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Wilson Martins A palavra escrita Historia do livro, da imprensa e da biblioteca. Com um capitulo referente a propriedade literaria Terceira edigao llustrada, revista e atualizada CO ritalo 1 Pré-histéria do livro © que antes de mais nada e acima de tudo distingue o homem é 2 sua capacidade de abstragdo. E por ela e gracas a ela que o ser huma- no se Tibertou da escravidio ao mundo material a que vivem presos todos os outros animais; é na abstrago que encontramos a fonte de todo o seu desenvolvimento espiritual. Nao & a vida do espirito que ori- ginow a abstracio; é a abstract que originow a vida do espirito. Tudo indica que © homem pré-histérico possufa a mesma inteligéncia redu- zida dos animais de grande porte e talvez menor ainda que a deles: 0 homem se diferenciou espiritualmente no momento em que vitalizou essa centelha no primeiro fulgor abstrativo e a fez multiplicar-se infi- nitamente sobre si mesma. Nesse instante & que se criou 0 homem: nele nascia a sua qualidade mais alta e mais nobre, a que verdadeiramente 0 define. Para nao sair estritamente do nosso tema, foi a abstragio que permitiu 0 aparecimento da linguagem:; ora, a linguagem é 0 segredo ¢ a explicagdo do homem, A linguagem, por absurdo que parega, & que vai permitir a invengdo da mao: na mio e na linguagem esta contida toda a historia do homem. E 0 que-dizia com grande agudeza Henri Berr no prefacio do conhecido livro de Vendryés sobre a linguagem: AA linguagem, a principio emotiva e ativa, @ seguir sintética, & medida que se diferencia para distinguir os objetos, as propriedades, os estados, que se Alexibiliza para exprimir as relagdes mais variadas do real por meio de palavras, esvaziadas de seu sentido particular, que adquirem um valor abs- rato e geral de categorias gramaticas, a linguagem pouco a pouco eleva- dda a uma potEncia extraordinéria, constitui em fumgdo a faculdade de dis- cemir o semelhante e o diferente, em seguida de absteait e de generalizar, que é imanente & vida como a de sentir o agradavel e o penoso; ¢ ela per mite uma tomada de posse mais penetrante e mais extensa das coisas. B ppor ser homo faber, mas muito mais por ser homo loquens que o homem & homo Sapiens. Parece que 0 desenvolvimento da linguagem seguiu de perto 0 desenvolvimento da apaclIisgeus aici. E que a mao comegou a sentir os objetos quando os primeiros nomes comegaram a Ihes dar uma existéncia, se ndo auténoma, pelo menos desligivel do conjunto indistinto em que antes disso se per- diam, Mas, justamente, essa possibilidade de abstragio como que se To Ven Le lange, XX (© LIVRO MANUSCRITO == 18 revelava a si mesma em suas infinitas possibilidades. A partir desse ‘momento, a mio vai também criar o espirito. F significative que os poetas hajam percebido essas relagdes, exprimindo-as por meio de imagens subconscientes. Assim Hordcio, que aconselhava aos poetas do seu tempo volver aos modelos gregos com mao noturna e diurna, assimilando o trabalho criador com o gesto manual de virar as paginas. Em carta de 27/5/1867, Mallarmé escreveu ao amigo Eugene Lefébure sobre a sua tentativa de transferir 0 pensamento do eérebro para a mao, cabendo observat, a propésito, que o poeta entre todos paradigmético do “lance de dados” (publicado pela primeira vez na revista Cosmopotis em 1897) sugere, antes de mais nada, um gesto manual (ndio s6 do jogador, mas também do semeador). Wyndham Lewis, para citar apenas mais um exemplo, via James Joyce essencialmente como arteso, mais executante que inventor: “o que o estimula & a maneira de fazer as coisas, 0s processos tecnicos, endo as coisas que devem ser _feitas [...] pouco Ihe importava o que escrevia ou a idéia a transmitir, desde que exercitasse a mao desta ou daquela forma”. Num “Elogio da mio” que seria preciso citar por inteiro, Henri Focillon escrevia que I'esprit fait la main, fa main fait lesprit. Mais tarde, mum salto vertiginoso pelos séculos, encontraremos a mesma obscura colaboragio na obra dos maiores artistas, na qual no se pode em verdade distinguir o que nasceu no espirito e o que proveio da mao. Na fonte dessa maravilhosa autonomia da mio — que nao pod exist se alguns milénios antes nao se tivesse manifestado 2 autonomia do espirito — esta 0 processo de libertago do homem, que, com 0 espirito ¢ com a mio, se liberava pouco a pouco do mundo material. E assim, como lembrava ainda Henri Focillon, € pelas mis que se modelou a linguagem, a principio vivida pelo corpo todo inteiroe mimada pelas dangas. Para os usos correntes da Vda, 0s ges tos da mio Ihe deram impulso, contibuiram a artiulé-l, a separar-the os elementos, a isoli-los num vasto sineretismo sonoro a rtmé-lae, mesmo, ‘a colorila de suis inflexses. Dessa mimnica da palavra, dessas trocas entre 4 vod € as mis, rest alguma coisa no que 0s antigos chamavam a agdo ‘oratria. A diferenciagdo psicoldgicaespecializou os érgios ¢as fancies Eles quase no colaboram mais. Falando com a boca, calamo-nos com as mos, e, em alguns lugares, € de mau gosto exprimir-se ao mesmo tempo ‘com a voz. como gest; outos, ao contro, conservaram com vivacida- «de essa dupla poética: mesmo quando os seus efeitos so um pouco vulga- res, ela traduz com exatidzo um estado antigo do homem, a recordaso dos seus esforgos para inventar um modo inédito ea Felon, He det formes, 18 Assim, o homem da caverna utilizando as mios nas primeiras tentativas de talhar a pedra, exercia na realidade um prodigioso esfor- 0 de abstragdo, trabalhava mentalmente, na sua rudeza bronca, mais que 0 grande sébio moderno, precedido de toda uma civilizago prepa- ratoria: a mfo, fazendo a coisa, gragas ao comando de um espitito ainda obscuro © pesado, ia, por seu lado, perinilis v uparecimento da linguagem, e mesmo provocé-lo, Que seja o nome ou o grito, a frase ua palavra que tenham aparecido inicialmente, a linguagem represen- tava o principio da grande dominagao do homem sobre as coisas, O que os filésofos chamaram de razio ni & sendo 0 conjunto da capa- cidade abstrativa do homem: e se ele se pode definir como um “animal social” € que a definigdo essencial esté em ser um animal abstrativo. E © que escrevia Louis Couturat, citado por Henri Berr: “O homem niio tem a razo por ser um animal social ou ‘politico’, como dizia Aristételes; ele é um animal social porque possui a razao”. A linguagem A linguagem 6, assim, do ponto de vista psicolégico, como a definia Vendryes, a atribuigdo de um valor simbélico ao sinal - - pro- cesso que se funda, antes de mais nada, na abstragio e que, por isso ‘mesmo, se distingue da “linguagem” de todos os outros animais, Esta Ultima seria uma linguagem “natural”, enquanto a linguagem do homem é “artificial” e “convencional”: 4 linguagem humana no & monos natitral que a do animal, mas se situa ‘num grau superior, porque o homem, tendo dado aos sinais um valor obje~ tivo, pode fazé-lo variar por convengio infinitamente, A diferenga entre a Tinguagem animal e a humana esti na apreciagio da natureza do sinal, O iio, 0 macaeo, a ave, fazem-se compreender dos seus semelhantes; cles ‘mite gritos, gestos, cantos, que corresponidem a certos estados psiqui= os de alegria, de teror, de desejo, de apetite; alguns desses gritos sio tio bbem apropriados a necessidades particulares que se poderia quase traduzi- Jos por uma frase em linguagem humana, Fntretanto, os animais nfo for- ‘mam frases; cles sio incapazes de fazer variar os elementos dos seus gri- tos, por mais complexos que estes sejam, como nés fazemos variar as Nos- ‘ans palavras, que si, na fiase, elementos de substiulg8o, Para eles a frase nao se distingue da palavra. Ainda mais: essa palavra mesmo, grito ou sinal, como se quiser cham-la, nfo tem um valor objetivo independente Dessa forma, nfo € abjeto de convenclo, , por conseqiéncia, a linguagem animal no ¢ suseetivel de transformagdes nem de progressos; nio existe aparéncia de que o grto dos animais tenha sido outrora diferente do que & hoje. A ave que solta um grito para ehamar a mo portadora duma folha is 0 LIVRO MANUSCRITO =~ 20 de alface nfo tem consciéncia do seu grito como sinal. A linguagem ani mal implica uma aderéncia do sinal com a coisa significada, Para que a aderéncia cesse e 0 sinal adquira um valor independente do objeto, & necessiria uma operagio psicol6gica, que esta no ponto de partida da lin- ‘2uagem humana E Edward Sapir, escrevendo o artigo “Language” na Encyclopedia of the Social Sciences, chegava mesma conclusio, a0 observar que a linguagem ¢ 0 que nao-por causa do seu admirdvel poxler expressivo, mas a despeito dele: “a linguagem em si mesma ‘uma complexa e maravithosa mistura de dois sistemas de padres. o simbélico e 0 expressivo, nenium dos quais poder-se-ia desenvolver até a sua atual perfeigdo sem a interferéncia do outro”. Nada mais natural ¢ légico, portanto, que o pensamento, anterior superior is classificagdes gramaticais (que surgem de um imperativo racional nfo sabemos quantos milénios depois), fenha se realizado na linguagem por meio de blocos complexos e de sentido complexo, € no fragmentariamente, pela criagdo de palavra por palavra, como por tanto tempo se pensou. E a ligio de Vendryés, que Henri Berr resume a0 dizer que “a frase & anterior 8 palavra e que a palavra é anterior a sfla- ba”. Com efeito, a palavra jé representa um esforgo complementar de abstragdo com relagio a frase, da mesma forma por que a silaba repre- senta um esforgo de abstracio com relacio a palavra e a letra seré outro cesforgo de abstragdo com relacdo & silaba, Dessa maneira, poderiamos resumir esquematicamente toda a evolugao da linguagem nessa evolu- io do conereto para o abstrato, ou do menos abstrato para o cada vez ‘mais abstrato, Obtido o ponto de partida, que era o de atribuir ao sinal um valor simbdlico, pode-se dizer que todo o resto era apenas questo de tempo: o impulso inicial estava dado, Nao pode haver, por conseqiiéncia, nenhuma diivida quanto a natureza da linguagem: trata-se, como dizia Richards, de um fenéme- no emotivo, Se ela, “como exteriorizagio direta do pensamento se caractetiza pelo fato de que os seus elementos, as palavras, tém tanto um significado intuitivo-sensivel quanto Igico-conceptual, sem que nunca se possa determinar de um modo claro € inequivoco a relagio que existe entre ambos esses grupos de valores”, a verdade € que os aspectos “intuitivo-sensiveis” sio, nao apenas historicamente anterio- res, como parecem dominarfuncionalmente os demais. Eo que 3 Vendy. op. tp. HS. 4 Prnipter of ear orci, 273, 5 il Emig “a yen a inca Merri" nora colina Fou dea incl. 3 ce PRE pretendia notar ao resumir todo o problema, com a sua habitual agude- za, numa inica frase: “toda linguagem ¢ elipse”. O que se compreen- de melhor com o desenvolvimento que ele da ao tema: Se quero advertir o meu vizinho de que uma vespa entrou pela janela, nfo necessito de longos discursos. “Ateneo!” ou “la!” — uma palavra basta, uum gesto — desde que ele a veja tudo esta feito. Supondo que um disco Feprodurisse sem comentirios as conversas quotidianas de um casal de Provins ou de Angouléme, no compreenderiamos nada: faltar-nos-ia 0 contexto, isto é, as lembrangas comuns ¢ as percepeées comuns, a situagio o casal e seus empreendimentos, em summa 0 mundo tal como cada um dos interlocutores sabe que ele aparece 20 outro...6 Tudo na lingua € psicolégico, na conclusio de Saussure, “mesmo as suas manifestagdes materiais e mecanicas, como as mudan- as de sons”. Ora, quem diz psicolagico, nesses dominios, diz, na ver- dade, emotivo: a linguagem que exprime as idéias, exprime, antes de mais nada, os sentimentos’. Dai o fato de a linguagem, ao contririo do que se pensa comumente, no tet “nenhuma conexao direta com a rea~ lidade”®: ela é, na verdade, um duplo reflexo, visto que 0 homem somente percebe os objetos exteriores através dos sentidos, e a impres- do assim envolvida € que se reflete na linguagem. A natureza psicol6- gica da linguagem ja tinha sido realgada num livro eélebre de Arséne Darmesteter, para quem a seméntica faz parte da histéria da psicologia e nio da gramatica’. Outra nao é a conclusto dos estudiosos modernos, de tal forma que Henri Berr pode dizer que a linguagem &, desde as suas origens, psicologia cm ato. E em janeiro de 1898, comentando no Mercure de France o livto, entao recente, de Michel Bréal, La séman- sigue, Paul Valéry ja mostrava que uma verdadeira teoria da linguagem deveria consistir no estabelecimento das suas relagdes fundamentais com 0 que se chama, por hiptese, o espirito, pela simples determina- sao das “propriedades” que niio sio afetadas pelas diversas transforma- ‘des lingiiisticas. Essa posigdo € facilmente corroborada pela verdadei- ra identidade que existe entre a linguagem ¢ 0 pensamento. Nao ha pensamento sem expressio, ¢ a chamada “linguagem mental” no poderia existir se nfo fosse precedida da linguagem propriamente dita, Nos pensamos “frases”, no pensamos pensamentos: assim, a contra- prova demonstra que, se a linguagem é psicolégica, 0 pensamento, por Sinton 17. Yer Rally, rte de iinet Ip. 6,8 626, Seuzabth Sowell he urucre of pot, p8 CE havi des mos. 8. OLIVRO MANUSCRITO - 22 sua vez, é verbal, ainda que nao se exprima oralmente. i a conclustio a que parece chegar um dos mais conceituados filésofos contempo- raneos da linguagem: “A consciéncia existe, ¢ incontestavel, e atrés dela nada existe que possamos perceber. Mas ela nfo existe seniio acasalada & linguagem, endo é a primeira que aparece, é a segunda. Sua fungi & a de se perder nesta Gltima, obscuramente. Ela no pode nem se contemplar a si mesma sem passar pela linguagem””, Outro grande ensaista dos nossos dias, G. Morpurgo Tagliabue, escreve igualmente: No momento em que me ponho a formular mentalmente um discurso, j4 io se tratara mais de uma intuigdo mental mas de um discurso fisico, no qual os motores da laringe e da lingua ji esto interessados, no qual o pro ccesso vocal jéesti esbogado, e que & tio pouco intuigo quanto as palavras que pronuncio em vor. alta: nio ideais mas reais, Se penso, exasperade (Cao! Canalha! sem abrir a boca, estaiseguros de que nao se trata de urna intuisdo, mas de una invectiva teahwente prouuuciada vou bus Fei da, Trata-se de um discurso mimético, como posso mimar uma danga sem ‘me mexer, ¢ que nem por isso seré simples imaginagio!! Enfim, para Jean Hankiss, a “linguagem é 0 instrumento de and- lise do pensamento”, 0 que da com rara justeza e concisio a idéia de sua natureza especifica e, a0 mesmo tempo, demonstra ser correta a teoria acima exposta a respeito do processo pelo qual ela se formou. E isso nos conduz ao problema entre todos insolivel da origem da Jinguagem. © que fica dito & suficiente para discordar da hipétese de Vendryés segundo a qual a linguagem teria comegado por ser “um sim- ples canto ritmando a marcha ou o trabalho das mos, um grito como ‘0 do animal exprimindo a dor ou a alegria, manifestando o medo ou 0 petite”. F isso porque & pouco provavel, segundo vimos, que o grito tenha sido efetivamente o nicleo em torno do qual a linguagem veio a se formar por “diferenciagdes sucessivas”. Admitir essa teoria regressar as explicages onomatopaicas que so de todo em todo insatisfatorias. E que as hipéteses puramente lingiiisticas sfio insufi- jentes pot completo, 0 que, de resto, 0 proprio Vendryés admite na inspiragdo que, em conjunto, preside o seu livro, Arséne Darmesteter, mesmo se recusando a escolher qualquer das teorias correntes ou a levantar uma nova, parece-me em melhor terreno ao pensar que pce Pari, por Ml. Lefer, oan Pathan, p. 286, i ence dl se, p20, 25 La tase ep. 26°. , igualmente arredondada e fechada em cima, O R & 0 rho grego ‘maiisculo tal como visto em muitos monumentos antigos, isto é, com tum pequeno trago obliquo (F), que foi ligeiramente prolongado, Em suma, © alfabero latino timitou-se a suprimir ués sinais representando as aspira~ ‘Ges ch, ph, th, estranhas aos drgiios vocais dos habitantes da Tilia as ‘outras diferengas que o separam do grego comum ja se encontram no cal- cidiano. Mais tarde, os romanos sentiram, por diversas razées, a necessi- dade de juntar a essas letras o ¥ e © Z, imitando a respectiva forma dos _gregos. Enfim, inventaram 0 G para substituir o P, que se transformara em CC. Assim se completou o alfabeto de vinte-e-cineo letras de que nos servi mos, salvo as superfetagdes modernas do Je do U, que representam tm

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