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Martisino e Educacéo elleyan(ec Eantempordneos ‘ 2 3 f 4 2° Edicao . A a ‘ bi MARXISMO E EDUCACAO DEBATES CONTEMPORANEOS José Claudinei Lombardi Dermeval Saviani (orgs.) Carlos Lucena José Carlos Souza Araujo José Luis Sanfelice Marcos Cassin Marcos Francisco Martins Mauri de Carvalho Newton Duarte 2° Edigao AUTORES ASSOCIADOS Dados Internacionais de Catalogaciio na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Marxismo e educagao: debates contemporaneos/José Claudinei Lombardi, Dermeval Saviani (orgs.). —2. ed. Campinas, SP: Autores Associados: Histepsr, 2008. Varios colaboradores. Bibliografia. ISBN 978-85-7496-144-6 1. Educagao — Filosofia 2. Filosofia marxista 3. Marx, Karl, 1818-1883 4. Sociologia e educagao I. Lombardi, José Claudinei. II. Saviani, Dermeval. 05-6995 CDD - 370.12 Indices para catdlogo sistematico: 1. Marxismo e educagio 370.12 2. Educagao e marxismo 370.12 Impresso no Brasil - outubro de 2008 1* Edigdo - outubro de 2005 Copyright © 2008 by Editora Autores Associados LTDA. Depésito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei n. 10.994, de 14 de dezembro de 2004, que revogou o Decreto-lei n. 1.825, de 20 de dezembro de 1907. Nenhuma parte da publicagao poderé ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer meio, seja eletrénico, meeinico, de fotocépia, de gravagao, ou outros, sem prévia autorizagio por escrito da Editora. © Cédigo Penal brasileiro determina, no artigo 184: “Dos crimes contra a propriedade intelectual Violacio de direito autoral Art. 184. 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CONHECIMENTO E DISPUTA PELA HEGEMONIA: REFLEXOES EM TORNO DO VALOR ETICO-POLITICO E PEDAGOGICO DO SENSO COMUM E DA FILOSOFIA EM GRAMSCLI .........00 0.0000 e cece eee : Marcos Francisco Martins 123 LOUIS ALTHUSSER: REFERENCIAS PARA PESQUISA EMIEDU GAGA ssscsenisser soxosseesanensaanecesece marosun asuevocrtranesnsc Marcos Cassin MARXISMO, CRISE DO CAPITALISMO MONOPOLISTA E QUALIFICACAO DOS TRABALHADORES ...........- Carlos Lucena . POR QUE E NECESSARIO UMA ANALISE CRITICA MARXISTA DO CONSTRUTIVISMO? .........62 000020008 Newton Duarte . EDUCAGAO SOCIALISTA, PEDAGOGIA HISTORICO- CRITICA E OS DESAFIOS DA SOCIEDADE DE CLASSES . . Dermeval Saviani 161 223 image not available image not available image not available X_MARXISMO E EDUCACAO quatro cantos do mundo: o marxismo era, pois, uma concepgao ultra- passada, Marx nao passava de um “cachorro morto” e Engels, reduzi- doa “segundo violino", era colocado como o responsavel direto pe- los principais equivocos do marxismo. Entretanto, ao contrario do apregoado pelo discurso anti-revoluci- onirio e imobilista sempre pronto a defender a ordem, a chamada “cri- se do marxismo” tem somente a aparéncia de um debate recente, moti- vada por uma forma aist6rica em considerd-la e pela vinculagdo de uma suposta “crise do marxismo” a crise do “socialismo realmente existen- te” E por isso que esse discurso tem somente uma aparéncia novidadeira, pois a histéria do pensamento filoséfico, cientifico e politico torna pa- tente que, ao contrdrio de se constituir numa novidade, a contestagao ao marxismo ¢ tao antiga que se remonta ao tempo de Marx ¢ Engels. Considerando que o processo de produgao da concepgao materi- alista dialética da histéria foi marcado pela confrontacao critica e pela intencional superagao da filosofia cldssica alema, do projeto e litera- tura socialista e da economia politica inglesa, pode-se entender que ele delimitava, por si mesmo, uma polémica aberta com essas correntes e com seus principais representantes. A obra toda de Marx e Engels é evidente nesse sentido, geralmente expressando de forma aberta as polémicas trava- das. As contestagées a elaboragao marxiana, bem como as respostas de Marx e Engels a essas, sAo conhecidas pelos estudiosos do marxismo, mas talvez um exemplo contribua para que 0 leitor menos afeito a esse tipo de estudo possa melhor avaliar o assunto em questdo: trata-se das referéncias feitas por Marx 4s contestagées que sua elaboragao vinha sofrendo ¢ que estdo no “Posfacio da 2a. Edigao” d’O capital, datado de 24 de janeiro de 1873, no qual Marx afirmou que seu método de andlise nao havia sido “bem compreendido” (MARX, 1982, p. 13) Essa observagao de Marx decorria de interpretagdes entdo publica- das e que imputavam-Ihe denominagoes diversas, inclusive com vincu- lagdes tedrico-metodoldgicas por ele rejeitadas, como a de “metafisico” ou de adotar um tratamento metafisico da economia; de usar o “método image not available image not available image not available xiv_MARXISMO E EDUCACAO marxista, por seu contetido e nao necessariamente por sua forma, tém se repetido desde o tempo de Marx, conforme se buscou evidenciar anteriormen- te. Para o momento, ante as tentativas de decretagao da aniquilacao do marxismo, ou de seu descredenciamento filoséfico e cientifico, é mais oportuno buscarmos responder a questao: pode-se considerar que a obra de Marx e Engels e o marxismo mantém atualidade? A ATUALIDADE DO MARXISMO. Com relacdo 4 importancia e atualidade do marxismo, gostaria de tomar as reflexdes de Eric Hobsbawm (1995, pp. 80-81) de emprésti- mo, posto que constrdi uma visao historica panoramica e extremamente atual sobre o assunto. Para ele, até a Revolucdo Russa o movimento revolucionério internacional era ideologicamente insuflado pelo em- bate entre a concepgao anarquista e a marxista. Analisando as trans- formagées politico-ideolégicas que animaram os movimentos revolu- cionarios ao longo do “breve século XX", Hobsbawm observa que antes de 1914 o anarquismo, mais que o marxismo, se constituiu na ideolo- gia impulsionadora dos ativistas revoluciondrios em grande parte do mundo. Apés 1917, 0 marxismo, e mais que ele 0 bolchevismo, foi ab- sorvendo todas as outras tradigdes revolucionarias. Na década de 1930 0 anarquismo deixou de constituir-se como forga politica importante, exceto na Espanha, onde “a bandeira vermelha e preta tradicionalmente inspirara mais que a vermelha”; isso decorria da vitéria do movimento revolucionario russo e de sua repercussao internacional, de forma que a opcio revoluciondria passou a significar “ser um seguidor de Lenin e da Revolugao de Outubro, e cada vez mais um membro ou seguidor de algum partido comunista alinhado com Moscou”. O marxismo ado- tado como suporte ideolégico desses revoluciondrios era 0 marxismo do Instituto Marx-Engels-Lenin de Moscou, transformado no “centro global para disseminagao dos grandes textos classicos”. Essa situagao perdurou até 1956, quando, acompanhando a “desintegracio da orto- image not available image not available image not available xvili_ MARXISMO E EDUCACAO (Cemarx), do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas (IFCH) da Unicamp e, finalmente, de uma mesa-redonda promovida pelo Progra- ma de Pés-graduagao em Educacao da Universidade Federal de Uberlandia (UFU), no inicio do ano letivo de 2004. Como afirmado no paragrafo anterior, as origens principais dos textos foram as sessdes do evento “Coldquios de Filosofia e Histéria da Educagao", ocorridas em 2001 € em 2002, numa promogao do Gru- po de Estudos e Pesquisas “Histéria, Sociedade e Educagao no Brasil” (Histepsr) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educa- ¢do Paipéia, ambos do Departamento de Filosofia e Histéria da Edu- cacao da UNicamp. Em 2001 e€ 2002 a maioria das sessGes foi centrada no tema “Marxismo e Educacao” e puderam contar com a participa- gao de muitos pesquisadores identificados com essa perspectiva no meio académico, como segue: no dia 28 de setembro de 2001, Mar- cos F. Martins falou sobre o tema de seu doutorado em educagao pela Unicamp, versando sobre 0 tema “Sobre o valor ético-politico e pe- dagégico do senso comum e da filosofia em Gramsci”; em 19 de outu- bro de 2001, Marcos Cassin também tratou do tema de sua pesquisa de doutorado em educagao pela UNICAMP sobre “Louis Althusser: re- feréncias para a pesquisa em educacdo”; na sessdo de 24 de maio de 2002, para tratar do tema “Marxismo e cultura na contemporaneida- de", convidamos José Roberto Zan (professor do Instituto de Artes e presidente da ADUNICAMP); em 28 de junho de 2002, 0 tema “Marxis- mo e educagao: algumas aproximagdes metodolégicas” foi tratado por José Lufs Sanfelice, no dia 27 de setembro de 2002, para discutir o tema “Por que € necessaria uma anilise critico-marxista do construtivismo?", foi convidado Newton Duarte (docente do Programa de Pés-Gradua- cio em Educacao da UNEsp, campus de Araraquara); em 25 de outubro de 2002 ocorreu uma mesa-redonda para tratar do tema “A pedagogia hist6rico-critica como construgao marxista da educagao”, com a par- ticipagéo de Dermeval Saviani, Jodo Luiz Gasparin e Suze Scalcon; finalmente, 0 ciclo de debates foi encerrado no dia 29 de novembro image not available image not available image not available Xxxii_MARXISMO E EDUCACAO. de um entendimento da educacgdo como uma dimensao indispensavel a formagao da consciéncia socialista. Carvalho entende que se trata de uma prazerosa aventura que possibilita a compreensao do materialismo dialético e do materialismo histérico, colocando o leninismo como o marxismo do século XXI. Por entender que Lenin toma a educagao muito além do simples ato de “educar", a perspectiva leninista de educagao a toma como um meio de formagao e solidificagao da consciéncia socialista, critica e revoluciondria. Mauri de Carvalho constréi seu texto por con- sideragdes sobre o entendimento de Lenin em relacao ao marxismo e seu método de andlise; em seguida adentra na critica leninista do populismo e¢ do oportunismo; o delineamento do estudar, propagandear e organi- zar como sendo as trés tarefas que os educadores comunistas devem almejar; a critica da escola capitalista, entendida como um espago am- biguo de reprodugao e de transformagao possivel, de disputa entre o capital social (econdmico) e o capital cultural; concluindo 0 texto com algumas consideragées sobre a educagio politécnica. Carvalho conclui que a educagio politécnica deve ser tomada como um dos aspectos da educacao politica, sendo objetivo dessa educacao, ante as transforma- goes do mundo do trabalho e do capital, a construgdo de um mundo melhor, justo, fraterno, solidario, comunista O quinto texto é de Marcos Francisco Martins e tem por titulo “Conhecimento e disputa pela hegemonia: reflexdes em torno do valor ético-politico e pedagdgico do senso comum e da filosofia em Gramsci". Tomando Gramsci como um militante e intelectual totalmen- te afeito aos principios e ao método do marxismo originrio, 0 objeti- vo do autor foi de apresentar algumas reflexdes sobre as formulagdes gramscianas de conhecimento e de luta por hegemonia nas sociedades ocidentais. Partindo das transformagées nas relagées sociais na primeira metade do século XX, Martins busca explicitar como essas relagdes conferiram um significado importante ao ambito cultural e ideoldgi- co, como espaco de disputa pelo poder. O autor afirma que busca aprofundar a compreensao do senso comum e da filosofia na acepgao image not available image not available image not available xxvi_MARKISMO E EDUCACAO unidade da concepgio liberal, Saviani, nesse sentido, examina trés de- las: as contradigdes entre o homem e a sociedade, entre o homem e 0 trabalho e entre o homem e a cultura. A terceira parte é dedicada a ex- posigdo da concepgao socialista de educagao, com destaque para a con- cepgao de politecnia. Na quarta parte Saviani trata a educagao socialis- ta, a centralidade do conceito de politecnia para a concepgio socialista de educagao e como essa discussdo se coloca na contemporaneidade. A quinta parte traz uma andlise do nexo da educagdo com a estruturagdo da sociedade em classes, com 0 advento da sociedade burguesa a edu- cagdo escolar, antes restrita a poucos, tendeu a se generalizar, conver- tendo-se na forma principal e dominante de educagao. Na sexta, Saviani expde os desafios da educacao na sociedade de classes, evidenciando seu carater reprodutor das relagdes sociais dominantes. Na sétima parte Saviani retoma a formulagao teérica da pedagogia histérico-critica, con- cebida como uma nova formulacao da educagao, deixando explicito seu vinculo com o materialismo histérico. Na oitava ¢ ultima parte de seu texto, Saviani encaminha suas reflexdes para a andlise dos desafios pe- dagégicos que decorrem da situacao brasileira. Em vista dos desafios postos a educagio publica, Saviani conclui conclamando todos os que se identificam com a pedagogia histérico-critica e, diuturnamente, em- penham-se na ampliacao da conquista da escola publica pelos trabalha- dores, considerada um espago vital para a apropriagao, por parte desses mesmos trabalhadores, dos conhecimentos sistematizados, da ciéncia como forga produtiva, sem perder de vista o horizonte de construgao de uma sociedade sem classes, quando entio as conquistas educacionais serao definitivamente asseguradas. EDUCACAO E TRANSFORMACAO SOCIAL Essa viséo rdpida e panoraémica do contetido do livro possibilita responder positivamente a pergunta inicial: certamente todos os au- tores consideram que o marxismo ainda tem muita coisa a falar sobre image not available image not available image not available 2_MARXISMO E EDUCACAO ma atualidade neste século que se inicia, bem como a luta e a perspec- tiva politica do comunismo, tendo discutido ampla e longamente so- bre o tema em minha tese de doutoramento (Lomsarbl, 1993). Penso que nao € possivel o avango da discussao sobre as perspectivas transformadoras de nossa sociedade deixando-se de lado as perspec- tivas também transformadoras de um projeto revolucionario de edu- cacao. Acerca da atualidade do marxismo ja me manifestei sobre 0 as- sunto em varias oportunidades, notadamente no trabalho referido (idem, pp. 326 € ss.), onde deixei registrada a minha concordancia com a observacio de Dermeval Saviani, ao final da apresentagao de Educa- Gao ¢ questées da atualidade: [...] © desmoronamento dos regimes do Leste europeu, em lugar de signi- ficar a superacio de Marx, constitui, ao contrario, um indicador de sua atua- lidade. Levando-se em conta que uma filosofia é viva e insuperavel enquanto o momento hist6rico que ela representa nao for superado, cabe concluir que se 0 socialismo tivesse triunfado é que se poderia colocar a questao da su- peragio do marxismo, uma vez que, nesse caso, os problemas que surgi am seriam de outra ordem. Mas, os fatos o mostram, ele nao triunfou. O capitalismo continua sendo ainda a forma social predominante. Portanto, Marx continua sendo nao apenas uma referéncia valida, mas a principal re- feréncia para compreendermos a situacio atual [Saviant, 1991b, p. 14]. A atualidade do marxismo para Saviani baseia-se no entendimen- to de que “uma filosofia é viva enquanto expressa a problematica pré- pria da época que a suscitou e é insuperavel enquanto o momento his- torico de que é expressao nao tiver sido superado” (idem, p. 10). Sendo que o regime socioeconémico vigente e internacionalmente hegem6- nico € o capitalista, pode-se concluir que enquanto os problemas pro- duzidos e gestados por esse modo de producdo nao forem resolvidos e superados, nao faz sentido afirmar que o marxismo foi ultrapassado Ao contrario, o marxismo continua sendo uma concepgao viva e sufi- image not available image not available image not available 6 _MARKISMO E EDUCACAO dos nesse campo de investigacao. Ele entende o século XIX como aque- le caracterizado pela existéncia de uma frontal oposicao entre as duas classes fundamentais da sociedade capitalista e que se refletia em to- das as dimensées da vida e organizacao da sociedade, seja a econdmi- ca, a social, a politica e a ideoldgica. Cambi enfatiza o confronto entre a burguesia € o proletariado, afirmando que esse embate também pro- duziu projetos antagénicos e radicais no que diz respeito a educagao e 4 pedagogia (Cami, 1999, p. 407). Para esse autor, nenhuma regiao do planeta ficou livre das profundas ¢ aceleradas transformagées entao em curso. Conservadores, reformistas e revolucionarios colocavam na edu- cacéo um papel essencial, quer para manter o equilfbrio e a harmonia social, quer para promover ajustes que resolvessem disfungées sociais ou mesmo para revolucionar a ordem existente. Buscando uma sintese desse quadro e deixando claro qual papel o projeto de educacdo tem para cada classe social, assim registra em Histéria da pedagogia: Numa sociedade socialmente tao lacerada |...], na qual velho e novo, tra- digdo e revolugdo convivem tio intima e dramaticamente, um papel essen- cial € reconhecido [...] a0 compromisso educativo: para as burguesias, tra- ta-se de perpetuar o préprio dominio técnico e sociopolitico mediante a formacio de figuras profissionais capazes e impregnadas de “espirito bur- gués”, de desejo de ordem € de espirito produtivo; para o povo, de operar uma emancipagio das classes inferiores mediante a difusio da educacio, isto €, mediante a libertagdo da mente e da consciéncia para chegar a libertagao politica. [...] Assim, também no terreno das pedagogias populares vai-se des- de as reformistas até as revolucionarias [...], desde as que visam a uma eman- cipacdo como integracao [na sociedade burguesal das classes populares [...] até as que reclamam, pelo contrario, uma revolugao da ordem burguesa, uma tomada do poder por parte dos proletarios [...] [idem, pp. 408-409] Observa argutamente Cambi que ao longo do século XIX foram sendo redefinidos os objetivos e os instrumentos da pedagogia. A image not available image not available image not available 10 _MARXISMO E EDUCACAO cida da contribuigao de outros tedricos e educadores, conformam uma pedagogia marxista. Em linhas gerais, os trabalhos publicados por es- ses autores possibilitam organizar a contribuigao marxiana a educagao em trés grandes aspectos ou direcées: agdo profissional burguesa. Analogamente 4 critica da economia politica, Marx e Engels também dirigiram ao ensino burgués uma aguda e profunda cri- 1. Critica a educagao, ao ensino ¢ a qual tica, desnudando a relagado entre a educagao € as condigées de vida das classes fundamentais da sociedade burguesa; 2. Relagéo do proletariado com a ciéncia, a cultura ¢ a educagao. O tratamen- to de Marx e Engels dado a problemiatica da relagao do prole- tariado com a cultura e a ciéncia explicitava como entendiam aciénciaa servico do capital, o processo de alienacao resultante do processo de trabalho industrial e o aparelhamento burgués da escola, bem como a importancia da educagao para a forma- cao da consciéncia; 3. Educagao comunista e formagao integral do homem — a educagao como articuladora do fazer e do pensar — a superagao da monotecnia pela politecnia. A concepcao educacional marxiana-engelsiana tinha como ponto de partida a critica da sociedade burguesa, a proclamagao da necessaria superagao dessa mesma socieda- de e como ponto de chegada a constituigao do reino da liber- dade. Com a instauragio do comunismo a educacio estaré a servico do homem e, rearticulando o trabalho manual ¢ a ati- vidade intelectual, deverd voltar-se plenamente a formagio in- tegral do homem Nao havendo tempo e espaco para uma exposicao mais alongada referente 4 abordagem dos autores citados, creio que vale a pena per- correr algumas referéncias pontuais de Marx e Engels sobre educacio € ensino, sobre as quais tentarei construir uma sintese que, mesmo image not available image not available image not available 14 MARXISMO — EDUCACAO [...] Do sistema fabril, conforme expde pormenorizadamente Robert Owen, brotou o germe da educacio do futuro, que conjugaré o trabalho produti- vo de todos os meninos além de uma certa idade com o ensino € a ginasti- ca, constituindo-se em método de elevar a producao social e de tinico meio de produzir seres humanos plenamente desenvolvidos [idem, p. 554] Na visao de Marx, a uniao entre instrugao e trabalho industrial nao tinha por objetivo simplesmente o aumento de produtividade, mas seu principal objetivo deveria ser o de formagao omnilateral do bomem, uma for- magao integral que exigia a rejeigao quer “de toda reminiscéncia roman- tica antiindustrial”, quer de toda didatica baseada no jogo e em “outras atividades estupidas”, como bem destaca Manacorda (1989, p. 298). Os fundamentos dessa educacao omnilateral e politécnica eram de- corréncia da prépria transformagio da industria, que constantemente revoluciona as bases técnicas da produgao e com ela a divisao do tra- balho. Articulando o desenvolvimento das forgas produtivas com a implementagio de transformacées nas bases técnicas de producio, cujas dimensées promovem transformagées na divisdo do trabalho, é que Marx vislumbrou uma educagao mais ampla, integral e flexivel: [..] Por meio da maquinaria, dos processos quimicos e de outros modos, a industria moderna transforma continuamente, com a base técnica da pro- dugio, as fungdes dos trabalhadores e as combinagées sociais do processo de trabalho. Com isso, revoluciona constantemente a divisdo do trabalho dentro da sociedade ¢ langa ininterruptamente massas de capital ¢ massas de trabalhadores de um ramo de producao para outro. Exige, por sua natu reza, variacdo no trabalho, isto é, fluidez das fungdes, mobilidade do tra- balho em todos os sentidos. [...] [MARX, 1982, pp. 557-558], Como se constata, portanto, a necessidade de uma educagio fle- xivel foi uma decorréncia do desenvolvimento da industria. Foi esse colossal desenvolvimento da industria que determinou a transforma- image not available image not available image not available 18 MARXISMO_E EDUCACAO, Marx no “Primeiro esbogo de ‘A Guerra Civil na Franga’ ", e a citagao do trecho a seguir, apesar de longa, é esclarecedora sobre 0 assunto. Naturalmente, a Comuna nao teve tempo de reorganizar a educacgao ptiblica. No entanto, eliminando os fatores religiosos e clericais, tomou a iniciativa de emancipar intelectualmente 0 povo. Em 28 de abril nomcou uma comissao encarregada de organizar 0 ensino primario ¢ profissional Ordenou que todos os instrumentos de trabalho escolar, tais como livros, mapas, papel etc. sejam administrados gratuitamente pelos professores, que os receberao de suas respectivas alcaidarias. Nenhum professor esta auto- rizado, sob nenhum pretexto, a solicitar de seus alunos o pagamento por estes materiais de trabalho escolar [28 de abril]. Diante dos desastres que se abateram na Franga durante esta guerra, diante de seu afundamento nacional e de sua rufna financeira, a classe mé- dia sabe que nio sera a classe corrompida daqueles que tratam de conver- ter-se nos amos da Franga, a que vai trazer bem-estar, mas sim que seré, somente, a classe operdria, com suas viris aspiragdes e seu poder. Sentem que somente a classe operiria pode emancipar-se das tiranias dos padres, fazer da ciéncia um instrumento nao de dominagao de classe, mas sim uma forga popular; fazer dos proprios cientistas nao alcoviteiros dos prejuizos de classe parasitas do Estado ‘a espera de bons lugares” e aliados do capital, mas sim agentes livres do espirito. A ciéncia s6 pode jogar seu verdadeiro papel na Reptiblica do Trabalho. Os professores da escola de medicina evadiram-se ¢ a Comuna desig- nou uma comissao tendo em vista fundar universidades livres que ji nao sejam parasitas de Estado; esta deu aos estudantes que passaram nos exa- mes a possibilidade de praticar independentemente do titulo de doutor [o titulo ser conferido pela Faculdade] A comuna nao deve ser uma instituigao parlamentar mas sim um corpo dinamico, executivo ¢ legislativo ao mesmo tempo. Os policiais devem es- tar a servigo da Comuna € nao serem instrumentos de um Coverno central €, como os funcionarios de todos os corpos da Administragao, serem no- image not available image not available image not available 22_MARXISMO_E EDUCACAO. Avangando na diregao de construgao de uma proposta pedagégica marxista, também é consensual que ao longo do século XX houve uma vasta produgao no interior dessa concepgao € que foi motivada por diversas estratégias politicas e pelas diferentes fases dos movimentos revolucionarios nacionais e internacionais Franco Cambi é enfatico em afirmar que a pedagogia marxista que se foi forjando ao longo do século XX apresenta caracteristicas que a diferenciam de modo original das teorias burguesas de educacao. Cambi aponta cinco caracteristicas que conformam essa pedagogia marxista: 1. uma conjugacio “dialética” entre educagio ¢ sociedade, segundo a qual [...] pratica educativa implica valores e interesses ideoldgicos, ligados a estrutura esconémica-politica da sociedade que os exprime € aos objeti- vos praticos das classes que a governam, 2. um vinculo, muito estreito, entre educagao e politica, tanto em nivel de interpretagio das varias doutrinas pedagégicas, quanto em relacdo as estratégias educativas voltadas para o futuro, que recorrem [...] explicita e organicamente [...] 8 praxis revolucio- naria; 3. a centralidade do trabalho na formagdo do homem e 0 papel prioritario [...] no interior de uma escola caracterizada por finalidades so- cialistas; 4. 0 valor de uma formagio integralmente humana de todo homem, que recorre explicitamente a teorizacio marxistado homem “multilateral”, libertado de condigées [...] de submissio ¢ de alienagio; 5. a oposigio, quase sempre decisivamente frontal, a toda forma de espontanefsmo e de natura- lismo ingénuo, dando énfase, pelo contrério, a disciplina ¢ ao esforco, ao papel de “conformacao” que é proprio de toda educagao eficaz [CaMs!, 1999, p. 555-556] Para Cambi essas caracteristicas se evidenciam malgrado todas as disputas tedricas e praticas que se abrem no seio da esquerda, notadamente na II Internacional e, posteriormente a sua dissolugao com a Primeira Guerra Mundial, na III Internacional e que inspiraram image not available image not available image not available 26 MARXISMO E EDUCACAO, defendidas por Marx no I Congresso da Internacional dos Trabalha- dores, em setembro de 1866. A resolucao do Congresso do PCUS a respeito da educacao propunha o que segue: 1) Atuacao da instrugao geral e politécnica (que faz conhecer em teoria € em pratica todos os ramos principais da produgao) gratuita ¢ obrigaté- ria para todas as criangas ¢ adolescentes dos dois sexos, até os 17 anos. 2) Plena realizacao dos principios da escola dnica do trabalho, com o en- sino na lingua materna, com o estudo em comum das criangas dos dois sexos, absolutamente laica, livre de qualquer influéncia religiosa, que concretize uma estrita ligagdo do ensino com o trabalho socialmente produtivo, que prepare membros plenamente desenvolvidos para a so- ciedade comunista [Lenin apud MANACORDA, 1989, pp. 314-315]. No ano seguinte, em 1920, em A doenca infantil do esquerdismo no co- munismo, Lenin, baseando-se na Critica do programa de Gotha de Marx, as- sim resumia 0 objetivo da educagao comunista, no caso especifico da Russia, que trazia especificidades socioeconémicas, politicas e cultu- rais que precisam ser levadas em conta para entender a sua proposta: O capitalismo lega inevitavelmente ao socialismo, por um lado, as ve- Ihas diferengas profissionais ¢ de tipo artesanal entre os operarios [...] ¢, por outro lado, os sindicatos, que s6 muito lentamente [...] se podem trans- formar e se transformarao em sindicatos de indiistria mais amplos, menos corporativos [...] ¢ depois, através destes sindicados de indiistria, passar- se-4 3 supressao da diviséo do trabalho entre os homens, educagao, ensi- no € preparacao de homens universalmente desenvolvidos e universalmen- te preparados, homens que saberao fazer tudo. Para isso caminha, deve caminhar ea isto chegard 0 comunismo [...] [LENINE, 1980, pp. 299-300] Certamente foram muitas as dificuldades e as contradigées, as re- tomadas e os recuos, os passos 4 frente e atrds na histéria da educagao image not available image not available image not available 30_MARXISMO_E EDUCACAO, * pelo exemplo no trabalho, fazendo as mesmas coisas que os educandos; * pela capacidade profissional, por exemplo: como agrénomo, enfermeiro, cozinheiro etc.; * pela simplicidade e verdade nas relag6es humanas (nao aceita fanfarronismo); * pela capacidade de evitar emocionalidades nas horas de con- flito, levando os mesmos a serem vividos intensamente, mas como reflexdo € nao como paixao; * pela empatia e aceitagado dos limites do educando O verdadeiro processo educativo, para Makarenko, é feito pelo proprio coletivo e nao pelo individuo que se chama educador. Onde existe 0 coletivo o educador pode desaparecer, pois 0 coletivo molda a convivéncia humana, fazendo-a desabrochar em plenitude. Portan- to, qualquer aproximagao com as pedagogias burguesas atuais que enfatizam o individual, o subjetivo, deve ser descartada. Toda a sua proposta tem forte vinculagao com um projeto de sociedade comunista e de carater coletivista Como afirmei no inicio da exposigdo deste item, 0 objetivo de apresentar a contribuicgao de Lenin, Krupskaja e Makarenko foi 0 de entender, no interior do processo revolucionario russo, a construgéo ¢ a implementagdo de uma nova e revolucionaria proposta e pratica pedagogi- cas. Mais uma vez recorro a Franco Cambi, que reconhece a confor- magao de uma pedagogia comunista que construiu “um patriménio comum e constante” e que, por isso, “apresenta caracteristicas nitida- mente diferentes e originais em relac4o as teorias ‘burguesas’ da edu- cacao, além de manifestar uma consciéncia precisa de sua prépria es- pecificidade teérica e pratica” (CamBI, 1999, p. 555). Daf acreditar que ainda € possivel pensarmos na resisténcia educacional, tendo como fonte inspiradora a pedagogia comunista image not available image not available image not available 34 MARXISMO E EDUCACAO, da burguesia e vincular sua concepgao e sua pratica a uma perspectiva revolucionaria de homem e de mundo. Nao se trata simplesmente de aderir a uma concepgao cientifica de mundo e seu poder desvelador da realidade, mas de assumir, na teoria e na pratica, isto é, na praxis, uma concepgao transformadora da vida, do homem e do mundo. E sempre dificil fechar um texto que mais abriu discussdes que encaminhou respostas. Por isso, retomo as observagGes que empreen- di no texto escrito sobre os “130 anos da Comuna de Paris” (LOMBARDI, 2001). Ha, indubitavelmente, muita controvérsia sobre o papel da educagao para a sociedade e para os individuos. Estamos vivendo um acelerado processo de transformagées sociais, notadamente com a in- tegracdo crescente dos conhecimentos cientificos e tecnolégicos aos processos produtivos. Em face de um tal quadro, € impossivel deixar de reconhecer a importancia de uma profunda discussdo sobre o pa- pel da educagao na reprodugao social e, contraditoriamente, sobre o potencial revolucionario da educagao no desenvolvimento social. Em tempos de defesa apologética do particular, do fragmentario, do microscépico, da idéia, da subjetividade e da irracionalidade, nao temos motivo algum para ficarmos na retaguarda. Precisamos resgatar as armas tedricas desde uma perspectiva que vislumbre a materialidade, a totali- dade hist6rico-social, a objetividade e a racionalidade revolucionéria. A eternizagio capitalista dada por uma perspectiva teérica defen- sora do fim da histéria, € preciso demonstrar que as aceleradas trans- formag6es em curso desvelam um processo de constante recomecar de uma histéria marcada pela contradigao. Para além de uma escola mistificadora e conformista, precisamos como educadores acreditar no futuro, submetendo o presente a uma profunda, radical e rigorosa critica que, desvinculando-se de tudo 0 que € antiquado e caduco, colabore com 0 processo de construgao do novo. Para concluir, gostaria de registrar a recomendacao do reconhecido fildsofo e educador polaco Bogdan Suchodolski: image not available image not available image not available 38 MARXISMO_E EDUCACAO . (1991b). Educagao ¢ questées da atualidade. Sao Paulo, Cortez/Li- vros do Tatu Snypers, G. (1974). Pedagogia progressista. Coimbra, Almedina. . (1977). Escola, classe ¢ luta de classes. Lisboa, Moraes. (Original francés: Ecole, classe et lutte de classes. Paris, PU.F, 1976) SucHoboLski, Bogdan (1966). Teoria marxista de la educacion. México, Grijalbo. —____ . (1976). Fundamentos de pedagogia socialista. Barcelona, Laia. - (1984). A pedagogia e as grandes correntes filosdficas. Lisboa, Horizonte. . (1992). A pedagogia ¢ as grandes correntes filosdficas. Lisboa, Livros Horizonte. image not available image not available image not available 42_MARXISMO_E EDUCACAO, se expressa efetivamente como algo que ultrapassa a(s) obra(s) de um escritor, pelas quais este manifesta seu pensamento. Cabe, por conseguinte, esclarecer que uma visao de mundo nao se constitui de especulagées, isto é, nao é uma realidade especulativa; pelo contrario, ela visa ser concreta, mesmo que busque seus funda- mentos naquilo que transcende a experiéncia humana em sua existén- cia. Nas palavras de Goldmann, “uma visao do mundo € precisamente esse conjunto de aspirag6es, de sentimentos e de idéias que retine os membros de um grupo (mais freqiientemente, de uma classe social) € os opdem aos outros grupos” (1967, p. 20). Mais adiante, esclarece que “[...] as visoes de mundo sao a expressao psfquica da relagado entre cer- tos grupos humanos e seu meio social e natural e seu ntimero é, pelo menos para um longo periodo historico, necessariamente limitado” (idem, p. 23, grifo do original). Tal autor chega a explicitar que as vi- sdes de mundo se contornariam em torno de quatro: cristianismo, li- beralismo, positivismo e marxismo. Para caracterizar melhor a defesa do ntimero limitado de visdes de mundo, como instrumentos conceituais para a pesquisa, distingue in- dividuos que expressam uma consciéncia relativa daqueles que constroem uma coeréncia integral, caracterizando-se esta, como serd esclarecido pela citagdo que segue, como forma, e aquela como expresso: [...] se o individuo s6 raramente tem uma consciéncia verdadeiramente completa da significacao e da orientagao de suas aspiragoes, de seus senti- mentos, de seu comportamento, nem por isso ele deixa de ter uma cons- ciéncia relativa. S6 raramente, individuos excepcionais atingem, ou pelo menos quase atingem, a coeréncia integral. Na medida em que chega a ex- primi-la, no plano conccitual ou imaginativo, serio filésofos ou escritores, € suas obras serao tanto mais importantes quanto mais se aproximarem da coeréncia esquematica de uma visio de mundo, quer dizer do maximo de consciéncia possivel do grupo social que exprimem [idem, p. 20]. image not available image not available image not available 46 _MARXISMO E EDUCACAO Transferindo a conceituagao de pensamento politico, apresenta- da por Raimundo Faoro, para o campo educacional, dirfamos que 0 pen- samento pedagégico por [..] natureza compatibiliza-se com o saber informulado, que no se confun- de com a irracionalidade, nem com o oportunismo. Ele nao cuida da trans- missio, mas da agdo, numa praxis que se desenvolve no logos. Suas prescri- Ges so normativas, localizam-se no mundo da praxis, pelo que atuam fora da légica proposicional. Sua fungao é direcionar a conduta humana em de- terminado sentido, nao de representa-la enunciativamente, descritivamente. As suas proposigdes, embora mensuraveis pelo critério da verdade, cuidam da validade, como convém ao mundo da praxis [FAoro, 1994, p. 15] Assumindo tal encaminhamento, note-se que a acao caracteriza o sentido da teorizagao. E em vista das reflexdes até aqui expostas, pode- se afirmar que a tarefa de teorizagao sobre uma dada realidade esta intrinsecamente ligada as formacées sociais. No caso da visio de mun- do marxista, tal teorizagdo gira em torno da construgado de um projeto a favor da libertagao das classes populares, uma locugao contemporanea que tem concrecao vinculada as relagoes e aos meios de producao. A educacao, por conseguinte, é invocada como instrumento de transfor- magao das relagGes de produgao vigentes. Significa, outrossim, que haja comprometimento com as classes populares, o lugar epistemoldgico desse pensamento pedagégico. As referidas classes vivem alijadas do processo de personalizagao social, mais ou menos conscientes e 4 margem do processo histérico. Esse é o ponto de partida para gerar-se a transformacao da realidade pela via da escolarizagao. Posto que a tradicao tedrica marxista teve seu nascedouro em solo europeu, € necessdrio compreender que a racionalidade de tal pensa- mento pedagogico seja imanente ao real, no sentido de que ele busca fincar rafzes de seu potencial explicativo na realidade. No entanto, image not available image not available image not available 50_MARXISMO_E EDUCACAO, nés? "Assisténcia escolar obrigatéria para todos. Instrugao gratuita”. A pri- meira ja existe, inclusive na Alemanha; a segunda na Sufca e nos Estados Unidos, no que se refere as escolas ptiblicas. O fato de que em alguns Es- tados deste ultimo pais sejam “gratuitos” também os centros de ensino superior, significa tao somente, na realidade, que ali as classes altas pagam suas despesas de educacio as custas do fundo dos impostos gerais. [...] Isso de “educagio popular a cargo do Estado” € completamente inadmissivel Uma coisa é determinar, por meio de uma lei geral, os recursos para as es- colas piblicas, as condig&es de capacitagdo do pessoal docente, as maté- rias de ensino, etc, e velar pelo cumprimento destas prescrigées legais mediante inspetores do Estado, como se faz nos Estados Unidos, e outra coisa completamente diferente é designar o Estado como educador do povo! Longe disto, o que deve ser feito é subtrair a escola a toda influén- cia por parte do governo € da Igreja. Sobretudo no Império Prussiano-Ale- mio [...], onde, pelo contrério, é o Estado quem necessita de receber do Povo uma educagio muito severa [MaRx, 1977, pp. 222-223). Embora a citagdo seja longa, fragmenté-la seria ferir sua unidade e sua consisténcia discursiva. Outrossim, € possfvel destacar varias dimensGes nessa citacao. Dentre elas, podem ser destacadas as seguin- tes: 1°) Referéncias sobre a universalizacio, a obrigatoriedade, a gratuidade, a laicidade ¢ a publicizagao, envolvendo também as ques- toes relativas 4 estatalidade da escola; 2°) Consideragées criticas so- bre a educacao de diferentes classes sociais, 3°) Concepgao de Esta- do € seu papel na educagao escolar; ¢ 4°) Critica ao financiamento da educagao superior. Com relacao a esses aspectos, observe-se que suas indagagdes expressam desconfianga a respeito da igualdade da educagio escolar para todas as classes. A rigor, nao é apenas uma desconfianga, mas um posicionamento confessadamente situado em relagdo a prépria concep- cao de Estado: a critica 4 educagdo popular sob a tutela deste, a defe- sa do banimento da influéncia do governo na escola, a necessidade por image not available image not available image not available 54 MARXISMO E EDUCACAO metade do século XVIII até a sua reconfiguracao no século XIX. E é nesse movimento que se encontra Marx, embora tenha nascido em 1818 na Prdassia, onde a educagdo publica nasceu tutelada pelo movi- mento da Reforma Protestante, ainda que incipientemente a partir do século XVI. Os séculos XVII e XVIII na Prussia assistiriam, paulatina- mente, ao exercicio pela estatalidade da educagao escolar patrocina- da pela iniciativa religiosa, buscando institucionalizd-la como escola ptiblica-estatal (LuzuRIaGa, 1959). Recorrendo-se novamente a um autor ha pouco citado, pode-se afirmar que: Juntamente com a segunda metade do século XVIII, entramos em um novo perfodo da histéria do ensino, sob o signo do Estado. Contudo, as rupturas que a intervencao estatal ativa ocasionam nao perturbam o con- junto da estrutura escolar. Os Estados educadores sao herdeiros do dualismo escolar do Antigo Regime. O ensino primario publico apresenta-se basica- mente como uma instrugio moralizadora para 0 povo, ¢ o ensino secunda- rio e superior como uma formagio para a elite. Sem diivida, este esquema viré a complicar-se, mas sua continuidade em relagdo ao Antigo Regime é evidente. A articulagao escolar piiblica entre culturas e grupos sociais tor- na-se dualista, tanto nos fatos reais quanto no espirito dos principais pro- tagonistas das reformas [PetitaT, 1994, p. 147] Retomando os posicionamentos presentes na obra marxiana, e tendo em vista apresentar algumas fundagées de sua visao de mundo, esta aponta para a necessidade de superar as instituigdes escolares como inst&ncias que medeiam a apropriacdo do conhecimento em vista do privilegiamento de determinada classe, ou mesmo de condenagao as praticas restritivas em torno da educagao da classe trabalhadora Numa perspectiva de compreensio a respeito das capacidades humanas a ser desenvolvidas — e a elas esté relacionada a defesa da escola publica que negue privilégios e monopélios por parte de uma image not available image not available image not available 58 MARXISMO E EDUCACAO. nivel das condigdes de vida, ¢ que o burgués entende por educacio moral co enfarto de principios burgueses; e que afinal de contas a classe burguesa nao possui os meios nem o desejo de oferecer ao povo uma educacio ver- dadeira [Marx & ENGELS, 1978, pp. 73-74, grifos do original]. Ainda preocupada com a formagao, a citagao a seguir, extrafda de O Capital, vai na direcao da afirmagao entre as relagdes entre a educa- Gao e o trabalho, no sentido da formagio da forga de trabalho (a qual € vendida em troca de um saldrio), na qual se enfatiza a atengao ao papel da educagao na configuragao da natureza humana: [...] para transformar a natureza humana, para lhe fazer adquirir aptidio, pre- cisdo e celeridade num dado ramo de trabalho, ou seja para fazer dela uma forga de trabalho desenvolvida para uma tarefa especial, é preciso uma de- terminada educagio ou formagio, que custa ela prépria uma soma maior ou menor de equivalentes em mercadorias. Esta soma varia segundo o carater mais ou menos complexo da forca de trabalho. As despesas de educacio — de resto minimas para a forga de trabalho simples — entram portanto na esfera dos valores a despender para a produgio da forga de trabalho [...] idem, p. 165]. No entanto, a mesma dimensao preocupada com o tempo de for- magao para o trabalho — que implica uma correlagao entre despesas de produgao do operario e de seu saldrio — j4 aparece em Trabalho assalari- ado e capital. Trata-se de uma obra datada de 1849, publicada parceladamente, por trés vezes consecutivas, em 5, 8 e 11 de abril de 1849 na Nova Gazeta Renana, em circulacao entre 01/06/1848 e 19/05/ 1849, um jornal de Colonia, Alemanha, do qual Marx foi redator-che- fe. Entretanto, tais artigos resultam, conforme afirmagao de Engels na introducao a sua edicdo em 1891, de “[...] conferéncias que Marx pro- nunciou, em 1847, na Associagao dos Operarios Alemaes de Bruxelas constituem sua base [...]” (MARX & ENGELS, 1977, p. 52): image not available image not available image not available 62_MARXISMO_E EDUCACAO Porém, a defesa de que se assegure a estruturagao de tal proces- so, que por sua vez seja estruturador de tal antagonizacao, e que seja fermentador de transformagao, passa pela sociabilidade. As relagdes sociais implicam possibilidades de desenvolvimento das faculdades humanas dos individuos humanos, proporcionando a estes a oposicao ao dominio das forgas materiais ¢ 4 divisao do trabalho. Esse € 0 sen- tido da referéncia extrafda de A ideologia alema, de 1845-1846, quando nessa obra seminal da visio de mundo marxista, se faz referéncia ao tema da formagao humana: A transformagio das capacidades [relagdes] pessoais em forcas objeti- vas pela diviso do trabalho nao pode ser abolida por uma simples opera- Gio do espirito, como se se tratasse de uma idéia geral. E preciso que os individuos dominem de novo estas forcas materiais e eliminem entio a di- visio do trabalho. Ora, isto ndo € possivel scm a comunidade. $6 em co- munidade com os outros adquire o individuo os meios de desenvolver as suas faculdades em todos os sentidos e torna-se possivel a liberdade pes- soal [idem, p. 246]. Buscando ainda explicitar outra dimensao estruturante de sua cons- ciéncia possivel, presente as Teses sobre Feuerbach, obra concluida em 1845 — também esta reflexao marxiana seminal nao deixa dividas quanto a responsabilidade humana relativa ao norteamento de sua histéria, bem como de sua interferéncia em seu destino. Afirma Marx na terceira tese: A doutrina materialista de que os homens so produtos das circunstan- cias e da educaco e que, portanto, homens mudados sao produtos de ou- tras circunstancias ¢ de uma educagado mudada, se esquece precisamente de que as circunst4ncias existem para serem mudadas pelos homens ¢ que o proprio educador deve ser educado. E por isso que ela deve dividir a so- ciedade em duas partes — das quais uma é clevada acima dela. A coincidén- cia da mudanga das circunstancias e da atividade humana ou autotransfor- image not available image not available image not available 66 _MARXISMO_E EDUCACAO sentido, seja avaliando o passado herdado pelas geragdes que expres- sam seu convivio social, seja buscando orientar o futuro em vista do ainda nao. E o presente histdrico ¢ aquele que intermedeia a busca do sentido referido. Portanto, o maximo de consciéncia possivel expresso por Marx e por Engels tornou-se uma referéncia e um norteamento para além de seu tempo. Os rumores destes na contemporaneidade — traduzidos em apropriagées, disseminagdes, reapropriacées, eivadas de debates teé- ticos e traduziveis ou nao em realizagdes de ordem politica — permi- tem afirma-los inspiradores, seja como oposigéo ao movimento capi- talista dos dois tiltimos séculos, seja como télos societério capaz de propulsionar aspiragées, sentimentos, anseios, utopias, idéias, por ve- zes traduzidas em realizagoes mais ou menos significativas; mas tam- bém como balizas que apontam para a andlise e a superacdo do mundo organizado pela Stica do capital Em suma, a obra marxiana p6e em questao os sistemas educativos de entao, e langa luzes para a compreensao dos atuais. Mas para além da critica, aponta posicionamentos propositivos. Dentre eles, refleti- dos ao longo deste, podem ser elencados os seguintes: subtragéo da escola a influéncia governamental, ensino etatico sem controle do governo, educacao publica e gratuita de todas as criangas, eliminagao do trabalho infantil nas fabricas, desenvolvimento omnilateral do ser humano, democratizagao dos progressos da civilizagao, educagao es- colar como conquista do poder politico pela classe operaria, papel da vida comunitdria no desenvolvimento das faculdades humanas e na conquista da liberdade, papel do individuo humano em interferir na mudang¢a das circunstancias. Tais perspectivas revelam criticas traduziveis como expressdes de uma consciéncia real. Por outro lado, revelam uma consciéncia possi- vel, posto que o destino das novas geracdes esta sendo gestado, dado 0 teor das varias proposigées situadas nas citagées feitas. A preocupa- ¢a0 com uma outra ordenagao dos sistemas educacionais revelam ques- image not available image not available image not available 70 MARXISMO E EDUCAC) Dito de outra maneira: nao se espera uma discussao da denominada crise dos paradigmas ou do espirito fluido de um relativismo da auto- proclamada pés-modernidade. O tema € simplesmente afirmativo. con- A medida que se aceita o recorte anteriormente explicitado, veniente lembrar que a referéncia a uma nova dialética nao estabelece uma ruptura da modernidade com um passado préximo ou longinquo. A nova dialética, se assim pode ser chamada, tem dentre seus precur- sores Heraclito e os neoplaténicos. Por sua vez, a dialética antiga dos pré-socraticos, dos socraticos (Sécrates, Platao e Aristételes), dos es- toicos (Plotino, Santo Agostinho) e da Idade Média e Moderna (Des- cartes e Kant) continua presente no pensamento, na linguagem e nos registros de diciondrios e enciclopédias. Dos dialéticos antigos pode- se afirmar que o que os une € 0 principio segundo o qual dois contra- rios nao podem se encontrar simultaneamente na mesma coisa. Dafa diferenga entre a dialética antiga ea nova dialética, pela sua atitude em relagao ao principio da contradigao. Foulquié (1974), em conhecido trabalho, assume uma das possibilidades sugeridas historicamente pelo conceito de dialética para identificd-la com a légica formal (a antiga dialética) ou a légica dialética (a nova dialética). Uma transigao, se- gundo o autor, que ocorreu de modo insensfvel. Nada a opor, desde que estas afirmagGes estejam suficientemente claras. Para a dialética antiga, o principio da contradicao a lei absoluta das coisas como do espirito: uma coisa nao pode simultaneamente ser € nao ser, €, sempre que o pensamento ¢ levado a afirmar sucessivamente duas pro- posigdes que se contradizem, uma delas € evidentemente errada Pelo contririo, a nova dialética vé a contradigdo nas coisas que simul- taneamente sao e nao sao e desta contradigio faz o fulcro essencial da ativi- image not available 72_MARXISMO_E EDUCACAO. tindo do seu principio idealista (0 espirito absoluto), Hegel assume a concepcao de dialética como razao e como proceso: o processo de razdo que se autogera, autodiferencia ¢ autoparticulariza. Dai 0 espirito absolu- to hegeliano se constituir em processo légico ou dialético “que se rea- liza pela prépria alienagdo e estabelece sua unidade consigo mesmo reconhecendo essa alienagao como nada mais que sua prépria livre expressao ou manifestagao; e que se recapitula e se completa no pré- prio Sistema Hegeliano” (idem, p. 102). O motor de todo esse processo é a dialética, no sentido mais res- trito, e que se constitui na compreensao dos contrarios em sua unida- de ou do positivo no negativo. Observa-se, por esse método, “o pro- cesso pelo qual as categorias, nogdes ou formas de consciéncia surgem umas das outras para formar totalidades cada vez mais inclusivas, até que se complete o sistema de categorias, nogdes ou formas, como um todo” (idem, ibidem). Principios como o de superagéio e tensao sao fun- damentais. O primeiro porque indica que toda evolugao resulta de uma fase anterior menos desenvolvida e o segundo porque estabelece que entre qualquer forma e o que ela é também ha 0 vir a ser. E bastante conhecidaa interlocugdo que Marx faz, em diferentes momentos, com o pensamento de Hegel e em especial com a dialéti- ca hegeliana. Sua posicdo evidentemente é sempre critica em decor- réncia do seu princfpio materialista, enquanto que o principio de Hegel € idealista. Marx sempre atacou a filosofia dita especulativa. Mas, no que diz respeito a dialética hegeliana, suas posicées precisam ser mais esclarecidas, porque ele nao langa fora a crianga que se lava na bacia juntamente com a agua do banho. Em carta a Kugelmann, de 6 de marco de 1868, Marx refere-se a Dithring e afirma: Sabe muito bem que meu método de desenvolvimento nao é hegeliano, uma vez que sou materialista e Hegel é idealista. A dialética de Hegel éa forma basica de toda dialética, mas somente depois que ela foi extirpada DIALETICA E PESQUISA EM EDUCACAO 73 de sua forma mistica, € isto € precisamente o que distingue meu método [Marx, 1974, p. 214]. Embora a citacdo a seguir seja um tanto longa, preferimos sacrifi- car o estilo ¢ fazé-la, pela sua limpida clareza. Trata-se de uma passagem “Do posfacio a segunda edigao alema do primeiro tomo de O Capital”: Meu método dialético nao difere apenas fundamentalmente do méto- do de Hegel, mas é exatamente o seu reverso. Segundo Hegel, 0 processo do pensamento, que ele converte, inclusive, sob o nome de idéia, em su- jeito com vida propria, € 0 demiurgo do real, € 0 real a simples forma feno- menal da idéia. Para mim, ao contrario, 0 ideal nao é sendo o material trans- posto e traduzido no cérebro do homem. Critiquei o aspecto mistificador da dialética hegeliana ha cerca de 30 anos, quando ainda se achava em moda. Na época em que eu escrevia o primeiro tomo de O Capital os epigonos enfadonhos, pretensiosos e me- diocres, hoje catedraticos na Alemanha culta, divertiam-se em falar de Hegel [...] tratando-o de "cao morto”. Por isso declarei-me abertamente discipulo daquele grande pensador ¢ inclusive, em algumas passagens do capitulo sobre a teoria do valor, cheguei a usar com prazer a sua forma peculiar de expressio. A mistificacao sofrida pela dialética nas maos de Hegel nao anula de modo algum o fato de ter sido ele o primeiro a expor, em toda a sua amplitude e com toda consciéncia, as formas gerais do seu movimento. Em Hegel a dialética anda de cabeca para baixo. E preciso coloca-la sobre os pés para descobrir 0 niicleo racional encoberto sob a envoltura mistica. Em sua forma mistificada, a dialética pds-se em moda na Alemanha porque parecia glorificar as coisas existentes. Para a burguesia e seus por- ta-vozes doutrinarios, 0 seu aspecto racional é um escandalo € uma abo- minacao, uma vez que na concepcio positiva das coisas existentes inclui a concepgio de sua negagio fatal, de sua destruigdo necessaria, uma vez que, concebendo cada forma chegada a ser, no fluir do movimento, enfoca 74 MARXISMO_E EDUCACAO também o seu aspecto de transitoriedade, nao se deixa submeter a nada, € essencialmente critica e revolucionaria [Marx in MARX & ENGELS, 1976, pp. 15-16) Em carta a Engels, de 14 de janeiro de 1858, Marx declara ainda que, “se conseguisse tempo para tal trabalho, gostaria muitissimo de tornar acessivel a inteligéncia humana comum, em umas tantas pagi- nas, o que é racional no método que descobriu Hegel, mas que ao mes- mo tempo estd envolto em misticismo” (Marx in MARX & ENGELS, 1973, p. 91). Marx nao realizou este seu desejo, mas as varias indicagdes apontadas sao suficientes para se afirmar que em Marx h4 uma divida para com Hegel, reconhecida por ele mesmo, mas que nao reduz suas criticas quando contrap6e 4 ontologia idealista absoluta, 4 epistemologia racionalista especulativa € a sociologia idealista substantiva, uma concepgio dos universais como pro- priedades das coisas particulares, do conhecimento como irredutivelmente empirico € da sociedade civil (mais tarde dos modos de produgao) como fundamento do Estado (BoTToMORE, 1997, p. 102) Marx no sé nao explicitou, como desejava, o que hé de racional no método que descobriu Hegel, como também nao escreveu sobre sua concepcao de dialética, conforme anunciara ter um projeto, em dezembro de 1825, numa carta a Joseph Dietzgen (KONDER, 1981, p. 50). Abriu-se, entao, um imenso campo de debates acerca do que é a dialética nao s6 na obra de Marx, mas em todo 0 pensamento materi- alista histérico-dialético. Conhecemos a contribuigao de Engels (1976) para com 0 escla- recimento parcial da questao, pela sua insisténcia em abordar a natu- reza geral da dialética como ciéncia: DIALETICA E PESQUISA EM EOUCACAO_75 As leis da dialética so, por conseguinte, extrafdas da histéria da socie- dade humana. Nao séo clas outras scnao as Icis mais gerais de ambas essas fases do desenvolvimento histérico, bem como do pensamento humano. Reduzem-se elas, principalmente, a trés: 1) A lei da transformacao da quanti- dade em qualidade ¢ vice-versa; 2) A lei da interpenetragdo dos contrarios; 3) A lei da negagao da negacio [ENGELs, 1976, p. 34] Engels, tanto quanto Marx, reconhece que € no pensamento de Hegel que se encontram esses elementos descritivos sobre 0 concei- to de dialética e, do mesmo modo, Engels acompanha as criticas que eram feitas ao a priori idealista. Lenin (s.d.) € enfatico quando indica que Marx e Engels viam na dialética de Hegel a mais vasta, a mais rica a mais profunda doutrina da evolugao, uma imensa aquisigao da filosofia cléssica alema. Qualquer outro enunciado do principio do desenvolvimento, da evolugao Ihes parecia unilateral, pobre, deformante mutilante da marcha da evolugao (muitas vezes marcada por saltos, catas- trofes, revolugdes) na natureza e na sociedade (LENIN, s.d., p. 19] Citando Marx e Engels, Lenin vai tecendo idéias fundamentais acerca da dialética marxista, pois nela o mundo nao pode ser conside- rado um complexo de coisas acabadas, mas sim um processo de com- plexos nos quais as coisas e os seus reflexos intelectuais em nossos cérebros, os conceitos, estao em mudangas continuas e ininterruptas de devir, E é essa a razao pela qual a dialética marxista nao esta redu- zida a légica e nem a um método de investigagao. Entretanto, e j4 antecipando o antincio de uma outra questao a ser abordada adiante, o reconhecimento filoséfico dessa idéia tao funda- mental nao corresponde necessariamente a uma capacidade de aplicd- la a cada dominio submetido a investigacgao A conclusao a que chega Lenin (s.d.) €a de que para Marx a dia- lética € a ciéncia das leis gerais do movimento, tanto do mundo exte- 76 MARXISMO E EDUCACAO rior como do pensamento humano. Nela, contraditoriamente, a per- manéncia é 0 devir das coisas e dos conceitos refletidos no pensamen- to. E € necessdrio destacar que isso nao exclui a légica formal, mas a incorpora por superagao. Ainda mais: a dialética compreende o que hoje se chama teoria do conhecimento ou gnosiologia, que deve igualmente considerar 0 seu objeto do ponto de vis- ta histérico, estudando e generalizando a origem e o desenvolvimento do conhecimento, a passagem da ignorancia a0 conhecimento [idem, p. 20]. Stalin esforcou-se em demonstrar a oposicdo entre a dialética marxista ¢ a metafisica, leia-se l6gica formal, nao antes de ter explici- tado suas diferentes conotagoes historicas, utilizando-se de Marx e Engels. Assim, Stalin pontuou: a) Ao contrario da metafisica, a dialética olha a natureza nio como uma acumulagao acidental de objetos, de fendmenos separados uns dos ou- tros, isolados, e independentes uns dos outros, mas como um todo unido, coerente, em que os objetos, os fendmenos, estao ligados orga- nicamente entre eles, dependem uns dos outros e condicionam-se re- ciprocamente. [...] b) Ao contrario da metaffsica, a dialética olha a natureza, nao como um es- tado de repouso e de imobilidade, de estagnacio e de imutabilidade, mas como um estado de movimento e transformacio perpétuos, de re- novagao € desenvolvimento incessantes, em que sempre nasce € desen- volve-se qualquer coisa, desagrega-se ¢ desaparece qualquer coisa. [...] c) Contrariamente a metafisica, a dialética considera 0 processo de desen- yolvimento, nao como um simples processo de crescimento, em que as mudangas quantitativas ndo tém como resultado mudangas quantitati- vas, mas como um desenvolvimento que passa das mudancas quantita- tivas e latentes a mudangas evidentes ¢ radicais, a mudangas qualitati- vas. [...] DIALETICA E PESQUISA EM EDUCACAO 77 d) Ao contrario da metafisica, a dialética parte do principio que os obje- tos ¢ os fendémenos da natureza encerram contradigées internas, pois todos eles tém um lado negativo e um lado positivo, um passado e um futuro, todos eles tém elementos que desaparecem ou que se desenvol- vem [Staun, s.d., p. 15]. Em notas criticas sobre uma tentativa de “Ensaio popular” de so- ciologia, referéncia ao livro de Bukharin, A teoria do materialismo bistérico: manual popular de sociologia marxista, publicado pela primeira vez em Mos- cou, em 1921, Gramsci (1981) critica o autor por nao ter feito qual- quer tratamento da dialética e considera essa atitude um verdadeiro absurdo. Segundo Gramsci, essa auséncia decorre de uma visdo equi- vocada de Bukharin sobre a filosofia da praxis, denominagio esta sob a qual Gramsci incorpora o materialismo hist6rico-dialético de Marx e Engels. Bukharin teria cindido a filosofia da praxis em uma teoria da histéria e da politica, entendida como sociologia pela dtica positivista e uma filosofia propriamente dita, que seria o materialismo filos6fico, mas metafisico, mecanico, vulgar. Nao se compreende entao a impor- tAncia da dialética que: de doutrina do conhecimento ¢ substincia medular da historiografia e da cigncia politica, € degradada a uma subespécie de légica formal, a uma escolastica elementar. A funcao e o significado da dialética s6 podem ser concebidos em todaa sua fundamentalidade se a filosofia da praxis é conce- bida como uma filosofia integral ¢ original, que inicia um nova fase na his- toria € no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera [e, superando, integra em si os seus elementos vitais] tanto 0 idea- lismo quanto 0 materialismo tradicionais, expressdes das velhas sociedades. Se a filosofia da prixis nao € pensada senao como sendo subordinada a uma outra filosofia, € impossivel conceber a nova dialética, na qual, precisamente, aquela superagio se efetua e se expressa [...] Sente-se que a dialética € algo muito arduo e dificil, na medida em que 78 MARKISMO_E EDUCACAO © pensar dialeticamente vai de encontro ao vulgar senso comum, que é dogmético, avido de certezas peremptérias, tendo a légica formal como sua expressio (Gramsci, 1981, p. 159, grifos do original) Em trabalho eminentemente filos6fico de Mao Tse Tung percebe- mos sua preocupacao em explicitar longamente o principio de contra- dicao da dialética, ou seja, 0 principio da unidade dos contrarios por- que, apoiando-se em Lenin, ele considera que a dialética é 0 estudo da contradigdo na esséncia mesma dos objetos. Mao Tse Tung cami- nha pelas concepgoes idealistas e materialistas; aponta para a univer- salidade da categoria contradigao que se explicitou filosoficamente com as contribuigdes de Hegel, Marx, Engels e Lenin, aborda a contradi- gao como particularidade universal; esclarece o que € uma contradi- ao principal e o principal de uma contradigao e aprofunda a andlise da luta travada entre os contrdrios na sua identidade, bem como so- bre o papel do antagonismo na contradicdo. Coerentemente com seus pressupostos e fontes conclui: “A lei da contradigao nas coisas, isto é, a lei da unidade dos contrdrios, é a lei fundamental da natureza e da sociedade e, por conseqiiéncia, também a lei fundamental do pensa- mento” (Tse TUNG, 1974, p. 368). Podemos entao concluir esse tépico com algumas consideragées relacionadas entre si a) a base filos6fica da dialética percorre um imenso caminho do préprio pensamento filos6fico: de Herdclito a Hegel e de Hegel para todo o pensamento marxista que historicamente explicita uma nova dialética, ou seja, a dialética fundada no materialismo histérico; b) de uma dialética que significou a arte do discurso, ou que generi- camente se restringiu a légica, referida anteriormente como sen- do a antiga dialética, caminhou-se para uma dialética que incor- porando e superando seu préprio passado, projeta-se como uma concepgio da natureza, da histéria ¢ do pensamento, uma vez que DIALETICA & PESQUISA EM EDUCACAO 79 eles mesmos se constituem dialeticamente. Na sintese que ante- cipamos, apontévamos para uma dialética epistemolégica, uma dialética ontolégica e uma dialética relacional. Ou seja, a dialéti- ca do conhecimento como expressao do modo de ser dialético das coisas e da dialética da hist6ria, c) Deparamo-nos com um esclarecimento magistral: A légica nao pode ser concebida apenas como ciéncia da forma do pen- samento, separada de qualquer contetido, com efeito, a forma do pensamen- to é j4 conduzida além de si mesma e nao pode se conservar pura (pura- mente formal) [...] Para Lenin, como para Hegel, o conceito se desenvolve superando as oposicGes da forma e do conteiido, do tedrico e do pratico, do subjetivo ¢ do objetivo, do “para-si” ¢ do em si... O método nio deve desdenhar a légica formal, mas retomé-la. Portanto, o que é esse método? Ea consciéncia da forma, do movimento interno do contetido. E é“o pré- prio contetido”, 0 movimento dialético que este tem em si, que o impele para frente, inclu(daa forma. A légica dialética acrescenta, a antiga légica, a captacao das transigdes, dos desenvolvimentos, da ‘ligagao interna ¢ ne- cessaria’ das partes no todo [...] Nao se poderia dizer melhor que s6 existe dialética (anilise dialética, exposigio ou “sintese”) se existir movimento, ¢ que s6 ha movimento se existir processo historico: historia, Tanto faz ser a historia de um ser da natureza, do ser humano (social), do conhecimento! [...] A histéria é 0 movimento de um contetido, engendrando diferengas, polaridades, conflitos, proble- mas te6ricos ¢ praticos, € resolvendo-os (ou nao) [LEFEBVRE, 1975, p. 21] Engels, ao abordar procedimentos adotados por um pensamento metafisico, €é generosamente diddcico. Esclarece que para o metafisi- co tudo € objeto de uma investigacao isolada, analisado seqiiencialmen- te e tomado de forma fixa. 80 MARXISMO_E EDUCACAO Eum pensar por antiteses e sem meio termo: sim, sim; nao, nao. Uma coisa existe ou nao existe e ndo pode ser ela e outra ao mesmo tempo. Excluem-se 0 positivo € o negativo ea causa € 0 efeito opdem- se de modo rigido. Mas esse € 0 método de pensar do senso comum que pode até mesmo ser necessario dependendo dos objetos de que trata ou do estagio do conhecimento que se tem deles. Mas, para além disso, € um pensamento que se torna unilateral, limitado, abstrato. Preocupado com a existéncia dos seres, nao vé suas origens e suas mortes. Obcecado pelas arvores nao consegue ver o bosque. Segundo Engels (1974), o que distingue a dialética da metaffsica é a sua apreensio das coisas e os seus reflexos conceituais nas suas conexdes, no seu encadeamento, na sua dinamica, no seu nascimento € na sua morte. Mas a questao nao respondida ou nao abordada no item anterior é aquela que indaga sobre o modo pelo qual o materialismo histérico- dialético, ou mais precisamente 0 marxismo, se propoe a ser uma ciéncia. Se o pensamento dialético resulta da representacao da dialética dos seres e da histéria na consciéncia dos homens, essa é a chave princi- pal da resposta, mesmo que isso signifique resquicios de uma antigufs- sima epistemologia. Mas jd insinuamos o tributo de Marx e Engels ao pensamento filoséfico grego, bem como 4 dialética hegeliana, e, nes- te caso especifico, Marx opera numa concepgao eminentemente aris- totélica. A diferenga que se estabelecerd é quanto ao critério de ver- dade que nao se realizar4 na consciéncia solitdria do sujeito, mas sim na pratica social. O sujeito, por sua vez, nao é um espelho do real, mas um sujeito ativo e rico em determinagées. O pensamento marxiano, em especial, alcanga um conjunto de categorias ontolégicas que permitem a reprodugao ideal do movimento real da histéria. As duas grandes descobertas que Engels (1974) atri- bui a Marx, a concepgao materialista da histéria e a revolugdo do se- gredo da producio capitalista através da mais valia, respondem parcial- mente a nossa questao uma vez que a conclusao de Engels € que gracas DIALETICA E PESQUISA EM EDUCACAO_ 81 a isso o materialismo se tornou uma ciéncia. Dito de outra maneira: Marx dispés de condigdes histéricas que lhe viabilizaram reproduzir de forma adequada, no nivel da consciéncia, do conhecimento do real, as condicées objetivas tanto da natureza quanto da sociedade em que vivia, ou seja, superar o idealismo ¢ compreender o cerne do funcio- namento da sociedade capitalista do século XIX. Um plano filosdfico constituido pela reflexao sobre a realidade que cumpre a exigéncia de apoderar-se, por reflexao subjetiva, dos processos do mundo exterior. A pergunta que formulamos nos leva a uma constatacgao de plausibilidade contempordnea: a obra marxiana é filosdfica, politica, sociolégica, econdmica ou o qué? Nao é relevante uma resposta centrada em alguma preferéncia, pois, 4 medida que ela € conseqiien- te com uma postura dialética epistemoldgica, ontolégica e relacional, as partes, independente do seu prisma de abordagem, sempre se rela- cionam com 0 todo. Questées de interdisciplinaridade, transdiscipli- naridade e multidisciplinaridade ficam absolutamente sem sentido perante a obra marxiana. Trata-se, simplesmente (embora isso seja muito complexo), de fazer a ciéncia da histéria. Novos paradigmas, novos objetos, novas fontes, novas abordagens sdo questées pifias, pois em geral ignoram, cancelam da historia, da filosofia e da ciéncia, as contribuigdes advindas do século XIX, e, em especial, a contribuigao marxiana A obra marxiana prega um tributo consciente e critico ao passa- do filoséfico e cientifico, mas os novidadeiros de hoje parecem nao ter um “antes” de si mesmos. “O menino acha Foucault a inauguragio do mundo, mas ele nunca leu Nietzsche. Evidente, € um problema” (NetTO, 1998, p. 51). Os fundamentos cientificos da dialética esgotam-se, portanto, nas consideragoes intrinsecas a propria dialética, uma vez que como ex- pressao na consciéncia do préprio real e das suas condigdes mutaveis, contraditérias, antagénicas, simples e complexas, dentre outras, quando realizada de forma adequada, e nio como falsa consciéncia, € conhe- 82_MARXISMO_E EDUCACAO cimento, ou seja, o produto buscado por toda e qualquer ciéncia, em- bora s6 tenhamos, de fato, a ciéncia da historia Mas 0 que € a ciéncia? “A ciéncia € uma criagéo do homem, que descobre a possibilidade de transpor para o plano subjetivo o que é real objetivamente” (PINTO, 1969, p. 76) O que garante o éxito da pesquisa, da investigagdo é a riqueza cultural do sujeito que pesquisa. Investigador ignorante, pesquisa es- treita. E é evidente que essa riqueza do pesquisador implica o conhe- cimento de varios modelos e padrées analiticos e ele tem que traba- Ihar segundo as suas opgdes que devem ser explicitadas. (..] nenhuma formacio teérico-metodoldgica é garantia de éxito de inves- tigacdo. Ela € um dos componentes da investigacao e deve ser um compo- nente fundamental [NetTo, 1998, p. 52] Jé mencionamos a idéia de que o conhecimento da dialética em sua abrangéncia, como indicamos, nao garante a sua utilizagao ou mesmo a adesao a ela quando partimos para o mundo da investigacao. Tam- bém pode ocorrer que, apesar dos nossos esforgos em assumirmos a postura dialética, ndo tenhamos grandes sucessos nos produtos de nossas pesquisas. Em O livro vermelbo de Mao Tse Tung (1972), encontramos algumas recomendagoes muito esclarecedoras no capitulo “Métodos de pen- samento e de trabalho”: Freqiientemente, para se chegar a um conhecimento correto, torna-se necessario repetir muitas vezes o processo que vai da matéria ao espirito € DIALETICA E PESQUISA EM EDUCACAO 83 do espirito & matéria, quer dizer, da pratica a0 conhecimento e do conhe- cimento a pratica [Tse TUNG, 1972, p. 227] Mao Tse Tung pressupés a relacao teoria e pratica, mas tendo rea- lizado, antes desse antincio, todo um aclaramento acerca do critério do conhecimento verdadeiro no ambito do pensamento marxista, ou seja, a pratica social: Todo aquele que quiser conhecer uma coisa ou fendmeno nao poderd con- segui-lo sem por-se em contato com essa coisa ou fendmeno, isto é, sem viver (entregar-se a pratica) no seu proprio seio... Se se desejar adquirir conhecimentos ha que tomar parte na pratica que transforma a realidade lidem, ibidem) Além da relagdo da teoria com a pratica, Mao Tse Tung estava aten- to 4 questdo da origem do conhecimento, que os marxistas indicam estar, essencialmente, na experiéncia empfrica. Todos sabem, que sempre que se faz alguma coisa, é impossivel conhe- cer as leis que a regem, saber como realizé-lae leva-la a bom fim, se nao se lhe compreendem as condicées, o carater e os lagos com as outras coisas. [...] 0 materialismo e a dialética exigem esforgos, o seu fundamento é a realidade objetiva e submeter-se ao controle dela. Se nao se fazem esfor- Gos, corre-se 0 risco de cair no idealismo e na metafisica [idem, p. 228] Mao Tse Tung atentou tanto para a necessidade de se conhecer “a propria coisa”, a sua relagao com as outras coisas, quanto para 0 fato, sempre reiterado, de que a determinagao vem da realidade objetiva Um vacilo e voltamos ao idealismo Quando analisamos uma coisa, devemos atender a sua esséncia, consi- derando as aparéncias apenas como 0 guia que nos leva até a porta, Uma 84 MARXISMO E EDUCACAO, vez transposta essa porta, ha que apreender a esséncia da coisa. Eis 0 tini- co método de andlise seguro e cientifico [idem, p. 231] Talvez essa seja a forma mais singela de se traduzir a hermética linguagem de Marx (1977) quando expde seu método da economia politica. O real ¢ o imediatamente dado fazem parte de uma manifes- tacao das aparéncias. O pesquisador necessita caminhar das aparénci- as fenoménicas para a esséncia da coisa, para a coisa em si. O pressu- posto dialético epistemoldgico é que o em si das coisas € atingivel. Buscamos, entao, a verdade e 0 conhecimento, porque consideramos possivel alcangé-los E essa, dentre outras, uma das razdes que move os pesquisadores. O pensador chinés fez ainda uma exposigao de algumas das cha- madas categorias da dialética, como: alertar o que se deve estar aten- to, tanto no nivel do pensamento quanto na observacao do real (in- cluindo a pratica politica), para que nao se caia em simplismos, em afirmagdes absolutizadas, em conclusdes que nao evidenciam aspec- tos essenciais e univocas. Criticou quem vé a rvore e perde a dimen- sao da floresta para, relembrando Lenin, apontar que ser superficial € nao ter em conta as caracterfsticas da contradigdo no conjunto e em cada um de seus aspectos. A unilateralidade e a superficialidade das abordagens, desconhecendo as ligagdes mituas ¢ as leis internas das coisas, € subjetivismo. Embora nosso desejo ao longo deste texto tenha sido o de nao reduzir a dialética a um método de pesquisa, é possivel dizer que pes- quisas orientadas pela dialética, em seu sentido amplo, buscam con- templar o melhor possivel uma andlise objetiva da realidade estudada, apés explord-la exaustivamente. Tenta-se apreender o conjunto das conexoes internas da coisa e isso € possivel com o auxilio de muitos procedimentos cientificos disponiveis. Nao menos importante é a apre- ensdo dos aspectos e dos momentos contraditérios internos, pois 0 objeto € tomado como totalidade e como unidade de contrarios. Tor- DIALETICA E PESQUISA EM EDUCAGAO_ 85 na-se um desafio captar o conflito, o movimento, a tendéncia predo- minante da sua transformagao. Um segundo aspecto fundamental € o da relagao da parte (0 ob- jeto em estudo) com o todo, nao um todo infinito para o pesquisador, mas um todo, tomado tanto quanto necessdrio para o melhor conhe- cimento do objeto. Mas quais seriam as relagoes da parte com 0 todo? Queremos saber sobre o movimento do objeto. Aprofundar no seu conhecimento € um caminhar do fendmeno a esséncia € isso nos leva a infinitas possibilidades. Sem explicitar o movimento e as contradi- des, pouco se faz. O pensamento precisa sempre estar aberto a prépria coisa que num claro-escuro se mostra e se esconde. Mas sabemos que este pensamen- to, de um sujeito pesquisador, sempre sera um pensamento situado, tera o seu mirante de onde olha ¢ este Ihe da o seu alcance € o seu limite. Mirantes tedricos mais elevados viabilizam um olhar sobre horizontes mais distantes Queremos crer que o conjunto das questées anteriores dizem pouco a uma boa parcela das tendéncias atuais da pesquisa em cién- cias humanas, assentadas sob o rétulo dos novos paradigmas, embora nada nessa area seja muito novo. Mas, evidentemente, se o modelo de fazer pesquisa cientifica de modo racional € rechagado e substituido por uma supremacia subjetivista ou de relativismo da verdade, a ver- dade de cada um, sem que o pesquisador tenha nem mesmo uma for- maGio que Ihe permita um dominio da légica formal, da légica dialéti- ca hegeliana ou da Idgica dialética marxiana, ou de qualquer ldgica (basta verificar o que vem ocorrendo na maioria de nossos cursos de pos-graduagao da drea), entao, realmente a retomada dos classicos é uma atitude pré-histérica 86 MARXISMO E EDUCACAO Fizemos, propositadamente, uma referéncia sistematica a autores classicos, e quase sempre aos textos mais acessiveis, porque nao ve- mos hoje, na imensidao das dissertagdes e teses produzidas na area, a preocupacao, por exemplo, de se discutir a dialética no ambito do pensamento filoséfico que a explicitou historicamente. Ha excecoes, mas em geral o que temos sao circulos fechados de pesquisa nos quais seus membros se autoreferenciam e isso parece sero suficiente para assegurar 0 valor dos trabalhos. Sem dizer do controle hegem6énico que certos grupos adquirem nas instituigdes ou entidades onde passam a sinalizar o que é bom ou ruim na pesquisa, ou que se deve fazer pes- quisa segundo modelos da modernidade ou da pés-modernidade, seja 14 0 que entenderem sobre isso. Ha um abandono generalizado do contato com os pensadores cldssicos, porque ja nos cursos de gradua- cao o aluno é informado de que eles estao superados (SANFELICE, 2001, 2003). Desconfiamos que boa parte dos trabalhos que se dizem dialéticos nem mesmo estabelecem a diferenciacao entre as bases idealistas da dialética hegeliana e da dialética ontoldgica, epistemolégica e relacional marxiana, de base materialista. Com excegées, ainda bem que elas existem, parte da produgao nao se afasta do senso comum, porque fomos abdicando do entendimento, que um dia tivemos, de que ao término de uma pesquisa cientifica nao s6 o pesquisador-cientista ne- cessita saber mais do que sabia ao comega-la, mas porque este mais suscita um novo volume de indagacées e impde a exigéncia de um novo e maior conhecimento. Assim, temos que entender 0 ato investigador como choque de um sujeito indagador, movi- do por finalidades subjetivas! e dotado de instrumentos objetivos, contra uma realidade que the opde resisténcia, cuja superacao constitui para ele 1. Entenda-se as finalidades subjetivas como sendo determinadas objetivamente, DIALETICA € PESQUISA EM EOUCAGAO_ 87 uma necessidade vital, uma natureza que o desafia a que a domine, e lhe cria curiosidade ¢ interesses, a que nao pode fugir [Pinto, 1969, p. 456) Com mais énfase ainda, o mesmo autor, certamente alicergado na tese marxiana de que “os fildsofos nao fizeram mais que interpretar 0 mundo de forma diferente, trata-se porém de modificd-lo” (Marx in Marx & ENGELS, 1975), aponta que a pesquisa cientifica consiste em um esforgo de transformagao do mundo para que ele fique mais ade- quado aos interesses dos seres humanos. E uma transformacio de ca- rater existencial e a base de toda a ciéncia é a contradigao dos homens com a natureza. Nao € por acaso que o pensamento marxista sempre proclamou de que lugar histérico, social, polftico e com que interes- ses, deseja a mudanca da ordem ou desordem estabelecidas. E uma questao de coeréncia. Finalmente, se podemos entender que a pesquisa cientifica tem por distintivo e original a criagao do novo e a substituigao do velho no processo de conhecimento, mesmo que esse novo se origine no inte- rior do velho, entéo podemos concluir com o autor em pauta que: Definimos a pesquisa cientifica fundamentalmente como um ato de tra- balho sobre a realidade objetiva. Sendo um ato de trabalho, cabe indagar em que consiste. A resposta anuncia-se assim: consiste em conbecer 0 mun- do no qual o homem atua. O segundo aspecto da definicdo resume-se em que, sendo ato de trabalho, a pesquisa cientifica é sempre produtiva, ins- creve-se entre as modalidades da produgao social. Em virtude do conheci- mento resultante desta variedade particular do trabalho, criam-se simulta- neamente produtos ideais e bens materiais, uns e outros em agdo reciproca Em terceiro lugar, a definig3o exposta implica que o trabalho de pesquisa cientifica faz-se sempre dirigido por uma finalidade, que, sendo apanagio da consciéncia, da a esse ato o carater existencial que nele devemos reco- nhecer [PinTo, 1969, p. 456] 88 MARXISMO E EDUCACAO, Permanecem em pauta intimeras quest6es, pois dada a centralida- de da categoria trabalho na obra marxiana, e tendo em vista a ultima citagao, caberia aqui uma incursao reflexiva nado s6 no universo da di- alética do trabalho em geral, bem como da dialética da produgaio do trabalho cientifico em uma sociedade de classes. Nao faremos isso, embora reconhegamos que seria importante Nao menos relevante seria a sempre presente indagacao acerca do estatuto das préprias ciéncias humanas. De onde vem ou se articula esta dita crise dos paradigmas cientificos modernos? Quanto ao proprio sujeito pesquisador, no que diz respeito aos seus condicionantes hist6rico-sociais e 4s condigdes materiais e obje- tivas em que realiza suas pesquisas, um universo imenso de indagagées se delineia, mas também nao caminharemos por ele. Resta-nos dizer que dialéticamente, todos esses temas, questdes, problemas relacionam-se e que nossa opgio, por termos privilegiado a dialética de bases materialista e histérica, marxiana e marxista, decorre do fato de ela se constituir em poderosa ontologia, em forte epistemo- logia que nos facilitam compreender e explicar as relag6es substantivas que os homens estabelecem com a natureza e consigo mesmos, através de toda a historia. Estamos convencidos disso, pois a dialética materia- lista histérica é uma postura, um método e uma praxis. Posto o anterior, anotemos algumas idéias sobre a pesquisa em educagao: A educagio, tomada genericamente, é antes de tudo uma expresso absolutamente vaga. Vaga porque se reporta ao “processo educativo pelo qual a humanidade se elabora a si mesma, em todos os seus varios aspec- tos” [MANacorna, 1989, p. 6] DIALETICA E PESQUISA EM EDUCACAO 89. Nao hd, portanto, um tinico pesquisador individual que dé conta de investigar essa imensa ¢ complexa totalidade Do ponto de vista da pesquisa que se pretende pautar pela dialé- tica (método cientifico ou epistemologia; ontologia e movimento his- térico — dialética relacional), a pequenez do pesquisador individual ante o todo do campo da pesquisa — 0 fendmeno educativo — parece ser um entrave intransponivel, por mais abrangente que seja o seu trabalho. E realmente € isso o que ocorre. S6 a somatéria obtida por um conhe- cimento coletivo, em que se aglutinam os que foram produzidos par- cialmente, aproxima-nos de um conhecimento do todo. Nao ha, por- tanto, conhecimento absolutizado, mas somente relativo. Relativo no sentido de que se constitui como parte de um todo. Este relativo, en- tretanto, nao diz respeito a uma suposta impossibilidade de se conhe- cer de fato, por exemplo, a histéria da educagao ou a pretensa inviabilidade do conhecimento verdadeiro. A base epistemoldgica da pesquisa dialética sustenta que o em si do objeto € cognoscivel. O em si de um passado hist6rico-educacional nao pode, entretanto, se mostrar a nds em sua totalidade. Caso assim fosse nao seria passado, mas 0 proprio presente. Se o sujeito da pesquisa pudesse apropriar-se do em si do passado, ele seria atemporal e o trabalho de produgao do conhe- cimento histérico-educacional sobre um determinado objeto poderia se esgotar quando ocorresse a apropriagdo pelo pensamento do histo- riador, ou de uma comunidade de historiadores, daquele em si A questao central, do ponto de vista da pesquisa dialética, € que oem si, ontologicamente, se constitui sempre em movimento. Na flui- dez do em si dos fenémenos ha uma (nao-)permanéncia: a (nao-) per- manéncia do movimento, do processo, da mudanga. O que permane- ce, oO movimento, contraditoriamente é o motor de todas as trans- formagées e de si mesmo. Em tiltima instancia: a forma de ser dos se- res e fendmenos é “estar” sempre em mudanga, portanto, de jd ter sido o que foram, de estarem sendo o que sao e de estarem produzindo o que serao. Ena captagdo, pelo pensamento do historiador ou de 90 MARXISMO_E EDUCACAO sua comunidade, desse processo de transformagao, que os mesmos se aproximam do em si do passado. No que diz respeito a esse posicionamento, o presente histérico nao difere, enquanto processo, do passado. Ja foi algo diferente do que é agora e que depois nao ser4 mais. Nesse sentido pode-se dizer que o pesquisador dos fendmenos histérico-educacionais da atualidade nao encontra vantagens sobre o pesquisador histérico-educacional do pas- sado. A diferenca, caso assim se possa dizer, € que como possibilida- de para o conhecimento, o presente disponibiliza-se ao pesquisador em sua totalidade. A diferenga estaria na materialidade dos fendme- nos a serem conhecidos uma vez que oem si dos mesmos (em transfor- magao continua) é concomitante 4 presenga do pesquisador. Isso nao é, entretanto, uma garantia automatica e mecanica de que a sua repre- sentacao plena e verdadeira (conhecimento) ocorreu na esfera do pen- samento da comunidade de investigagio. Como jd dito anteriormen- te, 0 conhecimento verdadeiro do em si é relativo. Relativo e nao relativista! Conhecimento verdadeiro valido para todos os seres hu- manos e nao s6 para alguns homens. Relativo, porém, porque nao é a apropriagao pelo conhecimento do absoluto do em si dos fendmenos. O que se estabelece ontologicamente para os seres e fendmenos histéricos — a sua forma e contetidos intrinsecamente dialéticos — apli- ca-se Coerente € consegiientemente ao préprio historiador, nada mais nada menos do que um ser hist6rico portador de pensamento e sujei- to, como os demais homens, da prépria histéria Se o pesquisador da educagao se propée a realizar uma pesquisa dialética da educagao, de base materialista-historica (marxiana e/ou marxista), isso implica mais do que escolher um método de pesquisa, pois esse método traduz uma postura ontolégica, epistemoldgica ¢ uma praxis, como ja anunciado. E somente assim que se torna possivel uma coeréncia cientifica que desde a escolha do objeto de pesquisa até a producio de um novo conhecimento sobre o mesmo resulta de uma opgao politica-ideolé- DIALETICA E PESQUISA EM EDUCACAO 91 gica, no 4mbito de uma visdo materialista de mundo em continuo movimento ¢ onde as contradigdes antagénicas sao as chaves para se compreender as alteragdes quantitativas e qualitativas da histéria e da educacao. Assim procedendo e dependendo da capacidade tedrica ¢€ pratica do pesquisador, o mesmo corre o risco de receber o rétulo de mate- tialista histérico-dialético. Um rétulo que quando usado por certos au- tores que se autoproclamaram pdés-modernos, propde o abandono da compreensao dialética do real e da educacao, como coisas ja supera- das. Ou, confundindo ainda mais os principiantes: exercita-se uma dialética idealista como se isso nao fizesse diferenga ao posicionamento marxiano da questao e como explicitado no item I deste texto, onde vimos que a dialética marxiana e marxista tém necessariamente as suas bases no materialismo. Também um retorno a légica formal, para que a educacio possa ser estudada em suas partes (livro didatico, mobilidrio, histéria de ins- tituigdes escolares, educagio indigena, educagao das mulheres, impren- sa e educacado, educacao dos negros, pensamento pedagégico, finan- ciamento da educagio, politica educacional etc.), pode até nao ser negativo caso signifique uma etapa da pesquisa educacional e que ne- cessariamente nao implicasse uma recusa para que houvesse um avan- co em direcao 4 pesquisa dialética materialista. Mas quando os novos temas, as novas abordagens e os novos problemas, como se tem dito no ambito das pesquisas educacionais, sao compreendidos pelos prin- cipios da légica formal, isso implica, do ponto de vista légico, excluir a possibilidade dialética: “Para a dialética antiga” — leia-se légica for- mal — “o principio da contradicao é a lei absoluta das coisas como do espirito: uma coisa nao pode simultaneamente ser e nao ser, e, sempre que o pensamento é€ levado a afirmar sucessivamente duas proposigoes que se contradizem, uma delas é evidentemente errada” (Foutquie, 1974, p. 40). A légica formal exclui o seu contrario: a légica dialética.

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