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‘OBRAS DA AUTORA Mundo Fechado — romance, 1948 Og Super-Homens — romance, 1950 Contos Impopulares — 1951-1953 A Sibila— romance, 1954 (2. ed.) Os Incurdveis — romance, 1956 A Muratha— romance, 1957 () AGUSTINA BESSA LUIS aS ROMANCE GUIMARAES EDITORES LISBOA Num povo pessimista, néo o bastante para ser neuréties, nem exasperado para ser sobre-humano, depara-se-nos s vezes certo fenémeno de combus- tlio interior = que & pouco menos que uma nova ética. ‘Ver ao caso falar duma gente do lugar de Adrigos, pobre quase toda, fiada em crendices com espirito de vantazens terrenas, e com quem convivi algum tempo. Estive em Adricos durante uma primavera, ‘JA térrida, como héspede da Casa da Obra, ¢ numa altura em que esca familia Pinto Mid6es, de quem ‘vou falar, ainda nio regressara para a temporada ‘do provincia. Voltevam mais tarde do que 0 costame; ‘esse ano, porque usualmente, acabadas es chuvas de Fevereiro, j& dona Corina, a mae, aparecia com o seu xailiho roexo meio de banda ¢ os cabelos ain- da negros, desgrenhados, a distribuir na grande co- zine, que abria para o terreiro do nascente, noes de flores nas paredes, donde retirou to- dos 08 espelhos, porque, dizia ela, «nio dou confianea @ tempo; envelheco, mas no me desiludo». Foi esta, hte dois séculos, a tmica pessoa célebre na Casa ‘Obra. © poeta volton no fim de Maio. Mal o pude ver, e vivia muito retirado e aproveitava essa primeira Head “dura arguta dos cue se alimentam da kumanidade intsira, devorendo-a sblidamente e sem fastio, na sua ‘Ssolid4o; usava um velhissimo chapéu © parecen-me falvo—os seus longos cebelos brancos, enredaiios “Ma gola do casaco, eram desse estilo que tém as pes- as cujo crénio no conhere j4 a possibilidade de . Foi tudo infitil, pois nunca mais vi o poeta. Belina disse-me que cle estava doente, e desde entio via-a 4s onze horas, invariavelmente, passar no imenso ear- redor, para lhe levar um caldo ¢ uta fatia de pio de milho. Muito direita, com aquele ar de quem ga- mha es-ima contrariada pelas coisas que vé, ela de- saparecia atrés da, porta. além da qual eu ouvia um leve tossicar ou uma palavra abafada, Gaspar, que oservia de perto, dizia-me que ele dormia quase con- tinuamente. Algum tempo depois de chegar Mereés, eu fui-me embora. Belina trouxe-me a mala até ao portéo, por mera simpetia e falands sempre com aquela, pueril aitivez, sem se rir nunca, e pedindo-me vom singular paciéneia que niio tropegasse no caps- eho de arame coloeado ao fundo da escada; dizia-me sempre isso com uma tal indiferenga e oarigutério tom de voz, que suspeitei de quanto ela gostaria de facto de me ver cair e banhar-me na Agua empozada, — Nao ha ninguém com quem eu nZo gueira partir 0 SUSTO 1 disse ela, de sibito. Pegou na minha mio € sa- a, Agperamente, com um pouco.de desastrade erocaio, Hszava vestida de preto, com brineas de-oure em forma de péndulo, e parecia envelhecida, com quele ar de confienga quase vil. © mistério tépidy, e eloquente que a enobrecia, desaperecera; era uma mulherzinha de tipo colonial, dessas qne se atrevem destonhecida sem qualquer espécie de aventura De cujo maior prazer ¢ ainda, num meio estramho, a scoofid@ncia daquilo que deixeram e de que nem mes: tno sandade experimentam.—Quando eu era pequena, ‘razia sempre uma mala velha chee, com farrapos fazia viagens duma ponta a outra da casa. Estou Thabituada —disse-me, para demonstrar que néo a fatigava transportar a minha bagagem até ao fundo vescada, — Quando somos pequenos — disse eu —tudo tem Tmuita importancia ; dedieamos a tudo energias sobre- shumanas, e é por isso que nao sentimos fadiga. | Ela encolheu os ombros. — Palavra que isso € ver- Gade, lu tinha oito anos ¢ corria como uma seta a Fingir que era um cavalo com o #reio nos dentes, & jtirava-me duma altura bem perigosa sem ter tempo Bequer para me assustar, Que bela vida! Caminhava m descanso, assaltava comboios ¢ fazia de bando- © mascarado, aproveitava as penas das galinhas para enfeitar com elas um capacete de chefe; pas- java as manhis nos soutos a procurar a sista dos Elerados evadidos, mas parecia no me mexer do 5 2 porta de me chamarem « Boa-Morte, pelo “‘manso que eu tinha. A Boa-Morte? —perguntei eu, a rir, por sim- es desembaraco daquela tagarelice € eprenesnio 4 18 © SUSTO despedida, Nao me esqueco do olhar que ela. me dei- tou; pareecu cair num fastio profunda. e nio disse mais palavra, apenas me cumprimetou com um ges- to de eabeca. Viam-se dali as latadas com a8 sombras duras 10 chiio, ¢ as cortigos com tampes de zinco em frente dos quais as abelhas voavam, sem peso; como bolas de sabi, subindo, baixando, com 0 abdé~ men pelvilhado de pélen. Belina era a imiea pessoa. da case que ali pessava sem rece.o, as abelhas pou- savam nela ¢ nfo Ihe faziam mal. Tinha nase:do na Case, da Obra e, come era pouco abil, destituida dum certo entendimento profissio- ‘nal 2 pronta a deseuidar tudo 0 que aprendia, habi- tuaram-se a no encarregé-la de nada que exigisse ‘exactiddo. De resto, o poeta queria-lhe muito, era a menina dos seus olhos; baptizara-a ele proprio, @ sua irma mais velha, Beatriz, dera-the o nome de Beling, ‘em lembranea duma santa dum dos nichos de Alco- Daca, e a eriance vivera 2 custo os primetros compos. Por ali se criara, amarelinha, com os alhos cinzertos muito estacados e choremingando até porque lhe sor- ‘iam, desesperada das pessoas que queriam prestar- lhe auxilio, Aos sete anos, 0 seu divertimento favo- rrito era sen‘ar-se no muro do quintal e fazer, com um velho aparo partido, que furtava da mese de tra- ‘balho do poeta, dardos de papel. Em baixo cram og Javedouros pibiicos, ela. atirava, as sets para cima da roupa que secava nas silvas, e causava a3 vezes estragos.. , com e3- pirito ihendvolo ¢ distraido, a saa tarefa —usava de mais brandura, porém, pois na vox do amo alguma coisa lhe tocara a conseiéneia, ¢ sobretudo ela n&o queria parecer tio absorta a ponto de o fazer repeti> © que dissera, Anténio Midées, com a sua snanta dos Pirinéus nos joelhos © a barba quadrada apartada ao meio, parecia um desses homens ptiblicos retra- tados para a Wusiration Francaise, na sua intimi- dade, um homer que se surpreende na sua mesa de ‘trabalho cu no seu leito de morte, e que conserva sem- pre aquele ar para a posteridade, a testa serena e essa intrepides obtusa que 6 0 mais das veres, a ex- plagio da vontade a favor dum caracter. Da facto, Antéaio Mid6es era um homem eminente, um desaes pilares da nac&o ¢ do regime vigente, o que no im- Ped2 que no momento propicio a nacéo sogobre e 0 Tegime se altere. Liberal ¢ mais afeigoado aq rei do que & 2oroa, honesto como s6 é possivel quando se © SUSTO 3 m no sangue a provincia ¢ a recordagéo poética misérias quase em comum do seu povo, ele des- va duma situagio aparentemente invejdvel. 0 querido pela eonsciéncia burguesa dos sobera- que entendiam honrar o prépric sangue conce- encio estima As almas sem mancha, puro a ponto s ficar vulnerével, 86 a sua grande fortuna the per- tira usar a sua carreira sem de facto se aproveitar ‘Passava dex meses na corte batendo-se ecm os ios claudicartes, as lojas macénicas, as in- as do clero, a baséfia de Inglaterra. A rainha es- lithe a mao com um belo ar preocupado, na (0 de seguir os seus cuidados, E. dizia-Ihe: A sua dedicagio nio merece palavras banais, mas ela todas seriam banais...» Depois do regic{dio, Anténio Midées renuneiou & upote serrano ¢ 0 chapSu de coco resguardando-the ‘vasta calva das soelheiras, ele vivia abrindo valas ra. conduzir a rega das roseiras e podando delica- amente os pulgueritos botdes. Tinha cinco filhos— meninas ¢ trés rapazes; apertado com os rogos fa mie, consentiu que eles se conservasgem em Lis- sem abandonar aquela casa, cujo portal tio pon- mente se abria para deixar passar Antonio Mi- does, que ia de sege pera o Paco. Com o pai ficou az mais velho, José Maria, e que nessa data in- errompera os estudos para ge refazer duma febre Matriculara-se jé em Coimbra ¢ estudava Dirsito, estreito de ombros, baixinho, mas nio fragil; o3 ot 0 SUSTO ‘olhos grandes mostravam esse retraiments que pode ser tomado por timidez e comsequente melancolia, ‘As mios curtas ¢ eseuras denunciavam. uma intrep:- ez animal, ima vocagéo para o riseo, uma gersuali- dade que a boca, muito bela, como dois tragos no ‘marmore, criada para exprim:r o pensamento e a-ar- dem dos sertimentos, desmentia. Acima dos outros irmiios, ¢ pai estimava este. Desde crianca ele Ihe parecera estrenho, tanto aos mimos como goa casti Gos; evitava com tal modéstia pronunciar-ae quanto &s suas preferéneias, que isto ora revoltava ara como- via, Nesse tempo, a erianga nfo vivia aum eerco de interpretagdo e de desvelo paicolbgico, possuia. 0 dix reito de vacilar ne sua formacéo, de lutar sozinha com os seus segredos; de descobrir-se a si prépria & atureza com ume veeméncia auténtica € ess2 amar que 86.0 mistétio infunde, Enquarto os irmfice cor- ‘iam de alto a Salxo as vinhas preparando armadi- thas para os piptassilgos, José Maria deanparecis simplesmente, sem grande impeto de aventura. mas porque um caminho, uma lapa « cranspor, Ihe comu- hicavam a sensagéo amistosa duma solidio a cum prir. Sentava-se sobre o restolho secs, entre os fetos incendiados pelo sol ¢ cujo rumor frement2 Ihe pare- !a uma vor tao clara como a des criaturas. A voz foi o seu primeiro cuidado de entendimento com a criacao. Se via na terra os resniradouros das toupei- ras, a voz do interior profundo Gizia-he a frescura das luras subterzineas ome os velos de agua 82 cru vam com um suspiro recatado e onde us raizes proli- feram em tentaculos absorventes, filamentos que #2 estendem © devoram, ripidos bragos que suZocam, tompem, gastam, poros que se abrem: para recolher 0 SUSTO 25 nitrates, Buliam as campainhas roxas ¢ as corolas tenras primaveras; a sua voz era ja perfumada e val, trazia consigo o cheiro acre da formiga ¢ do 310 mathado do grande texugo que se bamboleaya terrenos himidos. As pedras, os aquilinos ¢a- aus pendentes sobre gigantesces furnas, tinbam fn severo peso, os musgos ¢ ramalhetes de arroz vagem que cresciam nas fendas, estremeciam com @ vozinhe. confidencial ¢ repassada de mimo Ie ano. O pulo ligeiro dur coelho, o resar duma asa. mta que logo s¢ perdia e renaseia mais longe, de- deavam um turbilhio de gritos, de ritornelos, frenesis 2larmados —os tojos verdes crispavam- g, mais timidos, o rolar dos pequenos torries spendia-se gradualmente, enquanto o pio trigico dalgume ave que parecia agonizar continuava, até ontraditéria. Esta nao recusava uma curiosidades, pave Igpidamente pela mio de José Maria ¢ per- in-The os dedos mum af de exploracio ¢ de enér- ica sede de indistria; outra, mais timida, fazia-se War a ser socidvel, ¢ as suas pequenas antenas mo- ‘viam-se lentamente, numa hesitagio calculista ¢ ia de civilidace. José Maria langava-a ao vento, um tanto desesperado porque ela ndo decidia cruzar palma de. sua mo ou transpor as valas de pele. Vamos — dizia cle—, como te atreves a desconfiar e mim? Com um sopro posso parslisar-te, varrer-te entre 0 fono, onde nunca mais tens salvacio. as isso cra demesiado facil, enquanto que pretender ‘teu pequeno amor é ume luta que eu no desnrezo.» 26 © SUSTO ‘Tentava captivé-la, ora abandonando a mio e fazen- do-e morta, ora abaixando-a até a terra e perm'tindo assim 4 débil formiza, perplexa, a evasiio, Mas ela nfio avancave, no escathia; apenas, com um levan- ter da negra mandibule, auscultava o ar, ¢ as ante- has, como um fio de retrés, continuamente estreme- clam, Entéio, com um bafo, um gesto, arremessava-@ fora —ela peria-se logo no granulado da salo ¢ en- tre os acidentes da vegetagao. Por algum tempo, Jasé Maria permanecia triste, um pouco meditalundo, dis- trefdo da sua prdoria alma e dos sentidos que apzen- die a reconhecer e a vigier, Quando curnpriu sete anos, tia Barbara, alta e pos- sante, com essa alegre complei¢’o das mulheres em que se filharam os melhores bastardas da histiria, disse que José Maria parecia ter cum raminho». —Tem... tem um raminho — concortou, impie+ dasa, a avé de Davim, que odiava os MidSes © se ca~ sara naquela easa levando pequeno dote e uma chaga cnénice na perna. © marido, se no a repelin, repar- tiw-se com as mogas da vinha e rosnentzs governan- tas que fechavam & ema os madureiros ¢ os bragais. Naseeram og filhos ruma tempestade de paixdes en- cobertas, coisas de citme, de despeito © de mado; e, is vezes, quando as criancas choravam no bergo, 2 de Davim, num relance mau, num espanvo do seu pré- prio dessjo, predestinava uma doenca fatel que Ihe arremessasse ali o marido como um edo uivando fi- nebremente naquele grande quarto batido de Iuar verde. Umas criangas morreram, outras, crescidas, foram para longe; em casa ficou apenas Barbara, madura © radiosa, Félix, que tocava ao piano 2 Tras wiata, e José Anténio, o conselheiro. que a mite, de O sUSTO aT menos estimava. Ela fez-se terrivel, com a sua a de 1a preta, o avental de Iuto 2 aqueles pas- desiguais e cambados que lhe denunciavam de onge a presence, A noite, uma criaca banhava-the "a chaga com Agua de sémola e enrolava-lhe a venda linho, porque a senhora, muito corpulenta, nio a ela propria fazer os pensos; as vezes, ou por que a moca lhe causava sofrimento, ou porque sen- sia que se aviltava partilhando com ela. o segredo do ‘seu mai, enfurecia-se repentinamnte ¢ batia-tlhe. —dizia —conhecem até as missrias da minha e, como podem respeitar-me?» Os filhos nio Ihe svam alivio, antes se acobardava de se chegar a ; a5 sues docncas, os seus amores e destinas en- am, um eco frouxo no seu , ¢ chorava se pressentia a gasa aber:a © a3 mocas aglomevadas no quarto da va ama, que exibia o seu enxoval, Muito amada 0 marido, essa rapariga de catorze anos, filha de joula e que vivera até ali a embonecar-se, lia Victor 0 € era de certo modo ietrada; desde o primeiro teve pela velha um agradivel desprezo e fa- 28 © 3USTO ¢ que ndo sabia convidar os parentes sendo mas datas. fatais de casamen-o ou de mortério. A Casa da Obra, com os seus tremés desczacados de auro, as tAbuas do soatho remendadas, a capela suja, aterrara-a pri- tmeiro; depois habituou-se ¢ ela, f€-la sua, 2, quando José Maria nascex, além do piano de tio Félix na sela de visitas e em cima cele o imprevisto brilho des terrinas da India ¢ molheiras ingleses, havia JA 2s obras de Lamartine, No fundo, a Cesa da Obra fieo sempre a mesma, caética e deslumbrante, um isto de miséria rabina, patente mam jarro quebrado, sume cheve imprest4vel que nunca se deitaram fora,eduma alegria de patronato, com as refeigées mei volan- tes e a simpatia easta para todos os amigos. José Maria cresceu num lar assim, onde pairavam e con viviam muitas geracdes de criaturas simples, avaras © possuidoras do sentido itil do mistico. A recolha moral da prépria terra ali estava, s6lida, feita grel, com os seus axiomas, o delirio metafisico, as fra- quezas de espirito feitas socorro do pobre € razio da sua coragem. Jos? Maria, ciimplice de cada sinha ‘n- cendiada ¢ cada voo de moseardo, cismava na sua propria menifestacdo, naquilo que, na sua familia, se podia chamar ilusio pritica. Salvo os poneos wos gue viveu na capital, o tempo pareceu-lhe um cle- imento a dominar, algo de muito relativo & sua nro poredo de cooxisiéneia com tods. a criacdo. «A Dura- bilidade © « Tempo>, foi o tema do seu primeiro en- saio, tinha ele dezoito anos, «Se vemos uma flor su combir, ou uma libélula perder as suas ases em vinte e quatro horas — escrevia ele—, dizemas que a sua vida foi efémera; ¢ quando falamos de certas aves ‘ou vegetais, surpreendemos neles vide. quas> incals 0 SUSTO 29 dade de order. fisica, Mas o tempo néo é a natureze Guma resisténcia, é uma dimensio pura, isto €, im- praticivel.» Anténio Middes proibiu o filho de se isolar dos | irmaos e de preferir as divagagSes tranquilas € 0 es- ‘tudo decordenado que Fazia pelas biblioteeas. Estava- the na ideia o mandamento da velha sua mae, que Ihe | repetia de vez em quando que ele tinha um raminho. | Fustamente, tin BSrbara estava no segrede dos mé- ‘todos encantatérios 2 que sujeitaram José Maria ymantio ele tinhs. pouco mais de sete anos, para es- " conjuro de certo espfrito bobo que julgavam té-lo _ toeado, Vestiram-Ihe 2 farzela de surrobeco que the disfargava. o ar de morgado, e leveram-no numa ma- shi seca. e escure a0 bruxo Dimas, um escanselado, | enorme, que jocirava desgrace em peneira de seda ¢ ) vendia ventos propicios aos que embarcavam. José Maria, ao yé-lo sentado na sua serapitheira onde se moviam pereevejos vermelhos, teve um movimento de repulsa. | —0 fidalgo esteja quedo, que o que bole, Barzabu "0 inventou — disse o bruxo. Tinha um caro cosco, nao desagradavel e revestido duma frieza Kicida e mesmo celeulista. Tinha visto muito, tinha conhe- | cido muito. As mulheres conservavam-se de pé na | frente dele, agora um pouco corridas ¢ desermadas, ‘dobrando na mao a toalhinhe onde tinham trazido “Brovisbes, figos. aguardente e azeite. Pegado a tia “Barbara, gorda e planturosa, a crianga rebentava © de medo, laceano 5 corpo como os animais assusta- | dos, retidos pela trela; um solugo duro € em que se 30 0 SUSTO. previa a hister‘a, Zechava-the a gargenta; © os gran- Ges olbos enevoados de pavor retinham quase com voluptuosidade aquela fisionomia carregada do ho- meme em que nao havia nem lisonja nem piedade. Ble fez sitio as roulheres—era também Bustbia, uma criada—, oferecewthes a case, toda arruinada, com um ehiqueiro de frangas ao lado e uma horte seca. Brilhavam, na extremidace das varas de ¥i- deira, as lagrimas da poda; um frio ardente anave- Ihava a pele e pinteva 9 montanha dum. aaul carre- Gado, de nevada. José Maria animou-se a obseryar ds tanques rasos, vidrados pela geada e cujos Lapu thos enfaixados num velhc eabo de vassoura ele eos- tamava retirar para ouvir o cachoar da Agua que se escapava. Sentou-se ne valeta, ea desolagiia da terra de inverno, com as laranjeiras cheias de ferragem negra ¢ 0 frio lavrendo as vinhas, deu-lhe no core. gio com uma angisstia extrema e inocente rentincia, Pensou que nao yoltaria mais a casa ¢ que os irmfus, ‘eam o choro de perrice muizo babado e os rostinhos maliciosos, nio haviam mais de o imporsmar; ¢ a av6, como wna ave de presa que ronda e desc= cor nim grasnido de trimfo, nao 0 encontraria mais nos eardenhos, « explorar terimba que era como um grande paleo forrado de palha onde se podia & von- fade escorregar, dar pinchos de pura ¢ oculia bruta- ‘Hdade. Bla também o ameacave naquilo que em José Maria era doloroso ¢ fechado —o seu amor a encon- ‘trar-se, a revestir a vida do seu olher fecunio, Bla também nio o teria mais. Chamaram-to; e quando se aproximou, com pequeno eapote sujo de lama, fez com que as mulheres se entreclhassem, porque thes disse que nao queria yoltar. © SUSTO 31 —Vé como ele nos abisma com estas safdas? — disse, quase irada, a tia. Sacudiu-o pera Ihe fazer er- guer a cabece, querendo mostrar & luz aquele rosto "em que devia pintar-se a obscura sede das mis proe- 288; mas a crianca nfo cedeu, manteve-se cabisbaixa ¢ ealada. O velho Dimas, éntio, sem the tocar, sem -desprender carinhos, porque nao sabia mesmo falar & aima crianga sem. sentir essa. espécie de humilhacio que as almas muito duras ¢ soberanas experimentam ao forgar-se 2 uma intimidade ingerior, gravemente eonversou com José Maria, Nao imitava esse abjecto estilo de ibajulzcio que consiste em errancar comi- cidade das cirouns:€ncias, para assim eativar. Falow com uma serenidade nem paternal nem sequer ami- Bavel — quase indiferente, E, inexplicavelmente, José Maria respeitou-o 2 encheu-se de admiracio por ele, © que 6 a maneira mais primitiva de amar. — Gostas da tua casa? —Gosto da casa. — Vacilou um momento, e disse, mais baixo; — Também gosto do quintal e do cipreste © do tangue onde ha enguias pretas. Mas nio quero que ninguém veje que eu gosto. _ —Gostas dos teus irmios? —Nio, | —E da tua mie? | —Nao sei, Tenho muito medo de alo gostar dele disse, com voz :rémula, José Maria. O velho Dimas | mexeu-se na sua serapilheira, ¢ houve um estranho ‘brilho de generosidade naquela cara em que cada vuga era um veio de lixo} levantou a mio duma forma perturbada ¢ olou de relance para as mulhe- | Tes, estacadas perto cam as suas mantilias ao vento, | meio tragadas pela sombra da choca de. pastor que a2 oO susTO era a casa de Dimas, o oruxo, Levantou-se e chemow a erianca, atreiu-a para o fedor a. sua manta encor- figada de imundicie, ¢ levou-c consigo para que néo o onviase a tia de caprichoso olhar ou a cubre, menos soverba, que prendiz contra o ventre as aecas maos ‘vermelhas. Era Eusébia, que tinha vindo com a avo da casa de Dayim, crendeira ¢ contadora de hist5- yids —ela exercia em José Maria uma larga sedagio, de tanto que cle amava desvendar o sea mundo de ‘aparig6es e deménios exbraseados, cheio da forma das Soisas improvaveis, Bla viu-o afastar-se com a yelho Dimas, teve um movimento de reflexfio, um gesto desordenado, 2 quis saber cabalmente porque Jevava com ele 0 menino. _—Temos que dar contas ao pai ¢ @ mae —disce, com uma secura sombria; ¢ os pomulos saliontas do seu: rasto evermelharam-se mais. numa emogio cok~ va, me] refteada. A tia Barbara reteve-a estenderdo agueles dedas fend:dos por tanto bordar 2 ouro; a sun ‘mantilha preta encobria-lhe a cara come uma. grande ‘barba despregada pela ventania. cAh'— disse 0 ve- Tho Dimas —que pestes!» Pés-se « desencrtstar cam uma yara de freixo a lama seca dos tamareos; o vento parecia dobri-lo em dois, zunia nos giestais € fazia estalar os ramos onde perlava a resina; em daixo, a estrada nova era um turbilhao de brancas omdas, © via-se. ne matizada cinza levantada, o brie Iho seco do granito rolado das pedreiras. «Blas!» — disse o velho. sem alteragio e sempre rompendo da alta quilha dos socos os torrées freseas ¢ pastosos. «Ha duss coisas eérias para viver em paz. Uma ¢ nio ter curiosidade, porque a curiosidade engentaa omeda, 0 medo é mal de morte para a alma da gente. A ou- 0 SUSTO 33 tra 6 nfo ter segredos. Tu gostes da tua mie, ela deu-te © leite, 6 quente e chora por ti; mas podes pensar que nio The tens amor, de tanto achar isso ‘um pecado, Pode apetecer-te nio the ter amor, porque tal pecado te hi-de tentar. En‘ao tens um segredo, sofres com ele, ¢ cle faz-te desgragado como as pe- tras do cho, ¢ quanto mais desgragado mais nele te Beadimas ¢ te perdes. A tua mie 695 a tue mie, @a-te aconchego e tu deijasthe a mio, e mais nada, ‘Um dia morre ¢ tu tens pena dela e esquece-la...» + Nao — disse, de repente, a crianga —, eu nfo a esquego. — Bom — disse 0 velho—, isso 6 egntigo, —Falou- sihe ainda durante algum tempo, depois trouxe-o, descencertado ¢ aflito, e entregon-o as mulheres que partiam; clas sentiam quanto tudo aquilo, c menor ‘gést0 contrafeito, a singular impaciéncia que o bruxo sempre demonstrava, influiam para. que desejassem prestar-Ihe uma submissdo timida e para que 0 popu- Jarizassem. A arte de. voldpia esté om. desacreditar @5 Tazées que geram os sentimentos, para que eles s6 subsistam. . José Maria, enquanto descia para a estrada nova ‘40s solavancos no lombo do seu jerico. olhava as ve- ze para tris—via o monte petrificado nas suaa fragas abertas onde despontavam gisstas; tia Bars bara balancave-se na cadeirinha da sua mula e pax recia mergulhada numa fosca meditacio; o véu negro ondeava como cabelos em peso, ela inclinava-se para tris € dizia . —Que vergonha, mulher! —contestava sempre a Berta, que era pobre e vinha sempre enxaguar as pipas dos cevados depois de comer o caldo de esola ¢ fazer vecados. Trazia sempre uma, saquinha de ris- eado com um sclo dentro, um novelo de linha, uma carta para. ertregar, e José Maria gostava de ouvila falar de Jobos ¢ més passedas na serra, quando 0 © SUSTO 35 ‘nivo lento das feras fazia arrepiar os cabelos dos 1a- veadores que vinham com o gado das feires, por atalhog, Duas mulas vira ela devorar, e o cheiro do sangue derramara-se no ar pontilhado de neve; era um eneiro de gordura doce ¢ que talhia os sentidos. As mulas estavam nas leiras altas ¢ pareciam avi- sadas; baixevam a cabega e despediam evices, ouvia- *se 0 seu nitrido prolongado ¢ que ninguém achow ssinél de terror; o vento trazia o odor quente da sua pelagem escremecida por longos sacdes; estava um ‘vento sereno que tocava a neve pura os vales, ¢ todas as penhas eram como bonzos derrubados debaixo dum lencol penitente. Havia mesmo na pra¢a de Adri~ ‘€0s um grande boneco de neve com dois alkios feitos de pequenas pinhas; e as crianges, cam meias escar- Jates e chaneas de ponteiras emarelas, cantavam € rilhevam cestanhas. Encdo, uma das mulas levantow a cabege, desprotegendo as grossas veias; um Jobo Saltou, depois dois, em siléncio, naquela casta expres- S30 de fome, inteira, debulhando-se-lhes da goela parda. A neve calade e triste, o vento pousando nas ‘telhias furaacentas das casas, os gritos das criangas que batiam as chancas umas nas outras fazendo reti~ ‘ir as chapas de metal; as mulas eram um novalo de pélo movedieo, carne retalhade e cuja flor verme- tha, se via ds vezes entre fauces e pates frouxas, no ardor extremo daquele repasto imperturbivel. Sabia ecisas como estas, Berta, que cra mal nascida da fala e que contava com gestos certeiros ¢ rapidiss! ‘mos, mais do que com a voz dificil que possula. José Maria ficava-se dezois a recorrer aquelas vis6es de perigo ¢ carnificina, ¢ elas nfio he davam nem re- pugn4ncia nem piedade. Tinha feito oito anos ¢ an- 36 oO sUSTO dava na escola, pequeno mundo da cartilhe, da. coi ventragio bronca ¢ meliflua ¢ que ele od:ava. Se o alfabeto tivesse corpo e sangue, estracalhava- com, 98 dentes, para poder correr as suas estituas de reis gue criaza pare ele 86 nos percdos, nos roqueiros altos de S, Domingos, Infancia do conheeiman:o, ome te custe morrer, como respiras em cada sanko aberto nas maos que nio cedem a escreyer um alga~ rismo no quadto preto empoado de giz! A Carminho sorve ruidosamente o monco ¢ contempla a faina de 6a na jenela, com um o'har de ecbiga morna ¢ amo- rosa; o Lucas espia um grilo que trouxe mo aeol- choailo duma folha de alface, dentro duma, caixa ce fésforos; ¢ aquele riso esearninho do padre-mes‘re, que saccde no ar o gorro negro para espantar 2s moscas, soa subtilmente a infancia que nete também hao more. de todo © que o espreita as vezes tio funtio da lembranca, pela feehsdura do passado. © ev6, alto, com olhos azuis e sem largar o cka- peizio de palha, vinhe buscé-lo, ¢ trazia no bolso, em~ brathado num pedaeinho de papel de seda, um ladri- Iho de marmelada, @ gulore:ma, moendo-a na boca, nao tanto para lke reter o sabor como para chamer 4 si a atmostera, temporariamente perdida, da casa. Através daquele momento, em que de novo tinha, com esse ladrilho coberto de cristais, o cheiro da lareira com os cavacos de pinho e de cordsire e a calda de actcar alastranso numa baba pegajosa, José Maria revivia nessa exis- téncia. de crisilide que ndo mais havia de reomar. Eram os chinelos de bacta que a avé cosia para =le, com grandes ‘pontadas de algodo brilhaste; ¢ en- © SUSTO aT ‘treyava-lhos com uma moeda. de prata, recomendan- do sempre: «Uns para gastar, outra pare conser- yur, » B Kusébia dizia que. na aldeia onde nascers, auquela fantastica terra d> Davim, as mortos se en- torravam com moedas na boca, para pagar a passa- ‘gum no rie que heviam de eruzar. edién- sia Aqueles Iugares onde ee criara com as ames j# falecidas e das quais 6 restava aquela ave semare de catadnra ingeliz e com quem els, nfo se entendia hem, Foi portanto Busébia pare a serra, volar pe® casa tio mergulhada numa pax de lute = para onda José Maria, mais tarde, havia de recolher-se &s tem> paradas, eserevendo, a sombra dos penedos druidas, talves os seus mais belos versos, as suas péginas mais cfndidas e mais intimas. Cipriano, que sobreviveu muito tempo @ José Me- 0 SUSTO 43 ria, possuia daquela raca os tragos vincados, a ma- xila proeminente ¢ os delicados ofhos azuis do av6. Desde crianga que se revelara, minucioso na escolha. dos amigos, sabie entreter as yelhas senhoras com. essa interminével converse. de saléo, dando 4s coi- sas mais despidas de interesse uma graca modesta que as encartava—e, a ss, vendo-as afastarem-se com og seus pascaros empalhados nos chapSus € o perfil movedico debaixo dos véus roxos, ele tinha sempre uma observacio crua, chamava-lhes gansas ¢ coisa pior, desesperado porque o tinham impedido de ortejar as raparigas, sempre atraidas pelo belo ar distraido de Vesco, ouja doenca as comovia, A vis- contlessa. das Marinhas, louca, com. o seu vestido pre- 40 muito surrado e tammancos nos grandes pés, enter- necia-o, no entanco. A familia visitava-a muitas ve- es; vinha recebé-los o visconde, sério, com as suas suigas amareladas e a chavena na mao esquerda, es- friando lentamente o café com 2 imponderdvel colhe- rinhs de prata, A sala era enorme, as Joigas da In- die. com os seus azuis foscos, cobriam os aparado- res; 2 mesmo o tecto de madeira negra tinha presos om ganchos pratos com desenhos Iimpidos de pom- hos ¢ de peixes; ume frescura tumular emanava dos © lambris de azulejo, ¢ a viscondessa, semtada na cabe- " veira, daquela. mesa de roble acinzentado pela idade, “ria claramente, com uma ponta de lueider nos olhas magoados. A filha, vio loira e quase bonita, com 0 | pescogo alto velado pela musselina, ali estava, retra- Eada depois de morta, com as pilpebras erguidas “num esforgo vio de a restituir 4 vida; os labios de- Tunciayam um abandono quase obse=no de cadaver, _ © pareciam invistvelmente amordagados. O filho, 44 © SUSTO esse, sentado no pivio numa velha eadeira de pelhi- the, tinha wm gesto largo, metédico, imp-icanca, Ge apanhar uma mosca que voasse; abria devagar 05 Gedos apertados, ¢ olhava, como se tivesse a surprese. @umas asag partidas a esperi-lo naquela pobre mo agitade ircansivelmente dum lado a0 outro no ar de verdo. Bra veréio, ¢ nas figueiras havia um res- tothar de péssaros que se fartavam nos rasgies dos frutos, sobre a folha lanosa, O palasio das Marinhas, devastado ¢ com as heras a devorar-lhe a torre, a penetrar peles janclas pequerinas, interessava me- diccrerente as criangas. Mas José Maria amava-o. ‘A cle e aquele mundo de ceagraca, of viseandes, ¢ fi- tho duma téo shakespeariana loucura, os terreiros onde cs potros eam montados pela primeira vex ¢ escoicinhavam levantando debaixo das patas a arcia cor-de-rosa. Terdes pacificas, dum @etase 30- Derbo e inenarravel! Vinham da fonte as moges, € o& seus quadris moviam-se com um meneio dexajeitado nda desprovido de graca; e, nalguma, em Ana ou Leonor, 0 rosto duma palidex suja ¢ patética estava, emoldurado por um lengo preto soqueixado deixan- do que se abrisse mais o resplendor dos olhos como que cegas onde, de repente, «uma alma dvida ¢ fine de mulher se assomava. Porque paraste agora, Ana, ada tio desabrida fala e mao grosseira, em que di- vino instinto colheste esse ramo que pées na blusa? Porque olhas nes vinhas o rocagar das perdizes no- vas que se esgueizam, despeitadas pelo ruldo que Thes estorva a sesta? E tu, Leonor, porque respan- des com vago acen:o ¢ desespero vivo aos brados Ja tua mae? Na estrada passam os cerreiros; proferem grandes berros, picam o gado, e os garotos segaem- 0 SUSTO a “nos para se pendurarem nas traves que servem para a catregagéio do vitho, e irem assim bamboando-se acima do p6. Vém os cies 20s caminhos ledrar com desconfianga da sua propria firia; & no veréo, e nos cortigos embandeirados eam um trapo escarlate ro- jam-se as abelhas, movendo-se, com o abdémen pe- sado, pare o seu perfumado reino; nalguma sombra, jum yaldevinos tocador de rabeca ¢ que as vezes fi- gure como Herodes ou legionrio romano nos autos, abraca uma rapariga e segreda-the um murmirio Tmanloso, as vezcs distraido até pelo belangar das ‘silvas por cima Ja sua cabeca ¢ onte as amaras come- gam a negrejer. «Vais-me deixar» —diz a rapariga. T cla chore, nema convencida de todo da, sus desgraca, jem de todo entregue & credulidade; também. ela por wYeres estremece com as vozes dos caminhos, apura © ouvido ¢, j& tranquila, ri, com um rasto de pesar’ jos olhos pretos, porque a tarde the parece bala ¢ andam nas matas os pintassilgos ¢ 2s calhandras "e0rm falhas no bico e escuros vermes tragados ao seio. «Ah, vais-me deixar» — suspira, ainda distance “Wa pena que telvez a hi-de matar; hi uma resigna- J eho teatral no seu er Inguido ¢ prostrado, ¢ como "parece tentadora com esse pequeno cinismo, essa £6 | delicada nas coisas que perecem! O rapaz toma aque- ia mio trigueire, conserya-u na sua mao, em silén- 7 Yeio. Também cle sente de repent= um pouco de re ae ), pouco mais do que um pressentimento, uma # wada leve no coragio. O sol carrega as vinhas "dum. cor brutal, chamusca o rebique das foihas de Tmalvasia-rei ¢ de moscatel. Ana e Leonor, com os ‘Belis cintaros de madeira a escorrer, sobem a cal- Gada devagar; e. por sibita birra e inexplicdvel des- eae 6 © SUSTO prezo, passam ume pela outra, e ndo se ctmprimen- tam. ‘As primeiras Zérias depois dum desterro prolon- gedo em Lisboa em m4 companhia com a sua inglé~ ria figura de estudante, pareceram 2 José Meria uma ecise irreal quaze temivel. Nunca vire assim tio préximos 0s montes, as fragas que o vento rompia ‘er dentes que rangiam nas noites de gelada. Saltava da cama ¢ cozria a assegurar-se daquela rama. roxe, do Marao debaixo do céu delirante da madruguda; diante da névoa alvissima do vale, acometia-o como que wna cegueira, todos os lugares Ihe pareciam es- trenhos ao mesmo tempo reconheciveis, como se de longe Ihe viesse o entendimento deles, até ao pio do mocho que ali petrificou, a sarea que um dia Ike des- garrou as mos e cuja alme cristalizede jaz além, erigada ¢ alta, como ama leonina fauce. Brava terra, bendita que me esperaste sem destecer um fio do teu ramal de caminhos e de tracas inventadas quando dum pedregal deserto fezemos wm castelo com suas menagens e botaréus! Seia para a aldeia, percorria-a toda quase is escondidas, para surpreender os sonsos ‘amigos, como o Bernardo da venda com aquele esté- mago saliente como um seio onde se eolava a cami. sola suja de vinho; ou entao dar de cara com Macd~ Tio que; sentado no degrau da casa, chupava sotur- namente 0 cigarro, com um olhar fundo, paredo, enig- miatico, que causava. um rapido respeite e, sem se 6a- ber porqué, desejo de reconciliagao. Fors jornaleizo miuitos anos na Obra, era dedicado, com um amor nos- tilgico pelos caprichos das criancas, a quem armava ‘og baloigos nas ramadas e construia barcages de lata para que, com um farrapo de vela, sutras veues O SUSTO aT uma folha, Yogassem nos tanques. Mas nijo era par- ticularmente paciente. e, quando seguin Beatriz para the retitar da égua o sabéo que escorregare, ou fa- ‘bricava pequenas flechas de cana para.o carcaz de ‘Cipriano, fezia-o com uma espécie de auséneia, uma transigéneia em que transparecia um pouco de des- prezo. Um dia, por uma futilidade, uma troca de pa- luvras, ele despediu-s: ¢, no mesmo instante, foi-se -embora, José Maria viu-o afastar-se com a sua caixa, ‘terastando os tamancos, nem despeitado nem eomo- vido, e sem olkar pava tris; sobre a grande mesa de pedra da cozinhe, Husébie ripava eouves largas @omo leques, o lume estalava repartindo centelhas e fonas de carrasco; havia um cheiro de unto fresco " emibebido nas brazas e entrava um pauco de vento pela porta aberta, Pela faixa de luz entornada para. fora, via-se 2 figura pingona ¢ lamentavel do homem que parcia. José Maria sentiu uma dor profunda que _ O arrastave atris daguele sombra que dele se perdia, € em que nao havia hesitagio, nem Jembrancs. Pela ‘primeira vez, a secura duma criatune o atingia em theio, ¢ aquilo provocava-the, ao mesmo tempo que Uma mégoa desbordante, um deslumbramento de luta € de desafio. 1 timido, niio estuda» —eram os boletins prega~ Gos na sua corscifncia, como pesos infamantes e que Tithe. que ir carregando com cautela e manhas iné- " Gitas, pois nada mais perigoso para a alma do que sarmos os crimes a que de facto somos estra- ihios. Mentia, enquanto, com olhsr eobarde ¢ mortal ‘ago, acompanhava as ligées absurdas, as in- erminiveis aulas com gente tursulenta que racic- | GiBava com uma frieze sem autonomia © gue, ae era i lie 48 © sUSTO eficiente, na realidade nio cumpria. A instrugéo, tio oposta @ sebedoria, causeva-Ihe um cons-rangimenta a que apenas conseguia escapar pelo afunde® mais ‘sbsolurto na. imaginagio e nas construgses sonhadas, ‘YVivia continuamente num existéncia reservada por si proprio go sen temperamento, ¢ a que néo faltavam -emceses difiveis de veneer, como 0 medo e o argulho. ‘Assim, enouanto os coleges raspavam a gzafite doa Kpis experimentando-os depois ra lingua ou ma pak ‘ma da mio para verificarem se estavam satisfa:d- riamente afiadus, José Maria, através deeae rufdo assente na madeira das carteiras, reconstituia uma floresta orde as finas sendas eram cruzadas pels ramias das australias abatidas. Uma mulher, com ura tonca cor de morango'e pérolas no corpete, Za- zia-lhe um breve sinal quando ele passava; o choone dos machados dos lenhadores ouvia-se, e depois a saspirada © lenta trajectéria da queda. Ble voltava- -se para tris e via a Grvore, gigantesca, eom grandes Dracos j4 erestados pelo tempo e lis de liquenes no tromco que descia, e que o atingiz. Levantava-se dura pulo, com 2 testa fria de suor, ds joclhos trémulos, ¢ ali estavam os camaradas olhando-o, com aquéle escarninko desplante, eo mestre suspendia a licko ‘para o encarar, contagiado do seu terror e, por mc menios, decidido a tomi-lo a sério. —Sente-se. Que pzceura?—dizia-lhe, com uma. irritagdo que em vao queria controlar © esconder. José Maria fatigava-o; nfo estudava ¢ pareeia-the, ‘ora duraa fei¢do remoida e cretina, ora duma agili- dade fugaz, ibrithante, que s6 com incredulidade acei- tava, — Que quer? Porque ndo se senta? Déi-Ihe l- guma eoisa? 0 SUSTO 49 ¢ tudo isto o mais insuportivel —_Jos& na sua cadeira, fechave os punhes na, ‘um ar absurdamente atento, fieava imé- concentracao tinha um qué de bajulagdo parecia tio miseravel naquele interesse brutal, que, de repente, o mestre o cdiava. rasou-o nastes termos, com o espirito ven= tastejante, roendo-se por dentro e acumulando- trevas. Em férias, 3s vezes pensava lancar-se. ada do avd, quando ele estava a palmilhar ceminho das Marinhas, no seu passeio da tarde, @ grande chapéu de sol de seda cor de po, Dir- je-ia que tudo aquilo o confundia, que se matava, preferia um calaboico 2 a negrara dumas pare- recozidas por milhentos sdis, que naio aguentava, la parédia de amaneirar-se para a sabedori: ia mais que era infeliz, que 0 mundo o derrotava, a sua verde doutrina de escolher, avaliar ¢ re- 5 os homens. ¢Nio—pensava José Maria—, nio posstvel continuar. O que eu estudo sem dotes para, 9, nfo vale o que eu vivo por eanvicgao>. Parém, avd nunca chegou a ouvilo, Encontrava-o a de- encardir as méos que raspara nas pedras em que tava metais raros, e ¢le acolhia José Ma- com uma benevoléncia em que se adivinhava o wejo de impor a. sua fazonda e que era, neste caso, unto seu favorito das minas de ouro. Devagar, gando outra vex o guarda-sol de seda, com os. fhos dum azul extasiado, cle punha-se a falar das mas onde j& os romanos ¢ j4 os mouros tinham avaco, rompendo veios, abrindo galerias, segre- ndo da pedreira o seu tesouro, que a lenda concen- va numa drea imensa, oculto nos badanais de ro- 4 50, © sUSTO cha, Dizem que hé uma erce de oire, mas outra cheia de mosquitos» —argumentava José Maria, passado de tédio debaixo do sol frouxo ¢ forcado a ‘zcompanhar 0 av3, que sempre se interrompiz ¢ logo retomava o caminho. O ouro era ‘a sua queda, 2 sua Jeviandade; gostava de ouro como gosta de fazer represes 9 castor, e falava dele com um secreto en- ‘tendimento com o seu proprio prazer, parando as Neues para encontrar-se mais intimamente frente a frente com o fentasme metélico ¢ chispante. O pobre ava, lesto nas coisas de camércio, irresotsto a cum: prir as suas dividas ¢ a pagar 0 soldo aos jornalei- Tos! Por tricas de moeda azebrada ¢ miida, Macirio tinha abalado, com 2 sua caixa de madeira envarni- zada debaixo do brago e em que guaréava uma balsa com cinco pegas ¢ 08 aprestos de barbeiro, que fore fa profissio de seu pai, Dessa profissto de sébado Jembrava-se José Maria e de ir ver escanhoar 9 ve- tho lavrador que, ro terreiro, sentado numa cadsira de palhe, mantinha uma gravidade anénima debaixo daquele flovo de sabfio que cheirava a roses. Estras mho cheiro a rosas 0 desse vulgar sabio de barveiro, activo e com uma sugestio matinal, quase burles: ce — como advertia j4 José Maria, que vinha obser- var o afiar das navalhes que relampejavam na fite de couro com finos raios azulados! O paciente sem- pre tinha um ar condenado, cesprovide depresistém cin: era o momento que a alma, ou truculenta ou ardente, aproveitava talver para vergar ou abeter-se como um cio que se recolhe ne sua casota onde hé pingos de caldo de farina que nao lhe apetece mes- mo olfactear. Apenas aquele miraculoso cheiro de rosas, excessivo ¢ penetrando mais o ar quando ele © SUSTO BL 0 © quando 0 chocalbar das palhas molha- ‘ouvia a cada passada. O avé barbeava-se ao pela manhé; vestia ainda o caszco de seda mazes de ouro j4 oxidado e, com mode neghi- ‘estendia as pernas para diente, como se com quisesse fazer tropecar alguém. sr reteser a bochecha fldcida e correr nela a nava- pianamente, O avé fechava os olhos @ per odo 0 tempo com um vines leve na testa, ‘pouco trémulo, e que era sinal de que ele sentia inhava tudo quanto a sua volts, sucedia, Vinha 4v6 da misse, arrastando a perna doente e tra- 8 alfinetes da mantilha pregados no peito; uia-z sempre uma cadelinha de pélo frisado, mui- velha e que, enverenada uma vez com arsénico, ara depois duma egonia frustrada, Caminha- @ cambaleante tris da dona, eo seu cheiro pesti- nto cobria por algum tempo o fresco aroma do sa~ . A ruga movediea na testa do avd tremia com a rapidex maior. Agora era Cipriano que, com botas altas de cor- , partia ne égua alazé para Armamar, onde tinha pres e queria esperar a safda da missa, vagueando elo largo relvado donde se via a parada dag mon nhas, até a Gralkeira, até ao Gerés, © —Vais as mocas?— pergunteva, escarninho, com ina frieza dorida, Vasco, da varanda. Vestia um pa- et6 escuzo com botdes de mesa quase brancos, © 0 resto amachucado e com olheiras inspirava um 0 melancélico e um desejo de o esquecer de- 52 0 SUSTO pressa, de nic confundir dé com cumplicidade, No entanto, Cipriano, j4 na estrada, voltava para cima ‘3 oltos, para, procurar, sinda com uma espécie de remorso, 0 irmao, que ficeva a velo afestar-se, ris- cando devagarinho o anel de ago na pedra da ba~ Inastrada. Tinha ao lado um copo de leite que as mos- cas eomegavam 2 sobrevoar; um sibito suor apare- gia-lhe nes t@mporas, ele voltava-se bruscamente para tris. De tarde. apareciam as serhoras de Rodos, com 08 seus vestidos de cassa bordada, as aravates de sede Pavma ¢ 0g relégios de oidtelaine vousades coro um escaravelho de ouro no peito abundante. A viscondessa das Marinhas as vezes também che- gava, de pé na caleche de moles gastas e saltando agilmente para o terreiro com os seus tamancos com: ithés sobre um forro verde e que ele. mostrava adian- tando o longo pé de mimia; o ar alacinads ¢ sori dente, a voz pontiaguda, opunham-se ao tobre jeito de beber o seu cha; falava raramente, promnciava © nome da filha morta como se a chamasse com curiogidade de a sentir ou ndo perto de si, e 2 mater nal fraqueza dea esperar através de todos 03 espa= 90s imtransponiveis. Jos5 Maria encontrava-the as ver zes uma espécie de bbeleza, como se a fila, com o seu solo de virgem e 0 sarriso imacabado, assomasse a= quele rosto j@ mais defunto do que a racondacio que nela vivia, —dizia, e um calor delicade soloria-Ihe @ face devastad; ia pelo seu palicio em ruinas, perseguinco sombras que se enlagavem no asta do seu véu esburacado. Nao causava meso, im= punha uma espécie de trégua quando passava, A tia Barbara, que casou muito tarde com um ho= 0 SUSTO 53 Pa ‘de letras obrigada pela consciéncia de familia, Barbara, analfabeta quanto o pode ser uma. | meio biliosa meio arisca e que se engalfinha | as criadas por um feijao perdido debaixo da la, era a grande animadora das tardes de do- ‘© jogo des prendas e o anelzinho, as dancas das eo piano por tio Félix, as charadas bém! Cipriano ria-se daquilo tudo, procurava a3 gens das multas beijando as meninas, que se am dele muito bruscas ¢ que choravam de ite, sem explicacio, causando em volta um si- incio murcho 2 glacial. Apenas a av, com o sew oché enrolado © pregado com alfinetes & medida erescia, levantava os olhos calculadores e tor- Wa as suas estreles de malha, aos leques ¢ cara- de algodio. José Maria, se chovia, aproxima- das janclas ¢, com uma ternure intima ¢ sen- olkava pela cortina de Agua os montes e os Iu- 9 recolhidos na névoa — versos ripidos, imagens no pensamento. O piano, o calor do fogo, as vo~ puras das.raparigas, uma tranga preta, uma Ia~ ma mal enxugada, os vidros onde, no bafo, se de~ wam coragées, o tilintar duma oolher na chi de j& surrado amarelo impfrio—e o caste- heiro em oujos ramos se agitavam os pardais bu- ns ¢ enchareados. Tudo encontros magistrais, ssados numa linguagem de que mal sabia a mie ca inaudivel ¢ perfeita. O poeta desperteve. O mun- @ abria-se desde a idade da sua pré-infiincia, até a0 ttre do futuro; o clamor das cegadas, 0 medo, 0 bor dos mitos, conjugavam-se na sua forea, e ele va, Cantava fazendo rolar da alma a lenta so- 54 * O SUSTO ‘berba das helas aves extintas, a violéneic das tribas consagradas as sementeiras, acs deuses perigosos, ans misteriosos ciclos da vida. As trevas, a pedra inerte e repassade de existéncia repartida, as mulheres, 0 que chora, 0 que morre, o que dura, diziam-lhe— — die zem-Ihe. Mas, naquele desabrimento fingido, hd cma Promessa que ele aproveita para as estudar em deta: dhe, preparando um retrato frio e grosseiro que, em oatro dia, apresentaré acs amigos. Ama 2s mulheres @ sey modo, na cama, e 2s virgens causam-lhe um +tédio benevolente © scberbo. —Depois dos dezoito anos elas tém obrigagdo de saber o que queren —costume declarar, a respeito dessas raposinhas espigadas que, no entanto, as ve- © SUSTO 63 0 ‘com a sua inocéncia € a que de todo sabe fugir. Vasco ri-se dele, enquento que na da veranda grava wma inicial, sempre a mes- a, inital. tm Coimbra, José Maria tinha defronte 9 palécio ma velhz. famz de enforcado da época filipina; esquerda, a Repitblica dos Grilos, por toda a parte )casas nevoentas no luar de inverno. O vento en- espe os telhzdos, das ontras vezes mortos debeixo luz da Via Lactea; 0 arenoso rio, inchado ¢ ba- Joacante, como uma boca cue se estende pela Baixa temporais, ali ands submergindo os conventinhos ‘os de entulho, rolando em face dos choupos altos ‘earpinds uma sombra cadavérica, Nos Arcos do , a claridad= ronda como 0 vulto ondulante m aZogado; ela resplandece em ceztos baletes fe- jados, rompe peles ruas da Alta, a do Correio, a Rue urga, «dos Coutinhos, Naquela solidez de siléncio, fpassos dos estudantes que deseem por Quebra- 3 trazem um eco grave, de muito longe, muito ste, José Maria decifrava as suas sebentas, a folaa da champ. de petroleo batia-lhe na fronte into debrucavam-se, mudes, enquanto que os platanos " arrefecem na. ‘iitima hora do crepisculo. A Boémia feompumia algures © sea quadro cada ver mais des- tronado, e 0 Hilirio, moribundo e-com a livida mas- “cara carregada pelos bigcdes pretos, engue no ar bru Gmoso a yor que as ligrimas constroem, devagar, omo se nela edificassem toda a claustzal febre dessa e. aba sci es seen que debandavam com 64 0 -SUSTO 8s capas rotas exroladas no brago; vendedeiras de peixe da Figueira, varinas de Buarcos, meis tarde ‘as rapariges dos morangos, comecam a corride pela sidade; a luz petrificeda resplandece na cal. As :a- melas da casa. do Mendcnge Frito conzinuam, porém, fechadas, ele recobra a noite em que eszencou do's futricas na taberna da ‘Tia Joaqnina, @ de resto ne- ga-se a sair de dia enquanto niio retira do prego a ‘batina. # alto, um algarvio de cabelos arrepiados e q@ie, mos exames, enquarto espera a chamada, en- quan:o dorme ou espulga pela Gitima ves os liveas, murmura sempre «estou frito... estou frite.. » Hé na mesma casa 0 Fausto, que tem 0 rosto longo, pilido, membros espiritualizados, desligados da terra ¢ dir- -se-ia que da lei da gravidade; ¢ 0 Gil, bonito como uma espanhola, wn alentejano de guedelhas compri- das e dedos queimados de fumar. A noite, a sua gui- tarra, como uma mulher, dir-se-ia tremer ¢ sclugar, enquanto que as grandes flores de papel cor-de-rosa Maream a brancure da parede atras de si, Zm vés. pera de feriado, a Baixa regurgita, véem-se os pretos, com olhos ‘himidos e as palmas des mos glve. fenco quando cumprimentam; os indios. com perfil braménieo, passam, um tanto lainguidos, ¢ fechados & Europa fraudulerta‘e dinfmica, Passam os rapa zes que tém amores, com uma lentidZo sorridente, © 0s que os nfio tém e que param, avaliando a ocasiaa, dando ao diabo o aetudo. Um lente, pélido, com uma, gravidade que se humaniza numa saudaséo que logo adiante se nao repete, passa também, e no sea rasto fica um breve ealafrio, uma invocagio & matéria em braneo e que € preciso decorar. Mulheres, com essa, dogura de provincia que rescende 2 seh€o ¢ a peno 0 sUSTO iy , passam, com aqueles olhos cuja luz 6 como geesa; hi om certas trieanas mios que esa gostaria de herdar, e os seus xailes oeracia feita popular. Ab, quanto versos por Rosinha ou Madalena, caras de fogo ¢ neve, res~ nderam, elas que desciam de Santa Clara com a chi Mela preta 2rrastando nas tabuas da ponte ¢ tendo 9 sorriso < antiguissima descrenga de tantos ver- desatendidos. Elas sucedem a ontras musas que @ Cames e Bernardim teriam vencido; €, no “Seu andar rapido, hi uma despeiida ¢ a justa fuge- idade dume juventude. Bra viver, enquanto José Maria, com dois secos os ¢ um maco de cigarros, se abrigava no choupal, fiar mentiras», como ele dizia das suas penas de 2. Uroa luz verdinha e clara entrava-Ihe na aimia, olhiida pela fothagem que se cristalizava em puras ores de Agua todas as primaveras; nos areais acam- vam ciganos, via-se um burro que parecia vestida: de flanela, de tal modo o eu pélo era dum cinzento ‘de fardamento—e ele rilhava com modorra. as raf zes, arrencando-as com um puxao, fazendo relampe+ ) jar a dentuga brance. Criangas rolavam nuas e pin- | talgadas como sapos, uma sordidez desamparada es- tampava-se em toda aquela cena que parecia duma ‘estranha expectativa. Eram as tribos que, de noite, Dionisio e Martim, os Ramblas, procureyam pera | desafiar em duelos de faca que sempre acabavam "com golpes sangrentos 2 roupas despedagadas. Os | Ramblas eram profissionalmente fidalgos, ¢, por | simpatia intelectual, um pouco estudantes. Viviam | em Celas; com wma avé que fora ainda grande dama 66 © SUSTO da corte de Afonso XI e de Maria Cristina. Ela ti aia retratos das entigas infantes, com o seu ar do- méstico, dona Euldlia, dona Paz, com aquela pose ‘burguesa para a fotografia, com a transperSneia dum Jar banal naqueles vestidos cor alamares e na risca dos castos bandés. Falava daquela popular senhora, tia de reis, nada, mas.a sua quictude era samo ‘uma oferta ao espfrito das gragas. José Maria embe- Pia-se dessa sapiente © estrenha imobilidace, punha- “Se a dar-lhe gratuitos pensamentos em gue o amor, ‘9 sofrimento e a fatalidade se mistur: Amou-a desesperadamente, ¢ mais uma vez foi infeliz, Cons: truiu uma histéria de que foi o ‘nico protagonista, © tinico sobrevivente também — pois o amar vende 86 Aqueles que 0 desconhecem, sepulta-os na escuridio onde nfo ha tempo nem lembranga. Os que amarars, de todas as coisas renescem e se projectam, mas nia Axtonia — onde esté elz, com_os seus cabelas negros © 2 passividade de estitua? Sé 0 que a ariou a pode ettender assim, animé-le com um sopro, convertéla em flor, em detisa, em crianga ¢ peixe Inrminaso, dar- lhe erfim imortalidade. Nifia Ant6nia envelhece, nifia Ant6nia repete-se numa fugaz descendéncia que hherderf os seus olhos maritimos, a sua consertida imobilidade, 0 seu génio nfo de todo triste — antas fechado numa esperanca que nao vingou. Pare teda @ gente, ela teve uma corrente passagem na vide, cor um bor nome, um casamento cancertado em fa milia, anos e anos de exemplar coeréneia ¢ dasen- canto, com Jonga preparacio, isto é, sem a paixio que © desencanto pode ainda descobrir. As ilusted que morrem sitbitamente deixam saudade. 0 que & y 0 SUSTO a ‘Maneira de viverem ainda; as que se calcularam ver jorrer, munca existiram. Para José Maria, essa ra- ‘pariga da casa dos Ramblas personificou tudo quanto “8 suz alma necessiteva de enigmitico, de forca pe- ‘remptéria, de procura, de credulidade. Nas tardes em “que a via, sentada com uma indoléncia flexivel por 2 da alta janela, ele convorava todas as ener- gies, ria como um louco, ripostava divinamente aas , batia-se com os caloiros nos becos melodra- “Miticos da Alta. Uma palavra dela deixava-o, ou Aesgracedo ou inquicto, por ter entendide ou por que- ‘Fer duvider; as diferentes modulagdes da sua vou ‘comoviam-no como outras tantas intengdes e signi- ficados, Uma ver, a9 entrar na sala, rodeando a gran- de mesa que tinhe em cima um trapo de brocado, ¢ "pare ir buscar um Livro da estante, José Maria viu “que ela retirava a Corina, e perguntou-lhe se as mus Theres cerebrais saberiam das coisas de amor. —Sabem canfessi-las como ninguém, mas nfo as " sentem — disse cla, Teve um sorriso apagato © sain ‘Toga. José Maria ficou a pensar se ela amava alguém, e, por uma. exigéncia de ordem no seu espfrito, pre- feria ignorar equilo a ter que se ofender a si propria "com uma excessiva verdade. Casaria com um homem a quem a ligasse qualquer coisa como um dever, dar~ the-ia filhos, seria casta e benemérita, sempre ne, ‘primeira linha dos exemplos a invejar; por genero+ " aidade, néo se entregaria demasiado i censura, per- | Goaria simplesmente, com um desdém um pouco margo, os erros das outras mutheres ¢ as insidias Gas rivais. Mas, em certas noites, com os pretos ca- belos um tanzo desmanchados © sorriso perverso, nifia Antonis, esperaria o marido cam aquela paix3o % © SUSTO snonima e ausente que tao bem condusire. de tabua gm tébua da lei, fazendo dela algo de doméstico ¢ imponderavel, camo rezam as histérias felizes, como. ‘48 palavras mandem. Nos ditimos dois aos de estudante, Jocé Maria esperou sempre alguma coisa como um milagre, Que ela 0 chamasse, essa rapariga que o comovia até a0 desespero humilhado, até aos desejos mais chscutos, como atirar-se duma. janela e estilhecar a cebeca nas pedras, Kim dias em que ela parecia man:fostamente epeli-lo— com um stbito humor prazenteiro, enear Fegava-o de qualquer rezado de mulher, como pro- cuirar para ea qualquer iJustracdo de modas, e depois Fecusavase a aparecer, quando José Mevia vinka ‘obedientemente dar-the contas do seu encargo—, jue €ava que a terra inteira o repelia também, ¢ encon- trava-se tio s6 como apenas um amor desdenhado Bode fazer sentir. A noize, em que duramente os seus Passos rompiam e passagem do Arco de Almedina tom a treva leda ¢ funesta, as casas iluminadas e eam ‘vores em que se adivinhava a conomia dunia réfels ¢%o em femilia, eram outros tantos ecompenhantas da sia dor. Pensava entao regressar a sua aldeia, ir fechar-se no quar-o que tinha uma porta de varanda jamais concluida, sobre aquele terreiro pequeno. Que Jugares o fariam esquecer, que mulheres o podiam ajudar? Eatudava pouco, sempre com a sensacéo dum pesado punho na garganta, e safa altas horas para ue nfo o ouvissem os colegas revolverce na cama, € sufocar verdadeiros gritos de rebeldia contra aque~ fa pena, quase ausente do motivo dela, tento mais tremends quanto até deseonhecia os seus fundamen tos © 08 teria, Procurava lugares desertos, ¢, bem © SUSTO 73 ite de quando amara Leonor, nao gostava, no | 86 de referir-se 2 nifia Anténia, mas de que alguém | Ihe falasse dele. Gil, por exemplo, faziz-Ihe citimas ) insupor-iveis s6 com a ideia de que ele podia ver um | dia a rapariza ¢ ela notasse 0 sen belo perfil de ins | fante, 03 seus cabelos esvoacantes; essa sedugio pa- ia-lhe entio inevitavel, punha-se a imaginar aque- 8 amores, 03 clhares que ela he havia de conceder, | primeiro timidos, depois cor um brilko interessado. Por fim resolutos, olhares que ele, José Maria, jamais partilharis. Via. a mio dels, dum ¢trigueiro muito pi "ido, demorar-se na mao de Gil, via como ambos afas- "tava a suspeita daquele entendimento com uma pa+ ‘Tayra correcta e uma frieza circunspecta, somazério ds | todos os ardis do instinto, palavra justa e feroz que | 9 aniqpiilava, Porque fingiriam, se podiam amar-ce? ) Ele era rico, perfeito cavalheiro, famoso pelos seus “moios de trigo ¢ a cortica esfolada em milhares de | acres de. regio sem horizante, cinzenta ¢ debaixo de “cujas azinheiras 03 reban‘nos se abrigavam do sol, | iméveis, pelos tempos dos tempos. Como uma dessas | cordeiras, nitia Ant6nia queria o seu charco de som- "bra, onde se manteria quieta, quicta... Nao queria “emores de assaltc Aquela mansidio de pastagem, néo queria. um noivo lecrado, mas apenas contintiar a “espécie numa rotina em que toda a divagacio é per- " mitida, até mesmo julgar que se lamenta um poeta. | José Maria sofria, mordia as aos, dava woltas sobre ‘si mesmo; procureva fatigar-se, nio dormia, fazia passeios um tanto 4 sorte até & ponte do Ceira, até “A Quinta dos Lagrimas. ©, ali, com aquele perfume ‘dormente da Arvore da cdnfora, ques: dormitaya — 9 porto da mata parecia-Ihe reter a silhueta do prin- a © sUSTO cipe eruel, com aquele olhar estréibico ¢ 0 negro gibio manchado do sangue da caca. A Agua borbulhava arrastando folhas, um vento quente rompia pelo ar- voredo onde as aves, a voz de Inds, faziam a sua. quei- a a> mesmo vento. E José Maria despertava, de Papente, mais infeliz, apoiava a cabeca na pedra, san- indo nas méos 0 limo fresco; a aspereza da pedra, magoando-o, distrafa-o o1 quase o confortave. dou. tra dor maior. Porque vivia, porque vivia? ‘Em casa esperavam-no, Fausto com a gua fax de Greco, 0 Mendonga Frito, o cébula, o sem vintém, 6 que © arrastavam para banquetes parnasianos com fanecas ¢ vinho tinto. Assim era Coimbra, a da mal ta, ade sempre. José Maria fazia versos 2 amava a8 Se julger exclufdo da pensio de fé que Deus da as suas criaturas. Fazia versos com intengSo in(til, com lagrimas ¢ terror e piedade altissima pela morte, Vasco falecen nessa altura, j4 quando o pai se reti- tara definitivamente para a provincia: ele foi cha mado pare Adnigos. onde encontrou a famflia erlu- tada © todas as coisas como que trensformarias, res- timaidas a uma realidade que nunca. suspeitara —a. de ficarem como que vazias do contacto daleuém ¢om quem as tinhamos partihado. As irmas, exauss tas, caiam: frequentemente em desmaios, era areciso dar-thes e respirar vinagre, e Eusébia, com as suas Tades méos, arranhava-Ihes o rosto querendo pres« tar-lhes soccrro. «Parece a Paixfio do Senhor!» Mista- va velha, velha, a dar comia-2 por dentro sem Ihe vencer 0 couro duro, Era aquele o Vasco, o que se inclinava na varanda Para, ecm o sorriso comovido. fazer convite ag rapa- rigas que passavam em baixo, Blas lancavam griti- f j 0 SUSTO se notavam a proximidade das colmeias, e um og0 malicioso estabelecia-se entific. Vasco, des- € melancélieo, com stibitos amuos que as afli- am inexplicavelmente, costumava levé-las para as as de guarde, nas vinhas, dava-lhes um anel de rata. que clas Ihe devolviam por orgulho, depois da. initiva seperacio.

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