuns alterag6es de respiracao por parte do professor nas fra- ses musicais, com o intuito de valorizar mais intensamente 0 siléncio como procedimento de execugao, principalmente nos finais das obras. O trecho editado do Concerto em Ré Menor de W. A. Mozart, K, 466, para piano, exemplifica esses procedimentos. Apesar de a frase estar ligada, o professor pede algumas respiracdes na melodia para dar mais leveza ao texto e configurar mais o estilo da época. Concerto in D minor for the Pianoforte Hxemplo musical n® 11 Concerto em DMinor de W. A. Mozart. K. 466, cp. 83-85. BEE nuarto elemento musical trabalhado pelo professor 60 andamen- ## l’ste nao se relaciona nem com a velocidade, muito menos com o vittuosismo — ele € um estado de espirito. Na verdade, 0 andamento teal de uma obra musical est4 no equilfbrio perfeito entre a fluidez da din musical e © temperamento do intérprete. Bianchi nunca foi “lsemivo para tentar cumprir as indicages de andamento indicadas 4) partivuras. Dependendo do intérprete, a execugao da mesma obra © fprocessa em andamentos bastante diferenciados. Hoje em dia, motivados pelo virtuosismo ¢ pela competitividade, os intérpretes alteram demais os andamentos. Toda a execugéo musical atualmente se faz de forma extremamente acelerada. [...] © andamento é muito pessoal, depende do temperamento do in- Urprete. [...] Mesmo assim, vocé precisa criar uma velocidade certa durante a execugao. E dificil estabelecer um tempo justo nos andamentos muito lentos: adagio, lento, largo ¢ grave. Os alunos ficam perdidos durante a execugio de uma obra lenta. Eles criam uma inconstincia ritmica muito grande. Nesses casos, a unidade de tempo nao pode ser a figura mais longa, mesmo que esteja marcada na partitura. Af, a unidade de tempo tem que ser a figura mais curta. E ela que vai marcar a pulsagio. Vocé vai pensar em fazer le, 2e, 3e, 4e. [...] Escolhendo a colcheia como unidade de tempo, a coisa funciona bem melhor. A estrutura da mtisica pede esse comportamento [...] O aluno cria um referencial ritmico mais seguro. (Bianchi, 16/99, p. 3-7) Sonata Op.31 No. 2 - D Minor - II Movimento Powerom Stones ase mais roi ris dds ‘Adagio I qr = P love Vxemplo musical n° 12 Mata op. 31 n¢ 2-12 Movimento — L. V. Beethoven ‘Tumbém nas execugées de estruturas musicais advindas da danga, iio 0 minueto, allemande, courante, sarabanda, giga, pavana etc., W. Wiaiehi revela a importancia de se adequar os andamentos as necessi- isles estilfsticas da obra interpretada: © “Allegro”, que hoje a maioria dos Solistas descamba para a velocidade, cra apenas um estado de espitivo alegre. Significa so- mente cocar com alegria ¢ nada mais. Nao tem nada a ver com velocidade. [...] O préprio “Presto” daqucla época nao seria tao veloz como nos dias de hoje. Como exemplo, posso citar o I Quar- teto de Corda “A Caga’, opus 1, n® 1, de J. Haydn (1738-1809) que, no seu primeiro movimento, colocou como Andamento o “Presto”. Se essa obra for executada na velocidade como se toca 0 “Presto” nos dias de hoje, na minha opiniéo, 0 Quarteto se descaracterizaré da sua estrutura interpretativa, a0 passo que, se ele for tocada no andamento “Presto” do tempo de Haydn, ela se tornard mais bela e emocionante. (Bianchi, 2003, p. 55-6) Nao sao infundadas as afirmativas do professor se considerarmos a etimologia da palavra Kairos’, associada a uma forma diferenciada de tempo, em contrapartida a palavra Chronos, que & a personificagio genérica do tempo. As duas nogées de tempo estao presentes na mi- tologia grega. O termo Kairos expressa um sentido de momento apro- priado, oportuno, tempo certo, e também implica o curso de alguma agao decisiva. Chronos, por sua vez, representa, na mitologia, a cons- ciéncia que observa distante, imperturbvel, o fluxo da realidade, so- bre o qual projeta um conjunto de categorias, pelas quais ela transfor- ma continuidade em descontinuidade e distingue 0 antes do depois, reafirmando seu modo préprio de observagao, elaborando o tecido do iar de tempo, uma qualidade complementar aquela implicada na temporalidade representada por tempo. Kairos descreve uma nogao pec Chronos. se refere a uma experiéncia temporal na qual percebe- 5 Kaires tradus-se literalmente por uma linha formada pela extremidade dos fios que permanecem atados ao tear quando a malha é cortada, ou entio, a franja formada por um conjunto de fios na borda de um tecido. Finalmente, 0 termo pode descrever um topete, tufo de fios ou borda desfiada de um pedago de tecido. Também tem a raiz etimolégica no verbo cortar. Kaires também pode se referir a0 tempo certo para o corte do trigo, na ocasiao da colheita. (Garcia, 2000, p- 100-01) a2 mos 0 momento oportuno em relacao a determinado objeto, processo ou contexto. Kairos simboliza o instante singular que guarda a me- Thor oportunidade; ¢ 0 momento critico para agir, a ocasiao certa, a estacdo apropriada, nao reflete o passado nem o futuro. E um tempo nao-absoluto, continuo ou linear, uma nogao distinta daquela pro- posta pela concepgao newtoniana de tempo cronolégico, socialmente estabelecido. Kairos, na verdade, representa um tempo que subverte a ordem de Chronos. E um tempo imprevisivel, instavel ¢ flutuante e, apesar das suas qualidades negativas em relagio ao tempo Chronos, que é um templo planejado ¢ estabelecido, é 0 tempo determinante no desenvolvimento humano. Kairos permite a criacio de um ambi- ente interativo, onde os participantes estao entrelagados pelos saberes que so capazes de produzir coletivamente (Garcia, 2000, p. 99-110). Dessa mancira, podemos dizer que Kairos é 0 tempo do intérprete musical, porque envolve uma visdo de totalidade fundada nas condi- g6es que as circunstancias se apresentam. Como afirma Joe Garcia: “Tecer Kairos é uma arte intuitiva, onde se exerce mais sensibilidade que algum modo de racionalidade” (Garcia, 2000, p. 108). Sob essa 6tica, pode-se objetivar, para o andamento e para alguns trechos mu- sicais, certas modificages de tempo. Bianchi, utilizando um vocabu- lario literal concentrado nas palavras ralletando, accelerando, rubato, ritenuto, stringendo, affretando, acolhe Kairos, mesmo que acompanhado de um referencial aritmético. Na verdade, a indicacao numérica, para o professor, est presente até na intengdo subjetiva do intérprete (Bianchi, 16/99, p. 12-5). Como exemplo, temos o Prehidio n. 4, op. 28 de F. Chopin, c. 1-8. Acompanhando o tracado da partitura, © intérprete deverd executar cada frase com um acellerando inicial, seguido de um ritenuto, ou entéo um crescendo seguido de um diminuendo, sem desprezar a graduagio numérica que também vai ser utilizada na seqiiéncia das frases. Dessa forma, temos uma visio microscépica de cada frase, seguida de uma visio macroscépica do texto musical. 43 Largo interpretar as frases dessa nova maneira, 0 metrénomo toma ou- tras proporgées. O tempo da miisica passa a ter outro sentido® : Por exemplo, se eu estou fazendo uma cadéncia € dbvio que os f cus dedos vi vex mais répidos, nio tem jeito, iss i filcane meus dedos vio ficar cada vex mais ripidos, néo tem jeito, isso & : natural. Eu fazia essa cadéncia mais r4pida, mas de uma ver. s6. + Agora nao, eu vou dosando 0 acelerando e isso deixa a frase mais natural. O ouvinte, por sua vez, vai sentir essa cadéncia mais légi- ca, porque ele vai ouvir o fluxo e o refluxo de cada ponto de o> > a apoio. (Risarto, 27/00, p. 19-22) A teflexao, na metodologia do professor Bianchi, se faz presente em todos os momentos € nao sao procedimentos intuitivos que desres- jeitam a estrutura formal da obra e a tradi¢ao musical: No infcio do curso parece que ele trabalha apenas com a intuigio. Simples aparéncia. No dia-a-dia observamos que sua metodologia é bastante técnica ¢ apresenta contextos de grande logicidade. Eu di- ria que a familiaridade do Bianchi com essa técnica € tamanha que ao oe cle transmite a falsa sensagio de que age baseado apenas na intuicgo subjetividade. No entanto, se vocé verificar minhas anotagoes de aula, poderd confirmar que existe um trabalho técnico embutido Exemplo musical n¢ 13 que nao é subjetivo de forma alguma. [...] O trabalho do Bianchi Prelidio n¢ 4, op. 28 — F. Chopin; cp. 1-8. esti inteiramente baseado numa experimentagio sonora que leva 40 melhor resultado. Isso € puramente técnico, nao € nada subjeti- vo. De posse dessa técnica, a interpretagio toma novo rumo. E Todos os procedimentos interpretativos desse professor seguem a nessa hora que as coisas parecem assumir um contexto de obviedade. [..] No trabalho do Bianchi eu entendi justamente a légica da inter- mesma trajetéria, ou seja, a inter-relago entre as notas que compdem pretagao musical e conseqiientemente a minha intui¢ao musical fi- a frase musical ¢ a que se forma entre as diversas frases musicais na obra. Risarto, referindo-se as alteragoes de tempo empregadas pelo professor, argumenta: cou bem mais forte. [...] De repente, buscar 0 melhor toque, a melhor condugao sonora, sio fendmenos que néo podem ser verbalizados € parecem seguir 0 caminho da intuigao, mas, no fun- No comego, aquilo me parccia extremamente exagerado. Hoje, lo, cles pressupdem um trabalho técnico. Veja bem, hoje nao lhe vejo isso com muita naturalidade, Ele tem uma légica para alterar os andamentos. Por exemplo, se cu vou exccutar seis compassos rece extremamente légico que a mesma frase repetida por mais de rallentando, tenho que criar uma proporsao aritmética entre eles. [...] Eu estudava com metrénomo. Isso cria um condiciona- Ail « planista reporta-se a idéia de temporalidade bergsoniana ¢ ao tempo Kairds mento técnico muito eficaz, entretanto, quando vocé comega a Wala qualitativa de tempo. de trés vezes simultaneamente seja executada de forma diferente em cada uma delas para evitar a monotonia sonora? Uns podem executar a primeira frase mais forte, a segunda mais piano, a tercei- ra pode confirmar a sonoridade da primeira frase — vai depender do contexto. Af fica a liberdade do intérprete, mas a regra aplicada € bastante légica e musical. A maneira de aplicar é que muda de intérprete para intérprete. (Risarto, 27/00, p. 2) A metodologia desse professor leva o intérprete a estabelecer uma relacio continua entre o fazer e o pensar a mtisica. E nessa pesquisa sonora que a execugao se atualiza e se aperfeigoa: “Eu nao sigo uma bibliografia muito grande. Na verdade, a minha metodologia & mais uma pesquisa sonora do que propriamente uma metodologia. Ela é aplicada durante a execugao. E nesse momento que acontecem as varias interpretag6es € os relacionamentos de frase” (Bianchi, 16/96, p. 17). O uecho editado da segunda pega infantil Petit Poucet de Maurice Ravel, obra intitulada Ma Mére Loye, para piano a 4 maos, exempli- fica o controle sonoro que W. Bianchi aplica as frases. Independente- mente da dinamica indicada na partitura, ele realiza uma graduagio sonora para cada nota executada. Na partitura, os oito compassos iniciais do piano Secondo nao tém nenhuma indicagio de dinimica; no entanto, W. Bianchi pede j4 no primeiro compasso que a nota ré colcheia tenha uma graduag’o 4 em relagdo as demais notas, indepen- dente de o trecho estar em pianfssimo. O mesmo ocorre no dé col- cheia do Ultimo tempo do compasso 2 ¢ 0 re colcheia do ultimo tempo do compasso 3, que nao deverao descer em volume. A tendéncia na- tural dos intérpretes ¢ abaixar a sonoridade em razao de a escrita estar descendente, no entanto, o desenho melédico deve estar em crescen- do pianissimo. No compasso 4 o professor pede uma leve graduacao sonora nas tiltimas trés notas; 0 mesmo acontece nos compassos sub- seqiientes, evitando-se dessa forma um diminuendo exagerado, que traria desequilibrio a frase. Temos ainda os pontos culminantes indi- cados nos compassos 6 e 7. II PETIT POUCET Tres Moderé J=65 Paemplo musical n® 14 My Mere Loye para piano a quatro maos — Petit Pouce cp. 1 a 8 — Maurice Ravel. A jarrativa da violista Yara Miranda evidencia em que medida o \clonamento interpretative desse professor se revela importante 4 metodologia contemporanea, no sentido de conciliar a tradi- ) Musical com a liberdade de expressao: A moderna pedagogia musical promove um resgate da experién- cla sensitiva © organica da musica, o que me parece o cerne do indtodo do Prof. Bianchi. [...] Acredito que existe um grande com- prometimento desse professor com sua ideologia acerca do fend- meno musical. Vejo isso como uma qualidade intrinseca do seu trabalho. [...] O miisico brasileiro sabe que em algum momento terd que ser um professor, daf a grande importancia da metodologia deste mestre, tanto para os instrumentistas como para aqueles que seguirao a carreira de professor. [...] Atualmente, est4 haven- do uma “padronizacao” que deixa todos os musicos com 0 mesmo. som. Estdo se perdendo aspectos puramente individuais ¢ origi- nais do intérprete que deveriam ser mais privilegiados. (Miranda, 22, p. 36) A performance est4 repleta de atividades mentais que originam 0 seu fazer musical, teorizagbes adjacentes e procedimentos estéti- cos consagrados pela tradicao. Estuda-los faz parte do processo. Nao foi preocupagio do professor embasar o seu trabalho em conceituagées teéricas, contudo, elas habitam a sua metodologia, cabendo aos intérpretes integra-las em sua pratica. Como diz a pianista Maria Elisa Risarto, elas s4o ferramentas importantes para intérprete musical: As ferramentas séo 0 mais importante no trabalho do Bianchi, Vocé tem que saber como as regras de interpretacdo funcionam, Com elas, eu vou saber interpretar, Interpretar € ver além do que esta escrito. Veja bem, se eu nado souber antecipadamente que posso dividir uma cadéncia em grupos de dois, trés, ou quatro notas, eu nunca vou poder visualizar esse trabalho técnico anteri« or e daf sempre a cadéncia vai se apresentar para mim de forma desconhecida. Sempre cla vai ser nova, porque nao se encaixa en modelo nenhum. Depois que cu tenho as ferramentas, vou entenie der que cada cadéncia se apresenta de uma mancira diferente, [...] E aro que a minha intuigao trabalha junto com essas ferra~ mentas. O contexto musical vai me dar a safda para interpretar corretamente aquele trecho. Eu vou descobrir 0 segredo daquela musica, mas cu tenho que ter as ferramentas para chegar ld. A intengao do Bianchi nao & definir 0 tipo de acorde, o tipoldil intervalo. Ele néo quer analisar a obra musical. Sua intengio encontrar a melhor sonoridade para se obter a melhor interpi cao. Veja bem, 0 conhecimento musical é importante, mas nao é tudo. (Risarto, 27/00, p. 34) Segundo Risarto, a intengao do professor & sempre buscar na performance a transcendéncia: Até bem pouco tempo atrés eu aplicava os meus conhecimentos de andlise musical como uma das formas de adequar a partitura as intimeras regras estudadas. Por exemplo, eu queria saber onde ‘stava O tema um, o tema dois, o desenvolvimento, a coda, etc. Hoje, nas aulas do Celso Mojola eu entendo que devo conhecer as regras de andlise para saber 0 que a obra tem de diferente, porque se uma obra musical seguir rigorosamente as regras, ela nao vai ser criativa. O importante é captar aquilo que ndo estd contido nas regras, Isso € 0 criativo. Vocé tem que transcender para criar. Assim, para mim a andlise musical adquiriu outra conotacao, ela passou a ser uma andlise transcendente. E importante saber qual ¢ © primeiro tema de uma sonata, qual ¢ a ponte, entretanto, 0 mais idequado € compreender quando 0 compositor transcendeu a for- ma para dar origem a sua criatividade. Af vocé confere um valor interpretative para a andlise musical ¢ perccbe que uma obra ¢ luna, cla nasce ¢ tem 0 seu climax prdprio. Ela nao esté contida em fegra nenhuma. Cada sonata, cada obra musical, tem sua \nicidade. Na interpretagao musical acontece o mesmo. (Risarto, 27/00, p. 34) fruseado é 0 quinto elemento musical importante na metodologia }iocesso Bianchi e tem uma relacio profunda com a linguagem |, exigindo um capitulo a parte. CAPITULO II A relagio da misica com a linguagem verbal Yesse ponto, eu vejo a relacto da misica com a Caguagen folade. Ad sensapio é a mesma. A medida que web me onvolee no sou discurso aumenta a minha emocao, a minha sensibiledada, (Brancut, 16/96, p. 5) O texto de G. Buelow! revela com muita pertinéncia a relagao da muisica com as artes de falar (gramatica, retérica, dialética). Para o autor, essa relacdo vem de longa data. A musica durante muito tempo teve predominancia vocal, portanto, esteve vinculada a palavra, dai o motivo de os compositores se influenciarem pelas doutrinas retéricas que adaptavam os textos literérios & musi vimento da misica instrumental, os principios retéricos continua- ram a ser utilizados. As idéias musicais relacionadas A retérica tiveram origem na extensa bibliografia sobre oratéria ¢ retérica dos antigos escritores gregos e romanos, principalmente Aristételes, Cicero ¢ ‘a. Mesmo com o desenvol- Quintiliano, e tiveram como objetivo instruir 0 compositor na ma- neira de controlar e direcionar as reag6es emocionais de seus ouvintes e capacité-lo a altcrar os estados de espirito deles. O préprio canto gregoriano e a antiga polifonia tracam freqiientes e variadas imagens de expressao retérica. O impacto directo da retérica classica pensada em musica tornou-se inquestiondvel com 0 adyento do humanismo renascentista do final do século XV, fazendo-se sentir nas novas formas ¢ estilos musicais, dentre os quais, o madrigal e a 6pera. Embora a miisica estivesse asso- do século XVIII, elevaram a composicao musical a uma ciéncia baseada na relagéo das ciada 4 matemdtica, os tedricos alemaes, a part palavras com a musica. No perfodo barroco, a ret6rica e a oratéria forneceram muitos dos conceitos sensatos e indispensdveis que sao fontes de pesquisa da maior parte da teoria ¢ pratica da composigao. Ja no século XVII, analogias entre retérica e musica permeavam 0 pensamento musical, envolvendo tanto definigées de estilo, formas, métodos de composigao ¢ expresso como também motivando varias questées de pratica de execugao. 1 BUELOW, George J. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. v.15, p-793- 803. 52 | | . A associagao da miisica com os principios da retérica é uma das mais evidentes caracteristicas do racionalismo musical barroco e deu forma aos elementos progressistas na teoria musical ¢ na estética do periodo. Quase todos os elementos da mtisica barroca, quer seja itali- ana, alema, francesa ou inglesa, estao direta ou indiretamente ligados aos conceitos retéricos. Em 1563, Gallus Dessler apresentou uma organizacao formal da muisica que definia a estrutura da composigao bascada numa terminologia retérica: exordium (comeco), medium e Jinis, utilizada até 0 século XVIII. Mersenne, no seu tratado Harmo- nia Universelle (1636-1637), ressaltou que os mtisicos eram oradores que deveriam compor melodias como se fossem discursos, incluindo todas as partes, divis6es ¢ perfodos apropriados a um discurso. Analo- gias entre retérica e musica podem ser reconhecidas nos termos rela- cionados ao processo criativo: inventio, dispositio e elocutio. Da mesma forma que um orador deveria conceber uma idéia (inventio) para en- tao desenvolver seu discurso, 0 compositor barroco inventava uma idéia musical que era a base apropriada para a elaboracio e 0 desen- volvimento. Muitas das figuras musicais também tém origem numa terminologia extrafda da retérica. Como resultado dessas inter-relagées da retérica com a mtisica, 0 barroco adotou como objetivo estético principal a obtengao de uma unidade estilistica baseada nas sublimagSes emocionais, as quais cha- mamos de estados de espfrito. Um estado de espirito refere-se a uma agitacdo ou estado emocional racional. Assim, 0 objetivo da retorica ¢ da miisica era imitar as emoges humanas. Durante o barroco, 0 com- positor cra, da mesma maneira que um orador, obrigado a despertar as emogoes do ouvinte — alegria, tristeza, amor etc., e cada perspecti- va da composi¢ao musical refletia esse contetido emocional. Embora facilmente aplicavel & musica vocal, 0 objetivo permaneceu 0 mesmo na miisica instrumental. O compositor barroco planejava o conteido emocional de cada obra, parte ou movimento da obra, com todos os recur sos de sua arte, ¢ acreditava que as reagGes de seus ouvintes estivessem baseadas em um critério igualmente racional do significado de sua 33 musica. Todos os elementos musicais (escalas, ritmo, estrutura har- ménica, tonalidade, extensao melédica, formas, timbre instrumen- tal) eram interpretados emocionalmente. Os estilos, as formas ¢ téc- nicas de composigao da musica barroca eram, portanto, o resultado desse conceito de estados de espirito. Em 1706, 0 escritor alemao J. Neihardt, em sua obra Beste und leichteste Temperatu des Monochordi, afirmou que o objetivo da mtsica é fazer sentir todos os estados de espirito por meio de meros sons e ritmos das notas, da mesma forma que faz o melhor orador. Essa men- talidade perdurou até 0 século XVII. Mesmo quando o barroco es- moreceu, a relagao musica/retérica continuou a influenciar a estética musical do estilo galante e os primeiros ¢ posteriores estégios do perio- do classico. Em 1770, J. EF. Daube ainda pedia respeito as regras da oratéria na composicao. Os miisicos eram freqiientemente lembrados de que a mtisica era um discurso em sons onde © cantor ou o instrumentista devia, da mesma forma que o orador, empregar as téc- nicas de boa elocugao: clareza, variedade sonora agradavel, contraste de énfase, além da compreensao e expressio dos estados de espirito no estilo apropriado. Apés 1750, os estados de espitito perderam a sua qualidade objeti- va e foram identificados a emogies subjetivas ¢ pessoais do composi- tor, ¢ essa inter-relagao entre musica ¢ retérica foi perdendo impor- tancia. Um pouco dessa terminologia e algumas idéias bdsicas da retérica nortearam as técnicas de composicao; entretanto, no século XIX foi tratada como fonte musicolégica para se entender 0 quanto a musica ocidental foi influenciada pelos conceitos retéricos. Invertendo 0 foco de andlise, do ponto de vista literdrio, observa- mos que os criticos da atualidade, em sua maioria, lutam para que a obra literdria deixe de ser um objeto estético de avaliagao. R. Palmer admite que compreender uma obra literaria nao é 0 mesmo que ad- quirir um conhecimento cientifico que foge da existéncia para um mundo de conceitos. E um encontto histérico que apela para a expe- riéncia pessoal de quem esté no mundo. Ele vé a obra literdria nao 5a como um objeto manipulavel a disposicao do estudioso, mas como um texto que fala, criado por seres humanos. Dessa maneira, um eritico literério necesita adquitir a compreensao humanistica que en- yolve determinada obra para melhor interpreta-la. Mais do que disse- car uma obra, 0 critico literério precisa decifrar a marca humana que existe nela: entre os mais variados meios simbélicos de expressio usados pelo homem, nenhum ultrapassa a linguagem quer na flexibilidade ¢ poder comunicativos, quer na importancia geral que desempe- nha. [...] A linguagem molda a visio do homem ¢ o scu pensamen- to [...] A prépria visio que tem da realidade é moldada pela lin- guagem. [...] torna-se visivel que a linguagem é 0 “medium” no qual vivemos, nos movemos € no qual temos 0 nosso ser. (Palmer, 1969, p. 19-21) Nessa perspectiva, 0 texto literdrio ¢ encarado como um objeto de arte e, para tanto, exige uma investigagao hermenéutica. R. Palmer, apés um estudo minucioso da linguagem falada e da linguagem escri- ta, dedica posigao de destaque para a linguagem falada, uma vez que ela propicia a remodelagao continua do texto literdrio. Ele equipara a linguagem falada 4 performance musical ¢ vé no intérprete a figura que dard sentido ao texto: Os poderes da linguagem falada deveriam recordar-nos um im- | portante fendmeno: a fraqueza da linguagem escrita. A linguagem escrita ndo tem a “expressividade” primordial da palayra falada. Todos sabemos que a passagem de uma lingua a escrito a vai fixar € conservar, dando-lhe a estabilidade, constituindo as bases da histéria (¢ da literatura), mas aos mesmo tempo sabemos que a enfraqucce. [...] As palavras orais parecem ter um poder quase magico, mas ao tornarem-se imagens visuais perdem muito desse poder. A literatura usa palavras de modo a tirar 0 méximo partido da sua “eficdcia”, mas, no entanto, muito do seu poder se esgota x] nao deverfamos esquecer que a linguagem na sua forma origindria quando a audigao se converte num proceso visual de leitura. 35 & mais ouvida do que vista ¢ de que ha boas razées que fazem com que a linguagem oral seja mais facilmente “compreendida” do que a linguagem escrita. Consideremos 0 facto da leitura em voz alta. A interpretagio oral nao é uma resposta passiva aos signos no papel, [...] € uma ‘performance’, semelhante & de um pianista que interpreta uma peca musical. Qualquer pianista poderd dizer-nos que uma partitura musical é como uma casca. Para interpretar a miisica é preciso chegar ao “sentido” das frases. O mesmo se pas- sa com a leitura da linguagem esctita. (Palmer, 1969, p. 26-7) Palmer sabe da importancia de uma reprodugao escrita que chega ao sentido das palavras. Ela se produz num complexo processo dialético, na medida em que torna uma frase significativa e, de certo modo, lhe fornece 0 alvo € 0 relevo. Para o autor, a interpretagao oral de um texto literdrio é tarefa filos6fica e analftica que nunca pode se divorciar da pré-compreensao. A compreensao da linguagem ¢ intrinseca para toda “A interpretagao oral tem duas vertentes: é a interpretacao litera: necessirio compreender a go para o podermos exprimir e, no entanto, a prépria compreensao vem a partir de uma leitura-expressao interpretativa [...] nao é verdade que muitas vezes (e com toda a justiga) imaginamos 0s sons & medida que o lemos?” (Palmer, 1969, p. 27). As teorias aqui apresentadas remetem A relagao que se estabelece entre a linguagem verbal ¢ a musica. De um lado, na Antiguidade, a mtisica vocal influenciando a misica instrumental, 0 que originou uma linguagem musical que tomou para si muitos dos princfpios da inguagem verbal, e, de outro, uma linguagem verbal que pretende galgar, na atualidade, a posi¢ao de objeto artistico. Sob essa ética, nao nos parece despropositada a relagao que W. Bianchi vé entre a frase musical ¢ a frase literaria. De certa forma, ele quer dar ao texto musi- cal, a mesma discursividade e légica semantica contida no texto lite- rario, utilizando técnicas estritamente musicais. No capitulo anterior, yimos o quanto W. Bianchi valoriza a escuta musical atenta para melhor interpretar o texto musical. E ela que 36 © mittens determina 0 itinerdrio expressivo da frase musical e dé plenitude & obra. No entanto, o sentido da frase no se local za apenas na escuta; esta se congenializa com a compreensao prévia do texto musical trans- crito, que se revela na execucao. Dai a importancia de um intérprete com bom conhecimento musical. Essa atitude mental do professor nao encontra eco apenas nas afir- mativas de Palmer, mas também em L. Pareyson, quando ele afirma que o instrumentista musical decifra previamente a escrita simbélica convencional registrada na partitura para depois executar 0 conjun- to de sons ali registrados: Se a interpretacao nao tem outro 6rgao de conhecimento senao a personalidade do intérprete, esta ndo chega 4 compreensio a no ser através da congenialidade, que se torna o grande dever do intérprete. Naquele artiscado ¢ dificil coléquio que € a interpretacdo, a obra fala a quem sabe interrogé-la melhor e a quem se poe em condigoes de saber escutar sua voz; cla espera ser interrogada de um certo modo para responder revelando-se. [...] Certamente, a obra de arte usa, com quem lhe fala, a linguagem com que este pode escuté-la melhor, isto ¢, revela-se a cada um da sua mancira, oferecendo aos mais diversos pontos de vista os aspectos que, respectivamente, lhe corres- pondem; mas, naturalmente, cabe ao intérprete interrogar a obra de modo a obter dela a resposta mais reveladora para ele, daquele seu ponto de vista, isto é cabe ao leitor tomar-se congenial com a obra & qual quer ter acesso. (Parcyson,1993, p. 173) R. Palmer também valoriza essa interacao continua que se estabele- ce entre o leitor e 0 texto literario, promovendo a compreensao se- mantica da obra liter4ria: “A discussao aqui apresentada nao lidou com sentimentos, mas com a estrutura ¢ adinamica da compreensio, com as condigdes em que o significado pode surgir na interaccao do leitor com 0 texto, com 0 modo como qualquer andlise pressupée j4 uma definicao formada da situacao” (Palmer, 1969, p. 36). A mesma similaridade que W. Bianchi encontra entre a frase musi- cal ¢ a frase literdria tem amparo tedrico em S. Langer. Apesar de a 37 autora nao sentir a musica como uma linguagem, vé nela uma significancia semantica: Légicamente, a miisica nao tem as propriedades caracterfsticas da linguagem — térmos separdveis com conotages complexas sem qualquer perda para os elementos constituintes. A parte alguns poucos térmos onomatopaicos que se tornaram convencionais — 0 cuco, os toques de corneta e, possivelmente, o sino de igreja — a musica nao possui significado literal. [...] No entanto, ela pode ser um simbolo apresentativo ¢ apresentar experiéncia cmotiva por meio de formas globais que sao indivisiveis como os elemen- tos do claro-escuro. [...] E justamente porque a musica nao possui a mesma terminologia e 0 mesmo padrio [da linguagem], que ela se presta 4 revelacao de conceitos nao-cientificos. Traduzir “os sentimentos mais comuns, como amor, lealdade ou ira, de manei- ra nao ambigua e distinta”, seria meramente duplicar 0 que as denominacoes verbais fazem bastante bem. (Langer,1971, p. 231) A autora nao ignora que alguns pesquisadores antes dela j4 haviam demonstrado 0 quanto as estruturas musicais assemelhavam-se a certos padrées dinamicos da experiéncia humana. Ela admite que certos aspec- tos da “vida interior” fisica ou mental sao dotados de propriedades for- mais similares aos musicais — padres de movimento e repouso, de tensao e alivio, de concordancia e discordancia, de preparacao, de efetuacio, de excitagao, de mudanga stibita, o que possibilita um relacionamento conotativo entre a mtisica ¢ a experiéncia subjetiva ¢ demonstra que cer- tas formas musicais possuem determinadas propriedades que as reco- mendam para o uso simbélico. Portanto, para S. Langer, a analogia entre a mtisica ea linguagem est4 na funcao semantica que elas compartilham. Na verdade, a miisica articula formas que a linguagem nao pode expor, e af est4.a sua riqueza. Apesar de nao comportar a mesma terminologia ¢ 0 mesmo padrao da linguagem, a musica se presta a revelagao de conceitos nao-cientificos: “O poder real da musica reside no fato de que lhe é dado, de um modo impossfvel para a linguagem, ser fiel 4 vida do sentir, pois suas formas significativas tém aquela ambivaléncia de conteido que as palavras nao podem ter” (Langer, 1971, p. 241). 58 ) j A filésofa também nao vé a misica como uma linguagem de senti- mentos porque seus elementos nao sao palavras. Apenas enquanto forma articulada é que ela se encaixa em algo e, como nao ha nenhum significado atribufdo a nenhuma de suas partes, falta-Ihe uma das caracteristicas basicas da linguagem — associacao fixada e, com isso, uma referéncia tinica, inequfvoca. Temos sempre a liberdade de pre- encher suas formas articuladas sutis com qualquer significado que nelas se encaixe, ou seja, ela pode transmitir uma idéia de qualquer coisa concebivel em sua imagem légica. Da mesma maneira, a fungao simbélica da misica ¢ imprecisamente chamada de significado, en- tendendo-se a significagao da musica como “importe vital”: A miisica € “forma significante”, e sua significagao é a de um sim- bolo, um objeto sensorial altamente articulado que, em virtude de sua estrutura dinamica, pode expressar as formas da experiéncia vital que a linguagem é especialmente inadequada para transmitir. Sentimento, vida, movimento e emogao constituem seu importe [...] O conceito basico é forma articulada mas nao-discursiva que tem importe sem referéncia convencional ¢, portanto, que se apre- senta nao como um simbolo, no sentido ordindrio, mas como “for- ma significante”, em que o fator de significagéo nao é discriminado logicamente, mas é sentido como uma qualidade, mais do que re- conhecido como uma fungao. (Langer, 1953, p. 34) De certa maneira, S, Langer nao manifesta apenas a relacao que se estabelece entre a linguagem e a muisica, mas também aquela que se expressa entre a linguagem dos sentimentos e a musica. Embora essa doutrina nao possa ser utilizada na misica contemporinca, ela foi muito propfcia para o tonalismo, pois confere ao texto musical uma discursividade verbal, sem se desconectar da semanticidade que habi- taa linguagem musical W. Bianchi nao menosprezou a subjetividade do discurso musical e em mesmo a sua ligagao com a linguagem verbal. Os recursos de pontuagao, ondulacao natural da frase musical, graduagao expressiva, clareza, precisao ritmica, melédica e estrutural acompanham a 59 metodologia desse mestre, no intuito de fazer o intérprete expressar 0 mais atentamente possivel 0 bem dizer musical: “A frase musical ¢ seme- Ihante a frase literdria. Vocé nao fala utilizando a mesma entonacio sempre. Ha uma variabilidade sonora muito grande na execugao de uma frase literétia. Vocé sobe e desce de acordo com a inflexo da pala- yra. O mesmo acontece na frase musical” (Bianchi, 03/99, p. 17). Dessa maneira, 0 estudo minucioso da frase musical & crucial para se obter a boa clogiiéncia ¢ fluéncia musical. Ele considera essa atividade um trabalho de pesquisa sonora que tem a funcao de ‘melhor fazer soar a musica” em todas as suas dimensées. Relembrando Wolney Unes, W. Bianchi vé na interpretagao musical um proceso tradutério no seu senti- do mais amplo. O sistema de notagio gréfico-musical registra a miisica por um meio nio-acistico, néo-sonoro, ¢ tem no intérprete o tradutor desses signos graficos em signos sonoros, ainda que esse processo tradutério prescinda da necessidade de uma traducao. Sob essa perspectiva, tanto a traducao como a interpretacao sao exerctcios de congenialidade e revelam a indissociabilidade entre a obra e sua interpretacgao. (Unes, 1998) Toda a atividade do professor em sala de aula concentra-se no estu- do das frases musicais que compéem a partitura, Para isso, W. Bianchi faz uso de uma notagao bastante singular, que funciona como um referencial expressivo para os intérpretes. Para ele, qualquer frase mu- sical tem um inicio, um ponto culminante, ou climax, e um fim, sendo que 0 ponto culminante est4 sempre no meio da frase, inde- pendentemente da sua extensao: “Na frase musical cu penso nota a nota. A interpretagio de uma frase musical € muito importante. Néo é complicado vocé encon- trar 0 comego ¢ o fim de uma frase. O dificil € buscar 0 seu climax. Ele sempre apresenta varias possibilidades. Ele pode ser masculino, feminino. Pode ser simples quando apresenta uma tinica nota, duplo, triplo ou quédruplo. Depende da estrutura da frase” (Bianchi, 16/99, p. 5). O ponto culminante é a nota de maior volume sonoro da frase, é aquela em que o intérprete deve concentrar mais forga, pois ela’é 0 60 fim de um crescendo natural da frase que posteriormente se encami- nhard para um decrescendo continuo, até chegar 4 morte. O ponto | culminante masculino é quanto o crescendo natural da frase segue até | ” a nota de um tempo forte. O feminino estd localizado no tempo fra-| f co, é mais suave e delicado, muito utilizado no repertério romantico. O duplo é¢ utilizado quando o intérprete quer evitar um toque exage- rado, no ponto culminante, tornando a frase aspera. E a jungdo de um climax masculino e feminino, ou vice-versa. Com isso, a frase passa a ter maior amplitude sonora, sem forgar o ataque. O climax triplo ¢ o quédruplo tém a mesma intengio sonora e conduzem o ponto culminante para trés ou quatro notas simultneas. Sao mais utilizados nas cadéncias do periodo romintico, em que o yolume so- noro nao pode chegar até 0 martelatto. Na verdade, os crescendos € decrescendos das frases correspondem as ondulagoes naturais que com- poem a idéia musical e devem ser graduadas pelo intérprete mediante uma indicagao numérica. Vejamos alguns exemplos: Na Valsa n° 14, Mi menor, op. péstuma, F. Chopin, c. 25 a 56, podemos observar o tragado cm vermelho conduzindo a frase para um sinal em forma de cruz nos compassos 25, 27, 29 ¢ 31. Sao exem- plos de climax masculino. Existe uma intengio numérica para chegar ao ponto culminante, de tal forma que esse ponto deve soar equilibra- do, sem ataques. J4 nos compasso 33 até 38, temos exemplos de cli- max duplos. No compasso 41, presenciamos um climax feminino no segundo compasso, parte fraca de tempo, na nota s, técnica sonora que traz para o texto maior mobilidade sonora. No final do compasso 42 assistimos a um novo crescendo que ter4 o ponto culminante na nota si do compasso 43 (climax feminino) para suavizar 0 toque do acorde, no compasso 44. Contrariando a linha meldédica escrita no compasso 48, assistimos a um movimento de frase que segue 0 cres- cendo e o decrescendo a partir da nota dé da mio direita, onde se deduz que o acorde inicial representa o final da frase do compasso anterior, portanto deve soar mais brando, sem ataque. Também ob- servamos que 0 ornamento do compasso 43, mao dircita, nao deve ser atacado, uma vez que segue a onda natural de crescendo até a nota si meme Oe Oe es ia le dol. ¢ legato T LS, na 2a. vez, mais piano Exemplo musical n° 15 Valsa nt 14. Mi menor. F. Chopin, op. 25 a 56. da mio direita. Nao ¢ 0 caso desse exemplo, mas, muitas vezes, 0 desenho melddico da mao dircita nao ¢ 0 mesmo desenho melédico da mao esquerda. Aqui a mao esquerda segue 0 mesmo trajeto. Nos compassos 1 ¢ 2 do Sonho de Amor de F. Liszt temos um exemplo de controle sonoro graduado. O anacruse representado pela nota mi do baixo tem forga 2, a nota /é do baixo terd forga | para que 0 dé minima pontuada tenha a forca 2, uma vez que faz parte da melodia principal. Essa sonoridade obtida na nota dé deverd seguir uum crescendo natural conduzido pelas duas vozes, acompanhando a linha melddica, para concluir a frase na nota mi do segundo compas- 80, mao direita. Assim cada dé minima da mao direita tera uma forga gradual. O primeiro — forga 2, o segundo da mao esquerda — forga 3, ‘oterceiro da mao dircita— forga 2 ¢ 1/2, ¢ a continuagao da frase deve irnum decrescendo até chegar ao 2 do inicio da frase que esté na nota mi da mo esquerda. F importante ainda considerar que, em quase todo final de frase do repertério romantico, nos andamentos lentos, 0 intérprete deverd diminuir um pouco a velocidade para trazer ao tex- to maior serenidade. Poco allegro. con affeto. cantar Exemplo musical n* 16 Sonho de amor, de F. Liszt; cp. | e 2. os Na mesma obra, nos compassos 3 a 5 obscrvamos um movimento de frase diferente daquele determinado pelo editor ¢ que se intensifi- ca no compasso 5. No compasso 4, 0 ft anacruse da mao esquerda deve soar com uma forga 1, seguido por um novo fé forga 2, um sol forga 3, uma /é forga 2, concluindo a frase num dé forga 1 que segue em decrescendo até 0 7é do arpejo da mio direita. E importante ob- servarmos que 0 professor segue a intencao fraseoldgica de forma si- multanea, nos dois planos: melédico e harménico; portanto, os acom- panhamentos harménicos nao devem superar a forca da melodia principal, mas devem acompanhar a intengao melddica do texto. Tra- ta-se de uma leitura polifonica em que as varias melodias passam a ter dimensdes hierdrquicas que também sao graduadas numericamente. TS fs ey Exemplo musical n° 17 Sonho de amor, de F. Lisa; ep. 3.5. Outro exemplo de climax feminino est4 no compasso 29 do estudo de F. Liszt, Um suspiro. O climax feminino esté no fit bequadro da mao direita e nao na nota ré minima onde consta o acento. Na verdade, esse acento para o professor soa mais como um suporte melédico do que uma acentuacao. Ele tem a intengao de fazer com que © pianista con- duza a sonoridade dessa nota até o trecho subseqiiente que serd um crescendo continuo. Daf a importancia, de a mao esquerda estar em decrescendo. Esse decrescendo trard para o crescendo da mao direita uma sensagao de maior sonoridade, sem atacar demais o instrumento, dando ao trecho uma sonoridade mais aveludada ¢ menos martelada. cry aa ! CLIMAX Aqui ado ¢ climax BE Oe om a9 gah ——E 2) a Exemplo musical n® 18 Um suspiro. F. Liszt; cp. 29. Outro exemplo de climax feminino esté no Scherzo n. 1, op. 20, de E Chopin, c. 305. Em ver deo intérprete encaminhar o seu crescendo paraa nota mi da mao dircita, cle deveré atingir o ponto maximo da subida me- Jédica na nota ré colcheia. Ai também o professor pede uma graduagao do accelerando, que continuars nos compassos subseqiientes da partitura. Molto piti lento solio voce e ben legato Exemplo musical n® 19 Scherzo r# 1, op. 20, F. Chopin, cp. 305. os Um excmplo classico de frase musical em que soam simultaneamente varios desenhos melédicos com encaminhamentos expressivos diferen- tes encontra-se na Balada n. 4, op. 52, de F Chopin, c. 169 a 172. Para © professor, o desenho melédico mais lento sempre serd 0 mais impor- tante, nao importando se ele é harménico ou melddico. No caso, a melodia principal esté na mao direita, seguido de um crescendo diver- so da linha do baixo. Enquanto o baixo tem um crescendo e decrescendo de dois tempos no compasso 169, seguido de um eco sonore no com- passo 170, a mao dircita tem 0 ponto culminante no segundo acorde, devendo decrescer continuamente até o /é ligado do compasso 171, que morre no fi da voz intermediaria onde tem infcio outro desenho melédico. Em seguida temos um climax duplo nos acordes da mao direita que tem como finalidade dar continuidade sonora ao acorde que vai compor o anacruse do compasso 172. Largo Nees ota pa Se ebpressivo eb <0 ig <9 SS the : : + ella ed Me ee Exemplo musical n® 20. Balada n° 4. op. 52, de F. Chopin, cp. 169-172. Nos trechos ou obras virtuosisticas, W. Bianchi também busca uma qualidade sonora diferenciada. Nos estudos de Chopin, muitas vezes os temas melédicos estao contidos nas primeiras notas de cada compasso. Blas ¢ que formam a linha melédica que deve ser trabalhada. Sendo as- sim, nZo podemos executar o crescendo sem uma diferenciagdo entre a Jinha melédica propriamente dita ¢ 0 eco dessa melodia, que ele costuma ehamar de rechcio harménico. Esse recheio geralmente deve ser executa- do com um acelerando inicial, seguido de um ritenuto no final de cada frase. O estudo n. 12, op. 25 de F Chopin, c. 1 a 8, é um dos exemplos dessa pratica musical. O pianista deve tencionar mais intensamente os dedos que compéem a linha melédica, deixando 0 recheio mais leve, sem _ desconsiderar 0 tragado numérico que deve ter essa melodia principal. Molo allegro, con fuoco - __ ~ lixemplo musical n° 21. Kitudo rt 12, op. 25 de F. Chopin, cp. 1 a8. Também nas obras virtuosisticas, 0 intérprete deve enfatizar mais as notas agudas. Elas é que vao formar a melodia principal. Isso facilita a execugio, dé mais expressividade c fluéncia ao texto ¢ deixa 0 discurso musical menos técnico. As frases nao podem ser encaradas como uma grandiosa massa sonora, mas como uma onda em que determinadas notas formam a melodia principal. A Coda da Balada n. 4 de Chopin, c. 211, expressa bem esse procedimento. O pianista nao poderd pen- sar os acordes da mao direita como blocos harménicos. As notas mais agudas dos acordes é que deverao formar a teia melédica principal. Exemplo musical n* 22. Balada r¢ 4, de F. Chopin, cp. 211-214. A notacio expressiva utilizada pelo professor demarca mais intensa- mente tanto a dinamica como a agégica presente no texto impresso, uma vez que os signos capazes de assinalar a nota mais relevante de um contexto sonoro e 0 ponto culminante da frase fogem da escrita ncional da partitura. Cabe ao intérprete graduar esses procedi- tos, captando 0 momento exato de duragéo ou intensidade das fas que compGem a frase musical: Até onde irdo esses Crescendos e Decrescendo, ou a que volume de som devem chegar? Nem todos os Crescendos e Decrescendos so iguai primeiro 4 estrutura da frase, pela qual poderemos sentir a neces- . A amplitude sonora de qualquer Crescendo obedece sidade de um Crescendo maior, ou menor; e, por tiltimo, a nossa sensibilidade € que iré dosar 0 volume do som necessério para cada caso. Ha casos em que, interpretativamente, necessitamos de um Climax mais forte. Ao invés de tocarmos com mais forga, com perigo de forgarmos o som, tornando-se dspero e feio, é aconselhével substituir por um Climax Duplo [...] obtendo-se en- tao uma frase de maior amplitude sonora. (Bianchi, 2003, p. 89) Bianchi, de maneira similar & linguagem falada, vé a importincia de trabalhar as inflexdes da frase musical para obter a correta execucao obra. Na lingua falada, observamos que, com excecao dos nativos lie esto em contato direto com a lingua materna desde o nascimento desenvolvem um aprendizado bastante diferenciado, qualquer aluno, o iniciar o estudo de uma lingua estrangeira, sente extrema dificulda- para realizar corretamente as inflexGes presentes no texto falado, sem dar conta de que a falta dessas inflex6es conduz 0 ouvinte para a preensao da frase, ainda que esta contenha todos os elementos pensiveis para uma perfeita compreensio verbal. A lingua falada, com a frase musical, contém um acento préprio — stress, que deve Esta inflexao esta nte nao sé na frase, como também na palavra isolada. A lingua inglesa, quando falada, contém um cantabile que, se nao ft bem direcionado, leva & incompreenséo da frase. As perguntas televado para que se obtenha a perfeita prontinci: formuladas na lingua inglesa contém uma inflex4o sonora crescente. Ji, as respostas comportam outro tipo de inflexao — a decrescente. Ainda que uma pergunta esteja devidamente formulada, a nao obser- Wincia dessa inflexao conduz a desarticulagao da frase. A inflexao cor- reta da frase é a chave para o perfeito entendimento do texto falado. O mesmo ocorre com a palavra. Vejamos os exemplos: ye Re They are working now. gi ee Are they working now? ‘ , Photography Photographic No segundo exemplo, podemos observar que o stress nas palavras photography ¢ photographic acontece em sflabas diferentes. A entonagao correta dessas palavras conduz o ouvinte a identificagao rdpida de uma ou outra situagio, caso contrdrio, a fala adquire um cardter di- bio. A mesma situagao ocorre na utilizagao da inflexao incorreta nas frases interrogativas ¢ afirmativas, situagao que confunde 0 ouvinte, no sentido de saber se o locutor est4 proferindo uma pergunta ou uma resposta. Esse fenémeno ocorre em maior ou menor proporsio, em todas as linguas faladas. A frase musical, da mesma maneira, também nao pode ser executada sem inflexo, com uma tinica sonoridade, uma tinica dinamica. Essa atitude interpretativa leva o ouvinte 4 monotonia ea incompreensio do texto. A inflexao correta do tragado melédico que busca os pontos de tensao e repouso da frase musical é de fundamental importancia, uma vez que leva o ouvinte & melhor compreensio do texto executado. A idéia de ponto culminante ou “climax” yem da musica modal. O tonalismo, na verdade, incorporou para si uma pratica vocal utilizada na Renascenga. Nesse perfodo, a produgao de uma tensao melédica acontecia sempre na nota mais aguda, e 0 repouso, na nota grave, uma vez que as cordas vocais s4o mais tencionadas no agudo. Hoje, esse movimento ondulatério de subida e descida da melodia compor- s6es € repousos advindos nao sé da influéncia da voz cantada, da linha harménica ¢ do ritmo subscrito na partitura. , as tensdes da frase musical podem ter uma natureza rftmica, ica, harménica ou formal. Na linguagem tonal, por exemplo, o @ gera obrigatoriamente uma tensao funcional. O ritmo, da yma forma, produz uma tensao que pode ou nao coincidir com a itura harménica da frase, o mesmo se aplicando as tensdes vocais Dessa maneira, as fungdes melddica, harménica e ritmica de ia frase coabitam harmoniosamente 0 mesmo espago fisico, levan- conta que a obra musical expressa a coeréncia criativa do com- y, : ae ‘itor € a sua propria coeréncia. Quase sempre o stress da frase musical ocorre na tensao harménica, vez que a melodia embute em si uma harmonia subjacente. No ito, essa nao é a regra geral, daf as infinitas formas de analisar ima frase musical. W. Bianchi concentra sua atividade metodolégica melodia. E nesse estudo minucioso que surgem os referenciais eadores da sua pratica, entre eles, a inter-relagdo entre as frases icais, a inter-relacao da musica com as leis da natureza, a leitura olifonica do texto musical, a leveza, a gestualidade, 0 principio da pro- ircdo e da correspondéncia. ~ Certos comandos do professor as vezes parece antagénicos, mas se ‘justificam em razao do princfpio da correspondéncia. No mesmo tre- musical ele pode sugerir sonoridades diferentes, dependendo do lume sonoro do intérprete, do instrumento que ele utiliza ¢ do local onde se processar4 a execugao. A dinamica indicada na partitura também pode ser modificada quando o intérprete nao enfatiza notas ou particularidades importantes para 0 processo. S40 comuns as alte- ragbes de respirages melédicas nas frases, a accleragao ¢ desaceleragao _ de frases nas progressées harménicas, principalmente nas obras ro- manticas, as relagdes sonoras de equivaléncia entre os diversos tim- bres nas obras cameristicas. E 0 que Luigi Pareyson chama de “ormatividade do conhecimento senstvel”: Trata-se de figurar “esquemas” de interpretagio ¢ de comensuré- Jos gradualmente as descobertas que vao brotando continuamente t fecundo e um olhar atento, ¢ de do feliz encontro de um ins climinar ou substituir ou corrigir ou integrar esses esquemas, con- forme estejam mais ou menos longe do objeto, através de um processo onde o esforgo de fidelidade nao se deixa desestimular pelos inevitveis insucessos € nao cede as solicitagdes da impaci- ancia, pelo contrério, conserva sempre a possibilidade do con- fronto ¢ a necessidade da verificacio, até que se encontre final- mente a i ‘Tratarse, ¢ claro, de um proceso formativo, pois essas “figuras” [..] sao figuradas, realizadas, produzidas, formadas pelo sujeico cognoscente. (Pareyson, 1993, p. 171) “imagem” que revela a coisa € em que a coisa se desvela, Esses procedimentos nos parecem ébvios, mas nao sao observados pela maioria dos intérpretes. Muitos adotam as indicagées expressivas do revisor e do compositor, sem se dar conta da inter-relagao que habita o discurso musical. A interpretagao éum procedimento recep- tivo e ativo ao mesmo tempo. Nela, o objeto se revela na medida em que 0 sujeito se exprime, fato que nos reporta definitivamente para a compreensao de uma existéncia pacifica entre a definitividade e a provisoriedade dos processos interpretativos ¢ evidencia a integridade da obra interpretada: “Dar-se conta do valor do artfstico da obra sig- nifica ver a sua perfeigao dinamica, surpreender a imodi ficdvel intei- reza no ato de acabamento, olhd-la como processo no ato de conse- guir a propria inteireza. O processo aparece assim como incluido na propria obra” (Pareyson, 1989, p. 147). Bianchi vé a musica nascendo na execugao, € é neste ato que aconte- cem as infinitas relagdes: uma frase com a outra, uma execugao com a outra, uma melodia com a outra ¢ assim continuamente: O miisico nao se contenta com prescrever O movimento, a inten- sidade, 0 timbre, mas multiplica as notagSes para regular também ido, a pausa [...] a execugao é, em suma, algu- a expressao, 0 colori de origindrio, de inato € de essencial; ma coisa de congénito, exigindo ser executada, a obra nao reclama nada que jé nao seja seu, [..] Executar a obra de arte, portanto, nao significa acrescen- tar-lhe alguma coisa de estranho, nem exp6-la a inevitéveis falsea- mentos ou disfarces: pelo contrério, significa precisamente “faze- la set” naquela que é a sua realidade ¢ na vida da qual ela propria quer viver. (Pareyson, 1989, p. 161) Risarto revela a dificuldade que encontrou no inicio do seu apren- dizado para realizar essa inter-relagao durante a execucao: cle ensina como controlar a execugao. Isso € muito bom. Vocé precisa estar sempre no lugar ¢ na hora certa. [...] Vou contar uma experiéncia engragada que tive nas primeiras aulas com o Bianchi. Foi durante a cxccusao dos primeiros compassos do “Sonho de Amor” de Liszt. Eu toquei as notas da melodia com a dinamica mais do que correta, crescia na hora exata, enfim, fiz tudo o que deveria ser feito com essa melodia principal. Ao ouvir cle me pediu para empregar a mesma dindmica no acompanhamento. Tive uma dificuldade incrivel para fazer isso. Hoje isso me parece ridiculo, mas, na ocasiao, foi dificil fazer esse recheio virar musi ca. Esse fato ocorreu logo nas primeiras aulas. Hoje, penso que é mais do que coerente eu pensar no acompanhamento como uma outra melodia, mas, na ocasiao, foi uma novidade. Também com relacio aos primeiros compassos dessa pega, 0 mi beo ld b for- mam uma pequena introducio. Entio 0 /é tem que ser diminut- do, apesar do mi b ser um anacruse do /d, para entrarmos no dé da mio dircita em proporgées sonoras certas. A maioria dos intér- pretes faz o inverso. Eu mesma tive dificuldades para controlar a sonoridade dessas trés notas, por que 0 dé tem que aparecer ¢ 0 Mé 4 nao pode aparecer demais. [...] isso no comeso foi complicado. Ele mesmo falava que a melodia principal cra a coisa mais impor- tante da frase. Eu também havia aprendido durante toda a minha vida que, para a execugio, a melodia principal era mais importan- te do que 0 acompanhamento. Foi complicado pensar no acompa- nhamento como outra forma de melodia. Entio, vocé percebe como essas informagées sao técnicas?! Isso é técnica de som, por- que dessa maneira 0 piano vai cantar mais € de forma mais natu- ral. Isso nao é emogao e nem subjetividade. Isso é técnica. (Risarto, 27100, p. 16-7) A leisura polifonica da obra musical é uma atividade mental que 0 professor utiliza habitualmente. Na verdade, urata-se de um pensa- mento sincrético bastante evidenciado nos exemplos musicais dados. A leitura polifonica mereceu consideravel apreciagao de varios estu- diosos, nos mais variados setores de conhecimento, principalmente na psicologia. No campo da arte, é A. Ehrenzweig quem revela a importincia de se adotar um pensamento sincrético* para melhor compreender a obra de arte: Toda estrutura artistica & essencialmente “polifénica” quando se desenvolve ao mesmo tempo em diversas camadas superpostas ¢ nao apenas em uma tinica linha de pensamento. E por isso que a criatividade exige uma espécie de atengio difusa ¢ espalhada em contradiggo com nossos hibitos normais € légicos de pensar. [...] 0 pensamento consciente ¢ nitidamente focalizado ¢ altamente dife- renciado em seus elementos; quanto mais penetramos na imagina- ¢40 € na fantasia de baixo nivel, tanto mais essa orientagio tinica do pensamento se divide ¢ se ramifica em diregées ilimitadas, fazendo que, no fim, a estrutura parega cadtica. O pensador que cria ¢ sempre capaz de altcrnar entre modos de pensar difergnciados ¢ nio-diferenciados, juntando-os para lhes prestar servigos\nas solu- goes das diferentes tarefas. (Ehrenzweig, 1967, p. 14-5) Em outro momento, Ehrenzweig define a audigao polifénica do muisico como um fendmeno sincrético: a audigio polifénica também se sobrepbe & divisio consciente entre a figura ¢ o fundo. Em musica a figura é representada pela melodia que se destaca contra um fundo indistinto do acompa- nhamento harménico. Os miisicos costumam chamar de simples acompanhamento 0s acordes de uma progressio harménica bem construida, Muitas vezes as vozes do acompanhamento formam frases melodiosas paralelas e de expressio propria. Mesmo assim, 2 Reunio artificial de idéias ou de tescs de origens disparatadas. Visio de conjunto, confusa, de uma totalidade complexa. a forma comum usada descreve bem 0 modo ingénuo de se des- frutar a mtisica. E, ainda mais, isso corresponde as exigéncias dos princfpios gestaltistas, que exaltam a melodia como a figura a que 0 acompanhamento serve como fundo musical. Em nossa mem6- ria uma peca musical s6 é lembrada como o som de uma melodia. No entanto, a percep¢ao artistica, como chegamos a julgar, nao é ordindria nem é presa dentro dos estreitos limites da atengao de todos os dias, nem tampouco confinada ao seu foco nitido, que sé pode atender a uma melodia de cada vez. O miisico, assim como 0 pintor, tem que tr estrutura musical, de modo a poder alcangar o tecido polifonico oculto no acompanhamento. (Ehrenzweig,1967, p. 38-9) ar para estender a sua atencao a toda a renzweig nao deixa de reconhecer a importancia de uma técnica ‘escuta analitica do fendmeno auditivo, que se processa pela divisao ente “metodoldgica” da audigao em vertical’, no entanto, ad- nite que a escuta musical é um fendmeno sincrético: Muito poucos misicos se dio conta do vazio completo da audigio horizontal. [...] 0 jovem Mozart ouviu uma ver uma peca polifénica na Capela Sistina cuja partitura era um segredo do coro e, no entanto, conseguiu escrevé-la toda de meméria, por onde se vé que 0 mimero de vozes polifénicas nao constitufa obstéculo algum para o jovem génio. [...] Se observarmos a nés mesmos, veremos logo que é impossfvel, em um nivel consciente, dividir nossa aten- ao até mesmo entre duas vozes independentes, a nao ser, natural- mente, que se procure pular de uma para outra numa tentativa exaustiva de alcangar uma e outra, mas nao é assim, certamente, que se deve apreciar a musica. A audi¢ao polifénica nao é€ focali- zada e € vazia para o muisico, da mesma forma que para 0 leigo, s6 que desse vazio 0 mtisico pode extrair toda a informacao de que necessita com a ajuda da triagem inconsciente que ja descrevi J A audigao vertical, para o autor, prende-se 4 percepcao dos acordes harménicos sblidos progredindo fortemente cm apoio da melodia superior dominante ¢ uma audigio Horizontal (polifénica), uma vez que as vores sio escritas horizontalmente ao longo do pentagrama. repetidamente. [...]. Nao existe uma diferenga muito nitida entre a audigao horizontal ¢ vertical, da mesma forma que néo hé um limite definido entre 0 proceso consciente € © inconsciente. Um nivel mental passa gradativamente a outro. (Ehrenzweig, 1967, p. 39-40) Yara Casnék também nos fala da maneira sinestésica como se pro- cessa 0 adestramento dos sentidos: Longe da idéia de lidar com a unidade do multiplo, com a soli- dariedade dos érgios que regulam o equilibrio ¢ asseguram o fun- cionamento do todo, como faz a ciéncia (corpo/méquina ou cor- po/sistema) a fenomenologia propée pensar a sinestesia a partir da totalidade do vivido. Ao mesmo tempo, o objeto nao € perce- bido como um produto de sintese, na qual as equivaléncias senso- riais tenham sido efetuadas: ele se oferece como uno, antes de ser submetido ao exame dos varios sentidos. A coisa deve sua unida- de ao seu pertencimento a camada original do sensivel, antes que se definam as sentidos. Merleau-Ponty utiliza 0 termo “comunicagao” dos senti- dos para definir a condicao sinestésica [...] Comunicagio nao é simplesmente associacao, é interpenetragao, troca, ¢ é dessa for- ma que a percepgio se abre a coisa: ela se anuncia primeito em sua unidade, sem ter que ser constituida ou reconstitufda a partir do diverso. Este diverso sensorial pelo qual ela se manifesta jaé unificado pelo fato de ela ter sido talhada no sensivel e de ser transportada por ele. (Casnok, 2001, p. 139-40) ersas qualidades que solicitarao os diferentes A idéia de leveza que 0 professor busca na execugao reporta-nos 4 nogao de equilfbrio sonoro ¢ naturalidade expressiva, mas depende muito do dom{nio performatico do intérprete — quanto maior, me- lhores serao as condigées de execucao! . Nao é demais rememorarmos Hamlet aconselhando trés atores: 4 Vide Manzo: “requer um aluno com dominio técnico ¢ com um relativo conhecimento de andlise musical” (p. 24). Também nao te deves dominar demais, mas deixa que a tua discrigio seja 0 teu guia, Ajusta a acedo com a palavra e a palavra com a acyio; com um cuidado especial em nao forcar a modéstia da natureza. Pois tudo quanto é exagerado se desliga do objeto proprio do teatro, cuja finalidade, tanto no comego como agora, foi ¢ é por assim dizer, erguer um espelho em frente & natureza; para mostrar a virtude o seu proprio rosto, a0 mal a sua propria imagem, ¢ a cada século ¢ a cada encarnagao do tempo a sua forma ¢ o seu cunho... Porém, se a repre- sentagao for exagerada ou desacertada, embora faga rir 0s ignorantes, 36 pode afligir 0s que sio conscicntes. E a censura de uma sé pessoa consciente deve, na vossa estima, ter mais peso do que um teatro inteiro de ignorantes. Oh, hé actores que cu vi representar, e que ouvi serem clogiados com grandes ¢ fervorosos louvores, e que nao tinham proniincia de cristfo, nem figura de cristio, nem de pagio, nem de ser humano, e que se pavoneavam tanto ¢ berravam tanto, que eu pensei que algum aprendiz, querendo fazer homens, os tinha feito mal, pois eram uma abomindvel imitagio da humanidade. (Shakespeare, 1987, p. 119-21) Tralo Calvino, da mesma forma que W. Bianchi, busca nos textos Jiterérios 0 mesmo ideal de leveza e naturalidade expressiva: © romance nos mostra como, na vida, tudo aquilo que escolhe- mos ¢ apreciamos pela leveza acaba bem cedo se revelando de um peso insustentavel. Apenas, talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligéncia escapam a condenagao — as qualidades de que se com- poe o romance e que pertencem a um universo que nao € mais aquele do viver. [...] Cada ramo da ciéncia, em nossa €poca, pare- ce querer nos mostrar que © mundo repousa sobre entidades sutilfssimas — tais as mensagens de ADN, os impulsos neurdnicos, os quarks, os neutrinos errando pelo espaco desde 0 comego dos tempos... Em seguida vem a informatica. E. verdade que 0 software no poderia exercer seu poder de leveza sendo mediante o peso do hardware, mas é 0 soffware que comanda, que age sobre 0 mundo exterior e sobre as mdquinas. (Calvino, 1990, p. 19-20) Bianchi sempre pede aos pianistas que nao fagam um fortéssimo pen- sando no tamanho do instrumento, pois as condig6es sonoras desse 77 instrumento nao sdo tao grandiosas quanto se pensa. Ultrapassado 0 tente com o término daquele trecho. Crie um certo suspense na nota si, Faga um prolongamento do som (Trecho 10, Sonata de limite permitido, 0 som do piano torna-se exaustivamente martela- Mozart, I° Mov.). do. Ele sempre busca uma sonoridade violinfstica que nao chega ao esttidente, uma voz cantada, niio esbravejada. Na verdade, ele busca chi vé a gestualidade do intérprete como um procedimento 0 equilibrio sonoro em qualquer instrumento ¢ em qualquer voz, in- na execucao. Nenhum movimento desnecessario, exagerado, dependente da técnica utilizada. Costumeiramente sentimos a maior ma contracao muscular, nenhum desgaste fisico. Todo o gestual dificuldade quando ele, nas passagens mais dificeis ¢ mais rdpidas, intérprete deve ser 0 mais comedido e natural possivel, embora exige uma execugao em tempo justo ¢ com leveza: “voce deve fazer ita a existéncia de excelentes instrumentistas que fazem gestos essa passagem de forma a ninguém perceber suas dificuldades técni- te extravagantes. Ele, de certa mancira, esta muito mais inte- cas. Arte & isso, fazer algo dificil com habilidade”. A sua predilegao do no comprometimento interno que o intérprete assume diante pela escola de canto alema também advém dessa busca por uma sono- ra musical do que no gestual que ele vai empregar. Para ele, a ridade mais natural, mais equilibrada, mais leve. lidade do intérprete durante a execugao é uma decorréncia na- dessa atitude internalizada do executante. ftalo Calvino tam- Para mim a técnica italiana grita demais. Veja o Pavarotti, ele m se preocupa com a visibilidade no processo literdrio ¢ acredita grita demais. J, 0 Plicide Domingo usa outra impostagio. Eu prefiro a técnica alemi, porque, sendo mais branda, pode ofere- imente cer mais condig6es para se trabalhar os planos dinamicos. E uma que éa intengao do escritor que cria a visibilidade: ‘A primeira coisa que me vem & mente na idealizagio de um das poucas coisas alemas que cu gosto. J4 a escola alema de piano & extremamente pesada [...] Ela bate no teclado. A estrutura do Slengo é mais abrutalhada, do russo também.\Eu prefiro a técni- «a francesa ¢ americana. Elas sio mais sutis. Esses pianistas nto uma imagem que por uma razéo qualquer apre- conto é, po senta-se a mim carregada de significado, mesmo que eu nao 0 saiba formula em termes discursivos ou conceituais. A partir do momento em que a imagem adquire uma certa nitider em ‘minha mente, ponho-me a desenvolvé-la numa histéria, ou me- thor, sio as préprias imagens que desenvolvem suas poten- cialidades implicitas, 0 conto que trazem dentro de si. Em torno de cada imagem escondem-se outras, forma-se um campo de analogias, simetrias ¢ contraposigées. ...] Seja como for, as so- lugdes visuais continuam a ser determinantes, e vez por outra chegam inesperadamente a decidir situagdes que nem as conjectu- batem tanto. Eles usam menos o peso da mao, usam mais a ponta do dedo. A escola alema usa muito 0 brago. [...] nao acredito via técnica perfeita. Cada uma tem qualidades e deficiéncias préprias. (Bianchi, 16/99, p.16-23) Ainda que em menor proporcao, o gestual também ¢ um referencial interpretativo significativo para a metodologia do professor: nao tenha pressa para terminar uma pesa, ai que nds temos que ras do pensamento nem os recursos da linguagem conseguiriam perder mais tempo. O ouvinte musical guarda muito as sensagoes resolver, [...] Penso numa possivel pedagogia da imaginacao que _transmitidas pelo intérprete nos finais de movimento [..] O final nos habituc a controlar a prépria visao interior sem sufocd-la e de uma obra musical, de um andamento, qualquer final de misi- sem, por outro lado, deixé-la cair num confuso e passageiro fan- e do intérprete uma plasticidade, um gestual diferente. tasiar, mas permitindo que as imagens se cristalizem numa for- ca, exig Isso € importante. O ouvinte precisa sentir que o intérprete ter- ma bem definida, memordvel, auto-suficiente, “icdstica”. (Calvino, minou a musica. O movimento do intérprete tem que estar coe- 1990, p. 104-8) 79 Este capitulo buscou demonstrar a inter-relacao da musica com a linguagem falada e os procedimentos utilizados pelo professor para interpretar as frases musicais. Resta abordarmos o sentido da propor- go ¢ da correspondéncia na metodologia de W. Bianchi, matéria do préximo capitulo. [TULO III ei natural e interpretagio A, interpretagito & um processo cdimico (Brancut, 06/99, p. 11) ‘A fungao césmica que W. Bianchi atribui & misica encontra amparo em alguns escritos da Antiguidade Classica. De forma simplista, ele utiliza, sem maiores pretensdes, alguns principios da filosofia antiga que mereceram longas pesquisas tanto dos teéricos como dos pensa- dores da época. Na verdade, ele tentou encontrar na cosmologia uma consciéncia religiosa norteadora do mundo. Essa visao exotérica' foi o baluarte de sua religiosidade, na qual ele incorporou a miisica como o bem maior da humanidade. Bianchi admite que o seu trabalho interpretativo parte do plano divino da musica para o plano cientifico e que esté baseado na lei do universo (Bianchi, 2003, p. 46). O ciclo divino que ele traz para a sua metodologia nao se alicerga em bases filosdficas precisas. Em ulti- ma andlise, ele manifesta a inten¢ao do professor de inserir a mtisica em um lugar de destaque no universo, uma vez que ela esta direta- mente relacionada 4 nogao de vibragao (som) e nos reporta a propria vida, ao Divino: “Deus nos da a Energia; a Energia ¢ a Vida de tudo e de todos, e se manifesta por Vibrag6es; as Vibragdes Prgduzem ° Som; o Som nos dé a Miisica; a Muisica nos causa Prazer; 0 Prazer nos traz Felicidade ¢ a Felicidade nos eleva a Deus. Para mim, esse é 0 Ciclo Divino onde esta incluida a Musica” (Bianchi, 2003, p. 27). Partindo dessa condicao divina de tratar a musica, ele aplica na inter- pretagio musical princ{pios naturais que, segundo ele, transformam- na em um procedimento césmico. Em ultima andlise, cle vé a musica como um reflexo das leis da natureza. 1 Diversamente de esotérico, exorerisme & 0 ensinamento que, em escolas da Antiguidade grega, era transmitido ao piiblico sem restriga0, dado o interesse generalizado que suscitava ea forma acessivel em que podia ser exposto, pois se tratava de um ensinamento dialético, provavel, veross{mel. Jé 0 esoterismo era uma doutrina ou atitude de espirito que preconizava que o ensinamento da verdade (cientifica, filos6fica ou religiosa) devia se reservar a um ntimero restrito de iniciados escolhidos por sua intcligencia ou. valor musical (Diciondrio Aurélio). pensamento cxotérico nao pode ser desprezado, pelo fato de integrado a sua prdtica musical. Ao afirmar que “Deus é 0 todo de Tudo é Deus” (Bianchi, 16/96, p. 14), 0 professor intuitivamen- rpora em seu cotidiano o primeiro prinefpio da tradigao her- a, 0 Mentalismo, que esta resumido na afirmativa: “O TODO é 3 0 UNIVERSO é Mental”. O Todo ¢ a realidade substancial e oculta em todas as manifestagGes e aparéncias que conhecemos o nome de Universo Material, é 0 Espirito, é a Mente Vivente inita ¢ Universal. tros principios herméticos estao presentes em sua metodologia: fpio da correspondéncia, o princlpio da vibragio e o principio do (Iniciados, 1992)”. ‘principio da correspondéncia, para os antigos, esta pautado na se- nte maxima: “o que esté em cima é como 0 que est embaixo, ¢ 0 esté embaixo ¢ como o que est4 em cima”. Dessa forma, existe correspondéncia entre as leis ¢ os fendmenos dos diversos planos la existéncia e da vida. O TODO cria mentalmente 0 Universo, de jodo semelhante ao processo pelo qual o homem cria as imagens nentais. Esse princfpio explica que hé uma harmonia, uma correla- e correspondéncia entre os diferentes planos de Manifestacao, Vida e Existéncia. O principio da vibragio resume-se na maxima: “Nada esté parado; o se move, tudo vibra”. O princfpio explica que as diferengas entre diversas manifestaces de Matéria, Energia, Mente e Espirito re- ltam das ordens variveis de vibragao. Desde o TODO até a forma & acordo com a coletinea inicidtica de nome O Caibalion, sio sete os principios hherméticos: mentalismo, correspondéncia, vibracio, polaridade, ritmo, causa e efeito, enero. De acordo com a tradicao inicidtica, eles podem ser aplicados em todas as ragdes mentais ¢ em todos os planos, sejam cles fisico, mental ou espiritual. O Caibalion é um livro composto de m4ximas, preceitos ¢ axiomas, de utilidade para os iniciados hermetistas. Esses preceitos, na verdade, so os princfpios bdsicos da “Arte da Alquimia Hermética” (Iniciados, 1992). mais grosseira da Matéria, tudo esté em vibragéo. O movimento é manifestado em tudo no Universo, tudo se move, vibra e circula.? No ritmo est4 contida a maxima: “Tudo tem um fluxo e refluxo; tudo tem suas marés; tudo sobe e desce; tudo se manifesta por oscila- des compensadas; a medida do movimento a direita ¢ a medida do movimento a esquerda; 0 ritmo é a compensagao”. Trata-se de um movimento semelhante ao péndulo. Essa lei é manifestada na criagio destruigao dos mundos, na vida de todas as coisas e nos estados mentais do homem. Em tudo existe um movimento proporcional. A lei da com- Pensagao esta presente sempre que o movimento numa direcao deter- mina o movimento na dire¢ao oposta, ou para o pélo oposto (Iniciados, 1992). De certa maneira, este princ{pio hermético também est4 ligado a idéia de proporgao defendida por Santo Agostinho*. W. Bianchi, em suas entrevistas, declara que a energia ¢ a forga vital que criou todo o Universo. Ela se manifesta e, ao se manifestar, indi- vidualiza as coisas ¢ os seres pelo mimero de vibragSes emitidas: “cada ser humano, ou qualquer corpo, ou objeto que exista no universo, € formado por grupos de diferentes ntimeros de vibrag6es” (Bianchi, 2003, p. 33-4). E interessante observarmos que, verbalizado esse referencial césmico e 0 ciclo divino, 0 professor incorpora em sua metodologia atitudes mentais inconscientes que nos reportam aos principios herméticos relacionados, que ele mesmo nao verbalizou. E como sea intencao inicial de rememorar um comportamento filos6fi- 3 Os ensinamentos herméticos admitem que nao somente tudo esta em movimento € vibrasao constante, mas também que as diferengas entre as diversas manifestagoes do poder universal so devidas inteiramente & variacio da escala e do modo das vibragées pelas quais se produzem, Assim, toda manifestagao de pensamento, emocao, raciocinio, vontade, desejo, qualquer condigéo ou estado esté acompanhado de vibragées, uma porgdo das quais € expelida e tende a afetar a mente de outras pessoas pelo método da indusao. Portanto, até os estados mentais podem ser reproduzidos pelo nimero de vibragdes (Iniciados, 1992), 4 Vide: LIMA, S. A. Miisica e cosmologia, 2005. €0 do passado tivesse se incorporado intuitivamente nas suas ativida- des musicais sem que disso ele tivesse tomado consciéncia. A afirmativa: “toda frase musical tem comego, meio e fim e sempre td relacionada com a frase anterior” (Bianchi 16/96, p. 7) revela a do de um principio natural de vida e morte, a correspondéncia que existe entre as leis do universo ¢ a miisica, a idéia de péndulo no movimento das coisas e de proporcao que habita o universo e a musi- Nas suas aulas, ele declara: “E importante ter uma medida para tas coisas. Por exemplo, um rubato nao pode ser exagerado. Existe a medida para tudo. O que vem depois tem que estar relacionado anteriormente. Existe uma lei de equivaléncia entre as isas. Tudo tem uma proporgao”. Vejamos o que diz a pianista Maria isa Risarto: Ele relaciona os processos interpretativos com a Iégica da natureza ¢, conseqiientemente, com a Iégica humana. Quando estou falan- do, naturalmente cu acentuo determinadas palavras € preciso respi- rar em outras. Na musica acontece 0 mesmo. Imagine um cantor executando um trecho musical com intimeras notas que devem cres- cer. Existe uma ldgica para cle conduzir aquela frase. Ele nZo pode cantar aquele trecho sem nenhum crescendo, vai contra a légica da frase ¢ daf ela vai soar falsa, ildgica. [...] Quantas vezes voce vai assistir a um concerto ¢ nada acontece? A execugao do pianista foi mais do que correta, ele apresentou uma performance perfeita, era portador de uma técnica exuberante, mesmo assim, ele nao conse- guiu se conectar com o seu interior. Por qué? O pianista no soube interpretar, ele ndo conduziu bem a miisica. Ele nao se ligou ao cosmo. Misia € vibragio. Vibrasio & cosmo. A vibragio penetra no seu corpo, vai passar pelas suas células. A fisica explica esse fendmeno. Pode ser que a preocupagio daquele intérprete tenha sido puramente técnica, ele nao se preocupou em vibrar de acordo com 0 cosmo, ele se preocupou apenas com a execugao mecinica, Ele nfo se integrou as vibragées do ambiente, por isso aquilo soou artificial. [..] Af eu entro naquela coisa do espiritual que o Bianchi sempre fala. (Risarto, 27/00, p. 6-7) E importante mencionar que as mudangas ritmicas, as alteragdes de andamento, as alteragées de tempo sb podem acontecer para o profes- sor enquanto sistemas de compensagées que se alternam no transcur- so da partitura: em toda a misica romantica, quando vocé tem um crescendo, automaticamente vocé tem também um acelerando embutido. Quando vocé diminui, automaticamente vocé tem o ritenuto. Nas pegas romanticas vocé nao pode ter uma marcagio rigida do compasso. A caracteristica principal de uma peca romantica est4 num movimento continuo de acellerando e ritenuto, Nao é uma coisa exagerada, mas ele existe sempre. Vocé nio pode to- car uma obra romantica como se toca uma obra cléssica. Nos classicos, por exemplo, s6 os finais de movimento tém um rallentando, o resto segue a tempo. Acelerar uma obra romantica € como vocé esticar um pedaco de eléstico. O 1 & 0 elistico, voc® comega a esticar, entéo acontece 0 2, 3 ¢ 4. Depois auto- maticamente vocé tem que voltar para o eldstico, entao, faga o inverso — 4, 3, 2, 1”. Sao comuns as interveng6es do professor, incitando 0 aluno a conectar-se com as inter-relagdes presentes na obra: a rglacao da frase anterior com a posterior, a relagao da nota anterior com a nota poste- rior, a sonoridade anterior com a posterior, 0 acelerando anterior com 0 posterior, ¢ assim por diante. Todos esses inter-relacionamentos de- vem ser dimensionados numericamente: “Em matéria de interpreta- 540 nio se pode pensar em frases hermeticamente fechadas. Todas as frases tém relagao entre si. Temos que ver 0 desenvolvimento da obra musical ¢ af estabelecer a relacio numérica entre uma ¢ outra frase musical” (Bianchi, 16/96, p. 4). Até mesmo as ilus6es auditivas que ele ctia estao pautadas em progresses numéricas, Maria Elisa Risarto fala sobre o assunto: 5 Anotagao coletada em sala de aula, Tenho uma passagem dificilima que deve terminar no fortissimo. Eu s6 vou chegar ao fortisssimo se comecar mais piano. Veja como ele (Bianchi) define bem as coisas. Para cu chegar num climax 7 eu necessariamente tenho que vir do um, criando a falsa idéia de que estou sempre no fortisssimo, Veja a légica da coisa! Eu estou no forte, desco para 0 zero e vou para o 7. Eu criei uma ilusio auditiva no ouvinte. Ele vai pensar que eu estava no 6 e fui para 0 14, quando, na verdade, eu estava no seis, desci para o zero e fui para o 7. Vocé vai produzir um fortissimo bem mais harmonioso, sem martelar o piano. [...] E interessante, porque hoje eu olho o que cle me ensinou ¢ tudo parece muito dbvio, mas naquela ocasido nao era. (Risarto, 27/00, p. 27) Outro exemplo dessa pratica esté na Valsa Péstuma, op. 14 de F. Chopin, c. 88-95. A melodia principal ja esta no forte ¢ eu preciso ‘crescer ainda mais. Para nao martelar 0 som eu cresco o miolo da frase €crio a ilusio de estar executando a melodia principal com mais so- noridade. Exemplo musical n° 23. Vala Péstuma. op. 14, de F. Chopin, cp. 88-95. Todo o processo interpretativo do professor reveste-se de equilfbrio, correspondéncia, compensagao. Para ele, a boa execugao esta na parciménia, no equilfbrio de forgas, na harmonia que se estabelece entre as relagdes musicais criadas na execugio. Até mesmo a medi¢ao que ele utiliza para graduar a intensidade sonora ¢ os degraus melédi- cos da obra é resultado da aplicagao desses princ{pios herméticos. As aulas do Duo de piano executando a Sonata em Sib maior de Mozart exemplificam essas intengoes: Dante, continue crescendo, porque © seu dé é a continuagao do dé da Sonia em crescendo. A subida é gradativa, 0 compasso 37 é um, 0 38 € 2 € assim por diante, até chegar ao climax. Dante, nao importa a altura da nota, mas a melodia principal. No compasso 37 vocé tem um dé agudo, mas é inicio de frase, entao ele € um. A repetigao nos compassos 45 até 48 é mais fraca, piano liso. Dante, nao antecipe o ¢rillo do compasso 43. Faga o irillo na cabega do tempo, senao vocé prejudica a melodia. Lembre, Dante, vocé nun- ca vai poder mudar a melodia por causa de um ornamento. Nunca. O climax da frase esté no compasso 42, na nota dé, segundo tempo. O trillo neste caso tem que decrescer. E final de frase. Do compasso 37 até 0 40 existe um grande crescendo (Trecho n. 16). Risarto fala da graduagio numérica do professor para dimensionar a melodia, o ritmo, as progressées harmdnicas, as cadéncias ¢ i sonoridade: Por exemplo, se eu vou executar seis compassos de “rallentando’, tenho que criar uma proporcdo aritmética entre eles. [...] Para mim cla (a graduaco numérica) € extremamente légica. Por exem- plo, nas baladas de Chopin vocé tem seqiténcias enormes. £ mui- to bom saber graduar as seqiiéncias com algarismo, porque senio vou comegar a execugao daquele trecho muito forte ¢ no final cu provavelmente estarei martelando o piano. Essa quantificagao numérica prepara a minha mente para um controle sonoro maior. (Risarto, 27/00, p. 19-20) Nao seria demais recorrer novamente a Shakespeare para esclarecer © quanto ¢ importante aos artistas tomarem para si o sentido do equi- Ifbrio, da medida e da proporgao: Pego-te que digas a titada como eu a pronunciei, com a lingua dgil, com uma dicgéo certa, Mas se mastigas as palavras, como fazem muitos dos nossos actores, entio antes quero que seja 0 homem dos pregoes a dizer os meus versos. E também nao esbracejes muitos assim. Usa tudo como medida. Pois na prdpria torrente, tempestade, ‘ou mesmo no turbilhio da tua paixio, tens de conquistar e criar um equilibrio que a tudo dé harmonia. Ai, déi-me até a alma quando ougo um mogo robusto, cheio de cabelos postigos, a rasgar a paixio em tiras e farrapos para furar os ouvidos da gente da platéia que, na sua maior parte, s6 gosta de ver esse actor chicoteado, por ser mais Termagante do que Termagante; ele herodiza de mais 0 Herodes. Peco-te: nao caias nesse defeito. (Shakespeare, 1987, p. 119-21) O principio da correspondéncia se faz presente na metodologia de W. Bianchi, quando ele tenta introduzir o intérprete numa dimensao pésmica que esté acima da realidade terrestre. Na execucao ele sempre de ao aluno que adentre no tempo da mtisica, que para cle é um po césmico. Risarto comenta essa atitude do professor: Ele sempre pede para contarmos até trés, antes de iniciarmos uma execucdo qualquer, pois, segundo ele, vocé precisa se preparar psi- cologicamente para entrar em outra dimensio césmica. E como se fosse um ritual, Vocé vai viver uma coisa nova que vai se contrapor ao tempo real. E 0 tempo da musica que se impde ¢ nao mais o tempo cronolégico [...] Ento, 0 que o Bianchi fala est4 mais do que correo. E certo vocé contar até trés para entrar numa outra esfera césmica. Vocé cria um ato fora da nossa realidade temporal. Se o intérprete conseguir que as pessoas se desliguem da realidade tem- poral para se ligar ao tempo da miisica, automaticamente cle estard ctiando uma emogio. Isso nio é nada subjetivo. Vocé nao vai se “ emocionar com a mtisica porque ela produziu esse ou aquele senti- mento, mas porque voce conseguiu entrar em outra dimensdo tem- poral. Vocé transcendeu 0 tempo cronolégico. Isso é cdsmico e, portanto, vocé tem que se preparar mentalmente para transcender esse tempo. Af esti o trabalho do Bianchi. Ele faz com que os mi- sicos se integrem melhor ao cosmo. Antes eu nio sentia essas coisas [..] O intérprete nesses casos consegue mostrar outra realidade, il a reviver esséncias mais profundas da personalidade humana. Nesse caso, a mtisica torna-se uma mensagem. Nao existem palavras para expressar esse fendmeno. (Risarto, 27/00, p. 11-2) que para mim € bem mais verdadeira do que aquela que se apresen ta aos nossos olhos. No fundo, a realidade que se nos apresenta ¢ ficticia, uma vez que cla est internalizada em cada ser humano. No interior do homem € que est alojada a verdadeira realidade. {...] Nesses casos a mtisica consegue passar uma mensagem que é uni- versal, césmica. (Risarto, 27/00, p. 8-10) Risarto revela o quanto é dificil captar esse ambiente sonoro que W. nchi quer atribuir & obra executada: Acho que todos os seus alunos, inicialmente, tém dificuldade para ‘A naturalidade técnica que ele exige do intérprete, a adequagio dos entender sua metodologia. No principio, eu nao conseguia acom- andamentos ao tempo da miisica, a leveza na execugao, a vida e morte rh eet 7 i iets : : anhar o seu raciocfnio. Muitas vezes, cu nao entendia o que cl que cle atribui & frase musical, conferindo-lhe um nascimento, um de- a ; Ree” ae dizia e também nao conseguia executar uma frase musical de dife- senyolyimento ¢ uma destruigao que se comprometea formar uma nova : f asaad ‘or, s20 indici acs rentes maneiras. Eu me perdia um pouco no emaranhado de op- frase relacionada eee tonne aes comprovamyg: reago. ges que ele me apresentava para interpretar determinado trecho, | de correspondéncia que W. Bianchi vé no universo e na mtisica. Mesmo uma vez que, anteriormente, eu mal conseguia vislumbrar um ca- na execugo de pegas romAnticas que exigem rupturas timbristicas abrup- s minho para atuar. Porém, com o tempo, vi que adotando sua tas, contingentes emocionais diferenciados, dinamicas exageradas, 0 pro- metodologia que detalhava com toda calma, cada compasso, cu fessor exige do intérprete uma naturalidade interpretativa vivenciada poderia estudar muisica a fundo. Nas primeiras ligGes, muitas ve- na propria natureza. Seus finais de frase, a execugao das cadéncias, os zes cu ficava horas seguidas pesquisando um trecho musical, mu- rubato, ritardando, acellerando sao sempre controlados de forma a se nida de toda a calma 2 ba do mundo. (- © eye i foc Tes aprendi com o Prof. Bianchi ¢ que nao existe uma interpretagao tornarem naturais e coerentes. Maria Elisa Risarto afirma: ‘i ‘ 4 musical correta, mas algumas alternativas plaustveis ¢, dentro des- se leque, podemos escolher aquela que mais se encaixa ao senti- mento do intérprete no momento da exccusio. [...] Claro que, dependendo da sua escolha inicial em executar determinada frase, vai haver a necessidade de coeréncia interpretativa com o restante da obra, ¢, as vezes, 0 aluno nao tem controle dessas técnicas de andlise, podendo supor que o Prof. Bianchi, em alguns trechos, impée certos procedimentos. Porém, essa conduta é decorréncia da escolha inicial feita pelo préprio aluno que adotou um fraseado Eu acho que no fundo ¢ isso que ele faz. Quando ele fala do cosmo, dessa ligagao com a natureza, na verdade, ele quer expressar na mtisica essa esséncia césmica que liga todas as coisas do universo. Por exemplo, aquele circulo que ele descreve na sua apostila tem bem mais profundidade do que se imagina. A mtisica pode atuar diretamente na personalidade humana. A musicoterapia est af para provar. Sem usar palavras, nem utilizar metéforas, vocé pode, com a mtisica, fazer com que as pessoas entrem em contato com sua esséncia interior e se enriquecam com essa experiéncia. E dificil especifico. (Risarto, 27/00, p. 18-20) vocé encontrar um ouvinte apatico a muisica. E. claro que existem i a Essas dificuldades advém da inadequabilidade que 0 homem oci- pessoas assim, trata-se de uma minoria. Entao, a misica para 0 Bianchi nao transmite emogées como paixao, édio, tristeza, a coisa ental tem para se coadunar com outros padroes mentais que nao é bem mais profunda. Fla atua na esséncia do individuo. [...] Na jam a prépria razao. Ele pede comportamentos performaticos que verdade, trata-se do transcender. Vocé tem algo real na sua frente, o além de uma simples execugo. Séo atitudes que aproximam os vocé tem um instrumento, uma linguagem specifica, mas no mo- ontrdrios, colocam o homem em contato com a harmonia do univer- mento que vocé transcende ou ultrapassa essa linguagem, voce faz , trabalham com individualidades, com analogias, com a sensibili- rT dade do homem, transcendem a linguagem musical sintagmitica ea performance enquanto fazer, revelam atitudes que estao paralisadas em nossa consciéncia: “Quando a frase segue um trajeto correto, que ele [0 professor] compara ao movimento do cosmo e a todas as coisas que nascem, crescem ¢ morrem, cla passa a ser executada de forma mais coe- rente, mais légica ¢ produz a emogio certa. Isso & pura técnica, no vejo nada de subjeti idade nesses ensinamentos [...] Para mim musi- © Bianchi tem uma sabedoria completa, cle néo conhece s ca ¢ foi justamente essa sabedoria que me permitiu adquirir um novo tipo de conhecimento musical” (Risarto, 27/00, p. 5-14). Se os iniciados da Antiguidade Classica admitiam que os p: herméticos podiam ser aplicados em todas as operacdes mentais e em icipios todos os planos: fisico, mental ou espiritual, torna-se vidvel admitir que W. Bianchi incorporou em sua pedagogia, mesmo que inconsciente- mente, esses principios que permitiram criar procedimentos interpretativos mais flexiveis ¢ individualizadas. Se esses principios se- rao accitos cientificamente pelos intérpretes ¢ pela academia, sé 0 tem- po demonstrar4, mas, com certeza, eles possibilitam uma participagao mais integrada do intérprete na obra musical. Essa metodologia ampa- rada nas leis da natureza institui um intérprete comprometido com uma subjetividade pautada na linguagem musical ¢ nos referenciais estilisticos e estéticos que permeiam a tradicao, evocando uma estética de contrastes ¢ relevo e trazendo para a atualidade um pouco da histé- ria da interpretagao musical. Muito se tem feito pela performance musical ¢ pelo estudo da lingua- gem musical — pesquisas de todas as naturezas: qualitativas, quantitati- vas, interdi iplinares, analiticas. Isso fez do repertério tonal algo um tanto desgastado. Entretanto, ¢ nesse ambiente que as escolas profissionalizantes dirigem seus trabalhos ¢ é ainda esse repertério que leva boa parte dos ouvintes para as salas de concerto. Assim, qualquer metodologia que possibilite a melhor compreensio performatica desse 92 poimentos dos entrevis- balho, Bernhard para a drea didatico-pedagégica (p. trabalho como uma homenagem rou musicalmente uma gera- 5 talentos (p. 39)- pesquisa como perfodo deve ser acolhida.° Constato que °S se tados trouxeram razées variadas para a realizagao desse tra Fuchs ressalta a sua importancia 37). Celso Rodrigues Benedito véo em vida para um grande mestre que prep ais num Brasil de grande: gio de excelentes profissior Maria Emilia Goncalves e Denise Manzo classificam nan, mance. Yara Bianchi vé © '¢8} loriza mais o aspecto sensitive © ecto técnico-instru- um registro importante para a perfo de uma metodologia de ensino que val nao tanto O asp (p- 38). Geraldo Majela ree 4. Braulio Lima revela a importancia la maioria dos musicos profissio- organico da execugao musical, e mental, ou mesmo tedrico-musical importancia histérica da pesquis que W. Bianchi tem como professor di a pesqui- nais de Séo Paulo” (39). Maria Elisa Risarto ressalta o fato oe ae nto cientifico para a performance P- i idade E. : Marings i na Universidade Estadual de Maring: i vari i os rooklin, coletei varios depoiment i ia, e verifi- de alunos participantes, depois de aplicar essa a es quei a importancia desse trabalho para 0S jovens estul i ae ae sem adentrar no lado césmico da metodologia do pro! ee aa alunos, sem exceso, passaram a ter Uma VISA0 interpr oT ja. O pianista Miguel Laprano, © atl constatou a eficiéncia desse trabal inha parte, cao performatica. Da minh: part convivio ncia foi remodelada n° ertencer a ele, agora perten $a propiciar um embasame Nos masteclasses que realize’ no Conservatério Musical do B mais objetiva ¢ direcionad: dor de um desses workshops, para o desenvolvimento da percep sei 0 quanto minha pratica de docé . ce a com 0 professor, ¢ aquilo que parecia P* i se fazer. mim ¢ a quem se compreender ness¢ faz —— ¢ Risarto, que Jério classico wyzo, Miranda, Marques Lima 6 estudo do repert itado para lidar com esse 6 Vide p. 26 das entrevistas de Ma é dpi fess ara apontam 2 pertinéncia pedagdgica do professor Pal © © dera mais habi € tomintico. O préprio professor se const tuniverso musical. 7 Vide: Bianchi, 5/99, p. 13 ¢ 15. 93 Ayradeco ao pianista Roberto Dante Cavatheiro que me acompanhou no Dio te Lanoia: Vian Sesel, por me utiles ce aller od examples miuticalsy ea todos, som excogao, que, indirela ou direlamente, me auxitaram neste trabalho Te ENTREVISTAS W. Bianchi, dia 16 de outubro de 1996, 16 horas — Faculdade de Miisica Carlos Gomes. O senhor poderia fazer alguns comentérios sobre sua apost Claro. Essa apostila é 0 resumo de duas outras apostilas que cu elaborei para os alunos do curso de regéncia do maestro Eleazar de Carvalho. Infelizmente, 0 curso foi interrompido porque nao havia quem o substitufsse depois de sua enfermidade. Ela é 0 comego para se trabalhar com interpretacao musical, e nao o fim, Nao visa estabelecer um modelo fechado de interpretagao musical. Ela fala de alguns pressupostos basicos para que o in- térprete desenvolva sua propria interpretagao. Vocé sabe, um aluno precisa ter um ponto de partida, um referencial, porque nada surge do zero. Hoje em dia, em matéria de interpretagao, © que vale é a criagio. E necessério que o intérprete deixe a obra musical cada vez mais bonita. Na verdade, esse trabalho nasceu quando comecei a dar aulas de interpretagao musical para alu- nos jé graduados, recém-graduados ¢ recém-diplomados no Bra- sil, Itdlia, EUA, Sufga, Canada. Esses alunos, na maioria, diziam: “Professor, estou completamente perdido, nao sei o que fazer”. Eu respondia: “Na minha opinido, vocé nao tem culpa. O cul- pado é seu professor, uma vez que, nesses anos todos, ele impos uma interpretagao de acordo com os critérios dele. Ele nao ex- plorou a sua sensibilidade, ele nao filtrou sua sensibilidade. Agora vocé se formou, o seu professor foi embora e nao existe ninguém para he dizer 0 que fazer, Entéo, em matéria de interpretagao musical, vocé esté no marco zero”. E um problema comum ao ‘0, dat minha intengdo em ensinar essa técnica ¢ mundo int 1 A apostila foi posteriormente publicada pelo professor em 2003. escrever essa apostila. A técnica é apenas um referencial. Depois de assimiladas algumas regras basicas, que fazem parte de uma filosofia césmica, onde tudo no universo tem principio, climax e fim, 0 aluno comega a desenvolver sua prépria interpretagio. Esse € 0 preltidio do meu Que escola vocé adotou para implantar essa metodologia? Eu obtive uma bolsa de estudos do governo americano de apro- ximadamente dois anos para estudar na Filadélfia, com o profes- sor Marcel Tabuteau. Ele foi o meu grande professor de inter- pretagio musical. Ele foi meu professor de oboé, musica de cAmara ¢ orientador em orquestra de cordas. O tratamento que hoje dou as cordas em muisica de cimara, eu aprendi com ele. Antes de ser um oboista, cle foi violinista. Eu aprendi muito ‘cus ensaios de orquestra. Ele me ensinou a se- assistindo aos s mente do que considero interpretagao musical — “Nunca toque duas notas iguais”. Essa é a semente do que considero interpre- tar em musica. Depois eu parto de alguns exemplos de instrumentistas importantes que modernizaram o terreno da interpretagao musical atual: Glenn Gould e Salvatore Accadio. © Glenn Gould dizia que 0 solista tinha obrigagio de tornar a mtisica executada mais bonita. O Salvatore Accadio escreveu em seu livro: “Se vocé conseguir tocar com perfei¢ao um trecho musical, fazendo tudo aquilo que © compositor indicou, nao se considere nem artista e nem intérprete, vocé € um simples xe- rox, uma vez que nao colocou nada de seu na obra executada”. Meu objetivo é tornar a composicao musical cada vez mais bo- s vezes pode ser contestado, mas tudo que € novo é Sempre hé uma reagio contréria ao que é nita. Isso a: muito contestado. novo. Quando vocé comegou a utilizar os planos dinamicos na frase musical? A minha sensibilidade ¢ que me orientou. Eu sinto dessa ma- neira e, se contrariar o que sinto, a coisa nao estd correta. neira, vocé pode interpretar de outra. Depende da sua sensil dade. Nada em interpretagao & errado ou certo, depende da mogao de cada intérprete. Existe uma inter-relacao entre uma frase ¢ outra? Claro. Em matéria de interpretacao, nao se pode pensar em fra- ses hermeticamente fechadas. Todas as frases tém relagao entre si, Temos que ver © desenvolvimento da obra musical e af esta- belecer a relagao numérica entre uma ¢ outa frase musical. Cada frase tem que ter uma relagao com a frase anterior ¢ estabelecer uma conexao com a frase posterior. Isso nao é nem do Glenn Gould, nem do Salvatore e nem do professor Tabuteau. E coisa minha. Faz mais ou menos sessenta anos que eu me preocupo prreto, mas eu preciso estabelecer alguns princfpios gerais, por- ue senao a sua metodologia nao terd aplicabilidade. sto. Para mim, existe uma regra geral: “toda frase musical tem ‘comeso, meio e fim e sempre esta relacionada com a frase ante- rior”. Essa é a regra basica. com pesquisa sonora. i . ‘ o existe outra regra a ser adotada? Mas nao sao apenas as frases que tém essa inter-relagao, as notas epee ¢ 2 Sinica regra que adoro. também? Justamente, Na frase musical eu penso nota a nota. A interpre- tacdo de uma frase musical € muito importante. Nao é compli- cado vocé encontrar 0 comego ¢ © fim de uma frase. O dificil ¢ buscar o seu climax. Ele sempre apresenta varias possibilidades. Fle pode ser masculino, feminino. Pode ser simples quando apre- senta uma tinica nota, duplo, triplo ou quédruplo. Depende da estrutura da frase. Por exemplo, a 5* Valsa de Esquina do fF. Mignone apresenta trés frases seguidas: a primeira com dlimax simples, a segunda com climax duplo ¢ a terceira com climax triplo. Esse climax s6 vai ser encontrado se voce trabalhar a sua sensibilidade. Para mim miisica € emogio, O que ¢ emogao? Eo aumento de vibragao da nossa sensibilidade. Nesse ponto cu vejo a relacao da musica com a linguagem falada. A sensagao a mesma. A medida que vocé me envolve no seu discurso, aumen- ta a minha emogdo, a minha sensibilidade. Agora, qualquer in- terpretagao, seja ela musical ou nao, muda de intérprete para intérprete. Por exemplo, na sua profissao, existe uma lei escrita, entretanto ela pode ser interpretada de diversas maneiras. orreto. Entio, deduz-se que as outras regras sio aquelas habi- 1almente aplicadas nos processos interpretativos? Cada linguagem tem suas regras proprias. Por exemplo, a sua portuguesa segue regras gramaticais especificas, a musica adota outra gramatica. to. O que poderia ser mais explicado nessa apostila? 0 muito interessante vocé comentar 0 fato de eu colocar a miisica nos planos divino € cientifico, Para chegar a essa conclu- 0 eu parti de estudos cosmolégicos € teoldgicos. la verdade, isso vem desde Platao. Bu fago musica obedecendo ao seguinte esquema césmico: Deus, da, energia, vibracao, som, musica, prazer, felicidade. Eu par- o do plano divino da misica para o plano cientffico, Para mim, do que existe no universo é energia. O som é um fenémeno jico ¢ portanto também € energia. Eu vou até 0 ponto de ex- plicar as vibracées das sete cores do arco-fris. nchi, de certa maneira, vocé afirma que a cor é fruto do som? ja bem, tudo no universo vibra, € se vibra tem um som. Todos “nds emitimos um som. Nao existem dois sons iguais, porque

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