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UMA CONCEPCAO MULTICULTURAL DE DIRETOS HUMANOS BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS FE com alguma perplexidade que nos tltimos tempos tenho observado a forma como os direitos humanos se transformaram na lin- guagem da politica progressista. De facto, durante muitos anos, apés a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da politica da Guerra Fria, e como tal foram considerados pela esquerda. Duplos critérios na avaliagdo das violagdes dos direitos humanos, com- placéneia para com ditadores amigos, defesa do sacrificio dos direitos hu- manos em nome dos objetivos do desenvolvimento — tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guiio emancipatério. Quer nos paises centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as forgas progressistas preferiram a linguagem da revolugao e do socialismo para formular uma politica emancipatéria. Todavia, com a crise aparentemente irreversivel destes projetos de emancipagéio, essas mesmas forgas pro- gressistas recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a lingua- gem da emancipacao. E como se os direitos humanos fossem evocados para preencher o vazio deixado pelo socialismo. Poderao realmente os di- reitos humanos preencher tal vazio? A minha resposta é um sim muito condicional. O meu objectivo neste trabalho é identificar as condiges em que os direitos humanos podem ser colocados ao servigo de uma politica progressista e emancipatéria. Tal tarefa exige que sejam clara mente entendidas as tensGes dialécticas que informam a modernidade oci- 1 Noutro trabalho, analiso com mais detalhe as tenses dialécticas da modemnidade ocidental (Santos, 1995). 106 LUA NOVA N°39—97 dental'. A crise que hoje afecta estas tensdes assinala, melhor que qual- quer outra coisa, os problemas que a modernidade ocidental actualmente defronta. Em minha opiniao, a politica de direitos humanos deste final de século é um factor-chave para compreender tal crise. Identifico ués tenses dialécticas. A primeira ocorre entre regu- Iago social e emancipagao social. Tenho vindo a afirmar que o paradigma da modernidade se baseia numa tensdo dialéctica entre regulagdo social e eman- cipagdo social, a qual est presente, mesmo que de modo dilufdo, na divisa positivista "ordem e progresso”. Neste final de século, esta tensiio deixou de ser uma tensdo criativa. A emancipacdo deixou de ser 0 outro da regulag3o para se tornar no duplo da regulagao. Enquanto até finais dos anos sessenta as crises de regulagao social suscitavam o fortalecimento das politicas emanci- patérias, hoje a crise da regulagdo social — simbolizada pela crise do Estado regulador e do Estado-Providéncia — e a crise da emancipagao social — simbolizada pela crise da revolugao social e do socialismo enquanto paradig- ma da transformagao social radical — sao simultdneas e alimentam-se uma da outra. A politica dos direitos humanos, que foi simultaneamente uma politica reguladora e uma politica emancipadora, est armadilhada nesta du- placrise, a0 mesmo tempo que é sinal do desejo de a ultrapassar. A segunda tensdo dialéctica ocorre entre o Estado € a sociedade civil. O Estado moderno, nao obstante apresentar-se como um Estado mi- nimalista, é potencialmente um Estado maximalista, pois a sociedade civil, enquanto © outro do-Estado, auto-reproduz-se através de leis e regulaces que dimanam do Estado e para as quais nado parecem existir limites, desde que as regras democraticas da produgao de leis sejam respeitadas. Os direi- tos humanos esto no cerne desta tens&o: enquanto a primeira geragdo de direitos humanos (0s direitos cfvicos e politicos) foi concebida como uma luta da sociedade civil contra o Estado, considerado como o principal vio- lador potencial dos direitos humanos, a segunda ¢ terceira geragoes (direi- tos econdmicos e sociais e direitos culturais, da qualidade de vida, etc) pressupGem que o Estado seja o principal garante dos direitos humanos. Por fim, a terceira tensao ocorre entre 0 Estado-nagao e o que de- signamos por globalizaco. O modelo politico da modernidade ocidental & um modelo de Estados-nagfo soberanos, coexistindo num sistema interna- cional de Estados igualmente soberanos — o sistema interestatal. A unidade e a escala privilegiadas, quer da regulagao social quer da emancipagao so- cial, € 0 Estado-nagao. O sistema interestatal foi sempre concebido como uma sociedade mais ou menos andrquica, regida por uma legalidade muito ténue, e mesmo o internacionalismo da classe operéria sempre foi mais uma aspiracdio do que uma realidad. Hoje, a crosio selectiva do Estado-nacao, imputével a intensificagao da globalizagéo, coloca a questiio de saber se, UMA CONCEPGAO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS 107 quer a regulacdo social quer a emancipagao social, deverdo ser deslocadas para o nfvel global. E neste sentido que jé se comecou a falar em sociedade civil global, governo global ¢ equidade global. Na primeira linha deste Processo esté 0 reconhecimento mundial da politica dos direitos humanos. A tensao, porém, repousa, por um lado, no facto de, tanto as violagdes dos direitos humanos, como as lutas em defesa deles continuarem a.ter uma de- cisiva dimensao nacional, e, por outro lado, no facto de, em aspectos cru- ciais, as atitudes perante os direitos humanos assentarem em pressupostos culturais especificos. A politica dos direitos humanos é basicamente uma politica cultural. Tanto assim € que poderemos mesmo pensar os direitos humanos como sinal do regresso do cultural, ¢ até mesmo do religioso, em finais de século. Ora, falar de cultura e de religido é falar de diferenga, de fronteiras, de particularismos. Como poderdo os direitos humanos ser uma politica simultaneamente cultural e global? Nesta ordem de idéias, 0 meu objectivo € desenvolver um qua- dro analitico capaz de reforgar 0 potencial emancipatério da politica dos direitos humanos no duplo contexto da globalizacéo, por um lado, e da fragmentagao cultural e da politica de identidades, por outro. A minha in- tengo € justificar uma politica progressista de direitos humanos com Ambito global e com legitimidade local. ACERCA DAS GLOBALIZACOES Comegarei por especificar 0 que entendo por globalizagio. A globalizagdo € muito dificil de definir. Muitas definiges centram-se na economia, ou seja, na nova economia mundial que emergiu nas dltimas duas décadas como consequéncia da intensificagao dramatica da transna- cionalizagdo da produgio de bens e servigos e dos mercados financeiros — um processo através do qual as empresas multinacionais ascenderam a uma preeminéncia sem precedentes como actores internacionais. Para os meus objectivos analiticos privilegio, no entanto, uma definicao de globa- lizago mais sensfvel as dimensdes sociais, politicas e culturais. Aquilo que habitualmente designamos por globalizagdo so, de facto, conjuntos diferenciados de relag6es sociais; diferentes conjuntos de relagdes sociais dio origem a diferentes fendmenos de globalizacao. Nestes termos, nao existe estritamente uma entidade tinica chamada globalizagao; existem, em vez disso, globalizagdes; em rigor, este termo s6 deveria ser usado no plu- ral. Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e nao substantivo, Por outro lado, enquanto feixes de relagées sociais, as globali- zages envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Frequente- 108 LUA NOVA N°39—97 mente, 0 discurso sobre globalizagao é a histéria dos vencedores contada pelos proprios. Na verdade, a vit6ria € aparentemente tdo absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena. Proponho, pois, a seguinte definigdo: a globalizagio € 0 proces- so pelo qual determinada condigio ou entidade local consegue estender a sua influéncia a todo o globo e, ao fazé-lo, desenvolve a capacidade de de- signar como local outra condigao social ou entidade rival. ‘As implicagées mais importantes desta definigdo so as se- guintes, Em primeiro lugar, perante as condig6es do sistema-mundo ociden- tal ndo existe globalizagiio genuina; aquilo a que chamamos globalizagao é sempre a globalizaciio bem sucedida de determinado localismo. Por outras palavras, nao existe condi¢ao global para a qual néo consigamos encontrar uma raiz local, uma imersao cultural especifica. Na realidade, no consigo pensar uma entidade sem tal enraizamento local; 0 Unico candidato possfvel, mas improvavel, seria a arquitectura interior dos aeroportos. A se- gunda implicagio é que a globalizacdo pressupde a localizagiio. De facto, vivemos tanto num mundo de localizacdo como num mundo de globali- zac¢ao. Portanto, em termos analiticos, seria igualmente correcto se de- finissemos a presente situacdo e os nossos tépicos de investigagao em ter- mos de localizagdo, em vez de globalizagiio. O motivo porque preferimos 0 iltimo termo € basicamente porque o discurso cientffico hegem@nico tende a privilegiar a historia do mundo na verso dos vencedores. Existem muitos exemplos de como a globalizagdo pressupde a localizagao. A lingua inglesa enquanto Ifngua franca é um desses exem- plos. A sua propagac&io enquanto lingua global implicou a localizacao de ‘outras Ifnguas potencialmente globais, nomeadamente a lingua francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globa- lizago, o seu sentido e explicagdo integrais ndio podem ser obtidos sem se ter em conta os processos adjacentes de relocalizagdo com ele ocorrendo em simultaneo ou sequencialmente. A globalizacao do sistema de estrelato de Hollywood contribuiu para a etnicizagao do sistema de estrelato do nema hindu. Analogamente, os actores franceses ou italianos dos anos 60 — de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello Mastroiani a Sofia Loren — que simbolizavam entio o modo universal de representar, parecem hoje, quando revemos os seus filmes, provincianamente europeus, se ndo mesmo curiosamente étnicos. A diferenga do olhar reside em que de entaio para c4 0 modo de representar holliwoodesco conseguiu globalizar-se. Para dar um exemplo de uma 4rea totalmente diferente, 4 medida que se globaliza o hambdrguer ou a pizza, localiza-se 0 bolo de bacalhau portu- gués ou a feijoada brasileira no sentido de que sero cada vez mais vistos como particularismos tipicos da sociedade portuguesa ou brasileira. UMA CONCEPGAO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS. 109 Uma das transformagées mais frequentemente associadas 2 globalizago é a compressdo tempo-espaco, ou seja, 0 processo social pelo qual os fendmenos se aceleram e se difundem pelo globo. Ainda que apa- rentemente monolitico, este processo combina situagdes e condigbes alta mente diferenciadas e, por esse motivo, nao pode ser analisado indepen- dentemente das relagdes de poder que respondem pelas diferentes formas de mobilidade temporal e espacial. Por um lado, existe a classe capitalista transnacional, aquela que realmente controla a compressdo tempo-espaco e que € capaz de a transformar a seu favor. Existem, por outro lado, as classes e grupos subordinados, como os trabalhadores migrantes ¢ os refu- giados, que nas duas tltimas décadas tém efectuado bastante movimen- taco transfronteiriga, mas que nao controlam, de modo algum, a com- pressio tempo-espaco. Entre os executivos das empresas multinacionais e os emigrantes e refugiados, os turistas representam um terceiro modo de producdo da compressdo tempo-espaco. Existem ainda os que contribuem fortemente para a globali- zagiio mas que, néo obstante, permanecem prisioneiros do seu tempo- espaco local. Os camponeses da Bolivia, do Peru e da Colémbia, ao culti- varem coca, contribuem decisivamente para uma cultura mundial da dro- ga, mas eles préprios permanecem “localizados” nas suas aldeias e mon- tanhas como desde sempre estiveram. Tal como os moradores das favelas do Rio, que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquanto as suas cangGes ¢ as suas dangas, sobretudo o samba, constituem hoje parte de uma cultura musical globalizada. Finalmente, e ainda noutra perspectiva, a competéncia global re- quer, por vezes, o acentuar da especificidade local. Muitos dos lugares turisticos de hoje tém de vincar o seu caracter exotico, verndculo e tradicional para poderem ser suficientementeatractivos no mercado global de turismo, Para dar conta destas assimetrias, a globalizagao, tal como suge- ti, deve ser sempre considerada no plural. Por outro lado, ha que conside- rar diferentes modos de produgiio da globalizago. Distingo quatro modos de produgao da globalizagao, os quais, em meu entender, dao origem a quatro formas de globalizagao. A primeira forma de globalizacio € 0 localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fendmeno local 6 globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transfor- magao da lingua inglesa em Ifngua franca, a globalizago do fast food americano ou da sua musica popular, ou a adop¢do mundial das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicagdes dos EUA. A segunda forma de globalizagao chamo globalismo localizado. Consiste no impacto especifico de priticas ¢ imperativos transnacionais 110 LUA NOVA N°39—97 nas condigdes locais, as quais so, por essa via, desestruturadas e reestru- turadas de modo a responder a esses imperativos transnacionais. Tais glo- balismos localizados induem: enclaves de comércio livre ou zonas francas; desflorestamento e destruigao maciga dos recursos naturais para pagamen- to da divida externa; uso turfstico de tesouros histéricos, lugares ou cerimonias religiosos, artesanato e vida selvagem; dumping ecolégico ("compra" pelos pafses do Terceiro Mundo de lixos t6xicos produzidos nos pafses capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversdo da agricultura de subsisténcia em agricultura para exportacZo como parte do “ajustamento estrutural"; etnicizagao do local de trabalho (desvalorizagio do salério pelo facto de os trabalhadores serem de um grupo étnico consi- derado "inferior" ou “menos exigente"). A divisdo internacional da produgdo da globalizaciio assume 0 seguinte padrao: os paises centrais especializam-se em localismos globali- zados, enquanto aos paises periféricos é imposta a escolha de globalismos localizados. O sistema-mundo € uma trama de globalismos localizados e localismos globalizados. Todavia, a intensificagdo de interacgdes globais pressupoe outros dois processos, os quais nao podem ser correctamente caracteriza- dos, nem como localismos globalizados, nem como globalismos localiza- dos. Designo o primeiro por cosmopolitismo. As formas predominantes de dominagao nao excluem aos Estados-nagdo, regides, classes ou grupos so- ciais subordinados a oportunidade de se organizarem transnacionalmente na defesa de interesses percebidos como comuns, ¢ de usarem em seu be- neficio as possibilidades de interac¢do transnacional criadas pelo sistema mundial. As actividades cosmopolitas induem, entre outras, didlogos e or- ganizagées Sul-Sul, organizagées mundiais de trabalhadores (a Federagio Mundial de Sindicatos e a Confederagao Internacional dos Sindicatos Li- vres), filantropia transnacional Norte-Sul, redes internacionais de assistén- cia juridica alternativa, organizag6es transnacionais de direitos humanos, redes mundiais de movimentos feministas, organizagdes nao governamen- tais (ONGs) transnacionais de militéncia anticapitalista, redes de movi- mentos € associagdes ecolégicas e de desenvolvimento alternativo, movi- mentos literérios, artisticos e cientificos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, no imperialistas, empenhados em estudos sob perspectivas pés-coloniais ou subalternas, etc, etc. O outro processo que nao pode ser adequadamente descrito, seja como localismo globalizado, seja como globalismo localizado, é a emer- géncia de temas que, pela sua natureza, so to globais como o préprio planeta e aos quais eu chamaria, recorrendo ao direito internacional, 0 pa- triménio comum da humanidade. Trata-se de temas que apenas fazem sen- UMA CONCEP(AO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS, mi tido enquanto reportados ao globo na sua totalidade: a sustentabilidade da vida humana na Terra, por exemplo, ou temas ambientais tais como a pro- tecg’io da camada de ozono, a preservacdo da Amaz6nia, a Antértida, a biodiversidade ou os fundos marinhos. Induo ainda nesta categoria a ex- ploragdo do espaco exterior, da lua e de outros planetas, uma vez que as interacgGes fisicas e simbélicas destes com a terra so também patriménio comum da humanidade, Todos estes temas se referem a recursos que, pela sua natureza, tém de ser geridos por fideicomissos da comunidade interna- cional em nome das geragées presentes e futuras. A preocupagao com 0 cosmopolitismo e com o patriménio co- mum da humanidade conheceu grande desenvolvimento nas tltimas déca- das, mas também fez, surgir poderosas resisténcias. O patriménio comum da humanidade, em especial, tem estado sob constante ataque por parte de pafses hegemnicos, sobretudo dos Estados Unidos. Os conflitos, as resis- téncias, as lutas € as coligagdes em torno do cosmopolitismo e do pa- triménio comum da humanidade demonstram que aquilo a que chamamos globalizago é na verdade um conjunto de arenas de lutas transfronteirigas. Neste contexto € util distinguir entre globalizagao de-cima-para- baixo e globalizacio de-baixo-para-cima, ou entre globalizagdo hegem6nica e globalizagao contra-hegeménica. O que eu denomino de localismo globali- zado e globalismo localizado sao globalizagées de-cima-para-baixo; cosmo- politismo e patriménio comum da humanidade sao globalizagées de-baixo- para-cima. OS DIREITOS HUMANOS ENQUANTO GUIAO EMANCIPATORIO A complexidade dos direitos humanos reside em que eles podem ser concebidos, quer como forma de localismo globalizado, quer como for ma de cosmopolitismo ou, por outras palavras, quer como globalizagao he- geménica, quer como globalizaciio contra-hegem6nica. Proponho-me de seguida identificar as condigdes culturais através das quais os direitos hu- manos podem ser concebidos como cosmopolitismo ou globalizagaio con- tra-hegeménica. A minha tese é que, enquanto forem concebidos como di- reitos humanos universais, os direitos humanos tenderdo a operar como localismo globalizado — uma forma de globalizagio de-cima-para-baixo. Serdo sempre um instrumento do "choque de civilizacdes" tal como o con- cebe Samuel Huntington (1993), ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do mundo ("the West against the rest"). A sua abrangéncia global serd obtida & custa da sua legitimidade local. Para poderem operar como forma 2 LUA NOVA N*39—97 de cosmopolitismo, como globalizagéo de-baixo-para-cima ou contra- hegeménica, os direitos humanos tém de ser reconceptualizados como mul- ticulturais. O multiculturalismo, tal como eu o entendo, € pré-condigao de uma relagdo equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competéncia global ¢ a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma polftica contra-hegeménica de direitos humanos no nosso tempo. E sabido que os direitos humanos no sdo universais na sua aplicag4o. Actualmente sao consensualmente identificados quatro regimes internacionais de aplicagéo de direitos humanos: 0 europeu, o inter- americano, 0 africano e 0 asidtico®. Mas serdo os direitos humanos univer- sais enquanto artefacto cultural, um tipo de invariante cultural, parte signifi- cativa de uma cultura global? Todas as culturas tendem a considerar os seus valores méximos como os mais abrangentes, mas apenas acultura ocidental tende a formulé-los como universais. Por isso mesmo, a questo da univer- salidade dos direitos humanos trai a universalidade do que questiona pelo modo como 0 questiona. Por outras palavras, a questo da universalidade € uma questdo particular, uma questo espectfica da cultura ocidental. © conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designada- mente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida ra- cionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior & restante realidade; 0 individuo possui uma dignidade absoluta e irredutfvel que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do in- dividuo exige que a sociedade esteja organizada de forma nao hierérquica, como soma de individuos livres (Panikkar 1984: 30). Uma vez que todos estes pressupostos sao claramente ocidentais e facilmente distinguiveis de outras concepgdes de dignidade humana em outras culturas, teremos de perguntar por que motivo a questo da universalidade dos direitos huma- nos se tornou tdo acesamente debatida. Ou por que razdo a universalidade sociolégica desta questo se sobrepés a sua universalidade filosGfica. Se observarmos a histéria dos direitos humanos no perfodo imediatamente a seguir A Segunda Grande Guerra, nfo € dificil concluir que as politicas de direitos humanos estiveram em geral ao servico dos in- teresses econdmicos e geo-politicos dos Estados capitalistas hegem6nicos. Um discurso generoso sedutor sobre os direitos humanos permitiu atroci- dades indescritfveis, as quais foram avaliadas de acordo com revoltante duplicidade de critérios. Escrevendo em 1981 sobre a manipulagao da temitica dos direitos humanos nos Estados Unidos pelos meios de comuni- 2 Para uma andlise mais aprofundada dos quatro regimes internacionais de direitos humanos, ver Santos, 1995: 330-37, e a bibliografia ai referida, UMA CONCEPCAO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS 13 cagdo social, Richard Falk identifica uma "politica de invisibilidade” e uma "politica de supervisibilidade”, Como exemplos da politica de invisi- bilidade menciona Falk a ocultagao total, pelos media, das noticias sobre o trégico genocfdio do povo Maubere em Timor Leste (que ceifou mais que 300.000 vidas) e a situagiio dos cerca de cem milhdes de "intocveis" na india. Como exemplos da polftica de supervisibilidade, Falk menciona a exuberdncia com que os atropelos pés-revolucionérios dos direitos huma- nos no Irdo e no Vietname foram relatados nos Estados Unidos. A verdade 6 que o mesmo pode dizer-se dos paises da Unido Européia, sendo o exem- plo mais gritante justamente o siléncio mantido sobre 0 genocfdio do povo Maubere, escondido dos europeus durante uma década, assim facilitando 0 continuo e préspero comércio com a Indonésia. A marca ocidental, ou melhor, ocidental liberal do discurso dominante dos direitos humanos pode ser facil mente identificada em mui- tos outros exemplos: na Declaracao Universal de 1948, elaborada sem a participago da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusi- vo de direitos individuais, com a tnica excepgao do direito colectivo a au- todeterminagao, 0 qual, no entanto, foi restringido aos povos subjugados pelo colonialismo europeu; na prioridade concedida aos direitos civis e politicos sobre os direitos econdmicos, sociais e culturais e no reconheci- mento do direito de propriedade como o primeiro e durante muitos anos, 0 nico direito econdmico. Mas hé também um outro lado desta questo. Em todo o mundo milhdes de pessoas e milhares de ONGs tém vindo a lutar pelos direitos humanos, muitas vezes correndo grandes riscos, em defesa de classes so- ciais e grupos oprimidos, em muitos casos vitimizados por Estados capita- listas autoritérios. Os objectivos politicos de tais lutas so frequentemente explicita ou implicitamente anticapitalistas. Gradualmente foram-se desen- volvendo discursos e priticas contra-hegemsnicos de direitos humanos, foram sendo propostas concepgdes no ocidentais de direitos humanos, foram-se organizando didlogos interculturais de direitos humanos. Neste dominio, a tarefa central da politica emancipatéria do nosso tempo con- siste em transformar a conceptualizagio e prética dos direitos humanos de um localismo globalizado num projecto cosmopolita. Passo a enumerar as principais premissas de uma tal transfor- mago. A primeira premissa é a superagdo do debate sobre universalismo € relativismo cultural. Trata-se de um debate intrinsecamente also, cujos con- ceitos polares sdo igualmente prejudiciais para uma concepgo emanci- patéria de direitos humanos. Todas as culturas so relativas, mas 0 relativis- mo cultural enquanto atitude filosGfica é incorrecto. Todas as culturas aspiram a preocupagdes e valores universais, mas o universalismo cultural, 14 LUA NOVA N°39—97 enquanto atitude filoséfica, é incorrecto. Contrao universalismo, hé que pro- por didlogos interculturais sobre preocupacées isomérficas. Contra o relati- vismo, hé que desenvolver critérios politicos para distinguir politica pro- gressista de politica conservadora, capacitagiio de desarme, emancipactio de regulacao. Na medida em que 0 debate despoletado pelos direitos humanos pode evoluir para um didlogo competitivo entre culturas diferentes sobre os principios de dignidade humana, é imperioso que tal competicao induza as coligac6es transnacionais a competir por valores ou exigéncias maximos, € ndo por valores ou exigéncias mfnimos (quais so os critérios verdadeira- mente minimos? os direitos humanos fundamentais? os menores denomina- dores comuns?). A adverténcia frequentemente ouvida hoje contra os incon- venientes de sobrecarregar a politica de direitos humanos com novos direitos ou com concepgdes mais exigentes de direitos humanos (Donnelly, 1989: 109-24) é uma manifestagdo tardia da redugao do potencial emanci- patorio da modernidade ocidental & emancipagdo de baixa intensidade possi- bilitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa in- tensidade como 0 outro lado de democracia de baixa intensidade. ‘A segunda premissa da transformagao cosmopolita dos direitos humanos é que todas as culturas possuem concepgbes de dignidade huma- na, mas nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos. Tor- na-se, por isso, importante identificar preocupages isomérficas entre dife- rentes culturas, Designagdes, conceitos e Weltanschaungen diferentes podem transmitir preocupagdes ou aspirages semelhantes ou mutuamente inteligfveis. Na secgdo seguinte darei alguns exemplos. A terceira premissa € que todas as culturas so incompletas e problematicas nas suas concepgées de dignidade humana. A incompletude provém da propria existéncia de uma pluralidade de culturas, pois, se cada cultura fosse to completa como se julga, existiria apenas uma s6 cultura. A idéia de completude esté na origem de um excesso de sentido de que parecem enfermar todas as culturas, ¢ € por isso que a incompletude é mais facilmente perceptfvel do exterior, a partir da perspectiva de outra cultura. Aumentar a consciéncia de incompletude cultural até ao seu maximo poss‘vel é uma das tarefas ais cruciais para a construgdo de uma concep¢ao multicultural de direitos humanos. A quarta premissa é que todas as culturas tém versdes diferentes de dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas com um cfrculo de reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais aber- tas a outras culturas do que outras. Por exemplo, a modernidade ocidental desdobrou-se em duas concepgses e praticas de direitos humanos profun- damente divergentes — a liberal e a marxista — uma dando prioridade aos direitos cfvicos e politicos, a outra dando prioridade aos direitos sociais e

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