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Gianni Vattimo Didlogo com Nietzsche Ensaios 1961-2000 Traducao SILVANA COBUCCI LEITE ‘ wmfmartinsfontes SAO PAULO 2010 Gianni Vattimo (Turim, 1936) é um dos mais renomados fi- [ésofos italianos, além de ser colaborador de prestigiados jornais e revistas. Discipulo de Hans-Georg Gadamer e Luigi Pareyson, le- ciona filosofia tedrica na Universidade de Turim e é autor de ini- meros estudos sobre a filosofia alema dos séculos XIX e XX. Foi parlamentar europeu de 1999 a 2004. Além deste livro, escreveu: O fim da modernidade, Além da cristandade, Para além da interpretagio. Leta obra foi pablicada originalmente em tatiana cant o titulo DIALOGO CON METZSCHE -- SAGGI 1961-2000 por Garzanti Libri Copyright © Garzanti Libri spa, 2000 Copyright © 2010, Editorn WMF Martins Fontes Ltda., Sito Pano, pari a presente edigto, T? edigdo 2010 Tradugio SILVANA COBUCCH LEITE Acompanhamento edi Lurzin Aparecida dos Preparagio do original Renato dit Rucha Carlos Revisdes grificas Helena Guimaries Bittencont Maria Regina Ribeiro Machato Edigao de arte Kati Harwnsi Terasake Produgio gréfica Geraldo Alves Paginag3o/Fotolitos Studio 3 Deseuweloimento Editeriat Dados Internacionais de Catalogacio na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil} Vattimo, Gianni Didloge com Nietesche : ensaies 1961-2000 / Gianni Vat- timo ; tradugae Silvana Cobucci Leite. - Sao Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2016. (Biblioteca do pensamento mo- derno) Titulo original: Diatogo con Nietzsche : saggi 1961-2000. ISBN 978-85-7827-286-9 1. Filosofia alema 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844- ~ 1900 T. Titulo. 10-05117 DD. ices para catélogo sistematic 1. Nietzsche : Fitosofia atema 193 Todos os direitos desta edigio reservados & Editora WMF Martins Fontes Ltda, Rua Consetheiro Ramatho, 330 01325-000 Sito Paulo SP Brasil Tel. (11) 3293.8151) Fax (11) 3107.1042 emit: infoGonfuartinsfoutes.con. br http: /rowmwonyfimartinsfontes.com.br {NDICE Observagao O niilismo e o problema da temporalidade ... A viséo de mundo de Nietzsche - O problema do conhecimento histérico ¢ a forma- cao da ideia nietzschiana da verdadc.. A filosofia como exercicio ontoldégico.... Nietzsche e a hermenéutica contemporanea. : Nietzsche, o super-homem e 0 espirito de vanguarda Arte e identidade. Sobre a atualidade da estética de Nietzsche A sabedoria do super-homem.........c008 Os dois sentidos do niilismo de Nietzsche A GAIA CONCH cco eece eee te tee ecs tee te tet tetenee . Aurora. Pensamentos sobre os preconceitos morais. Zaratustra Nietzsche, intérprete de Heidegger .. O Nietzsche “italiano”... Nietzsche 1994.0. ccccceeessesseeeeseneees Indice de Womes .o.ccscessesssssscssssssrscsssssessessescsseesnsnneesvins 77 1 133 151 175 227 241 255 281 299 323 339 349 Aos alunos e aos colegas do Kolleg Nietzsche de Weimar OBSERVACGAO Quis dar a esta série de ensaios sobre Nietzsche o ti- tulo de “didlogo” — imitando conscientemente o titulo de uma memordvel série de escritos de Jean Beaufret so- bre Heidegger! — porque o termo me pareceu 0 mais ade- quado para o trabalho que, a partir dos anos 1960, reali- zei sobre os textos do fil6sofo alemao. Jamais se tratou de uma pura e simples atividade filolégica de esclareci- mento, exposigao, reconstrucdo “objetiva” de seu pen- samento. Afirmo-o, também, com plena consciéncia dos limites que isso pode comportar para os textos que apre- sento aqui. Por outro lado, até a atividade mais puramen- te “filolgica” que teve por objeto os textos de Nietzsche no ultimo meio século, ou seja, a grande edigdo critica organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari para a editora Adelphi, de Milao, nao foi inspirada por um ob- jetivo desinteressadamente descritivo: como revelam so- 1. Jean Beaufret, Dislogue avec Heidegger, Paris, Editions de Minuit, 1974, 4 vols. 2 DIALOGO COM NIETZSCHE bretudo os escritos e as notas de Montinar?, ao publicar os escritos péstumos em sua forma original (livre das manipulagées dos primeiros editores, acima de tudo de sua irma Elisabeth), Colli e Montinari pretendiam livrar Nietzsche das mitologias nazistas nele inseridas, e tam- bém prevenir ou limitar a mitificagaio de outra marca que passou a se delinear a partir dos anos 1960 e que, ao con- trario do esperado por eles, ainda perdura. Nao me envergonho de dizer que a essa nova onda de “mitologia” nietzschiana pertencem também os es- critos que retino aqui, todos inspirados na idcia (que teve sua maxima expressio em Heidegger) de que Nietzsche é um pensador decisivo para o nosso presente e ainda repleto de futuro. Especialmente por esse motivo, um trabalho de organizagao “definitiva” de seu pensamento nao é possivel e nao o sera ainda por um tempo. O pr6- ptio fato de a imagem de Nietzsche se modificar signifi- cativamente em momentos diferentes, até mesmo na perspectiva de um tinico estudioso — como aconteceu co- migo, embora, penso eu, sem grandes contradigdes, no decorrer destes quase quarenta anos de leituras —, é uma demonstracao da vitalidade de sua obra, se é verdade, como me parece, que a variedade das interpretacgdes nado depende apenas das diferentes subjetividades dos intér- pretes, mas também da riqueza do “objeto” a que se de- dicam. Observo aqui, de passagem, que até a terminolo- gia registra algumas oscilagdes: depois de I! soggetto e la maschera, de 1984, preferi traduzir Uebermensch por “além-do-homem” [olfreuomo], em vez de ” “super-ho- mem” [superuomo], mas as vezes voltei A antiga termino- 2. Veja-se, para todos, seu Che cosa ha “veramente” detto Nietzsche, Roma, Astrolabio, 1975, edepois Milao, Adelphi, 1999. OBSERVAGAO 3 logia, como no capitulo 11, quando se tratava precisa- mente de evidenciar as implicagées éticas de suas ex- pressdes. Para completar — e talvez piorar — 0 quadro desta apo- logia. preliminar, lembrarei também que a leitura dos es- critos reunidos neste livro deve ser relacionada a dois ou- tros livros que dediquei a Nietzsche no decorrer destes anos: o volume acima mencionado, I! soggetto e la masche- ra. Nietzsche e il problema della liberazione (1974; 2% ed., Milao, Bompiani, 1994) e a Introduzione a Nietzsche (1985; 10° ed., Roma/Bari, Laterza, 1997). Recentemente tive ocasiéo de retomar e rediscutir os varios aspectos e momentos de meu trabalho sobre Nietzsche com grupos de interlocutores atentos e expe- rientes: em aulas e seminarios realizados na Universidad Internacional Menendez y Pelayo de Valencia (em um curso dirigido juntamente com Jestis Conill em julho de 2000); em um congresso internacional realizado no cas- telo de Elmau (Baviera, julho de 2000) sob a diregdo de Riidiger Safranski; ¢ especialmente em uma série de au- las que ministrei entre maio e junho de 2000, a convite do Kolleg Nietzsche de Weimar, dirigido por Riidiger Schmidt. Sobretudo as discussdes efetuadas neste tlti- mo local representaram um estimulo decisivo para esta publicacao. Este livro, portanto, 6 dedicado aos colegas e aos estudantes do Kolleg Nietzsche de Weimar, em sinal de amizade e gratidao. As trés segées do volume compreendem: a) A reedigdo do agora esgotado Ipotesi su Nietzsche, publicado em Turim pela editora Giappichelli, em 1967, cujos capitulos I e IV haviam saido respectivamente no Archivio di Filosofia, de 1961, e, em francés, nas atas do 4 DIALOGO COM NIETZSCHE Congresso de Royaumont de 1964, Nietzsche, Paris, Edi- tions de Minuit, 1967; b) uma série de ensaios, conferéncias e intervencdes muitas vezes nao publicados ou impressos em revistas italianas ou estrangeiras, em volumes de atas de congres- sos e convencoes: “Nietzsche, il supcruomo e lo spirito dell’avanguar- dia’, no volume II caso Nietzsche, organizado por M. Fres- chi, Cremona, Libreria del Convegno, 1973; “Arte e identita”, em Revue Philosophique; “7 due sensi del nichilismo”, no volume organizado por B. Egyed, T. Darby e B. Jones, Nietzsche and Rhetoric of Nihilism, Ottawa, Carleton University Press, 1989; “Nietzsche e l’ermeneutica contemporanea” (rela- tério apresentado na Universidade hebraica de Jerusa- lém em 1984), no volume Nietzsche as Affirmative Thinker, organizado por Y. Yovel, Haia, Nijhoff, 1986; “Nietzsche interprete de Heidegger”, no volume or- ganizado por F. H. von Hermann, Kunst und Technik (por ocasido do centendrio de Heidegger), Frankfurt, Kloster- mann, 1989; “Nietzsche tra estetica e politica” (em Cuadernos de Filosofia, Buenos Aires, mar. 1995; e em Aut-aut, jan.-abr. 1995); La saggezza del superuomo, conferéncia inédita. c) Trés prefacios a obras de Nietzsche publicadas em italiano por varias editoras: La gaia scienza, Turim, Einau- di, 1979; Aurora, Roma, Newton Compton, 1990; Cosi parld Zarathustra, Milao, TEA, 1992. Incluf também, como apéndice, uma breve intervengaéo em Nietzsche italiano, publicada na Magazine Littéraire. Mas temo, ou espero, ter esquecido ainda alguma coisa. No que me diz respei- to, o didlogo de modo algum chegou ao fim. O NIILISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE Os significados do eterno retorno Apés a publicacao, em 1936, da obra fundamental de Léwith sobre a filosofia do eterno retorno de Nietz- sche, o conceito de ewige Wiederkehr des Gleichen tornou- -se, muito mais do que era na historiografia filoséfica pre- cedente, o conceito central de quase todas as interpreta- gdes do pensamento nietzschiano. No livro de Léwith, o eterno rctorno cleva-se a pensamento unificador de toda a muiltipla especulagao de Nietzsche, dos escritos da ju- ventude ao Zaratustra e aos escritos publicados postuma- mente com o titulo de Wille zur Macht'. Sob esse ponto 1. As obras de Nietzsche publicadas durante sua vida, das quais se encontram muitas edicdes e tradugées, sero citadas remetendo ao titulo e ao mimero do capitulo ou do aforismo (ou, no caso de Assim fa- lou Zaratustra, ao livro e ao titulo do discurso). Os escritos péstumos se- rao citados de acordo com a ordem estabelecida por Colli e Montinari em sua edigao critica (Milao, Adelphi, 1967 ss.), com os ntimeros (ro- manos) do volume, do tomo e da pagina (em algarismos arabicos) da tradugao italiana. Em alguns casos, porém, indico o volume, o ntimero 6 DIALOGO COM NIETZSCHE de vista, a filosofia de Nietzsche aparece como uma ten- tativa de “restaurar a visio de mundo dos pré-socrati- cos”, que se situa na conclusao de todo um processo de “descristianizagéo” iniciado na histéria do pensamento moderno com Descartes’. Na mesma época em que era publicada a primeita edic&o do livro de Léwith, saia tam- bém o Nietzsche de Jaspers ¢ nascia a interpretacao hei- deggeriana do pensamento de Nictzsche, em uma série de cursos realizados na Universidade de Freiburg entre 1936 e 1940, cujos apontamentos foram publicados em 1961°, Enquanto na interpretagao de Jaspers o eterno re- torno ainda tem uma posic&o subordinada’, Heidegger reconhece-o como um dos temas centrais a que se pode remeter todo o pensamento de Nietzsche, ou melhor, o essencial, juntamente com o conceito de Wille zur Macht. A vontade de poténcia representa a esséncia do mundo atribuido por Colli e Montinari aos cadernos dos apontamentos de Nietzsche e o ntimero do fragmento. Para A vontade de poténcia, que, como se sabe, é uma obra publicada postumamente aos cuidados de sua irma Elisabeth e de Peter Gast, preferi remeter a traducdo italiana da edicao definitiva de 1906, que foi reeditada coma organizacao de M. Ferraris e P. Kobau (Milo, Bompiani, 1992). O amplo aparato de notas dessa edigdo ajudard também a recolocar cada “aforismo” de A vontade de poténcia no quadro dos fragmentos péstumos da edigao Colli-Monti- nari. Nos poucos casos em que os fragmentos péstumos ainda nao fo- ram publicados na edicao critica (por exemplo, os escritos de filologia dos anos anteriores a 1869), tive de manter a remissiva A edicdo Nau- man (1895 ss.). 2. Cf. K. Léwith, Nietzsche e l’eterno ritorno (1936, 1956), trad. it. de S. Venuti, Roma /Bari, Laterza, 1996, pp. 111 ss. 3. M. Heidegger, Nietzsche (1961), ed. it. org. por F. Volpi, Milao, Adelphi, 1994, 2000". 4. Cf. K. Jaspers, Nietzsche, Introduzione alla comtprensione del suo fi- losofare (1936), trad. it. de L. Rustichelli, Milao, Mursia, 1996, patte IL, cap. 6. O NILISMO E 0 PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 7 como Nietzsche o vé, enquanto o eterno retorno é sua existéncia e realizacéo (embora, e isto é decisivo, em um sentido diferente da relagao tradicionalmente estabeleci- da entre esséncia e existéncia)’. A ideia do eterno retorno, contudo, ainda que re- presente o conceito interpretativo mais valido elaborado até agora pela historiografia niectzschiana, esta bem lon- ge de fornecer uma solugao das contradigdes presentes na obra de Nietzsche; quando muito, ela contribui para evidencié-las ainda mais, reduzindo-as a suas caracteris- ticas fundamentais. O préprio conccito de eterno retor- no, de fato, é um conceito problematico e de significado no minimo ambiguo. 6 muito provavel que a ambigui- dade nao esteja ligada apenas a dificuldade de interpre- tagao, aumentada pelo estado de desordem em que se encontram os Ultimos escritos de Nietzsche, mas que re- monte ao préprio Nietzsche, que talvez nunca chegue a formuld-lo claramente. O que se pode fazer, nessa situa- cdo, é tentar ilustrar o significado do conceito de eterno retorno mostrando os problemas que ele, segundo Nietz- sche, devia resolver, as linhas daquele desenvolvimento de pensamento que encontrou na ideia da ewige Wieder- kehr seu ponto de chegada. Na verdade, deve-se consi- derar que, desde o momento em que foi concebido (a fa- mosa caminhada perto do lago de Silvaplana, na Alta En- gadina)’, o pensamento do eterno retorno representou para Nietzsche o proprio significado de scu filosofar, a chave de solugao de todos os problemas, sua mensagem wy ao mundo: Zaratustra é “o mestre do eterno retorno”’. 5. Cf, por exemplo, Nietzsche, cit., p. 747. 6. Nietzsche fala dela em Ecce homo: “Assim falou Zaratustra”, 1. 7. Zaratustra, TH: “O convalescente”, 2. 8 DIALOGO COM NIETZSCHE A ambiguidade fundamental do conccito de cterno retorno relaciona-se ao duplo significado, cosmoldgico e moral, que a doutrina assume*. Essa ambiguidade en- contra-se resumida claramente em uma breve proposi- cdo pertencente aos inéditos do perfodo em que foi com- posta A gaia ciéncia, precisamente a obra em que, pela pri- meira vez, Nietzsche anuncia a doutrina da ewige Wieder- kehr: “Age de maneira que devas desejar viver de novo, esta é a tarefa — e, além do mais, isso ocorrerd de qual- quer modo.” A eterna repetigio daquilo que acontece é ao mesmo tempo uma tarefa a ser realizada e um fato inclutavel. Na medida em que é um fato, a doutrina do eterno retorno apresenta-se como uma proposigao cos- moldgica que enuncia uma necessaria estrutura da reali- dade. E esse 0 sentido em que a teoria foi entendida des- de seus primeiros intérpretes, desde o prdprio Peter Gast até Drews e Lichtenberger’. Este ultimo chega a consi- derar que a doutrina da ewige Wiederkehr é enunciada em algumas obras de contemporaneos de Nictzsche (que no entanto Nietzsche nao teria conhecido), cujo sentido pa- rece-nos até banal c intciramente permeado de um po- sitivismo superficial, que Lichtenberger julgava em subs- tancial acordo com a posigao nietzschiana. Uma relagdo muito estreita da doutrina da ewige Wiederkehr com o positivismo ¢ ressaltada também por Rudolf Steiner, 8, Como ressalta, por exemplo, Léwith, Nietzsche, cit., pp. 97 ss. 9. Cf, por exemplo, o prefacio de Gast ao vol. XIV de Nietzsche's Werke, Leipzig, Naumann, 1895, pp. VII-VIL; A. Drews, Nietzsches Phi- losophie, Heidelberg, 1904, pp. 323-81. Drews ressalta, contudo, e com raz4o, também o carater de Glanbe que a doutrina do eterno retorno tem para © préprio Nietzsche, ao menos em certas paginas, motivo pelo qual nao seria cientificamente demonstravel; H. Lichtenberger, La phi- losophie de Nietzsche, Paris, 1904, pp. 160-8. O NHLISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 9 para quem ela representa a mera inversao, realizada por Nietzsche com um movimento tipico de seu carater, das posigées de Dithring expostas no Kursus der Philosophie als strenge Wissenschaft (Leipzig, 1875), que Nietzsche te- ria lido e comentado". Do ponto de vista desses intér- pretes, e de muitos outros que os seguitam'', o eterno re- torno do mesmo resume-se na ideia de que o futuro do universo néo tem uma ordem racional, néo tem fins nem etapas sucessivas, em suma, nado tem sentido algum; no entanto, como o conceito de uma infinidade de forgas é contraditério, e a quantidade de energia sé pode ser fini- ta, esse processo sem fim nem sentido nao cria nada de novo, € um movimento circular em que cada situagdo se repete ciclicamente ao infinito. Essa argumentacdo parte do pressuposto de que o tempo do devir natural é infinito, ao passo que a matéria e as energias fisicas n&o o sdo: s6 assim Nictzsche pode demonstrar que, se fosse possivel algum fim, algum ob- jetivo ou ao menos um estado de equilibrio ¢ de repou- so das forcas, ele ja deveria ter sido alcangado; se isso ndo ocorreu no tempo infinito que constitui o passado, jamais podera ocorrer, e um fim do devir é inconcebivel. O mesmo raciocinio vale para demonstrar que nao pode haver um objetivo do devir natural”. O processo do cter- no retorno, ainda que nao tenha sentido nem objetivo, implica sempre que aquilo que acontece é apenas repe- 10. R. Steiner, F. Nietzsche. Ein Kampfer gegen seine Zeit, 2. ed., Dor- nach, 1926 (trad. it, Lanciano, 1935, pp. 28-9 e 40). 11. Para Schlechta, por exemplo, Der Fall Nietzsche, cit., pp. 82-3 ¢ passiin, o eterno retorno, cujo significado lhe parece contudo ambiguo, é no fando simplesmente uma maneira de reconhecer e enunciar a falta de sentido do futuro descoberta pelas ciéncias naturais e pela Historie. 12. Opere, vol. VII, tomo 2, p. 76. 10 DIALOGO COM NIETZSCHE ticdo do que aconteceu € nao pode ser nada de diferen- te, jA que isso contradiria o pressuposto da finitude das forgas. Assim, embora nao exista uma dialética histérica com leis racionalmente formuldveis, no mundo do eter- no retorno aparentemente nao ha lugar para a liberdade: as acées do homem sao simplesmente o produto do de- vir ciclico do cosmos. Em contraposigéo a esse significado cosmoldgico, ha, como se dizia, um significado moral da doutrina. Nesse segundo sentido, o eterno retorno nao é tanto um fato inelutavel a ser reconhecido quanto uma tarefa de eternizacao a ser realizada; a eterna repeticao de minha existéncia é algo que devo desejar: “S6 quem considera a propria existéncia apta a se repetir eternamente sobre- vive.”" Alids, a primeira enunciagdo da ideia da ewige Wiederkehr no IV livro da Gaia ciéncia é apresentada de forma hipotética e implica, ao menos na expressdo lite- ral, uma proposta feita ao homem: “Queres reviver isso ainda uma vez e uma infinidade de vezes?”" Deixando de lado o significado menos ou mais forte que se queira atribuir A forma hipotética do aforismo, é inegavel que aqui a ideia da eterna repeticéo tem antes o sentido de um critério para a escolha moral: devo agit de maneira que eu queira que qualquer instante de minha vida se re- pita eternamente”. Ao lado desses dois significados, cuja conciliagdo, como dissemos, é problematica, sobretudo pela carga de 13. Opere, vol. V, tomo 2, p. 391. 14. La gaia scienza, n. 341, p. 198. 15. Sobre o confronto dessa doutrina de Nietzsche com o impera- tive kantiano, tentado por alguns intérpretes, cf. W. A. Kaufmann, Nietzsche, filosofo, psicologo, anticristo (1956), trad. it. de R. Vigevani, Flo- renga, Sansoni, 1974, p. 283. O NULISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE V1 determinismo e de necessidade inclutavel implicita no aspecto cosmolégico da doutrina, parece que deve haver um outro que nao se reduz a eles e que, ao contrario, pa- rece acenar para a possibilidade de uma ligacdo mais rofunda e mais estreita entre a cternidade do mundo e a decisio do homem. A doutrina do super-homem, por exemplo, como é enunciada no Zaratustra, implica evi- dentemente uma relagaéo da vontade com o mundo que nao pode reduzir-se ao simples reconhecimento da ne- cessaria ciclicidade de tudo.o que acontece: a vontade é denominada explicitamente “uma criadora”"’. “Aquilo que chamastes mundo, deveis primeiro crid-lo para vés", diz Zaratustra a seus discipulos em outro discurso”. Es- tas nao sao proposigées isoladas: especialmente ao lon- go dos dois primeiros livros do Zaratustra, o super-ho- mem é aquele que institui com o mundo uma relacdo que néo é o puro e simples reconhecimento da realidade como ela é, e tampouco uma acao moral referente ape- nas ao sujeito, mas uma verdadeira relagdo de recriagdo do préprio mundo, redimido do acaso e da brutalidade do evento numa criacdo poética em que vigora uma nova necessidade. Por outro lado, o fato de os significados da ewige Wiederkehr nao poderem ser reduzidos ao cosmolégico e ao moral é sugerido também por uma andlise dos pro- blemas que 0 conceito nietzschiano do eterno retorno se propunha resolver. Um desses problemas, a nosso ver o principal, que emerge desde as obras iniciais de Nietz- sche, é 0 da posicao do homem diante do tempo. Nao se 16. Zaratustra, I: “Da redengaio”. 17. Zavatustra, Il: “Das ilhas bem-aventuradas”. Cito geralmente a trad. it. de B. Allason, Turim, 1944, com pequenas modificagdes. 12 DIALOGO COM NIETZSCHE trata do tempo em seu significado gnosiolégico ou me- tafisico, mas no sentido que se pode chamar existencial. Ora, uma das consequéncias da ideia do eterno retorno —consequéncia é modo de dizer, pois pode ser conside- rada o proprio sentido do conceito — é a invers&o da con- cepcao banal do tempo, que o vé como uma corrente ir- reversivel de instantes ordenados em série". Para com- preender mais a fundo esse aspecto da ideia do eterno retorno, portanto, sera util estudar como se apresenta em Nietzsche o problema da temporalidade como cate- goria existencial. A importancia da quest&o é dada pelo fato de que justamente os problemas suscitados pela re- lag&o entre vontade criadora do homem e eternidade como carater do mundo ~ problemas que, como vimos, nao encontram uma solucdo satisfatoria na interpretacao cosmoldégica e moral da ideia do eterno retorno — apa- rentemente sé podem ser resolvidos a partir de uma vi- sao diferente da temporalidade. Assim, esclarecer os ter- mos do problema da temporalidade deveria ser util nao apenas para iluminar outro significado da doutrina do eterno retorno, mas talvez também para indicar um ca- minho para a solugao dos problemas que nela permane~ cem abertos. A doenga histérica Uma das primeiras obras em que Nietzsche tenta uma andlise abrangente dos males da civilizagao con- tempordnea c de stias causas é a segunda das Unzeitge- méasse Betrachtungen, aquela Da utilidade e desvaniagem 18. Cf. Zaratustra, I: “Da visio e do enigma”. O NULISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 13 dos estudos histéricos para a vida, escrita em 1874, ou seja, dois anos depois de O nascimento da tragédia, cm que a andlise da decadéncia ainda esta totalmente ligada a vi- sio mitica da Grécia e ao entusiasmo pela mtisica de Wagner. Em um fragmento autobiogratico que remonta a época de Menschliches Allzumenschliches, Nietzsche des- taca a importancia das reflex6cs contidas nesta Extempo- ranea (como de resto, mas de forma menos nitida c rigo- rosa, nas outras) para o desenvolvimento de seu pensa- mento: “’Filisteus da cultura’ ¢ ‘doenea histérica’ come- garam a dar-me as asas.”"” O filisteismo é apenas outra maneira de indicar a doenga histérica; o problema da de- finigéo de uma postura correta diante da histéria é expli- citamente definido, na segunda Extempordnea, como o verdadeiro e fundamental problema do espirito moder- no”. A propria Unzeitgemissheit, a extemporaneidade, que Nietzsche polemicamente destaca no titulo de seus ensaios, nao é apenas uma tomada de posicao genérica contra a prdépria época, mas contra a temporaneidade, entendida como o ser no ambito dos tempos, que ¢ tipi- ca do homem que sofre da doenga histérica. Em vez dis- so, Nietzsche quer “agir de modo extemporaneo, ou scja, contra o tempo, e por isso mesmo sobre o tempo e, espera, em favor de um tempo futuro”. A doenga histérica é uma espécie de definhamento que se manifesta em uma civilizacdo que, pelo excesso dos estudos e dos conhecimentos sobre o passado, per- de toda a capacidade criativa. Esta, segundo Nietzsche, é a situagdo de nossa época: o enorme desenvolvimento 19. Opere, vol. IV, tomo 3, p. 279. 20. Da utilidade e desvantagem da historia para a vida, 8. 21. Da utilidade e desvantagent, prefacio. 14 DIALOGO COM NIETZSCHE dos instrumentos de conhecimento histérico e a quanti- dade de nogées e de documentos disponfveis sobre as épocas passadas reduziram grande parte da cultura a ser simplesmente “historia da cultura”, como se vé pelos programas dos institutos de instrugéo”, sem mais impul- so produtivo. A extrema consciéncia histérica, de fato, mata no homem a vontade de criar algo novo, provoca~ -lhe uma espécie de paralisia que nasce da perda abso- luta da confianga em si mesmo e na prépria obra. “Um homem que fosse absolutamente privado da capacidade de esquecer c que fosse condenado a ver, em cada coisa, 0 processo do devir... nado acreditaria mais no proprio ser nem em si mesmo. Veria todas as coisas se transforma- rem como uma série de pontos contrastantes ¢ se perde- ria nesse mar do devir. Como verdadeiro discipulo de Herdclito, acabaria por nao ter mais a coragem de mover um dedo. Toda ag&o exige o esquecimento.”™ A cons- ciéncia desi como momento transitério de um processo, como ponto imerso em um fluxo que do passado conduz ao futuro, como resultado daquilo que foi ¢ etapa prepa- ratoria para o caminho daquilo que sera — tudo isso é prdprio da doenga historica e, patadoxalmente, elimina toda a capacidade de “fazer” histéria, que 6 a capacidade de se elevar acima do processo, decidindo e acreditando na propria decisdo. A agao histérica nao é impossibilita- da apenas pela visao do fluxo perpétuo: mesmo quando se atribui a esse fluxo uma diregdo e um significado, a decisdo individual perde todo o sentido, e até aumenta a devocao ao fato, 0 servilismo para com as poténcias ven- 22. Cf. especialmente a primeira das cinco conferéncias Sul futuro delle nostre scuole [Do futuro das nossas escolas], realizadas em 1872, em Opere, vol, IIL, tomo 2, pp- 91 ss. 23. Da utilidade e desvantagem, 1. O NIILISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 15 cedoras, a submissao ao devir e a suas leis, o otimismo e a apologia das coisas.como elas sdo. “Quem nao com- preende quanto a histéria ¢ brutal ¢ sem sentido tampou- co poder compreender o impulso para dar um sentido a histéria.”” Ver-se como uma etapa de um processo en- caminhado para um fim que transcende os individuos é apenas uma tentativa de encontrar um significado dado na realidade das coisas, enquanto o tnico significado possivel é aquele que o homem se atribui com a prépria criatividade”. : No conccito nietzschiano de doenca histérica en- tram, portanto, todas as espécies de historicismo, desde aquele, mais tipico do século XIX, que vé a histéria como desenvolvimento necessdrio para um fim (seja este a autoconsciéncia do espirito absoluto, a sociedade sem classes ou, genericamente, 0 “progresso da humanida- de”), até aquele, mais astucioso, que se limita a subli- nhar a relatividade histérica de toda obra do homem ce seu cardatcr transitério: o que constitui a doenca histéri- ca é, de fato, a impossibilidade de transcender de algu- ma maneira 0 processo, quer este tenha ou nado um sen- tido abrangente. A relagao com o passado, da qual a doenga histérica é uma degeneragao, é contudo constitutiva do homem: este se distingue dos animais precisamente na medida em que, a certa altura, aprende a dizer es war [foi], reco- nhece que tem um passado com o qual deve entrar em relagao. O problema dessa relagdo, que na época presen- te se configura como problema do historicismo e da 24. Opere, vol. IV, tomo 1, p. 125. 25. Da utilidade e desvantagem, 8; cf. também Opere, vol. IIL, cader- no 29, fr. 72. 16 DIALOGO COM NIETZSCHE doenga histérica, nao é, portanto, préprio de uma época em particular, mas do homem como tal. Contudo, esse aspecto mais universal, que Nietzsche deixa um pouco na sombra na segunda Extempordnea, deve ser levado em conta para compreender o ulterior desenvolvimento da questéo do tempo e o conceito de eternidade. Apren- dendo a dizer es war, o homem reconhece também sua propria natureza mais profunda, que é a de “um imper- feito jamais perfectivel” (“cin nie zu vollendes Imperfek- tum”), ou seja, uma sucessao ininterrupta de instantes, cada um dos quais ¢ a negacao do outro, transformando sua vida em uma luta continua contra o passado, que re- cai como um peso sobre cle”. O passado, no entanto, nao é apenas o peso do qual temos de nos libertar. Ele também tem sempre o carater, aparentemente oposto, do paraiso perdido: “Os semideuses sempre viveram an- tes, a geracdo presente é sempre a degenerada”, afirma Nietzsche em um apontamento escrito na mesma época da segunda Extempordnea. Também na vida do individuo s6 se reconhece o valor de uma experiéncia depois que cla chegou ao fim e passou; apenas a morte poe fim a essa situacdo”. Em ambos os casos, 0 passado, conside- rado aquilo que nao depende de nossa decisdo, tem o efeito de esvaziar de sentido o presente, de pdr o homem em uma atitude epigénica, aquela atitude que se tornou sistema no pensamento de Hegel”. - O homem da doenga histérica vagueia como um tu- rista no jardim da hist6ria” ou, como Nietzsche dira mais tarde, comporta-se como um ator que recita varias partes, 26. Da utilidade e desvantagem, 1. 27. Opere, vol. II], tomo 3, parte 2, pp. 303-5. 28. Da utilidade e desvantagem, 8. 29. Da utilidade e desvantagent, 10. O NILISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 17 insere-se em diversas situac6es histéricas, sem que ne- nhuma realmente lhe pertenca™. Entendida como ciéncia que tem o passado diante de si como préprio objeto, a hist6ria-_pressupde e desenvolve a absoluta insensibilida- de aos valores e¢ a hierarquia destes: de um lado, 0 histo- riador efetivamente parte da convicgdo de que tudo o que ocorreu na historia é compreensivel, ou seja, no proprio nivel ou no nivel de uma “humanidade” comum que aca- ba sendo uma mediocridade comum em que nao existe lugar para o que é grande; de outro lado, a histéria pre- tende explicar precisamente como histéria, isto é, como produto de determinadas situagdes, tudo o que ocorre, relativizando todas as coisas e destruindo o valor”. Assim entendida, a histéria é ao mesmo tempo o fundamento e a expressao caracteristica da moderna ci- vilizagao de massa, em que as exigéncias da producao re- querem um tipo médio de homem suficientemente in- formado mas desprovido do sentido da individualidade e dominado pelo instinto do rebanho: 0 érgao desta cul- tura de massas, democratica e cosmopolita, mas sem rai- zes, € ojornalismo. O génio e o profeta como figuras nor- teadoras que valem para todos os tempos foram substi- tuidos pelo jornalista, que esta a servigo do momento”. Poderia parecer que o aumento da consciéncia histérica deveria ser acompanhado por uma ampliagao da perso- nalidade além dos limites estreitos da situagdo individual, pelo fim ou pela diminuic&o dos egoismos. Mas ocorre 0 contrario: o homem da doenga histérica, tendo perdido o sentido do horizonte infinito, substituido pela precisa 30. Opere, vol. VII, tomo 2, p. 231; cf. também Opere, vol. III, tomo 3, parte 2, p. 240. 31. Da utilidade e desvantagem, 5. 32. Cf. Do futuro das nossas escolas, primeira conferéncia. 18 DIALOGO COM NIETZSCHE definigéo da situagéo em todos os seus componentes, isola-se em si mesmo, no restrito circulo de seu egoismo, e acaba se tornando insensivel*. Por outra lado, posto em relagéo com uma infinidade de situagdes, nenhuma das quais, contudo, realmente lhe pertence, o homem contemporaneo vive em uma permanente inseguranca, é um “sem patria”. A doenga histérica, em suma, sintetiza os males de nossa civilizagéo decadente: a quantidade de nogées his- téricas que possuimos, intelectualmente mas nao orga- nicamente ligadas a vida, produz um desequilfbrio entre contetido interno e forma visivel da nossa civilizacdo, que é ao mesmo tempo muito culta e barbara, nao pos- sui um estilo, ou seja, um principio préprio unificador vivo; além disso, o excesso de estudos histéricos produz uma perigosa conviccéo da transitoriedade das coisas humanas e ao mesmo tempo um estado de espirito céti- co, que faz com que nenhuma idealidade impressione, apenas os interesses egoistas merecam atengdo. Tudo isso 6 acompanhado pela presungao intelectual da obje- tividade, que leva o homem contempordneo a sentir-se muito mais evoluido e mais “verdadeiro” que seus pre- decessores, enquanto, em decorréncia da falta de um principio unificador, permanece sempre um imaturo”™. A relacéo auténtica com o passado E possivel, contudo, e como se configura, uma atitu- de correta diante do passado? Nietzsche analisa longa- 33. Da utilidade e desvantagem, 9. 34. Da utilidade e desvantagent, 7. 35. Da utilidede e desvantagem, 5. O NIILISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 19 mente as diversas maneiras de estabelecer uma relacdo com o passado as quais correspondem diversos tipos de historiografia: a monumental, a antiqudaria, a critica. Mes- mo essas. maneiras, porém, podem ser mais ou menos legitimas, ou seja, iteis e ndo prejudiciais 4 vida, apenas na medida em que nelas o elemento histérico seja posto a setvico do elemento nao historico, isto 6, da vida em seu significado criativo. Jd vimos que a ado exige 0 es- quecimento, isto é, de certo modo a suspensao da cons- ciéncia historica; esse momento de csquecimento, que cria em torno do sujeito da decisio uma espécie de zona obscura subtraida 4 consciéncia histérica, é o que Nietz- sche chama o elemento nao histérico, a atmosfera em que apenas a acao pode nascer. A atitude correta diante do passado consiste na prio- ridade atribuida a esse elemento nao histérico sobre o historico. Mais precisamente, isso significa que 0 passa- do é conhecido e revivido na consciéncia histérica ape- nas na medida em que serve a acdo cm curso, sem ne- nhuma preocupagao de objetividade e de reconstrucéo fiel, mas com o objetivo de intensificar, facilitar e fortale- cet a acao presente. O ser vivo tem necessidade de um “horizonte” dentro do qual possa se estabelecer e se es- truturar, como em uma solugdo nutritiva; um horizonte s6 existe enquanto tem limites, e a capacidade de tracar esses limites escolhendo, aceitando, recusando, é aquilo que Nietzsche denomina aqui forca plastica*. A medida em que o estudo ¢ o conhecimento do passado sao titeis para a vida é dada pela medida de forga plastica de que 36. Esse significado de Kraft pode servir para entender melhor a concepcao de mundo que Nietzsche expée nas tltimas obras: o mundo como conjunto de forgas sera visto, mais que em sentido mecanico, como um encontro e uma luta de “perspectivas”. 20 DIALOGO COM NIETZSCHE um individuo ou uma civilizacdéo dispdcm: quanto me- nor é a forca plastica, tanto maior é o perigo de que 0 es- tudo da histéria leve 4 doenga histérica, da qual precisa- mente sofre nosso tempo. O conhecimento do passado é util apenas para o homem que tem fortes raizes interio- res: nesse caso, cle se torna um alimento de sua capaci- dade criativa. “A histéria, enquanto é posta a servicgo da vida, estd a servico de uma poténcia nao histérica.”” Esse apropriar-se do passado é a verdadeira “justiga” (ou ob- jetividade) histérica: “Somos justos para com o passado s6 se estamos além dele.”™ “S6 a maior forca do presen- te pode interpretar o passado.”” E importante avaliar todo o alcance dessas afirma- ¢6es nietzschianas: a relagéo com o passado historico tem seu lugar apropriado apenas no interior de algo que nao se reduz a histéria. As “fortes raizes” de que 0 ho- mem necessita para ndo ser arrastado pelo passado, e sim colocado a seu préprio servico, nao sao raizes “his- toricas”, implicam uma relagéo com alguma outra coisa que na segunda Extemporinea nao é claramente definida, a nao ser como forga plastica e criativa da vida. Na con- clusao do ensaio, todavia, como veremos melhor, fala-se de forcas eternizadoras como meios para vencer a doen- ca histérica. O conceito de eternidade, no entanto, é in- troduzido em conexdo com o de ilusdo: assim, a arte é uma forca eternizante na medida em que, com a ilusdo da forma que produz, leva~nos a esquecer o devir e co- loca-nos em um clima nao histérico favoravel a agao cria- tiva. Ea posigdio j4 enunciada em Nascimento da tragédia, 37. Da utilidade e desvantagem, 1; cf. 5. 38. Opere, vol. IV, tomo 1, p. 148. 39. Da utilidade e desvantagem, 6. O NHLISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 21 e que expressa uma atitude ainda inteiramente ligada a Schopenhauer: Dentro desses limites, contudo, é formu- lado um problema que Nietzsche exime-se de conside- rat resolvido com a teoria schopenhaueriana da ilusao, e que continuara a preocupé-lo ao longo de todo o seu iti- nerario especulativo. O fato de o problema ainda permanecer aberto, alids, é evidente também pela pouca precisdo da pars cos- truens desse ensaio. A correta relacdo com o passado, em geral, 6 aquela que 0 poe a-servigo da vida, que stbordi- na o elemento histérico ao nao historico. f possivel de- finir mais claramente essa relagéo? Nietzsche, como se sabe, tem constantemente diante dos olhos o exemplo dos gregos, um exemplo que, como revela o escrito sobre a tragédia, é abundantemente idealizado, mais que his- toricamente definido. Os gregos da época das origens, antes do socratismo e da decadéncia iniciada por este, sao um povo que soube conservar um admiravel sentido nao historico; sua cultura é “essencialmente anti-hist6- rica e apesar disso, ou melhor, precisamente por isso, in- dizivelmente rica e fecunda”®. Sua maneira de se posi- cionar diante da histéria é 0 oposto do “curioso querer saber tudo” que caracteriza a decadéncia helenistica”. £ uma relagdo instintiva, irrefletida, propria das criancas, como Nietzsche frequentemente os chama, que os faz conhecer de maneira ndo histérica e espontanea o con- tetido de cultura da polis”. Em uma pagina da segunda Extempordnen, nao liga- da aos gregos, a relacdo correta com o passado é compa- 40. Da utilidade e desvantagem, 8. 41. Opere, vol. IIL, tomo 3, parte 2, p. 6. 42. Opere, vol. IV, tomo 1, p. 127. 22 DIALOGO COM NIETZSCHE rada 4 da arvore com as pr6prias raizes: nao as conhece, mas as sente“. Em um longo apontamento da mesma época, Nietzsche tenta representar a situagao de uma ci- vilizagdo ndo acometida da doenga histérica como a nos- sa, em que o sentido histérico seja abrandado como no momento mais feliz da histdria dos gregos: “Logo atras do presente comega 0 escuro: nele se movem como som- bras incertas grandes figuras, que aumentam desmesu- radamente, que agem sobre nés, mas quase como he- rdis, ndo como realidades claras e comuns de todos os dias. Toda tradicdo é quase inconsciente como as carac- teristicas hereditdrias: as pessoas vivas sdo, em suas ag6cs, as demonstragées da tradigao que nelas age, e a historia é visivel em carne e osso, nado nos documentos amarela- dos e como meméria de papel.”** Enquanto a histéria como ciéncia implica um distanciamento fundamental do passado, sua reducdo a objeto de um conhecimento preciso e abstrato, os mitos heroicos séo precisamente um modo de “sentir” as préprias raizes, menos clara- mente, porém de modo mais vital, pois o passado vive como tradicao e nao foi objetivado. “S6 onde cai aluz do mito, a vida dos gregos resplandece.”* O proprio poli- teismo dos gregos, por outro lado, é um sinal de seu vi- ver no presente, sem a preocupagao de uma ordem defi- nitiva ou de um fundamento Ultimo; um sinal de grande prodigalidade do espirito". : Todas essas caracteristicas, contudo, estaéo bem lon- ge de dar uma ideia clara do que Nietzsche entende por postura correta diante do passado; elas devem ser consi- 43. Da utilidade e desvantagem, 3. 44. Opere, vol. If, caderno 29, fr. 172. 45. Humano, demasiado humano, 1, n. 261. 46. Opere, vol. IV, tomo 1, p. 133. O NILISMO E 0 PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 23 deradas mais como tentativas, que servem para esclare- cer ulteriormente o conceito de doenga histérica ¢ 0 pro- blema que ela suscita. O mito no lugar da histéria como ciéncia representa apenas o sinal de uma relacgdo dife- rente com o passado, cuja verdadeira raiz ainda nao foi indicada. De resto, a segunda Extemporéinea, embora opo- nha a nossa civilizagao a civilizagéo nao histérica dos gtegos das origens, esta bem longe de rejeitar os instru- mentos modernos de conhecimento histérico: a historio- grafia monumental, a antiquéria e a critica, que mesmo néo sendo histéria icénica ou cientificamente “objetiva” tampouco sao relato mitico; sdo declaradas formas legi- timas de conhecimento do passado, desde que subordi- nadas ao elemento nao histérico, ou seja, postas a servi- go da vida. O que permanece nao ulteriormente defini- do é precisamente esse elemento nAo histérico. As conclusdes do ensaio também acrescentam pou- co ao que foi visto. O que se trata de fazer é inverter a re- lado histéria-vida. Essa inversdo implica uma avaliacio distinta da fungao do individuo e uma intervencao de forgas eternizantes como a arte e a religido”. A doenca histérica leva a ver o individuo como perfeitamente in- serido no processo universal, expressao de seu tempo, determinado pelas condigSes em que é obrigado a viver, justificado apenas no desenvolvimento geral; a vida, por sua vez, € o contrario: criatividade, novidade, irredutibi- lidade daquilo que nasce aquilo que existiu. A verdadeira hist6ria é a histéria dessas novidades, a histéria dos ho- mens superiores que souberam criar e justificar-se por si s6s, a histéria dos génios™. Essa criatividade dos indivi- 47. Da utilidade e desvantagem, 10. 48. Da utilidade e desvantagem, 9. 24 DIALOGO COM NIETZSCHE duos é possivel apenas em uma atmosfera nao histérica, no esquecimento do devir. Precisamente a criagaéo dessa atmosfera exige a presenga de “forgas eternizantes” como a arte ea religiao. Elas agem como fontes de ilusdo, ca- pazes de fazer esquecer, ao menos por momentos, o de- vir, pondo o homem acima da histéria do tempo. S6 nes- se sentido Nietzsche fala aqui de eternidade, de modo que ela nao se distingue da ilusdo necessdria para a con- tinuacao da vida. O fato de cle buscar obscuramente um outro c mais pleno significado do conceito como solugao do problema do tempo pode ser inferido, por exemplo, de uma nota pertencente ao projeto de outra Extempordnea, que aca- bou nao sendo escrita, intitulada Die Philosophie in Be- drangniss, redigida no outono de 1873, ou seja, pouco antes da publicagio do ensaio sobre a histéria. Nesse apontamento, os problemas que a época pée para a filo- sofia estéo de algum modo vinculados com o problema da relacio entre o tempo e o eterno. Nietzsche vé uma das caracteristicas dominantes do homem de seu tempo na pressa, Hast, que alids é um produto das exigéncias so- ciais: o Estado, de fato, exige que se viva no instante; nao existe “um construir para a eternidade”®. Também acer- ca da funcdo da arte como antidoto para a doenga hist6- rica é preciso observar que a arte j4 tem para Nietzsche, mesmo antes das Consideragées extempordneas, além do significado vinculado com a ilusdo, um outro significado, que conservard até as ultimas obras: “Contra a historio- grafia icénica e contra as ciéncias naturais séo necessa- rias extraordindarias forgas artisticas”, escreve em um apon- tamento de 1872". Nesse contexto ja existe algo mais 49. Opere, vol. IIL tomo 3, parte 2, p. 341. 50. Opere, vol. III, tomo 3, parte 2, p. 8. O NHLISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 25 que a arte como ilusdo que faz esquecer o devir: ela tem antes a funcgdo de criar as perspectivas unitarias que constituem a fisionomia e 0 estilo préprio de uma épo- ca ou de uma personalidade. Em outras palavras, a arte ésindnimo da prépria criatividade da vida, que se opde ao reflexo mecanico do passado ou do mundo natural. E o mesmo conceito de arte que se encontrara em A von- tade de poténcia’'. A propria fisionomia de uma civiliza- c&o livre da doenga historica ¢ definida de uma manei- ra que a aproxima da obra de arte: nela a cultura tornou- -se natureza, atingiu-se.a perfeita unidade entre o in- terno e o externo”. Nem o conceito da inverséo da relagdo_ histéria~ ~vida, nem a evocagio do exemplo dos gregos resolvem satisfatoriamente o problema do es war e da temporali- dade. A evocacdo dos gregos, alias, vale como simples evocagao ideal, e o préprio Nietzsche esta bem cons- ciente de que nao é determinante: em virtude do cris- tianismo e sobretudo de sua decadéncia, nossa época tornou-se incapaz de compreender a antiguidade; por isso a idcia de uma imitagao dos antigos ¢ de uma recu- peracdo de sua mentalidade é desprovida de sentido. Nao apenas isso: a época da doenga histérica é um fato que nao pode ser anulado, ainda que se deva pensar em superd-lo; a superagdo devera levar em conta que “nds vivemos no tempo em que diversas interpretagdes da vida convivem uma ao lado da outra...O homem do fu- turo ¢ o homem europeu”™. Uma superagdo da doenca histérica nao pode ser um retorno ao mito, que supunha 51. Cf. A vontade de poténcia, ns. 796, 853, 1; Heidegger, Nietzsche, cit., pp. 78-85, 206-15. 52. Da utilidade e desvantagem, 10. 53. Opere, vol. IV, tomo 1, p. 113. 26 DIALOGO COM NIETZSCHE condigdes de civilizacéo radicalmente diferentes das nossas, e especialmente uma estreiteza de horizontes de vida que hoje se perdeu e foi substitufda pelo cosmopo- litismo. Nessa situagdo, a tarefa do historiador e do fildlogo é antes de tudo uma tarefa negativa: iluminar sem pudor a irracionalidade que domina os fatos humanos, destruir toda visio providencialista da histéria*. Mas também essa conclusao é insuficiente diante da amplitude do pro- blema de uma relagdo auténtica (se podemos usar tal ex- press&o) com o passado como é apresentado na segun- da Extempordnea e que s6 sera encaminhado para uma solugdo mais tarde, com o surgimento da ideia do eterno retorno. Niilismo e historicismo Nas obras do Nietzsche maduro, em que a anilise da decadéncia da nossa época se amplia no grande pa- norama do niilismo como carater geral da histéria da ci- vilizagao europeia e nao apenas europeia, a doenga his- t6rica continua a ser um dos aspectos fundamentais pelos quais o niilismo se define em sua origem e desenvolvi- mento. Vimos como na segunda Extempordnea a expressao “doenga histérica” servia para indicar os dois significa- dos de nosso conceito de historicismo, ou seja, a atribui- co de uma ordem providencial a histéria ou a absoluta telativizagao de toda manifestacgao do homem na época em que surge, sem que esta seja inserida na ordem ra- cional mais ampla do devir. Doenga histérica é, para o 54. Opere, vol. IV, tomo 1, p. 125. ONIILISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 27 Nietzsche da segunda Extemporénea, tanto o historicismo providencialista, no fundo ainda ecristéo, quanto o relati- vismo absoluto de quem vé a realidade como um fluxo em que tudo o que nasce é digno de perecer. Ora, preci- samente o historicismo entendido nesses dois significa- dos, um dos quais é 0 desenvolvimento légico do outro, é uma das diretrizes principais no caminho que leva ao niilismo. Este, de fato, em seu significado mais geral, se define como a perda de todo sentido e valor do mundo; chega-se a esse ponto através de um desenvolvimento que engloba o socratismo, o platonismo, o cristianismo. Na verdade, 0 niilismo nao é apenas o reconhecimento da auséncia de qualquer significado ¢ de qualquer ordem racional no devir; jé é niilismo, enquanto representa o primeiro passo que levard necessariamente aos seguin- tes, a atribuicdéo de um sentido e de uma finalidade ao mundo, a justificagéo daquilo que acontece mediante qualquer raz4o que est4 além ou acima do préprio fato. O desenvolvimento pode ser esquematizado deste modo: a racionalidade c o valor existem enquanto ordem fina- lista da historia (historicismo como providencialismo); mas a experiéncia histérica (precisamente a Historie como conhecimento objetivo do passado, que em nossa época aumentou enormemente a amplitude e a profun- didade de seu campo de investigagéo) mostra que, na realidade, no devir histérico nao existe nenhuma ordem providencial ou nenhum sentido abrangente™; portanto, em absoluto, ndo existem ordem, sentido e valor das coi- sas, e o homem perde qualquer ancoradouro que possa dar alguma direc&o a sua acéo no mundo: “Quando se poe o valor fundamental da vida (das Schwergewicht des 55. A vontade de poténcia, n. 12 A. 28 DIALOGO COM NIETZSCHE Lebens) nao na propria vida, mas no ‘além’, ou seja, no nada, tira-se da vida qualquer valor fundamental.”* Niilismo e historicismo desenvolvem-se assim pa- ralelamente e representam a premissa do filosofar de Nietzsche. Tanto em relagao ao sentido histérico como em relac&o ao niilismo, encontra~-se em Nietzsche um duplo juizo, ao mesmo tempo negativo e positivo: nega- tivo na medida em que é indicador de fraqueza e de per- da de iniciativa por parte do homemn; positivo na medi- da em que, com o fim das construges providencialistas da histéria, o campo esta livre para uma perspectiva nova que restitua ao homem a plena liberdade de iniciativa no mundo histérico”, O niilismo como fisionomia geral da nossa civiliza~ cao e o historicismo que é um de seus componentes nao indicam apenas um movimento geral da cultura, mas matcam profundamente a psicologia’ individual do ho- mem moderno. Uma das caracteristicas do homem con- temporaneo em que Nietzsche mais insiste, sobretudo nos escritos reunidos no Wille zur Macht, é a incapaci- dade de sair do imediato, de desejar em relagéo com o eterno: mesmo na segunda Extemporénea, esse vinculo com o imediato e a restrigéo do desejo A esfera egoista dos pequenos interesses eram paradoxalmente ligados a doenga historica. Perdida a fé em uma ordem providen- cial e imerso no fluxo irrefredvel das coisas,.o homem vive sua vida psiquica segundo um “tempo” que musical- mente seria possivel definir como um prestissimo; é hi- 56. O anticristo, n. 43; ¢ cf. 0 Prefacio de A vontade de poténcia: “De- pois de Copérnico, o homem resvala do centro para 0 x”. 57. Sobre o niilismo como sinal de fraqueza, mas também de for- ga, cf. A vontade de poténcia, n. 585 B; sobre o sentido histérico, cf. A gaia ciéncia, n. 337, e Opere, vol. V, tomo 2, p. 457. ONHLISMO E 0 PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 29 ersensivel e incapaz de nao reagir logo: o que ndo é um sinal de forca, mas de fraqueza, porque significa que, no fundo, a acéo nunca é uma iniciativa do agente, mas apenas resposta a um estimulo externo que a dirige c a condiciona*. Mesmo a incapacidade de accitar a tradigao, que ca- racteriza a mentalidade moderna, faz parte desse qua- dro: a tradigaéo aparece apenas como algo de que nos de- vemos libertar, e que eventualmente aceitamos como peso inelutavel, mas que nao desejamos. Isso indica uma incapacidade da vontade de querer além do momento, em uma perspectiva que abarque longos periodos passa-~ dos e futuros”. Essa incapacidade de estabelecer uma re- lacéo correta com o passado é acompanhada por técni- cas artificiais e fantdsticas de recuperd-lo: 0 alcool, por exemplo ~ no Wille zur Macht Nietzsche menciona mui- tas vezes a difusdo do alcoolismo —, ¢ uma maneira de se reportar a graus de desenvolvimento cultural superados”; -deve-se dizer o mesmo, do ponto de vista psicoldgico, do amor pela hist6ria, que, por meio da imaginagado, nos permite uma insergéo nas mais diversas situagdes do passado". Tudo isso, quer o que diz respeito ao historicismo como carater geral da civilizagéo moderna, quer 0 aspec- to psicolégico desse historicismo, nao vai muito além do que se disse ja na segunda Extempordnea. O que é rele- vante é a insergao da doenca histérica no quadro geral do niilismo, porque justamente por esse caminho os 58. A vontade de poténcia, ns. 71 e 45. 59. A vontade de poténcia, n. 65. 60. Opere, vol. VIIL, tomo 3, pp. 30-1. 61 Aurora, n. 159. 30 DIALOGO COM NIETZSCHE problemas que ela suscita e que na segunda Extempora- nea haviam permanccido irresolutos serao esclarecidos e encaminhados para uma solugao. O que na segunda Ex- temporanea formava a raiz da doenga histdrica era o constitutivo pér-se em relagaéo do homem com o passa- do e a impossibilidade de evitar que o es war acabasse por eliminar todo o sentido de.sua vida e de suas inicia- tivas. Nem a aspiragao da civilizacdo grega das origens, nem a conclus&o que afirmava a necessidade de inver- ter a relacdo histéria-vida pela intervengao de “forcas eternizantes” como a arte e a rcligiéo haviam resolvido o problema em definitivo. Nas obras da maturidade, enquanto a doenga histérica em seu aspecto de fato cul- tural e psicolégico é apresentada como um dos diversos elementos por meio dos quais se define o niilismo™, 0 problema da relagéo com o passado e da luta contra o peso do es war assume, ao contrario, um alcance mais universal, torna~se 0 préprio problema do niilismo, e $6 com a solugdo deste o niilismo pode ser superado. Aquele significado universal do es war, com base no qual o préprio homem, e nao o homem de uma época hist6rica particular, era definido essencialmente como “um imperfeito jamais perfectivel”, e que no ensaio so- bre a histéria permanecia, contudo, em segundo plano, € agora considerado independentemente do problema particular da doenga histérica, define em geral o pré- ptio problema do homem e¢ de sua existéncia no mun- do que Nietzsche se propée resolver construindo o su- per-homem. O vinculo com o problema da temporalidade como problema constitutivo do homem enquanto tal permite 62. Cf. A vontade de poténcia, n. 12 A. O NULISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 31 também evidenciar outra caracteristica do conceito de niilismo, ou seja, 0 fato de que ele indica ao mesmo tem- poa época histdrica particular de decadéncia em que vi- vemos e uma condicéo universal e permanente, uma for- ma de “alienacdo”, se se quiser, que esté ligada a essén- cia do homem e nao depende de circunstancias histéri- cas especificas. O es war e o problema da relagao com o passado, de fato, sdo a raiz da doenga histdrica, mas ao mesmo tempo constituem a propria esséncia do homem; assim, o niilismo é certamente ‘um fenédmeno histérico cujo desenvolvimento pode ser indicado, mas é também tout court a condigao universal do homem que nao resol- yeu o problema do es war. Pode-se ver uma comprova- gao disso no fato de que Nietzsche ndo conhece uma época histérica nao niilista: o niilismo comega com Pla- téo, e antes ainda com Sdcrates. Onde quer que tenha havido pensamento, alias, ali dominou o espirito de vin- gancga™, que, como veremos em breve, é precisamente si- nal e consequéncia da incapacidade de resolver o pro- blema do es war ¢ de se libertar do peso esmagador do passado". Também a civilizagdo grega das origens, que no restante das obras da maturidade perde significativa- mente um pouco daquele valor paradigmatico que tinha nos primeiros escritos, é mais uma condigao desejada que uma situacgdo precisamente definida como fenéme- no histérico. 63. Cf. A vontade de poténcia, n. 765. 64. A relacao entre instinto da vinganca e problema da temporali- dade é estudada minuciosamente, ainda que com resultados diferentes dos nossos, por J. Stambaugh, Untersuchungen zum Problem der Zeit bei Nietzsche, Haia, Nijhoff, 1959, pp. 68-78. 32 DIALOGO COM NIETZSCHE O instinto de vinganca A existéncia de uma relacéo muito estreita entre nii- lismo e problema do es war é sugerida pelo discurso de Zaratustra intitulado “Da redengao”. Nele, aquilo de que o homem deve ser libertado para que ocorra uma reden- cao, ou seja, aquela renovacdo que deve tirar-nos do nii- lismo, € precisamente a pedra do passado, que aparen- temente é irreversivel: “Libertar aqueles que nos prece- deram, transformar todo ‘foi assim’ em um ‘cu quis que fosse assim’, eis 0 primeiro passo para a redencado.””° Em outro lugar, essa libertagdo do passado nao é apenas o primeiro passo, mas a prépria redengao: “Libertar no homem o passado, recriar todo ‘foi assim’ para que a vontade possa afirmar: ‘assim quis que fosse, assim de- sejarei que seja’... s6 isso Ihes ensinei a chamar de liber- tagao.”* No entanto, o querer para tras é uma tarefa que parece impossivel para a vontade. Ela se encontra em uma situacdo que nao escolheu, que nao depende dela e da qual nao consegue ver uma ordem qualquer: “Se meu olhar passa do presente para 0 passado, sempre encon- tro a mesma coisa: fragmentos, membros espalhados e casos horrendos, nunca homens. O presente c 0 passa- do aqui embaixo, meus amigos, me sao insuportaveis, e eu nao seria capaz de viver se nao fosse.um adivinho do que esta por vir. Um vidente, um resoluto, um ctiador ...“"” O passado contra o qual a vontade nada pode é 0 caos da situagao dada sem ser escolhida™. A libertagdo 6 po- 65. Zaratustra, I. “Da redencao”. 66. Zaratustra, II: “Das antigas e das novas tébuas”. 67. Zavatustra, II: “Da redencao”. 68. Passado, nesse sentido, sio por exemple os instintos; cf., por exemplo, Opere, vol. VII, tomo 1, parte 1, p. 285; vol. VIL tomo 2, p. 121. O NHLISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 33 deria ter lugar cm uma vontade criativa que pudesse re- criar o passado.transtormando 0 “foi assim” em um “eu quis que fosse assim”. Mas a vontade percebe que é im- possivel querer para tras: dessa impossibilidade nasce o espirito de vinganga, que constitui a passagem da expe- riéncia da impoténcia diante do passado A produgao de todas as manifestagdes que compédem o niilismo. O espirito de vinganga, no discurso de Zaratustra sobre a redencao, esta na base de toda a visio de mun- do que a vontade cria para si depois de ter experimenta- do a impossibilidade de querer para tras e, portanto, de se libertar do peso do passado. A vontade “sobre tudo aquilo que é capaz de sofrer vinga-se por nao poder agir retroativamente sobre o passado”. Mas vinganga nao é apenas isso; ela é a propria estrutura do ato com que a vontade se esforcga para subjugar o passado sem conse- guir: é vinganca no apenas aquilo que a vontade faz de- pois dessa experiéncia, mas essa propria experiéncia contém em si a forma essencial da vingan¢a. De fato, esta ¢ definida, na mesma pagina do Zaratustra, como “a aversdo da vontade ao passado e ao seu ‘foi assim’” (“des Willens widerwillen gegen die Zcit und ihr ‘es war’”}. Pode-se dizer que a tentativa de querer para tras e aimpossibilidade diante da qual a vontade se encontra so, mais que a origern, o arquétipo do espirito de vin- ganca, seu primeiro ato: nessa experiéncia, de fato, a vontade depara com efeitos cuja causa ndo pode domi- nar, efeito ela mesma de algo que ja est4 ali como fun- damento e origem daquilo que Ihe cabe ser ¢ fazer. Nas- ce nessa experiéncia a visdo do ser como estrutura de causa-cfeito, de fundante-fundado: o principio de cau- salidade, que domina nossa representagao do mundo, é expressao do instinto da vinganca, o mais profundo de 34 DIALOGO COM NIETZSCHE nossos instintos”. Em geral, “onde quer que se tenham buscado responsabilidades, quem as buscou foi o instinto da vinganga. Esse instinto da vinganga dominou a tal pon- to a humanidade por séculos que toda a metafisica, a psi- cologia, a representacdo da histéria e sobretudo a moral est&o marcadas por ele. Na medida em que o homem pen- sou, ele atrastou nas coisas o germe da vinganga. Atribuiu essa doenga até a Deus, despojou as coisas de sua inocén- cia, uma vez que pretendeu atribuir todo modo de ser a uma vontade, a intencdes, a atos responsdveis”™. O instinto da vinganga domina toda a mentalidade do homem ocidental, e talvez do homem.em geral; ¢ 0 principio de causalidade que é expressio dele mostra que nao é vinganga apenas a busca da responsabilidade em sentido préprio, mas qualquer busca de fundamento. Em toda forma de relacdo entre o homem_e 0 mundo se re- pete a experiéncia fundamental da vontade: o encontrar- -se diante de um “dado” que funda a situacéo, da prépria situagdo como nao escolhida por mim e pela qual algo ou algum outro é responsavel. Em cada um dos muitos ca- sos em que esta em agao 0 espirito de vinganga repete-se a “averséo da vontade ao passado e ao seu ‘foi assim’”, ou seja, o embate com alguma coisa que “ja é” e que nao pode ser objeto de criagdo por parte da vontade. Trés aspectos do niilismo E possivel esclarecer melhor a relacio do espirito de vinganga com as manifestagdes fundamentais que cons- 69. Opere, vol. VII, tomo 1, parte 1, p. 116. 70. A vontade de poténcia, n. 765. O.NHLISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 35 tituem o niilismo? Para fazer isso, é preciso antes de tudo tentar reunir tais manifestagdes sob alguns conceitos cs- senciais que nos permitam uma vis4o unitdria. Para tan- to, escolhemos um dos ultimos projetos formulados por Nietzsche para a organizacao da obra depois publicada postumamente como A vontade de poténcia, um projeto escrito no outono de 1888 e que pode assim ser conside- rado expressao “definitiva” de seu pensamento. Nesse projeto, 0 niilismo é reduzido a.trés manifestagdes es- senciais: “I. A libertacdo do-ctistianismo: o Anticristo. - IL A libertagao da moral: o Imoralista. — III. A libertacdo da ‘verdade’: o espirito livre. — IV. A libertagdo do niilis- mo: 0 niilismo como consequéncia necessaria do cristia- nismo, da moral e do conceito de verdade da filosofia.”” Cristianismo, moral e metafisica sio os componentes es- senciais do niilismo; e eles, como sabemos, sio domina- dos, como qualquer coisa que 0 homem pensou, pelo instinto da vinganga. No Anticristo, que nesse plano fi- guta como a primeira parte da obra, ¢ que foi efetiva- mente composto e publicado por Nictzsche, cristianis- mo, moral e metafisica cstdo estreitamente ligados entre si, unidos de modo bem claro, ainda que nao explicito, precisamente pelo conceito de vinganca, no significado, que vimos, de deparar com uma situacdo dada diante da qual nao se pode nada. O cristianismo, na invectiva que conclui o Anticristo, chega a ser identificado com o espi- rito de vinganga”. Antes que o cristianismo, o proprio espirito religio- _so em geral 6 expressao do instinto de busca do respon- savel que Nietzsche chama instinto de vinganga: nao ou- 71. Opere, vol. VIII, tomo 3, p- 359. 72. O anticristo, n. 62. 36 DIALOGO COM NIETZSCHE sando assumir pessoalmente a responsabilidade por sua condig&éo, o homem recorre a uma vontade alheia para atribuir essa responsabilidade’. Essa atitude nao surge apenas nas situagées de dificuldades, como busca do “cul- pado”: até um povo orgulhoso-e contente consigo mes- mo busca espontaneamente um Deus a quem agradecer. “A religidéo 6 uma forma de gratidao””"; mas gratidao e vinganga tém a mesma raiz”. No que diz respeito ao cristianismo em particular, todos os seus dogmas se apresentam como uma “histd- tia” destinada a explicar a condicéo humana mediante conceitos como os de criacado, pecado, pena e redencao: o homem com suas decis6es aparece nessa histéria ape- nas como 0 tltimo elo de uma corrente de fatos que es- capam 4 sua iniciativa”’. A busca de um responsavel por aquilo que somos é apenas uma mancira errada e falsa de formular a relagéo com o passado: nada podendo so- bre ele, a vontade procura atribuir-lhe alguma estrutura compreensivel; mas o reconhecimento e a aceitagdo de tal estrutura ndo s4o um modo de querer ativo, sdo an- tes um sinal de profunda fraqueza, um fato depressivo, que tira do homem toda dignidade, reduzindo todo seu agir a uma questaéo de Graga”. 73. A vontade de poténcia, n. 136. 74. O anticristo, n. 16. 7. Opere, vol. VIL tomo 1, parte 1, p. 83. 76. A vontade de poténcia, n. 224. O problema da relacdo entre Nietz- sche e 0 cristianismo 6 evidentemente muito mais complexe, como de- monstra, por exemplo, o préprio Anticristo, ns. 33-40. Sobre ele, vejam- -se, além do ja citado artigo de T. Moretri Costanzi: K. Jaspers, Nietzscite und das Christentum, 2. ed., Munique, 1952; E. Benz, Niefzsches Ideen zur Geschichte des Christentums und der Kirche, Leiden, 1956; B. Welte, Nietz- sches Atheismus und das Christentum, Darmstadt, 1958. 77. A vontade de poténcia, n. 136. O:NILISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 37 A propria fraqueza revela a “vontade de verdade” que caracteriza a metafisica: aqui o pressuposto é de que o mundo caédtico ¢ mutavel do devir tenha como funda- mento uma estrutura estdvel qualquer, um outro mundo ue seria o verdadeiro. A fé nessa estrutura é prépria #dos homens improdutivos, que ndo querem criar um mundo... Eles 0 colocam como dado e procuram fazer de tudo para chegar a cle. ‘Vontade de verdade’ como im- poténcia da vontade de criar”*. A vontade de verdade implica o medo do devir e.do movimento préprio dos homens mediocres que nado sabem dirigir e dominar as coisas e concebem a felicidade como imobilidade. Tam- bém e sobretudo a moral, enfim, é um produto do ins- tinto de vinganga, e isso em varios sentidos: em um pri- meiro sentido, o mais elementat, porque a moral crista que domina nossa mentalidade é um produto dos ho- mens inferiores que, diante da livre criatividade dos gran- des homens, criam uma tabua de imperativos em que dominam as virtudes do rebanho ec da passividade, pro- curando transformar eim sinais de superioridade moral aquelas que sdo caracteristicas de inferioridade e de fra- queza”. A caracteristica mais fundamental do espirito de vinganga, contudo, é visivel na prdpria estrutura da con- cepc&o de uma lei ou de uma ordem moral: ela significa, 78. A vontade de poténcia, n. 585. Cf. um trecho da ultima carta de Nietzsche a Burckhardt, escrita de Turim em 5 de janeiro de 1889, quan- do a loucura ja 0 acometera: “Care senhor professor, no fim eu teria preferido muito mais ser professor em Basileia que Deus; mas nao ou- sei levar tio longe meu egoismo particular a ponto de omitir, por cau- sa dele, a criagéo do mundo” (Carteggio Nietzsche-Burckhardt, trad. it. de M. Montinari, Turim, 1961, p. 41). 79. E essa, como se sabe, a tese de toda a Genealogia da moral; cf. especialmente o terceiro ensaio, “O que significam os ideais ascéticos”, ns. 14 ss. 38 DIALOGO COM NIETZSCHE na verdade, que “ha de uma vez por todas uma vontade de Deus que estabelece 0 que o homem deve ou nao deve fazer”; em que, para o problema do es war que nos interessa, € importante destacar a expressao “de uma vez por todas”. Se existe uma lei ou uma ordem moral dada, a vontade é imobilizada pot essa lei e nado pode mais ser criadora. A vontade de Deus, os dogmas da Bi- blia, a estrutura estdvel da verdade, a lei moral dada de uma vez por todas — séo todos modos em que se apre- senta a irreversivel pedra do es war, sio todas formas daqucle passado como ser-j4-assim contra o qual a von- tade se sente impotente e do qual deve libertar-se se de- seja ser criadora. Se queremos agora tentar compreender a relacio que existe entre cristianismo, moral e metafisica, de um lado — dominados em sua origem pelo instinto de vin- ganga -, e niilismo, de outro, temos de voltar a j4 men- cionada nota 12 do Wille zur Macht: \4 0 niilismo era atri- buido a trés causas essenciais, que constituem, alias, o desenvolvimento uma da outra. Prepara-se 0 advento do niilismo, escreve Nietzsche, quando se aitribui a histétia uma otdem providencial, j4 que se descobrird que essa ordem providencial nao existe, e entéo o devir perde sentido; em segundo lugar, prepara-se o niilismo quan- do, independentemente de objetivos e fins a serem al- cangados, se concebe o mundo e seu desenvolvimento como uma totalidade em que cada parte esta inserida em um conjunto sistematico (nao é facil distinguir esta se- gunda atitude da primeira: parece que, enquanto uma pode ser caracterizada como historicismo, esta deva ser entendida mais como monismo, termo que o préprio 80. O anticristo, n. 26. O NHLISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 39 Nietzsche usa nesse contexto): ¢ 0 conjunto que da valor aicada parte e-ao proprio homem. Mas, quando a ideia de tal sistema se revela falsa, entao as coisas e o homem perdem todo o valor. Uma vez que com o devir nao se atinge nenhum objetivo, e que sob a multiplicidade das oisas ndo se esconde nenhuma unidade total, surge a concepcao do caréter ilusério do devir e a fé em um ou-~ tro mundo, no mundo estdvel da verdade. Mas, com o passar do tempo, também este mundo se revela cons- trufdo pelo préprio homem segundo suas necessidades psicoldgicas: estamos na tltima e extrema forma do nii- lismo, a perda de fé no mundo metafisico, ou seja, da prépria verdade, ao menos em sua acep¢o tradicional". O que é subjacente a todo esse desenvolvimento é a atitude que jA reconhecemos na origem do cristianismo, da metafisica e da moral, ou seja, a busca de uma ordem, de uma estabilidade, de um valor independentes da von- tade. H sempre o instinto da vinganca que age: s6 porque a vontade se descobre incapaz de eliminar a pedra do es war, ela vai em busca de explicagdes e constrdi as vis6es de mundo que desembocarao necessariamente no niilis- mo. A necessidade do advento do niilismo depende do fato de que toda ordem do mundo independente da von- tade se revela ilusdria: pelo doloroso processo da anula- cdo dos valores e do reconhecimento da insensatez do mundo e da histéria, a vontade chega finalmente a essa conclusao. Eis por que, em Nietzsche, niilismo extremo e superacao do niilismo estao tao préximos que sao quase identificados, e ele se proclama “o primeiro niilista com- pleto, que viveu em si 0 niilismo até o fim”; para a von- 81. A vontade de poténcia, nm. 12 A. 82. A vontade de poténcia, Prefacio, 3. 40 DIALOGO COM NIETZSCHE tade, a perda das ilusdes pode significar ou a absoluta in- capacidade de ainda querer, ou o reconhecimento alegre | e criador do fato de que nao existem ordem, verdade e estabilidade fora da prépria vontade, e que o niilismo | deriva precisamente de ter desejado encontra-las a qual- | quer preco. Compreende-se, assim, por que a conclusdo | légica do desenvolvimento do sentido histérico ¢ da His- | torie deva ser, para Nietzsche, 0 riso"; o fato de nao exis- | tir nenhuma ordem fora da vontade significa que tudo | deve ser criado. No entanto, chegar a essa nova condigdo do espiri- | to, que é prépria do super-homem e se identifica coma _ libertagdo do instinto da vinganga, j4 que a vontade nao busca mais fundamentos ou responsabilidades fora de si mesina, implica sempre a solucéo do problema do es war. Para passar do niilismo em seu sentido negativo e destruidor ao niilismo completo, ou seja, ao niilismo su- perado, e para, a partir do reconhecimento da insensatez das coisas, chegar a consciéncia da criatividade da von- tade, é necessdrio ainda um passo, a solugao do proble- ma da temporalidade. No final do discurso sobre a re- dengio, quc tomamos como ponto de partida para estu- dar o conceito de vinganga, Zaratustra se faz a pergunta: “Quem ensinara a vontade a querer para tras?” Se devo admitir que nao apenas nao existe uma ordem nas coi- sas independente da vontade, mas também que essa or- dem pode ser criada pela prépria vontade, preciso des- cobrir uma estrutura da temporalidade diferente daque- la propria da mentalidade comum, para a qual o tempo se apresenta como uma série irreversivel de instantes, cada um dos quais é filho do outro; uma estrutura da 83. Além do bent e do mal, n. 223. Q NIILISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 41 temporalidade em que a vontade realmente possa “que- ret para tras”, que s6 pode liberta-la do instinto de vin- ganga e do niilismo. O eterno retorno como solucao do problema da temporalidade A doutrina do eterno retorno do idéntico, como é formulada no Zaratustra, deve representar justamente a solugdo desse problema, evidenciando uma estrutura da temporalidade que inverta o modo banal de ver o tempo e que torne possivel 4 vontade o paradoxo de “querer para tras”. Isso explica a importancia decisiva que adqui- re para Nietzsche essa doutrina, que é realmente o “pen- samento tinico”, como diz Heidegger, em torno do qual se articula toda a sua filosofia. Se de fato o niilismo, como nos pareceu, tem origem no espirito de vinganga e na relacdo da vontade com 0 es war, s6 a solucao do pro- blema da temporalidade podera valer como superagdo definitiva dele e como premissa para a construcao do su- per-homem. Contudo, se a ewige Wiederkehr deve ter esse sentido, a interpretacdéo puramente moral e a puramen- te cosmoldégica desta sao insuficientes: uma faz do eter- no retorno um critério de escolha referente apenas ao homem e a suas agdes (devo escolher aquilo que gosta- ria de escolher de novo para a eternidade); a outra afirma uma estrutura do mundo em que a escolha do homem ja nao tem sentido algum, em que ja nado pode haver nada 84. Cf. Nietzsche, cit., p. 396: a vontade de poténcia ou, 0 que é o mesmo (cf. p. 747), o eterno retorno, 6 o “pensamento tinico” de Nietzsche. 42 DIALOGO COM NIETZSCHE de novo e, portanto, nao pode existir vontade criadora, ao contrario do que prega Zaratustra no discurso sobre a redencao jé mencionado varias vezes. Na perspectiva de um eterno retorno como doutri- na cosmoldgica, o querer para tras seria apenas uma aceitagao do que ja ocorreu e do jd determinado. Nesse caso, a superacao do niilismo e a solugao do problema do es war s6 seriam alcangadas com um artificio dialético: a realidade permanece inalterada e a vontade, tendo reco- nhecido que nao pode ser de outro modo, a aceita. A pas- sagem do “foi assim” para o “eu quis que fosse assim” seria, portanto, um puro e simples ato de accitagéo da necessidade. No entanto, nao é esse 0 sentido da ewige Wieder- kehr que se depreende do grande discurso de Zaratustra em que a doutrina é enunciada com maior amplitude e vigor, aquele intitulado Vom Gesicht und Ratsel, na tercei- ra parte. Nessa pagina, Zaratustra relata uma visao tida em sonho: sobre uma montanha, ele viu uma grande porta da qual saem duas estradas que correm em dire- gdes opostas; tais estradas, contudo, nao. sao feitas de maneira que continuem ao infinito, cada uma na prépria diregdo, mas constituem um anel que se une precisa- mente sob a porta. As estradas sao o passado e o futuro; sobre a porta embaixo da qual o anel se une esta escrita a palavra Augenblick, instante. Esta pagina e o restante do relato de Zaratustra foram objeto de numerosas inter- pretacdes que nao discutiremos aqui. Basta destacar dois elementos bem evidentes: a doutrina da ewige Wieder- kehr € aqui enunciada precisamente como o inverso da visdéo comum do tempo, que 0 concebe como linha reta formada por uma sucessao irreversivel de instantes. £ nessa visdo do tempo que se fundamenta a impossibili- O.NHLISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 43 dade de inverter a pedra do passado, de querer para tras. Ao -contratio, 0 tempo é para Zaratustra um circulo, como diz o ando. Em segundo lugar, ¢ igualmente im- portante observar que, nessa estrutura circular do tempo, o.instante, ou seja,o momento presente, o tempo da de- ciso, representa o ponto em que o circulo de passado e futuro se une. “Olhe para este instante” — diz Zaratustra. —"Desta porta sai uma longa e eterna estrada que volta: atrés de nés jaz uma eternidade. Tudo 0 que pode correr nao deve ja ter uma vez percorrido essa estrada? Tudo o que pode acontecer nao deve ter ja uma vez ocorrido, ter- -se realizado, ter transcorrido?... E nao est&o as coisas estreitamente entrelagadas de tal modo que este instan- te arrasta consigo todas as coisas vindouras? Portanto tam- bém a si mesmo?”* » A primeira consequéncia da estrutura circular do tempo é, de um lado, que aquilo que é e sera deve ne- cessariamente jd ter sido, fazendo com que o passado domine e determine de algum modo o futuro; mas, de outro lado, precisamente em virtude da propria estrutu- ra circular, o futuro nao deixa de ter influéncia sobre o passado, determina-o na mesma medida em que por ele é determinado. Se o discurso se interrompesse aqui, no entanto, estariamos diante de um enigma sem solucéo ou até mesmo de uma proposicao sem sentido, que po- deria valer no maximo como simples inversio polémica da visio banal do tempo. O que da significado a doutri- na é a fungao que nela exerce o instante. Estabelecida a estrutura circular do tempo, cai a perspectiva “retilinea” em que 0 passado podia ser um peso irreversivel sobre os ombros do presente e do futuro, com toda sua forga 85. Zaratustra, III: “Da visdo e do enigma”. 44 DIALOGO COM NIETZSCHE determinista; mas a relagao de reciproca determinagdo entre passado e futuro sé se torna possivel a partir do presente como momento da decisio. Este nao é mais simplesmente um ponto na linha que leva do passado ao futuro, que adquire sua fisionomia apenas em relagao com 08 outros pontos e que por si s6 nao tem consistén- cia; em vez disso, ele leva consigo todo o futuro e, por- tanto, também todo o passado, esté em uma espécie de relag&o imediata com a totalidade do tempo, ou seja, com aquilo que Nietzsche entende por eternidade. O instan- te assim concebido realiza a exigéncia que era expressa, mesmo que obscuramente, pelo conceito de Un-histor- isches da segunda Extempordnea: ele nao se define com relag&o ao passado e ao futuro, mas passado e futuro ad- quirem fisionomia e sentido apenas em relagdo a ele. A libertacéo do instinto de vinganea nado é assim, como poderia parecer, uma simples mudanga de atitude da vontade diante da inelutavel necessidade da estrutu- ra do mundo: esta continuaria a ser uma maneira de ver as coisas influenciada pelo espirito de vinganga, porque suporia a existéncia de uma ordem dada a qual a vonta- de teria apenas de se adaptar ou, melhor ainda, de se re- signar. Ao contrario, a ewige Wiederkehr nao equivale de algum modo ao determinismo no sentido comum do ter~ mo: “O determinismo: eu mesmo sou o destino.e a con- dicdo de inteitas eternidades de existéncia.”“ O instante traz consigo todo o passado e todo o futuro: cada mo- mento da histéria torna-se decisivo para toda a eterni- dade: “Em cada instante a existéncia comega... O centro esta em toda a parte.”” 86. Opere, vol. VIL, tomo 1, parte 2, p. 265. 87. Zaratustra, Il: “O convalescente”, 2. Q'NIILISMO EO PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 45 Poderfamos observar que, se cada instante ¢ decisi- yo, nenhum o ¢, ja que todos o sao. Mas mesmo o falar de todos os instantes corre o risco de ser uma maneira de pensar ligada precisamente a visao retilinea do tempo, em que os momentos podem ser postos em fila e abar- cados com um tinico ato de pensamento. Ao contratio, se nao existe uma ordem desse tipo, nado tem sentido co- locar o problema da relagdo cntre um instante e outro: cada um é sempre o ponto culminante, o “meio-dia” da historia do universo, aqucle em que se decide a eterni- dade“. S6 sera possivel falar de passado e de futuro em sentido histérico em funcao do instante assim entendi- do: o tempo como série de momentos sucessivos somen- te tem realidade a partir do instante que esta em uma re- lacio imediata com a eternidade. Tudo isso, é evidente, representa a premissa de uma interpretagéo da doutrina do eterno retorno, ¢ assim quer continuar a ser: em vista disso, era preciso mostrar como, partindo precisamente do problema da tempora- lidade, € possivel chegar a uma compreensao da ewige Wiederkehr que evite a unilatcralidade das interpreta- cées fisico-cosmolégica e moral. A dificuldade de saber ao.certo aonde esse caminho deve conduzir depende do fato de que percorré-lo exige um abandono da repre- sentagao habitual das relagdes entre vontade humana, 88. Opere, vol. V, tamo 2, p. 396. Na existéncia “hd sempre um mo- mento em que, primeiro em um, depois em muitos, em seguida em to- dos, se ilumina o pensamento mais poderoso, o do cterno retorno de to- das as coisas: esta 6 a cada vez a hora do meio-dia para a humanidade”. A “descoberta” do eterno retorne nao ocorre em determinada época histérica, mas refere-se a cada existéncia humana. Quando a decisio é vista nessa relagao com o eterno, 6 sempre meio-dia. Cf. também vol. V, tomo 2, p. 514. “A partir do momento em que ha este pensamento (0 do eterno retorno), todas as cores mudam, e ha outra histéria.” 46 DIALOGO COM NIETZSCHE tempo e mundo, representacdo tao profundamente ar- raigada em nossa mentalidade e que, no dizer de Nietz- sche, é inteiramente inspirada no instinto da vinganga. O amigo que Zaratustra, em seu discurso, aconselha amar, e que representa o super-homem, € aquele “em que reside um mundo completo”; o mundo se desen- volve e se desenrola por ele”. Em outro lugar, Nietzsche escreve: “Quando criei o super-homem, coloquei em torno dele o grande véu do devir e fiz brilhar sobre ele o sol do meio-dia.”” Oesclarecimento do significado da ewige Wiederkehr como inversdo da temporalidade banal prépria da doen- ca histérica e do espirito de vinganga exige um esclareci- mento da nova relacéo que se instaura, nessa perspecti- va, entre a vontade do homem e o mundo, que Nietzs- che define como vontade de poténcia’’. $6 no ambito dessa nova relagdo sera possivel dar um significado sa- tisfatério a certas proposicdes em que Nietzsche parece resumir todo o contetido, mas também todos os parado- xos, de sua doutrina: “Superagao do passado e portanto 0 esquecimento reparador, 0 divino circulo ... Supremo fatalismo, idéntico porém ao acaso ¢ A criatividade. (Ne- nhuma hierarquia de valor nas coisas, mas antes de tudo criar)’”"; e ao discurso em que Zaratustra faz uma espé- cie de balango do préprio itinerdrio espiritual: “Alma mi- nha, ensinei-te a dizer ‘hoje’ como ‘outra vez’.e ‘uma vez’, a dancar tua ciranda sobre todo ‘aqui e ali’ ... Dei-te também a liberdade de retroceder as coisas criadas ¢ as 89. Zaratustra, I: “Do amor ao préximo”, 90. Opere, vol. VIL tomo 1, parte 1, p. 197. 91 A vontade de poténcia, n. 1.067. 92. Opere, vol. VII, tomo 2, p. 271; ef. também vol. VIL, tomo 1, par- te 2, p. 174. 0 NILISMO E O PROBLEMA DA TEMPORALIDADE 47 jncriadas: e quem conhece como tu a voltipia das coisas or vir? Despojei-te da obediéncia, das genuflexdes, das senilidades; dei-te o nome de ‘reviravolta da fatalidade’ e ‘destino’ ... Chamei-te ‘destino’, ‘orbe da orbe’, ‘cordao umbilical do tempo’ ... onde mais, como em ti, 0 passa- do e o futuro se tocam?””" 93. Zaratustra, III: “Do grande anelo”. ANISAO DE MUNDO DE NIETZSCHE O problema do horizonte “E assim o homem, crescendo, foge de tudo aquilo que outrora o restringia; nao é necessario que quebre vio- Jentamente as amarras, j4 que de repente, ao comando de uma divindade, elas caem por si sds. E onde esta entao a argola que ainda o reprime? FE 0 mundo, ou Deus?” Um discurso sobre a maneira como Nietzsche vé o mundo deve tomar como ponto de partida esse frag- - mento autobiografico, escrito aos 19 anos de idade, nado . apenas por motivos historicos e cronoldgicos, para tracar desde seu nascimento a perspectiva filosdfica nietzschia- na, mas porque esse fragmento esta repleto de uma for- ¢a profética singular e pode muito bem ser tomado para indicar, também e precisamente em seu carater de pro- blematicidade aberta, 0 significado abrangente dessa fi- losofia. Os intérpretes que, como Léwith, é recentemen- 1. De um fragmento autobiografico datado de 18 de setembro de 1863, in Werke, Munique, ed. Schelechta,1956, vol. III, p. 110. 50 DIALOGO COM NIETZSCHE te Deleuze e Fink (por mais que estes tiltimas o tenham feito de maneira mais matizada), tendem a uma solugdo do problema favordvel ao mundo, embora tenham mui- to boas raz6es para sustentar tal interpretagdo, nao cap- tam o espirito mais profundo do pensamento nietzschia- no. Bastaria, para confirma-lo, o preambulo da carta que Nietzsche escreveu de Turim a Burckhardt no infcio da loucura: “Caro professor, no fim cu teria preferido ser pro- fessor em Basileia a ser Deus; mas nao ousei levar meu egoismo privado tao longe a ponto de omitir, por causa dele, a criagdo do mundo.”? Pode-se atribuir essa carta 4 loucura: mas de tom nao muito diferente sdo intimeras outras paginas de ou- tras obras nietzschianas, como sobretudo Ecce homo, que também sao lidas como obras confidveis e passiveis de interpretagaéo. O tom paradoxal e “escandaloso” dessas afirmag6es 6, na verdade, comum a todos os escritos de Nietzsche, especialmente aos do Nietzsche maduro. A dificuldade de aceita-los como dignos de interpretacdo e de discussao nao puramente clinica nasce mais do fato de que a totalidade desse pensamento entra em choque com nossos modos de pensar mais arraigados, questio- nando-os violentamente. Por esse motivo, também é jus- to dizer que a loucura, clinicamente comprovada, de Nietzsche nao é um evento “casual” de sua biografia, mas tem uma ligagao essencial ¢ constitutiva com seu esfor- Go filos6fico’. Nessa perspectiva, a loucura de Nietzsche 2. A tradugao italiana da carta a Burckhardt encontra-se em Car- teggio Nietzsche-Burckhardt, cit., p. 41. 3. Sobre a ligacdo entre loucura e antincio de novos valores, ha um longo aforismo de Aurom, o de mimero 14, no qual Nietzsche pare- ce reconhecer que, em linha geral, os grandes anunciadores de novas visdes do mundo sempre foram loucos; ou, pelo menos, acabaram por ‘AVVishO DE MUNDO DE NIETZSCHE 51 é apenas um sinal ou uma confirmagao exterior de sua tadical impossibilidade de pertencer ao mundo a que per- tencemos. is» Parece-me util, pata compreender esse pensamento tao 'polémico e tao aberto a mal-entendidos (muitos: o tnais clamoroso, como se sabe, é aquele que faz de Nietz- sche, espirito europcu, se é que houve um, o profeta do jazismo), comegar procurando definir qual é a “visdo de niundo” de Nietzsche, ¢ antes de tudo o prdprio concei- to de:mundo. A partir desse conceito, teremos, em uma patte significativa, 0 conjunto da perspectiva filosdfica nietzschiana. Entre “mundo” e “visio de mundo” hd no ensamento de Nietzsche uma ligac&o toda particular. De fato, sua filosofia nao é apenas uma viséo de mundo nossentido em que essa expressdo se aplica a toda filoso- fia que, dizem, é sempre uma Weltanschauung. Nessa ex- ptessao, subentende-se, em geral, que o mundo é algo dbvio, dado comumente a todas as filosofias, e que as di- ferencas entre as diversas doutrinas nascem precisamen- té como diferentes modos de ver, apresentar e conceber uma realidade que é fundamentalmente a mesma (ou, pensa-se, tem de ser a mesma se deve existir uma filoso- fia como visio verdadcira do mundo). Ora, em Nietzsche a filosofia é visio de mundo na medida em que, antes de tudo, é 0 questionamento do mundo e do préprio conceito de Weltanschauung’. E por se considerar ou fazer com que os considerassem loucos. E precisamen- te porque, ao menos no mundo antigo, a loucura parecia algo divino, ‘que colocava 0 louco acima da lei, ela Ihe dava o diteito de modifica-la. 4. O fato de Nietzsche ser o profeta de uma época caracterizada, entre outras coisas, pela luta das Weltanschauungen é uma tese de Hei- degger: ver seu Nietzsche, cit., livro primeiro. De Heidegger, cf. também Liepoca dellimmagine del mondo (1938), in Sentieri interrotti (1950), trad. it. de P. Chiodi, Florenga, La Nuova Italia, 1984, pp. 71-101. 52 DIALOGO COM NIETZSCHE isso que os dois pontos extremos da busca de Nietzsche podem muito bem ser assinalados pelos dois fragmentos que reproduzi, o fragmento autobiografico de Nietzsche aos 19 anos e a carta a Burckhardt escrita vinte e seis anos depois. No primeiro desses textos, o mundo é um problema no sentido em que nos perguntamos se é esse o ambito que contém o homem mesmo quando caem todas as perspectivas provisérias e particulares. No se- gundo, o mundo permanece um problema, no sentido de que cabe ao homem (se quisermos, ao filésofo) cria-lo, tornando-se de algum modo Deus, por sua vez. Entre esses dois extremos, que nao por acaso caracterizam-se pela presenga dos mesmos dois termos, o mundo e Deus, realiza-se a especulagdo nietzschiana que é o desenvol- vimento das linhas indicadas pelo fragmento autobio- grafico de 1863 até as posicGes manifestadas na carta es- crita de Turim em 1889. A pergunta que enccrra o fragmento autobiografico adquire seu verdadeiro significado especulativo ¢ profé- tico especialmente se atribuimos 4 constatacao da queda das amarras nao apenas o sentido psicolégico e indivi- dual que ela tem literalmente, mas também o sentido mais amplo, explicitado por toda a obra nietzschiana sub- sequente, de balanco do pensamento europeu, de histé- ria do niilismo. O que o Nietzsche de 19 anos viveu e descreve antes de tudo como um fato referente a propria consciéncia — e que, psicologicamente, 6 uma experién- cia comum, a sensagao de que, 4 medida que se amadu- rece, desaparecem as amarras (mas também as fortale- zas protetoras) que até certo momento haviam definido com clareza 0 Ambito de nossas escolhas e as orientacdes de nossas decisées —, ele passar4 a constaté-lo e a revi- vé-lo, no decorrer de sua obra, como fendmeno de toda uma civilizagao, aquela civilizagao europeia que tem ini- "jy VISAO.DE MUNDO DE NIETZSCHE 53 -cio com Sécrates ¢ se encerra com ele, Nietzsche, “o pri- emeiro niilista completo”’ e, por isso mesmo, também o \primeiro a se livrar do niilismo. | Niilismo é justamente o nome que Nietzsche da a : esse processo e ao seu resultado: assim como o jovem eque viu desaparecer ao seu redor e dentro de si todas as -amatras e os “sistemas” que o mantinham preso se per- “gunta 6 que ainda existe, contudo, para constituir o ho- sizonte dentro do qual colocar a.prépria vida, assim a ci- yilizacéo europeia, com 0, desaparecimento progressivo dos mitos, da filosofia, da propria religido que a impul- -sionaram e a guiaram em seu “desenvolvimento” que vento aparece na verdade como um processo involutivo ou, melhor ainda, como um devir sem sentido unitario, ainda que capaz de levar a um novo inicio ~ essa civili- -gac&o agora “resvala do centro em diregao a x”. A de- -ntincia desse balanco falimentar, comum a muitas dou- trinas filoséficas e a muitas poéticas de carater profético da segunda metade do século XIX e do século XX, nao é em Nietzsche o resultado de uma operacgao puramente intelectual de cobranga do mundo, uma espécic de cogi- to. cartesiano (o qual, segundo Nietzsche, nao é radical o suficiente), mas resultado de uma meditacao sobre a cul- tura e sobre a mentalidade ocidental que ocupa toda sua vida de pensador ¢ que constitui, quantitativamente, a parte mais relevante de sua obra. Foi por isso, entre ou- tras coisas, que Nietzsche péde aparecer como um “mo- ralista”, termo com o qual geralmente se pretende indi- car uma espécie de jornalista de alto padrao, que nos re- vela os limites e os profundos segredos de nossos tabus 5. A vontade de poténcia, prefacio, n. 3. 6. A vontade de poténcia, “O niilismo europeu”, n. 1. 54 DIALOGO COM NIETZSCHE sociais e culturais, sem contudo ir muito além desse exer- cicio de acuidade. Eu diria que quem considera Nietz- sche dessa maneira nao dé nenhuma importancia a per- gunta com que se encetra o fragmento autobiograficd de 1863, aquela sobre o horizonte dentro do qual se situam e adquirem sentido os varios fatos é o futuro das Welt- anschauungen. Em outros termos, Nietzsche é um “mo- ralista” s6 enquanto é antes de tudo um metafisico: a so- lugao do problema, ou pelo menos a apresentacao dele, indicada pela carta a Burckhardt, com toda sua aparén- cia de paradoxo e sua suspeita de loucura, ainda é sua resposta de metafisico 4 questao aberta pelo. balango fa- limentar da cultura ocidental. Balanco do niilismo: 0 mundo verdadeiro transformou-se em fabula Quais sdo as “vozes” desse balanco, ou seja, qual é, em suas linhas essenciais, a histéria do niilismo? Nietz- sche fornece uma indicacao sucinta dessas linhas em um capitulo da Gétzendammerung que, significativamente, traz o titulo “Wie die wahre Wel endlich zur Fabel wur- de” [Como 0 mundo verdadeiro acabou se transforman- do em fabula]. “1, O mundo verdadeiro ao alcance dos sdbios, dos picdosos, dos virtuosos — que vive neles, é eles mesmos. — 2, O mundo verdadeiro, por ora inatingivel, mas pro- metido aos sdbios, aos piedosos, aos virtuosos. (A ideia prtogride, torna-se mais sutil, mais fugidia e insidiosa — fe- miniza-se, torna-se crista.) -3. O mundo verdadeito nao alcangavel nem demonstravel, néo mais objeto de pro- messa, mas ja, enquanto pensado, presente como con- visio DE MUNDO DE NIETZSCHE 55 ‘solo, obrigacao, imperativo. (No fundo sempre o velho “gol mas através. da névoa da sképsis; a ideia tornada su- blime, palida, nordica, konigsberguiana.) ~ 4. O mundo dadeiro: inatingivel? Em todo o caso, nao alcangado. ~Exenquanto nao alcangado também desconhecido. E, consequentemente, tampouco capaz, de consolar, redi- thir, obrigat: a que poderia nos obrigar algo desconhe- edo? (Alvorecer. Primeiro bocejo da razdo. Canto do galo do positivismo, .) - 5. O mundo verdadeiro: uma ideia que no. serve mais para nada, nem sequer é capaz de obri- gar a alguma coisa; uma ‘ideia que sc tornou inttil e su- pérflua, portanto uma ideia refutada: vamos aboli-la! (Dia claro; hora do café da manha; volta do bom-senso e:da serenidade; Plataéo vermelho de vergonha, grande estrépito de todos os espiritos livres.) ~ 6. Abolimos o mundo verdadeiro: que mundo resta? O mundo aparen- te, talvez? Nao: com o mundo verdadeiro abolimos tam- bém o mundo aparente! (Meio-dia; hora das sombras curtas; fim do longo erro; ponto culminante da humani- dade; incipit Zaratustra.)"’ As varias etapas desse processo, sumariamente esbo- ¢ado, correspondem aquilo que no fragmento autobiogra- fico era a queda das amarras envolventes e dominantes; 0 “incipit Zaratustra” conclusivo, com o desaparecimento, juntamente com o “verdadeiro mundo”, do mundo apa- rente, repete, mas ao mesmo tempo também inicialmen- te resolve, o problema do horizonte tltimo que no escrito de 1863 era colocado como conclusao problematica. Como o mundo verdadeiro — ou seja, fundamental- mente, o mundo das ideias plat6nicas (veja-se o primei- . 7. O creptisculo dos idolos: “Como o verdadeiro mundo acabou se transformando em fabula. Histéria de um erro” 56 DIALOGO COM NIETZSCHE ro ponto da passagem citada), aquele que sustenta e ex- plica o mundo das aparéncias mutaveis e do devir — pode transformar-se em fabula? Simplesmente porque desde o inicio ele nao passava de fabula, porque na realidade o mundo verdadeiro nunca existiu. A critica do conceito de verdade como evidéncia, ou seja, a manifestag&o imedia- ta e de maneira psicologicamente convincente e indiscu- tivel de alguma coisa: um “objeto”, uma proposicao, como verdadeira, ou seja, como correspondente ao “es- tado das coisas” — é um dos pontos mais constantes e significativos da especulagdéo de Nictzsche, se nao o principal significado de sua contribuigdo para a histéria do pensamento. O problema da verdade acompanha Nietzsche por toda sua carreira, desde o ensaio Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (1873) até os ulti- mos apontamentos reunidos sob o titulo A vontade de poténcia. E precisamente no ensaio Sobre verdade e mentira que Nietzsche define as linhas fundamentais de sua crf- tica ao conceito de verdade como evidéncia, as quais continuarao a predominar durante toda sua carreira de pensador. “Ainda nao sabemos”, escreve Nietzsche, “de onde provém o impulso a verdade, pois até agora ouvi- mos apenas a obrigagao que a sociedade estabelece para existir: de dizer a verdade, isto é, usar as metdforas habituais; em outros termos, exprimindo-o eticamente, a obrigagao de mentir segundo uma convencSo estabelecida, de mentir como um rebanho, em um estilo obrigatério para todos.”* E a primeira convencao é justamente a de acre- ditar na “objetividade” dos “objetos”, ou seja, acreditar 8. Sulla verita e la menzogna in senso extra-morale, trad. it. org. por E. Lo Gatto, in Scritti minori, Napoles, 1916, p. 54. ISAO DE MUNDO DE NIETZSCHE 57 ‘que, ao conhecet, o mundo seja dado como um espeta- : ~eulo totalmente traduzivel nos esquemas Idgicos. Na yealidade, o que se chama de verdade nao é outra coisa “que a conformidade de nossos discursos a certas regras ~-uiiversalmente aceitas em um certo mundo. A criagdéo das metéforas linguisticas, ou seja, de um certo vocabu- Jério que traz em si uma cstrutura de conceitos e, na sin- taxe, de uma organizagao determinada que o homem jmp6e originariamente as coisas, é fundamentalmente um fato poético e estético: em sua forma originaria, a lin- guagem éa “esfera média livremente poetante e criado- ra’, necessaria para realizar a passagem do mundo como éem si, e sobre o qual nada sabemos, para o mundo or- :ganizado nos esquemas conceptuais. Mas, depois desse momento de criagdo e produgao de metdforas, quem tra- balha para a consolidagao e para o esclarecimento do mundo da linguagem e dos conceitos nele implicados é a-ciéncia. “Assim como a abelha primeiro constréi os fa~ vos e os enche de mel, assim a ciéncia trabalha sem ces- sar para esse grande columbarium de conceitos.”" Por ou- tro lado, o arcabougo dos conceitos é 0 abrigo no qual a ‘ciéncia vive e prospera, o Ambito de estabilidade com que ela se defende do devir incessante das coisas. Mas, a par- tir do momento em que o intelecto se torna livre, ou seja, “que experimenta aquele processo cujo apice é 0 niilismo, esse arcabouco nado passa de “um andaime de madeira, e de um objeto para seus audazes jogos de destreza’". Esse esclarecimento do caradter convencional, ou, di- rfamos melhor, sintatico ¢ linguistico da verdade, sera 9. Sulla verita e la menzogna, p. 58. 10. Sulla veritt e la menzogna, p. 61. 11. Sulla verita e la menzogna, p. 64. 58 DIALOGO COM NIETZSCHE precisado e aprofundado nas obras subsequentes, em que se afirma cada vez mais claramente o vinculo entre a evidéncia, como fendmeno psicolégico da imposicao de uma “verdade” 4 consciéncia de mancira certa e indiscu- tivel, e o pertencimento a um certo mundo, a um siste- ma de “preconceitos”, a um mundo histérico cujas con- vengdes ou, mais em geral, cuja linguagem aceitamos, mais ou menos inconscientemente, sem discutir. “Que a clareza’, escreve Nictzsche evidentemente reportando- ~se ao conccito cartesiano de ideia clara e distinta, “deva ser uma atestacao de verdade, eis uma ingenuidade.”” ‘Tendo em vista as caracteristicas inconstantes e contra- ditérias da experiéncia comum do mundo, quando mui- to terfamos de suspeitar que clareza, ordem e simplici- dade sdo justamente o sinal de que estamos diante de algo falso, de um simples produto da imaginacao". Na verdade, os critérios com base nos quais se con- sidera que uma proposicdo é evidente — e portanto, com uma ilagéo, verdadeira — nao s4o sempre os mesmos, mas variam nos diferentes mundos histéricos, sao eles mes- mos produtos histéricos. Falar de certezas imediatas, es- creve Nictzsche, é uma ilusao: toda certeza é sempre o resultado de uma série de mediagdes". Isso significa que nao existem verdades por si sds evidentes, ou seja, capa- zes de se manifestar como tais antes de cada enquadra- mento em categorias convencionais ou histéricas: Alids, a evidéncia de uma proposigSo nao passa de sua adapta- cao perfeita e sem dificuldades ao sistema de preconcei- fos que constituem as condigdes de conservacdo e de- 12. Vontade de poténcia, n. 538. 13. Vontade de poténcia, ns. 536 e 539. 14. Além do bem e do mal, n. 16. SAO DE MUNDO DE NIETZSCHE 59 - genvolvimento de um certo mundo histérico a que per- “tencemos. Parece-nos evidente aquilo que se adapta a ~@ese. sistema de preconceitos; assim, a verdade como ““eonformidade” (da proposicao ao estado das coisas) dquite aqui um sentido diferente, sintatico, poder-se-ia dizer: é verdadeira a proposigao que se conforma nao antes de tudo ao estado das coisas, mas as regras inter- nas‘da linguagem que define o Ambito do nosso mundo. Com base nessa conformidade, nés afirmamos a outra (a oriformidade entre proposicaéo e coisa): mas também essa passagem nado é “natural”; ela é, mais uma vez, uma ijaneira historicamente dada de inferir um fato a partir dé outro fato, do qual o primeiro é assumido como sinal fiel e confiavel. aie Rejeic&o do historicismo ',” Poderia parecer fAcil, neste ponto, colocar Nietzsche entre os muitos que, sobretudo no século XIX, afirmaram a relatividade histérica daquilo que chamamos a verda- de. De fato, se nao existe uma apresentagdo imediata do mundo como é em si, mas apenas uma manifestaco dele . sm diversas perspectivas, as quais sao sempre historica- mente condicionadas, a conclus4o parece ser a de que, entéo, toda “verdade” é relativa 4 época em que surge e é enunciada, que cada época tem sua “viséo.do mundo”. Mas Nietzsche recusa-se explicitamente a ser colocado entre os historicistas, ou seja, precisamente entre os que afirmam a relatividade histérica da verdade. A polémica contra o historicismo ele dedica um de seus mais belos escritos, a segunda das “considetagées extemporaneas”, escrita em 1873-74, Da utilidade e des- 60 DIALOGO COM NIETZSCHE vantagem dos estudos historicos para a vida: um escrito re- lativamente juvenil, da mestna época do ensaio Sobre ver- dade e mentira, e que junto com este pode ser tomado para definir aquele que sera o ambito do desenvolvimen- to sucessivo do pensamento de Nietzsche, sua problema- tica. Os estudos histéricos, ou seja, aquela consciéncia historiografica da prdpria colocag&o “histérica” que o sé- culo XIX praticamente criara e de que Nietzsche tinha al- guns insignes exemplos sobretudo na historiografia ale- ma, sao Uteis para a vida apenas na medida em que nao a bloqueiam, impedindo-lhe todo desenvolvimento. Observe-se que Nietzsche vive quando os grandes sistemas historicistas do século XIX, o hegelianismo e 0 positivismo, jA estao comecando, ao menos como fato fi- loséfico, a manifestar os sintomas da crise que os afcta- ra cada vez mais profundamente nas décadas seguintes: o historicismo torna-se agora darwinismo no sentido cientifico do-termo, ou seja, teoria da evoluciio das espé- cies naturais. Em outros termos, comega-se a perder a fé no necessario desenvolvimento espiritual da humanida- de para acentuar apenas o devir. Em Hegel e em Comte, © devir é ainda dirigido necessariamente para a auto- consciéncia e para o progresso da ciéncia e da sociedade; mas 4 medida que nos aproximamos do fim do século torna~se cada vez mais evidente que essa necessidade do progresso 6 muito problematica, e que nossa tinica cer- teza é, ao contrario, o puro devir, a transitoriedade das culturas, o fato de que tudo o que acontece esta destina- do a passar. Ora, toda essa linha de pensamento, que alias comega a se anunciar de modo muito obscuro, pode ser também atribuida ao crescimento desmesurado dos conhecimentos histéricos, que tornam cada vez mais di- ficil enquadrar todos os cventos em um plano filoséfico . providencialista como o hegeliano. VISAO DE MUNDO DE NIETZSCHE 61 i» Assim, se a consciéncia historiografica leva-nos a re- ‘conhecer a transitoriedade de todo evento e de toda cria- “Gio humana, o resultado sera que nao criaremos mais ada; que a historiografia tera matado a histéria como <@eontecimento de qualquer coisa nova, surgimento de yjiovas instituigdes etc. Quem tivesse plena consciéncia de “que, como dizia Heraclito, tudo flui ndo ousaria mais mo- ver um dedo, nao teria mais nenhuma fé no valor daqui- lo que faz e nao encontraria a forca para agir. A vida - é ‘esta a conclusdo, proviséria, a que chega a segunda con- ‘sideracdo extemporanea —, para se desenvolver, precisa ‘de uma zona obscura, de um horizonte de nao conscién- ‘ia histdrica dentro do qual ainda seja possivel acreditar has proprias decisdes e no alcance daquilo que se faz. “© que na segunda Extempordnea permanece no ni- vel da pura exigéncia, esse Ambito obscuro dentro do qual a vida pode florescer como em uma solugdo nutriti- va, torna~se explicito nas obras subsequentes e sobretu- do naquelas da maturidade, do Zaratustra aos fragmen- tos de A voniade de poténcia. O sentido da grande ideia que Nietzsche anuncia pela primeira vez na Gaia ciéncia e que retoma e desenvolve no Zaratustra e em A vontade ~_ de poténcia, ou seja, aquela do eterno retorno do mesmo, - é antes de tudo o esforgo de substituir a visio prdpria do historicismo por outra visdo. No ambito do historicismo, como vimos, o presente, apresentado nos moldes de um simples ponto na linha que do passado conduz, ao futuro, perde todo significa- do, e com ele também a decisao. Cada momento do tem- po, em uma perspectiva historicista, é definido apenas em relagao ao momento que vem depois dele: mas pas- sado e futuro, para definir o presente, devem ter uma es- pécie de existéncia auténoma e precedente em relacao 62 DIALOGO COM NIETZSCHE ao prdprio presente, j4 que é s6 em relaco a eles que o presente se constitui. E isso ¢ evidente nas verses pro- videncialistas do historicismo, que sdo as mais conse- quentes: para elas, ha um curso necessdrio da histéria, estabelecido de algum modo a priori, e cada momento tem um sentido enquanto se insere nesse curso (66 en- quanto se insere na estrutura dialética do real o evento é unidade e identidade de real e racional, como quer He- gel; o que nao se deixa reduzir ao esquema, admitindo- ~se que este exista, é apenas aparéncia, acidentalidadc): no entanto, ninguém tem o poder de muda-lo. Desse moda, essas perspectivas supdem que exista um tempo como fluxo uniforme de momentos, como linha, na qual estamos colocados em um certo ponto. A relacdo entre a decisao e 0 tempo é aqui inteiramente favoravel ao tem- po: a decisdo, diz-se sucintamente, esta no tempo, nés estamos no tempo. Ora, essa é precisamente a visio da histéria que tor- na impossivel a histéria como novidade, como distinta de um devir puramente natural em que tudo se desen- volve necessariamente e de maneira previsivel. Esse his- toricismo, juntamente com a fé na evidéncia como crité- tio da verdade, de que se falava no ensaio Sobre verdade e mentira, € 0 principal inimigo de Nietzsche, o alvo po- lémico em relag&o ao qual seu pensamento se constitui e pode, consequentemente, ser compreendido. Essa von- tade de justificar a historia como nascimento de novida- de, ou seja, a histéria como vida, fez com que se falasse, acerca de Nietzsche, de vitalismo e, por conseguinte, de itracionalismo"; mas esse discurso, como é evidente, sd 15. Como se sabe, essa interpretagao é defendida sobretudo, hoje, por G, Lukacs, em Die Zerstorung der Vernunft, Berlim, 1954; trad. it. La distruzione della ragione (1955), Turim, Kinaudi, 1959, ISAO DE MUNDO DE NIETZSCHE 63 « fem sentido do ponto de vista de um racionalismo me- © tafisico ainda profundamente hegeliano, ¢ nao por acaso vein dos marxistas. Se é irracionalismo uma perspectiva “que vé a razao lutar para se afirmar e para constituir coe- ~“y€ncias em um mundo substancialmente problematico, onde nada esta gatantido por antecipagdo, pois bem, Nietzsche é um irracionalista. Mas racionalismo e fé na yazio tornam-se entao prerrogativas de quem nao acre- dita realmente na forga da razdo, mas faz dela um sim- ples espelho de uma ordem.estabelecida de uma vez por todas fora dela, ou ao menos fora daquilo que comumen- te chamamos razdo e exercemos como tal. Qual perspectiva Nietzsche opée aquela que vé a decisdo e o presente colocados e definidos no tempo? Trata-se efetivamente de uma verdadeira inversdo. Se nao fosse assim, seria precisamente o tempo a resposta a questao que Nictzsche, como vimos, formula na conclu- so do fragmento autobiografico de 1863, ¢ que perma- nece substancialmente aberta até o fim. Nao é 0 tempo aquilo que no fim envolve ainda o homem e constitui o horizonte dentro do qual suas decisées se colocam e ad- quirem sentido. Ou melhor: 0 tempo se constitui apenas no instante da decisao. E esse o sentido de uma das mais sugestivas paginas do Zaratustra, o capitulo intitulado “Da visdo e do enig- ma”. Aqui o nticleo da visdo, que constitui ao mesmo tempo o enigma e sua solugao, é que os dois caminhos do passado e do futuro est&o unidos firmemente sob a grande porta em que esta escrito “Augenblick”, o instan- te. E esse o instante da decisdo a partir da qual o tempo se estende em suas dimens6es constitutivas. E o presen- te éjustamente decisdo, corte e discriminagdo apenas em relago 4 decisdo de que existe um passado e um futuro. 64 DIALOGO COM NIETZSCHE Antes disso nao existe o tempo nem sequer como sim- ples fluxo, j4 que até um fluir implica uma diregéo, um ir para, e portanto j4 contém aquela distingdo, aquela dis- criminagao que s6 a decisdo é capaz de instituir. Nao é a deciséo que esté no tempo, somos obrigados a dizer, portanto, mas é o tempo que esté na decisdo. Juntamente com o ensaio Sobre verdade e mentira, a segunda Extemporinea, com seus desdobramentos nas obras sucessivas, constitui, assim, o outro fundamento do pensaments de Nietzsche porque, assim como aque- le destruia a superstigdo da natureza, do dar-se imediato das coisas como critério da verdade e como horizonte, esta destrdi 0 outro grande mito, préprio do século XIX, da histéria como horizonte. Esta tltima instancia, para distinguir o verdadeiro do falso, que para o empirismo havia sido o “mundo da experiéncia”, se tornara, patao século XIX, a “Historia”. E era uma forma de salvar a cs- tabilidade do mundo, mesmo admitindo, ou pensando admitir, o devir. De fato, parcciam dizer, ndo existe um dar-se imediato das coisas ¢ da verdade; toda verdade é relativa; mas, justamente, é relativa A época, e existe por- tanto um saber verdadeiro, aquele que relativiza as ver- dades as diversas épocas (a filosofia de Hegel, para o idealismo; a sociologia, para o positivismo). Mas, como vimos, para Nietzsche, e precisamente através desse des- dobramento de pensamento, 0 mundo verdadeiro tor- nou-se fabula; nao s6 o mundo da natureza e da chama- da evidéncia, mas também o da histéria. Admitir a “His- toria” dentro da qual enunciados c acées adquirem um sentido é também admitir um mundo estavel e verda- deiro, se ndo em suas caracteristicas exteriores, ao menos em suas leis de desenvolvimento (a dialética). ‘(yIShO DE MUNDO DE NIETZSCHE 65 A filosofia como fabula 4.» -A seflexdo sobre o historicismo e sobre a conscién- éia histérica €, portanto, apenas outra maneira com que “Nietzsche verifica que o mundo se tornou faébula. E o onto de chegada dessa reflexdio ainda é 0 mesmo: inci- pit Zarathustra. Afinal, o que significa dizer que o mundo ge tornou fabula? O que Nietzsche pc no lugar das fa- bulas da evidéncia e da histéria.nas quais até entdo se stistentara a metafisica ocidental? “© criar como fazer encantamentos (Zaubern) traz consigo um desencantamento (Entzauberung) diante de tudo o que existe.” Assim, em sua critica as fabulas e aos mitos, Nietzsche também se apresenta como um criador de encantamentos. $6 porque ele tem uma nova fabula para apresentar, as velhas fabulas se revelam como tais. Desse modo, Nietzsche rejeita, com a qualificacao de historicista, uma outra qualificagado que serfamos ten- tados a lhe atribuir, e com muitas razdes, a de desmitifi- cador ou desmitologizador. Também a desmitificagao, que Nietzsche exercitou talvez mais do que qualquer ou- tro pensador moderno, implica, porém, a fé em uma cer- teza que estd na base de todo desvelamento. Desmitifi- car quer dizer mostrar o espirito de verdade, a estrutura oculta (mas, esta sim, verdadeira) dos mitos, a verdadei- ra face que se esconde atras de sua mascara. Ora, para ser um desmitologizador ou desmitificador, falta a Nietz- sche justamente o essencial, ou seja, a fé na possibilida- de de chegar a uma estrutura oculta, definitiva, que se re- vele como micleo verdadeiro sob a fabula. Se nao fosse 16. “Le sette solitudini” [As sete solidées], fragmento destinado a uma nova parte do Zaratustra, em Opere, vol. VIL, tomo 1, parte 2, p. 161. 66 DIALOGO COM NIETZSCHE assim, ele também teria de admitir uma evidéncia ultima em relagao a qual o mito ca fabula se revelam como tais. Contudo, a desmitologizacdo e a desmitificagdo sio um aspecto inegdvel e preponderante do Pensamento de Nietzsche: como se explica? Precisamente porque a des- mitificagdo é um aspecto vinculado necessariamente ctiagéo de novos mitos; 36 por ter um mito novo para apresentar Nietzsche pode desvelar os mitos preceden- tes em sua mitologicidade. Fazer encantamentos tam- bém implica sempre um desencantamento diante daqui- lo que jd existe. Isso ¢ muito importante, porque nos diz o-que de- vemos esperar de Nietzsche como fildsofo construtivo, de que natureza sao as propostas que ele nos faz, as teo- tias que ele defende. £ ele mesmo quem nos adverte: a que ele nos propée nao passa de outra fabula, que pre- tende tomar o lugar das outras, mas que nao se apresen- ta com nenhum maior titulo de “verdade”. Antes de nos propor uma nova filosofia, Nietzsche quer apresentar uma nova maneira de entender e de fazer filosofia. Que posi¢ao se pode realmente tomar diante de alguém que, antes de comegar seu discurso, nos avisa que est prestes a Nos contar uma fabula, j4 que as filosofias so todas f4- bulas, a sua no menos que as outras? O que é questio- nado e obrigado a uma decisdo 6, antes de tudo, nosso modo de discutir, de aceitar ou rejeitar o que nos 6 pro- posto. O discurso de Nietzsche nao pede para ser aceito ou rejeitado com base em provas, pede alguma outra coi- sa. E qual coisa? Provavelmente, mais que uma acei- tagao ou uma recusa com base em provas, pede uma resposta. Aqui Nietzsche alcanca outro grande pensador do século XIX com quem tem em comum muito mais do que VISAO DE MUNDO DE NIETZSCHE 67 “ein geral se acredita, Kierkegaard. A verdade nao éum “fato objetivo, a scr reconhecido de forma fria e distancia- daz-a verdade (para Kierkegaard a verdade religiosa, do etistianismo) é antes questio de decisio pessoal, de compromisso. Nietzsche nao pede para sua fabula a ade- - gf0 passiva ou a aceitagdo “racional”, mas por isso im- pessoal, que se dd a um teorema de geometria, do qual a nossa vida nio depende de modo algum; ao contrario, éle nos apresenta sua fabula para que ndés Ihe demos ima resposta, ainda que igualmente fabulizando, por nossa vez. A filosofia, ern suma, é proposta de posigdes pessoais diante do mundo; aceitar a discussio com cla significa assumir a responsabilidade de elaborar e propor um posicionamento préprio. Eterno retorno e responsabilidade do homem Esse é um primeiro sentido, ainda historicista, se de- sejarmos, da ideia do eterno retorno do mesmo, uma das ideias mais dificeis de suportar”. De fato, ao menos em um primeiro sentido, ela significa aquela consciéncia he- taclitiana muito clara do fluir e do passar incessante de todas as coisas, consciéncia que tiraria toda capacidade de agir de quem nao tenha uma coragem sobre-huma- na. Este primeiro significado da ideia do eterno retorno explica também em que sentido o primeiro niilista com- pleto é também aqucle que pela primeira vez supera 0 niilismo. 17. Sobre a ideia do eterno retorno como “o pensamento mais ter- rivel”, 4 qual Nietzsche volta com muita frequéncia, cf. por exemplo Opere, vol. VIL, tomo 1, parte 2, p. 265. - 68 DIALOGO COM NIETZSCHE Pode-se dizer que o tiltimo degrau da escada do nii- lismo (insensatez de todas as coisas em virtude do devir incontrolavel) é também o primeiro passo para a supeta- cdo deste. Compreender isso significa compreender tam- bém em que sentido a perspectiva de Nietzsche esta bem distante de confiar o filosofar e a verdade ao arbitrio e ao irracional. Se realmente o devir é um eterno retorno do mes- mo, ou seja, nao tem uma direco nem um desenvolvi- mento como queria o historicismo, a decisao, por um lado, torna-se um absoluto e, por outro, torna-se deter- minante nao de um tnico ponto da histéria, mas da his- toria em sua totalidade. Sao essas as caracteristicas que, €m aparente contradicao, Nietzsche atribui precisamen- te a deciséo uma vez que se tenha reconhecido o eterno tetorno do mesmo. Antes de tudo: se o devir néo é um desenvolvimento organizado por leis, cada ponto dele equivalera a outro ponto (ou melhor, na verdade cles nao se diferenciardo), e nenhum dcles poderd ter uma prioridade de valor sobre os outros; nenhuma decisao poderd dizer-se determinada ou condicionada por outra coisa. Em um mundo em que nao existe histéria como devir historicista, a deciso é realmente um absoluto, O que parece constituir 0 problema do fragmento autobio- grafico de 1863 é a decisdo nao incluida em nenhum ho- rizonte, mas que, quando muito, institui um horizonte. Ela néo esté em um mundo, mas precisamente, como dird a Ultima carta a Burekhardt, funda e institui, cria o mundo. £ disso que deve ter consciéncia 0 super-homem nietzschiano. Pode essa consciéncia diluir-se em levian- dade ou arbitrio? O que existe de mais severo que o im- perativo: aja como se aquilo que vocé esta para fazer ti- vesse de se repetir eternamente? ‘AVISAO DE MUNDO DE NIETZSCHE 69 «<; Assim, 0 pensamento do eterno retorno é mais um apelo a responsabilidade e assungao de responsabili- “dade. O mundo transformou-se em fabula: isso significa que ndo-existe nenhuma garantia do que fazemos ou di- sgemos, que toda a responsabilidade recai sobre nds. Até a morte de Deus, que Zaratustra anuncia, nao é outra coisa que 0 fim das garantias de que o homem da meta- figica tradicional se rodeara para se livrar da responsabi- lidade plena por seus atos. De fato, foi “o deus moral” que morreu", ou seja, o deus da ordem constitufda de uma vez por todas. O homem novo que Nietzsche projeta e para o qual quer preparar o caminho com seu pensamento é 0 ho- mem capaz de assumir plenamente suas proprias res- onsabilidades. E. por esse motivo que nos fragmentos do Wille zur Macht, a obra que Nietzsche planejava como summa de seu pensamento e que jamais levou a termo, tem tanta importancia o conceito de Rangordnung, de hierarquia dos valores, mas em scu aspecto dinamico, como instituigdes dessa ordem dos valores. Desejou-se interpretar sobretudo esse aspecto do pensamento de Nietzsche como uma apologia do auto- ritarismo, do supra-humanismo politico de que a pri- meira metade do século XX nos forneceu alguns tristes exemplos. Na verdade, a criagaéo e promulgacao de ta- buas de valores é uma tarefa que Nietzsche propée a to- dos os homens. No entanto, ele se da conta de que, para criar autenticamente valores, para fazer algo de significa- tivo na histéria, é preciso estar preparado. Todos somos chamados a fazer algo significativo, mas poucos conse- guem fazé-lo. 18. Cf. Werke, Leipzig, ed. Naumann, 1903, vol. XIIL, p. 75. 70 DIALOGO COM NIETZSCHE Resumida desse modo, a posigao de Nietzsche tor- na-se até banal. E seria, se no fundo dela nao houvesse sempre algo de misterioso e de dificilmente exprimivel fora da aura mitica em que Nietzsche deliberadamente a deixa. Um livto inteiro do Wille zur Macht traz o titulo (decidido pelos editores, mas com base nos apontamen- tos de Nietzsche) Zucht und Ziichtung, disciplina e edu- cacao; mas a melhor traducdo para Zucht seria criadou- ro, e se usa igualmente para animais. De resto, todos ga- bem quanto Nietzsche insiste no conceito de raga, e também isso 0 levou a ser inclufdo entre os profetas do nazismo. Mas quem procurar interpretar esse conceito mantendo-se fiel ao significado abrangente do pensa- mento de Nietzsche reconhecerd que, com essa insistén- cia na raga, mais que na educacao no sentido costumei- ro da palavra, Nietzsche quer apenas acentuar o cardter Temoto, e por isso mais biolégico que pedagégico e cul- tural, da preparacdo necessaria ao homem que faz algo de decisivo na histéria, aquele super-homem capaz de suportar a ideia do eterno retorno e de abrigar sua deci- s4o fora dos horizontes estabelecidos, fora de qualquer garantia. E Por isso, por exemplo, que ninguém se torna fildsofo, mas nasce filésofo. “Para estimar o valor das coi- sas, nao € suficiente conhecé-las, ainda que isso seja ne- cessario. E preciso atribuir-lhes valor, é preciso ser al- guém que tem o direito de atribuir valores." Ota, quém me da 0 direito de me considerar legislador? Sem divi- da, é um direito que temos na medida em que decidimos assumi-lo, mas até essa decisio implica uma espécie de predestinag&o. “Hé no fundo do espirito alguma coisa que nao pode ser ensinada: uma rocha granitica de fata- 19. Opere, vol. VII, tomo 2, fr. 248, AVISAO DE MUNDO DE NIETZSCHE 71 “dade, de decisao j4 tomada sobre todos os problemas @m seu adequar-se e referir-se a nds, e ao mesmo tempo um direito a determinados problemas, uma inscrigaéo de- Jeg a fogo com nosso nome.” “. Essa predestinag&o nao significa outra coisa senaéo ~ que.a possibilidade para o homem de fazer algo signifi- eativo na hist6ria nasce de uma raiz remota, de uma rela- cao origindria que talvez responda justamente ao proble- ma que permanecera aberto no fragmento autobiografico de 1863. E verdade que nao.se resolve a questao do hori- zonte da acio e da decis&io, ou melhor, a decisdo e a agao . conseguem apenas criar o horizonte. Mas o fragmento de 1863 jd acenava para alguma outra coisa, que aqui parece se evidenciar plenamente, ou seja, a presenca de uma for- ca regente e norteadora. Antes das palavras conclusivas que citamos no inicio, Nietzsche escrevia naquelas pagi- nas: “Assim, cu posso olhar com gratidao para tudo o que aconteceu comigo até agora, seja alegria ou dor, c os eventos me conduziram até agora como uma crianga...” Essa forga que guia o homem, que a certa altura faz cair com poder irresistivel as amarras que o cnvolviam, é ago- ra a raiz remota que permite ao super-homem ser aquilo que é, suportar a dificil ideia do eterno retorno e decidir, amparando a propria decisao na eternidade. Decisao e relacéo com o ser Descobre-se aqui 0 tiltimo e mais profundo signifi- cado da ideia do eterno retorno, aquele que, apesar de tudo, poderia levar a falar, em um sentido muito amplo, 20. Opere, vol. VIL, tomo 1, caderno 1, fr. 202. 72 DIALOGO COM NIETZSCHE de um Nietzsche religioso, ou no minimo de um Nietz- sche ontdlogo ou ontologista. Se é verdade, de um lado, que a deciséo nado tem um horizonte pré-constituido, mas, ao contrario, ela mesma cria 0 proprio horizonte, justamente porque o devir histérico ndo tem mais aque- le sentido norteador que o historicismo Ihe atribuira, tam- bém é verdade que o poder de decidir chega ao homem nao por um ato arbitrario, e sim por uma espécie de raiz remota de que Nictzsche fala pouco, e a qual alude com muitas metaforas biolégicas, incluindo a de raga. Ora, essa raiz leva a pensar que a decisao, apesar de tudo, também se define em relagao a algo, ainda que esse algo nao possa ser nem o mundo (da natureza ou da histéria) nem Deus, entendido no sentido tradicional. Em suma, além da queda dos horizontes, hd uma telacdo constitu- tiva da decisao e do super-homem. O que é essa relac&o, e com o qué? A tinica respos- ta possivel, que Nietzsche ndo deu explicitamente, mas que podemos imaginar com base no restante de seu pensamento, 6 que essa relacado que cria e constitui ori- ginariamente a decisado ~ que, por sua vez, esta na base do tempo, das suas dimensées de passado e de futuro, c de todas as relacdes historicamente identificadas — éa relagéo com a totalidade do ser: “aceitar e aprovar um Unico fato significa aprovar o todo, a totalidade do pas- sado e do presente”, Alias, esse 6 também um sentido possivel dos discursos sobre a responsabilidade de cada decisao, na qual esta implicado o destino de tudo. De- molida a estrutura serial do tempo, ou ao menos sendo esta reconhecida como nfo otigindria, a decisdo também nao se coloca mais em relacdo com este ou aquele mo- 21. Opere, vol. VII, tomo 2, p. 94. s A\VISAO DE MUNDO DE NIETZSCHE 73 mento do tempo, mas com a totalidade do devir e do scr (nao mais diferenciados, por sua vez, como estabilidade- -verdade e aparéncia ilusdria). E por essa relagdo, como jA parece sugerir o fragmento autobiografico de 1863, é qualificada e em certo sentido determinada. Ea relacdo com o todo, a raiz remota na totalidade do ser que da ao filésofo o direito de filosofar, ou seja, de legislar. Isso significa, traduzido no nivel do discurso so- bre a histéria de que partimos, que o devir da histéria é garantido como devir c como novidade sé enquanto bro- ta de uma origem, de um ser que tem como caracteristi- ca a criatividade, a originariedade precisamente no sen- tido de ser uma origem permanente e sempre ativa, ja- mais ocorrida de uma vez por todas, das coisas. Se o devir da histéria fosse confiado a uma decisao arbitraria do homem, nao se poderia falar de verdadeira novidade. Nada mais do chamado arbitrario esta ligado as condig6es existentes: o humor, a heranga bioldgica, as preferéncias instintivas. Nietzsche nao vé a histéria como natureza nesse sentido, ou seja, no sentido de que a novidade histérica é um produto do instinto ou da “vida” no significado ba- nal e bruto do termo. Para ele, a histéria é natureza, quando muito em outro significado, no sentido da pala- via grega phisis, que significa forga originante, manan- cial permanente, fonte atual da novidade, origem, nasci- mento. £ essa, em tiltima andlise, a raz4o pela qual para Nietzsche nao se pode falar de um mundo dado de uma vez por todas, em relacao ao qual a proposicao se verifi- que como verdadeira enquanto conforme a ele. Nao exis- te o mundo, existem mundos como posigdes sempre em movimento da origem, a qual gera os mundos como, ou enquanto (e talvez seja a mesma coisa), gera as perspec- 74 DIALOGO COM NIETZSCHE tivas dentro das quais eles se revelam. A maneira-de se aproximar da verdade nao 6, portanto, a de finalmente chegar a ver as coisas como esto, jA que elas nao “es- tao” de jeito nenhum, mas antes — e aqui vamos além do sentido literal dos textos nietzschianos — manter-se em telagdo com a origem, evitar perder-se no interior da pré- pria perspectiva historica absolutizando-a,. identifican- do-a imediatamente com a realidade. Tudo isso esté con- tido na ideia nietzschiana do cterno retorno do mesmo, ¢ o homem que Nietzsche quer preparar com sua filoso- fia, o super-homem, é aquele capaz de viver neste mun- do, no ser assim entendido e compreendido, Paradoxalmente, Nietzsche nao deixa de dar uma es- pécie de justificagdo histérica para sua exigéncia de uma nova humanidade. B aquela que pode ser encontrada, por exemplo, no apontamento do Wille zur Macht, preci- samente no livro intitulado Zucht und Ziichtung. Com o progresso da técnica, o homem terd necessidade de cada vez menos virtude para sobreviver no mundo, ja que as condigées externas de dificuldade das quais as virtudes se originaram terao desaparecido. A esta altura, o homem tera diante de si dois caminhos: ou abandonar-se total- mente 4 mediocridade e 4 massificacdo, perdendo, com a necessidade de se esforcar, também todas as virtudes que pouco a pouco havia adquirido na historia, em um processo involutivo que nao sabemos aonde iria dar; ou entao dedicar-se conscientemente a propria autoforma- ¢40, finalmente liberta da casualidade a que se via obri- gada pelas varias exigéncias exteriores. Se quisermos, o mundo em que a verdade como es- tabilidade tornou-se fabula é 0 novo mundo da técnica, cm que cada vez mais se torna evidente que as coisas nao s4o como s&o, mas como nés as fazemos. Em um ‘AVISAO DE MUNDO DE NIETZSCHE 75 mundo em que o homem nao encontra mais aquilo que .. mas aquilo que foi produzido, até o sentido do termo e o-conceito de ser devem ser renovados. O ser, pensa Nietzsche, j4 ndo pode mosirar-se como a estabilidade do dado, mas como a dinamicidade da origem perma- ‘nentemente viva e originante. E neste mundo o homem também nao é mais o mesmo. $6 podemos imaginar de maneira aproximada aquilo que ele deve se tornar.O que sabemos € que, para ser homem neste mundo, ele deve comegar a assumir plenamente as prdprias responsabili- dades. O PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTORICO E A FORMAGAO DA IDEIA NIETZSCHIANA DA VERDADE Filosofia e filologia A critica que, ao longo de todo o desenvolvimento de seu pensamento, Nietzsche realiza a nogdo tradicio- nal da verdade como conformidade da proposigaio ao dado, critica vinculada aquela da nogdo de evidéncia como ctitério da verdade, costuma ser resumida muito apressadamente com aquilo que, também aqui de modo um tanto genérico, se indica como scu irracionalismo ou vitalismo. Para esclarecer tal interpretagdo, além disso, costuma-se evocar sua dependéncia de Schopenhauer, e o peculiar tom metafisico que este deu a distin¢do kan- tiana entre fendmeno c nimeno. Ora, se é certo que Nietzsche encontrou em Scho- penhauer, ao menos no primeiro perfodo de sua produ- cdo, os instrumentos conceituais que Ihe permitiram for- mular filosoficamente sua visio de mundo, instrumentos que, sem divida, influenciaram também o contetido de tal viséo de mundo, também é certo que, especialmente no que diz respeito ao problema fundamental da verda- 72 DIALOGO COM NIETZSCHE de, Nietzsche passou a constituir a propria posig&o de maneira substancialmente independente de Schopen- hauer, ¢ em referéncia a um tipo de experiéncia que, no fundo, nao podia encontrar um lugar adequado no siste- ma de Schopenhauer, ou seja, & experiéncia do conheci- mento histérico. Essa independéncia, nao tao relativa, de Schopenhauer no que se refere aos pontos essenciais da concepgao de verdade explicaria também como na filo- sofia de Nictzsche essa concepcdo de verdade pdde per- manecer inalterada, e até se aprofundar sem se contradi- zer, mesmo quando qualquer ades&o ao pensamento de Schopenhauer era um fato do passado. Reconhecer a importancia da experiéncia filolégica na formagao da nocdo nietzschiana da verdade significa também, entre outras coisas, indicar um dos caminhos mais auténticos e fecundos através dos quais se pode re- conhecer a ligacéo de Nietzsche com a tradicdo filoséfi- ¢a europcia. A filologia, nao tanto ou nao apenas como disciplina especializada quanto sobretudo como modelo ideal do conhecimento e como ambito de ima repropo- si¢ao geral do problema da existéncia do homem no mundo e, acima de tudo, no tempo, de fato sempre se encontra nos grandes momentos de virada da moderna consciéncia europeia, e também da filosofia em sentido especifico. Bastaria lembrar o significado central da filo- logia na formagdo do humanismo e do renascimento e, mais tarde, na preparacdo do romantismo através da épo- ca do classicismo alemao. No fundo, essas referéncias nao sao alheias a constituicdo essencial ¢ A problematica dominante da filosofia nietzschiana; ao contrario, elas servem precisamente para situar Nictzsche na linha de uma tradicdo que é aquela a qual ele pertence mais au- téntica e profundamente, a tradicao que chamarfamos O,PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTORICO 79 genericamente de tradicéo “humanista” do pensamento europeu. As tentativas que ainda recentemente se fizeram de vincular Nietzsche e seu pensamento mais ao desen- volvimento das modernas ciéncias da natureza tém o de- feito de tomar como base o interesse, inegavel mas cer- tamente nao “originario”, e além disso sempre cultivado de modo fragmentario e ocasional, pelas teorias cientifi- cas de sua época; interesse refutado bem claramente (ao menos é 0 que procurarei mostrar) pelo peso determi- nante da experiéncia filol6gica na formagao de sua idcia da verdade. Quando se fala de experiéncia filolégica, contudo, é preciso esclarecer desde 0 inicio que tal experiéncia, para Nietzsche, nunca foi, nem sequer nos anos em que ele se dedicou a ela mais completamente, uma atitude de eru- dito, de especialista. Mas isso, mais uma vez, aproxima-o precisamente dos fildlogos das épocas decisivas da his- téria do espirito europeu a que aludiamos pouco acima; os fildlogos do humanismo e do classicismo, ao menos os grandes, tampouco foram especialistas do passado enquanto passado. Para Nictzschc, filologia significa, an- tes de tudo, apresentacdo do problema da nossa relacao com o passado. Ora, tal problema esta de qualquer modo na base de todo o desenvolvimento do pensamento mo- derno, que nado por acaso culmina (e chega também a uma reviravolta decisiva) nas grandes doutrinas histori- cistas do século XIX ec também do século XX. Nietzsche, gue vive em uma época em que o amadurecimento da consciéncia histérica, iniciado no humanismo, chegou a seu apogeu ¢ agora entra em crise precisamente pelo de- senvolvimento sem precedentes da consciéncia historio- grdfica (das disciplinas histéricas), em certo sentido re- conduz toda a questao as suas origens, repropondo o 80 DIALOGO COM NIFTZSCHE problema acerca do modo como se da nossa relacdo‘com 0 passado e sobre o significado que tal relacdo tem para a determinagao geral da fisionomia de nossa civilizacdo. Nao é por acaso que a obra em que Nictzsche se apresentava ao ptiblico como fildlogo, propondo uma vi- sao original ¢ revoluciondria do espitito do classicismo, tenha sido também toda uma apaixonada discussdo da decadéncia do modcrno espirito europeu. Na Geburt der Tragédie, os dois temas, visdo do classicismo e problema da decadéncia, estado estreitamente ligados. Para sair da decadéncia nao basta substituir uma certa visio da civi- lizagao grega por uma visdo diferente, eventualmente mais fiel e objetiva. O que determina a decadéncia é, ao contratio, toda uma maneira abrangente de apresentar e de conceber nossa relag4o com o passado, uma maneira vinculada com a ideia que fazemos da civilizacdio grega, mas que nao se reduz a um erro historiografico que é preciso simplesmente corrigir com uma perspectiva mais adequada. O fato de a civilizagdo grega se manifcstar sob as vestes daquilo que habitualmente chamamos de clds- sico esta estreitamente ligado, num elo de determinacao reciproca, com o fato de que temos uma atitude epigdni- ca diante do passado em geral. E possivel dizer que com essa ideia Nietzsche nao faz sendo enunciar claramente aquele que havia sido o paradoxo da mentalidade classi- cista viva no pré-romantismo alemao: a contemplagéo do classicismo como tinico mundo auténtico, equilibra- do, digno do homem, e, ao mesmo tempo, a consciéncia profundamente nostdlgica da impossibilidade de recu- perar tal condicao. Assim como nessa perspectiva uma certa visio do contetido do classicismo era acompanhada ou simples- mente determinada por uma certa maneira de se situar O PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTORICO 81 diante do passado, na nova perspectiva de Nietzsche a proposta de um modo diferente de interpretar e conce- ber o significado da civilizagdo classica caminha parale- lamente a tentativa de encontrar um modo nao mais epigonico de se relacionar com o passado. Alias, pode-se dizer que a pr6pria claboracdo de uma hipdtese historio- grafica diferente sobre a civilizagao grega constitui-se no interior desta segunda busca, que, ao contrario, gcralmen- te visa esclarecer o significado que a tomada de cons- ciéncia do préprio passado tem para uma civilizagao. Vinculando a prépria ideia do carater “classico” do classicismo com a mentalidade epigénica e decadente, Nietzsche, em Geburt der Tragédie, liquida definitivamen- te o mito classicista, e no fundo ainda romAantico, da ci- vilizagdo grega. Mas essa liquidagdo nao ocorre tanto ou principalmente no nivel dos contetdos, o que poderia levar a dizer que a hipétese nietzschiana sobre o signifi- cado e o “espirito” da antiguidade classica é suscetivel de discussao ¢ de eventual correcado no plano filolégico; a visdo classicista da antiguidade ¢ impossibilitada des- de os seus fundamentos, na medida em que a prdépria atitude espiritual da qual ela nao passava de uma mani- festacdo é transformada em objeto de critica. Por esse motivo, obviamente nao tem sentido consi- derar que Nietzsche, ainda que as vezes o texto sobre a tragédia leve a pensar o contrario, vise de algum modo uma restauragdo da civilizagdo grega. Para ele, o que ¢ constitutivo de nossa relacéo com o passado 6¢, antes, precisamente o reconhecimento de sua Einmaligkeit. Mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, justamente a rentin- cia a imitar e a reproduzir o passado, o reconhecimento . de sua historicidade, é também a ttnica maneira que te- mos de imita-lo autenticamente. De fato, o que constitui 82 DIALOGO COM NIETZSCHE a riqueza c a vitalidade do mundo grego, que o levaram a ser assumido como um ideal por tantos momentos da ulterior civilizacado europeia, é precisamente, também (ou fundamentalmente), uma certa maneira diferente da nos- sa, epig6nica e decadente, de se relacionar com o proprio passado, e mais em geral com a verdade. Se quisermos, poderemos resumir tudo isso dizen- do que, para uma civilizagéo, a maneira como ela pensa a propria relacéo com o passado é decisiva. A propria ideia de uma €poca classica esta ligada a uma maneira decadentc de pensar essa relagdo. Nietzsche substitui definitivamente a ideia de classicismo pela de tragicida- de: a civilizagao grega nao é uma civilizacdo classica, mas sim uma civilizagao tragica. E, assim como a qualificacdio de classica nao a define tanto em sua esséncia quanto em seu significado para nds, assim também a tragicida- de no sera uma caracteristica apenas daquela civiliza- ¢40, mas qualificaré também fundamentalmente nossa maneira de nos relacionar com ela. Como a ideia de clas- sicismo correspondia a uma certa maneira de se situar diante do passado, cpigdnica e decadente, é preciso en- contrar que maneira nova e diferente de apresentar essa relagdo corresponde 4 nova concepcaio trdgica da anti- guidade grega. E em relacdo a essa problematica da bus- ca de uma maneira que poderiamos dizer auténtica, ou ao menos nao decadente, de se posicionar diante do pas- sado, que amadurcce e se desenvolve inicialmente em Nietzsche a reflexdo sobre a verdade. De fato, a historia também é historiografia: questionar a mancira correta de se relacionar com 0 passado significa questionar o signi- ficado da nogao de verdade nas ciéncias histéricas. Essa € a origem nietzschiana, auténoma, independente de Schopenhauer e ligada antes a experiéneia de scus estu- O PROBLEMA DO CONHECIMENTO IISTORICO 83 dos filolégicos origindrios, da reflexdo sobre a verdade e da critica 4 nogdo tradicional da verdade como “objetivi- dade”, como conformidade verificdvel da proposicao ao “dado”. O que dissemos acima mostra, além disso, como essa fixacéo do problema da verdade na experiéncia filo- ldgica nao o isola em um plano de especialidade, de me- todologia de uma ciéncia determinada e muito particu- lar; em virtude da mancira como Nietzsche pensa e exer- ce a filologia, coloca-o, ao contrario, no centro de toda sua filosofia da cultura. Filologia e verdade: “infinitude” do fato histérico A problematicidade da filologia e do conhecimento histérico, como se revela desde os escritos inaugurais de Nietzsche e amadurece especialmente nos apontamen- tos de Wir Philologen, além de na famosa segunda Con- sideragiio extempordnea, tem diversos aspectos, todos os quais convergem no questionamento da nogao de verda- de como conformidade da proposigéo ao dado, nogdo que dominara toda a tradigdo metafisica e que Nietzsche encontrava como ideal da ciéncia de sua época. Ha, antes de tudo, uma desproporcao enorme, “ri- dicula”, entre o objeto que a filologia quer conhecer, a an- tiguidade classica, que se apresenta a nés sobretudo na forma da grande producao poética e artistica, e o méto- do com que se pretende aborda-la: “a relagdo do erudi- to com o grande poeta tem algo de ridiculo”'. E preciso 1. In F. Nietzsche, Gesamunelte Werke, Munique, Musarion Verlag, 1922, vol. II, p. 340. Cito a partir da edig&o Musarion porque se trata de apontamentos anteriores a 1867, ainda nao publicados na edic¢&o critica. 84 DIALOGO COM NIETZSCHE apenas aprofundar o significado dessa desproporcdo para encontrar as exigéncias que, segundo Nietzsche, devem ser atendidas por uma doutrina adequada da verdade nas ciéncias historicas. HA um primeiro sentido da des- proporgao, e é ele que depois Nietzsche teré continua- mente presente e se tornard o Leitmotiv de seu pensamen- to no chamado primeiro periodo de sua especulagao: en- quanto a filologia classica forma eruditos, os gregos nada tinham de eruditos, e nado havia vestigio de erudicéo em seu ideal de educagao. No periodo da grande filosofia grega (a filosofia pré-socratica), ou seja, naquela que Nietzsche chama de época tragica dos gregos, “o erudi- to é uma figura desconhecida”. Os gtegos sao antes poe- tas, precisamente, diante de cuja obra o erudito se reve- la incapaz de qualquer compreensio adequada. No entanto, nao se trata de negar ao crudito a capa- cidade de uma fruigao estética das obras da antiguidade. Ao coniratio, a fruicao estética, no sentido moderno des- sa palavra, cnquanto ela indica uma esfera de experién- cia que nao tem nada a ver com verdadeiro e falso, bem e mal etc, é até um produto tipico da mesma civilizagao que produz o erudito. A esteticidade que caracteriza a ci- vilizagdo grega c suas producdes tem a ver, antes, coma propria maneira de se posicionar diante da verdade, uma maneira que ndo é racionalista e reflexiva, mas que tem de algum modo a imediacdo ea simplicidade caracteris~ ticas da obra de arte’. No entanto, além desses dois sentidos to radical- mente opostos de esteticidade, existe um outro em que se pode dizer que o conhecimento histérico, para ser au- 2. Werke, vol. IL, pp. 342 e 362. 3. CE. Werke, vol. Il, pp. 364-5. O PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTORICO 85 .4éntico, deve ser um fato estético, em um sentido que nao estA distante de um dos significados modernos de esteticidade. De fato, Nietzsche diz que uma “civilizacao é antes de tudo a unidade de um estilo artistico em to- das as manifestagdes de vida de um povo”'. A unidade -do estilo artistico implica uma unidade mais profunda e mais ampla, que é precisamente a unidade “estética”, ou seja, organica e definida, de uma certa civilizagao. En- quanto unitaria, caracterizada por uma ccrta “forma” (que obviamente pode ser também um sistema de con- ceitos), uma civilizagao é um fato estético. Paralelamen- te, o fildlogo, para abordar o préprio objeto de modo menos-inadequado, deveria scr capaz de reconstruir in- tuilivamente grandes totalidades. O conhecimento filo- légico quase sempre tem um carater analitico que o faz perder de vista os vinculos ou, caso se queira, a totalida- de das épocas com que depara: 0 que estd ligado ao fato de que o fildlogo carece de um ponto de vista total sobre o mundo, também ¢ antes de tudo sobre o mundo de seu tempo, e por conseguinte ndo pode compreender a his- téria em suas grandes conexdes, nem sequer a historia do passado de que se ocupa. Ele se parece mais com um “operario da industria a servico da ciéncia” e perdeu todo gosto “de abragar uma totalidade maior ou de instituir novos pontos de vista sobre o mundo”’*. Essa capacidade pode, portanto, ser considerada estética no sentido em que a compreensao de um todo como organicamente es- truturado tem algo de estético. Mas 0 sentido em que Nietzsche vinculara essa “es- teticidade” da compreensao historica com a esteticidade, 4. Consideragées extemporineas. I. David Strauss, Der Bekenner und der Schriftsteller, 1. 5. Werke, vol. I, p. 296. 86 DIALOGO COM NIETZSCHE por assim dizer, existencial, que ele peculiarmente teori- za ¢ que encontra na civilizagdo tragica, é diferente e mais profundo. A passagem ser realizada por meio da relacao inseparavel que nao se pode deixar de reconhecer entre organicidade e vida em ato, ainda que essa ligacdo pos- sa ser apontada no Ambito da interpretagdo e nao emer- ja tematica e explicitamente em seus textos. E certo, contudo, que o filélogo-erudito nao com- preende o passado em suas formagées abrangentes, o aspecto estrutural das épocas e das grandes unidades hist6ricas, porque n&o possui um ponto de vista geral so- bre o mundo. Ora, “a compreensio historica nado 6 senao a concepcao de determinados fatos com base em pres- supostos filosdficos”*. Um fato histérico é alguma coisa de “infinito jamais plenamente reprodutivel”’. Mas essa infinitude (e nesse ponto Nietzsche se revela classicista, ou seja, apreciador da forma definida e acabada) é uma “ma infinitude”: ao menos se é compreendida como a impossibilidade de uma reprodugio total do fato, jé que de qualquer modo o conhecimento histérico nao deve ter a pretensdo de “reproduzir” 0 passado que deseja conhe- cer. Aliés, um dos perigos que ameacam a historiografia é justamente o perigo de ela se propor simplesmente nos fazer reviver sentimentos e estados de espirito do passa- do; contra esse tipo de historiografia vale o lema evangé- lico: “deixem que os mortos sepultem os seus mortos”*. _ A infinitude do fato hist6rico, concebida dessa ma- neira, é justamente, quando muito, aquela que justifica- ria um trabalho filoldgico de tipo erudito e analitico. Na verdade, 0 fato hist6tico “4nfinito”, jamais perfeitamente 6. Werke, vol. II, p- 339. 7. Ibid. 8. Opere, vol. LV, tomo I, p. 148. @ PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTORICO 87 reprodutivel, nao pode ser objcto de uma representagao otal ¢ organica,.como a que Nietzsche deseja. Esta sé é possivel se, reconhecida essa “ma infinitude”, se vai até 0 fim e se reconhece também que ela é apenas sinal de uma concepgao equivocada da verdade como objetivida- de e reflexo fiel dos fatos. Nao foram os eruditos e os co- letores de fatos que fizeram a filologia progredir: “a for- ga poética e o instinto criativo produziram o melhor na filologia. A maior influéncia foi exercida por alguns belos erros’’. O texto como tal oferece sempre infinitas possi- bilidades de leitura; uma leitura se concretiza na medida em que se escolhem alguns pressupostos, uma petspec- iva definida". De um lado, portanto, a filologia objetiva como erudigao e verificacaio dos fatos nado é apropriada ara o conhecimento de seu objeto porque o deixa esca- par em sua verdadeira e completa estrutura de fato total. A “ma infinitude” do fato, sua reprodutibilidade nunca perfeita, nos poe em guarda, por assim dizer a partir de dentro, contra a concepgao da verdade (historiografica, por enquanto) como conformidade perfeita ao dado. Po- rém, mais profundamente, o problema se esclarece por- que também nos coloca na presenca de uma infinitude . “boa” do fato histérico, aquela que, positivamente, exige um certo tipo de conhecimento e fornece indicagdes para uma doutrina mais aceitavel da verdade. A verdadeira razdo pela qual o erudito nao pode compreender adequadamente o fato histérico € que o fato é algo vivo, em sua atualidade, enquanto o erudito o mumifica e 0 esgota, entende-o como algo morto". Para 9. Werke, vol. 1, p. 296. 10. Cf. Werke, vol. Il, p. 360. IL. Cf. Consideragdes extemportneas I. Da utilidade e desvantagem da historia para a vida, 6. 88 DIALOGO COM NIETZSCHE poder fazer enunciados definitivos, documentados e ir- refutaveis, dos quais tanto gostam os fildlogos objctivos, 0 fato histrico precisa estar completamente motto, dis- tanciado de nés, definido em uma estrutura imutavel, Quando é entendido dessa forma, é precisamente sua natureza de fato histdrico que se deixa escapar comple- tamente. Aqui, é intitil lembrar, é evidente quanto o his- toricismo contemporaneo deve a Nietzsche, especialmen- te Dilthey, para além das formulas mais vagas que falam de “vitalismo”; o que nos importa destacar, porém, é que, em relac&o a Nietzsche, o préprio Dilthey, com a perma- nente adesao a um ideal no fundo empirista do conhcci- mento, acaba permanecendo muito mais ancorado a no- ¢ao tradicional da verdade como conformidade, ao pas- so que Nietzsche segue a linha de importantes desen- volvimentos ontoldégicos”. A historicidade da existéncia consiste no seu ser um “nic zu vollendes Imperfektum’””, férmula que lembra Dilthey. Para esse tipo de “fatos”, pata esses “imperfei- tos” que nunca sao pretérito perfeito, o conhecimento objetivo que constituia o ideal do positivismo cientifico nado é absolutamente adequado. O questionamento da nogado tradicional da verdade como objetividade, inicia- do aqui no plano do conhecimento histérico, se esten- deré a todo 0 Ambito do conhecimento, incluindo o das chamadas ciéncias da natureza, e veremos até que, para Nietzsche, a prdépria distincao entre ciéncias da nature- zac ciéncias do espirito nao tera nenhum sentido. Aqui, 12. Dai a limitagao das interpretag6es de Nietzsche que tendem a destacar sua contribuicéo para a formacao do historicismo alemao con- temporaneo: veja-se, por exemplo, a obra de M. Schoeck, Nietzsches Phi- losophie des “Menschlich — Allzumenschlichen”, Tabingen, Moly, 1948. 13. Da utilidade e desuantagem, 1. O PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTORICO 89 or enquanto, importa ressaltar que a verdadeira infini- tude do fato hist6rico nao é sua reprodutibilidade nun- ca perfeita; ou melhor, essa ma infinitude leva-nos a evidenciar outro sentido do caratcr infinito do fato, ou seja, sua abertura constitutiva, que faz com que diante dele jamais seja possivel um comportamento “objetivo”. Ao contrario, quem quer realizar esse comportamento é o erudito, que depara com uma dupla derrota porque, de um lado, jamais conseguira reproduzir o fato em sua inteireza; c, seja como for, o que conseguiria obtcr, even- tualmente, com esses métodos de reconstrugao e de re- produgao nao seria jamais o fato histérico em sua con- creta atualidade. Determinacio e abertura do horizonte historiografico Diante disso, vemos como o verdadeiro problema da filologia e do conhecimento histérico é 0 de abordar um fato com um comportamento igualmente histérico; 0 de entrar vivendo em relacgéo com outro evento enquan- to evento vivo. Os pressupostos filos6ficos com base nos quais os fatos histéricos devem ser compreendidos reve- lam-se, assim, nao tanto, ou n4o apenas, necessdrios me- todologicamente para chegar ao fato; ao qual, como sa- bemos, nunca se chega “objetivamente”, portanto nem sequer empregando aquelas perspectivas gerais como instrumentos a servico de tal objetividade. Ao contrario, os pressupostos filosGficos ¢ as perspeclivas gerais sao mais necessdrios para garantir quc o conhecimento c a compreensao histérica sejam um fato de vida, e s6 en- quanto tais podem ser considerados adequados para a 90 DIALOGO COM NIETZSCHE compreensao da historicidade em sua abertura de “im- perfeito jamais perfectivel”. E em vista dessa compreensao historiografica, e ela mesma histérica, entendida como ato de vida e nao como (impossivel) reflexo objetivo do fato, que “o filélo- go deve compreender trés coisas: a antiguidade, o pre- sente ¢ a si mesmo”. Obviamente, 0 que se deve fazer é esclarecer essa nocdo de “vida”, que por ora é apenas esbocada no conceito de imperfeito jamais pertfectivel e na nogao de uma “unidade estilistica” exemplificada so- bretudo pela civilizacdo grega. JA nesse conceito de vida aqui delineado, embrionariamente, para opor, a nogdo de verdade como conformidade ao dado e objetividade, uma nocaéo mais adequada ao cardter vivente tanto do objeto como do sujeito do conhecimento histérico, anun- cia-se aquele carater “instituinte” que, no pensamento do Nietzsche maduro, serd préprio da vontade de po- téncia, da forca, em geral de todas as nogées que servi- rao para indicar ¢ para ilustrar o carater do ser. De fato, desde essas reflexées sobre o conhecimento histérico, o conceito de “forga” mostra-se essencial: é importante fa- zer essa observagao, porque a forga de que falara Nietz- sche no Wille zur Macht e nos outros escritos da maturi- dade deverd ser compreendida justamente com base nesse primeiro uso, para evitar os tao frequentes equivo- cos naturalistas. : Quem julga, interpreta, reconstréi o passado naque- las totalidades organicas compreendidas com base nos “pressupostos filos6ficos” é a “maior forca do presente”, Até mesmo 0 conceito de justia, paralelo ao de Rang- 14. Opere, vol. IV, caderno 3, fr. 62. 15. Da utilidade e desvantagem, 6. @ PROBLEMA DO CONHECIMENTO HiISTORICO 91 ordnung, que tera tanta importancia no Wille zur Macht, nasce e se evidencia pela primeira vez nessas reflexdes sobre o conhecimento histérico. A verdade de tal conhe- cimento,-diz Nietzsche, nao pode ser concebida nos mol- des das ciéncias naturais", mas como justiga, como or- dem que uma forca estabelece entre os fatos, dando a cada aspecto e elemento um lugar préprio, estabelecen- do uma hierarquia’’. Todas esses conceitos retornarao no Wille zur Macht e conservarao também ali um sentido li- gado a essa sua origem hermenéutica. Em suma, a forma adequada de abordar e de com~- preender os fatos histéricos, ¢ antes de tudo os textos es- critos e as obras, que sao as formagées mais complctas, as instituicdes mais definidas que o passado nos deixou, é ir ao encontro deles de maneira viva: o que para Nietz- sche, nesta primeira fase de seu pensamento e sempre também em seguida, ainda que de forma e com concei- tos mais claborados, significa encontraé-los como abertos e como sujeitos a um ato de interpretagao e sistematiza- cao de nossa parte. Esse ato nao deve, antes de tudo, ser objetivo: o importante é que seja dirigido por uma visao geral slida, profunda, organica. A hipdtese historiogré- fica nao verifica sua validade em comparagado com o fato, quase como’se o fato, contrapondo-se a ela como algo externo, pudesse confirmé-la ou desmenti-la. O que de- cide é aquilo que Nietzsche denomina “a altura dos pres- supostos”: “A compreensao histérica nada mais é que a concepcéo de determinados fatos com base em pressu~ postos filoséficos. A altura (Héhe) (ou nivel) dos pres- supostos determina o valor da compreensao histérica.”"* 16, Da utilidade e desvantagem, 4. 17. Da utilidade e desvantagem, 6. 18. Werke, vol. IL, p. 339, e Opere, vol. III, tomo 3, parte 2, p. 247. 92 DIALOGO COM NIETZSCHE Se buscamos em outros escritos nietzschianos da mesma época, ou pouco posteriores, algo que possa es- clarecer essa nocdo de “altura” ou de “nivel” dos pres- supostos filosdficos, ndéo encontramos nada mais, por exemplo na segunda Consideracéo extempordnea, que a ideia de uma unidade estilistica, de uma delimitacdo e solidez de estruturas, que decidem n&o tanto sobre a adequacao da interpretagao ao objeto quanto sobre a ca- pacidade de tal interpretagdo de viver, de consistir como fato vivo. A tnica adequaco possivel na compreensio histérica é a forca instituinte de uma interpretagéo que, vivendo, da vida ao passado, compreendendo-o. E indtil objetar que, nesse caso, o conhecimento his- torico torna-se algo arbitrario, e que a historia se reduz A historiografia. Tudo isso se insere ainda em um Ambito de pensamento que considera a conformidade ao dado como critério de verdade, ao passo que aqui Nietzsche esta justamente verificando a impossibilidade, em qual- quer circunstancia, de que uma tal nog&o de verdade possa explicar ¢ justificar 0 conhecimento histérico, ain- da que por ora nado apresente uma alternativa totalmen- te e nitidamente determinada. Por outro lado, o fato de ele estar bem distante de querer reduzir a filologia a puro arbitrio, a reconstrucdo fantasiosa do passado, é de- monstrado, ao menos no ambito metodoldgico, pela im- portancia que, nesses escritos, ele atribui ao rigor da ve- rificacdo critica dos textos. O que Ihe importa, porém, é deixar claro que essa verificagao critica nao é suficiente, ainda néo significa nada, é apenas um momento preli- minar (mas também ja “interno”, nunca completamente aut6nomo) do auténtico conhecimento da histéria, que s6 pode ser um ato de vida, no sentido de interpretacao, justiga — como vimos ilustrando até aqui. O PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTORICO 93 Longe de ser algo cadtico, irracional etc., a vida pre- cisa de um “horizonte determinado””, ou seja, para usar uma.expressao que Nietzsche emprega no mesmo escri- to, precisa de um estilo: nunca se insistira o bastante nesse conceito, jA que com muita frequéncia a nogao de vida em Nietzsche apareceu como equivalente 4 de um fluxo desordenado, de uma forga irracional, isto é, sem lei nem limite. Ora, se 6 verdade que também ocorre tudo isso, por ora vamos extrait desses escritos sobre o conhecimento histérico e sobre a filologia, que estamos examinando, um elemento que Nietzsche jamais aban- donara no decorrer de seu itinerdrio especulativo: o con- ceito de unidade estilistica, ou, se quisermos dizé-lo em outros termos, de forma ou estrutura, do qual a vida é in- separavel. A ponto, como se disse, de a possibilidade de abordar de maneira viva a vida do evento histdérico, ou seja, sua atualidade de evento, sua constitutiva abertura de imperfeito, ser condicionada precisamente pelo fato de aborda-la com uma sdlida estrutura de pressupostos, encerrando-a em um horizonte determinado. Mas, as- sim como existe uma “ma infinitude” do fato histérico, existe também uma “mda determinagéo”: é a do Historis- mus, entendido como ideal do delineamento completo de uma situagao em todos 0s seus componentes e cone- x6es histéricas™. Ja se disse que essa determinagio definitiva do fato histérico nao é possivel, justamente por causa de sua (mé) infinitude. Mas quando o historiador pretende ter sucesso nesse empreendimento, e com 0 actimulo de da- dos tem a ilusdo de ter conseguido, entdo o fato histéri- 19. Da utilidade e desvantagem, 1. 20. Da utilidade e desvantagem, 9.

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