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VERA LUCIA CALHEIROS MATA Revista Critica de Ciéncias Sociais Universidade Federal do Rio de Janeiro ARTUR NUNES GOMES Consultor da UNESCO no Brasil Gilberto Freyre, Casa grande & senzalae o mito de origem do povo brasileiro Investiga-se 0 papel de Gilberto Freyre, através da sua obra maior, Casa grande & senzala, na formacao manutengéo de nasso mito de ort gem nacional, ou seja, a crenga de @ sociedade brasileira resulta da iso harménica de trés_matrizes racials. Argumenta-se que 0 modelo de andlise freyriano, harmonizando os conirastes existentes nessa socie- dade, permite a permanéncia do «mito das irés ragas» como formador da que a obra de Gilberto Frayre é reve- ladora da capacidade adaptativa do brasileiro @ de sua tendéncia a evitar controntos. Essa caracteristica fez-se presente nas comemorapées dos 500 ‘Anos do Descobrimento do Brasil, quando, apesar de uma série de pro- festos haver colocado em xeque o modelo harmonizador (ambiguo?) da sociedade brasileira, percebeu-se que este permanece ideologicamente cult- vado pelas elites formadoras , sobre- idéla de «ser brasileiro». Conclul-se tudo, reprodutoras do ethos nacional, ecentemente, participamos de um evento sobre o sig- nificado do Descobrimento para as popula¢ées indigenas do Brasil. A tonica dos discursos das diferentes liderancas enfati- zava uma suposta incoeréncia no fato de se comemorarem os 500 anos. Parecia que, por um momento, se havia decretado recesso a irreversibilidade do processo historico. Até quando, da platéia um jovem declarou que se sentia brasileiro, des- cendente das trés racas formadoras. Para ele esta ascendén- cia era uma espécie de credo. Ele acreditava no seu mito de origem e nao conseguia pensar sua identidade sem esta ori- gem. Nao importava que fenotipicamente fosse caucasdide. Nao havia necessidade de provar se havia «sangue» negro ou Indio efetivamente presente em sua historia genética’. Se * Gabe salientar que 0 uso de tal expressao nao significa que acreditemos na transmissao de caracteristicas culturais através do sangue. Tal crenga, con- tudo, como mostra Abreu Filho (1982), é recorrente em varias culturas, inclu- No59 Fevereiro 2001 Apresentacao 93 94 Vera Lucia Mata Artur Nunes Gomes 1. Gilberto Freyre, Casa grande & senzalaea sua época — © conceito de cultura vs. 0 conceito de raga era brasileiro, descendia das trés ragas. Incorporava, assim, & sua biografia a propria histéria (ou mito) de seu povo. Por outro lado, ao folhearmos as primeiras paginas de documento da Comissao Nacional para as Comemoracoes do V Centenario do Descobrimento do Brasil, contendo as diretrizes deste evento, deparamo-nos com algumas expres- sdes e categorias que nos remeteram a um conhecido autor: Gilberto Freyre. Apesar de 0 mesmo nao ser citado em nenhum momento, saltou-nos aos olhos a efetiva presenga do pensamento gilbertiano no referido texto. Os dois episddios acima narrados agugaram nossa curio- sidade sobre a obra do «Mestre de Apipucos», na tentativa de compreender sua atualidade e recorréncia nas diferentes esferas de interpretagao da nacionalidade brasileira. Este trabalho se propée, assim, a analisar o papel de Gil- berto Freyre, através da sua obra maior, Casa grande & sen- Zala, na formagao e manutengao de nosso mito de origem nacional, ou seja, a crenga, largamente difundida, de que a sociedade brasileira resulta da fusdio harménica de trés matri- Zes raciais. Apesar do reducionismo das diferengas tedricas entre os conositos de raga e cultura, tal crenga legitimou-se enire os diversos segmentos da sociedade brasileira, a ponto de esta «fabula de identidade» ser considerada por Renato Ortiz (1985) «uma carteira de identidade dos brasileiros». Pretende ainda pensar por que seu trabalho de interpreta- ¢ao da sociedade patriarcal brasileira possibilita essa visdo naturalizada por parte do senso comum na construgdo deste mesmo mito, permitindo também que esta interpretagdo seja apropriada pelos representantes do Estado Brasileiro na construgao de uma explicagao oficial da origem e formagao do Brasil. Quando publica Casa grande & senzala, em 1933, Gil- berto Freyre traz para a discussao do meio intelectual brasi- leiro uma proposta tedrica que, até entdo, fora de pouco peso no pensamento social do pais — 0 conceito antropolégico de Cultura. Mais especificamente ainda, o conceito boasiano de Cultura. Como se sabe, Gilberto Freyre é um dos discipulos sive a nossa. Por outro lado, é interessante notar que entre as liderancas pre- sentes a0 debate, algumas nao apresentavam os caracteres somatoldgicos que se convencionou attibuir acs caboclos. Estas liderancas trabalhem com a dimensao politica da identidade éinica e nao com esteredtipos raciais. de Franz Boas?, o antropdlogo que sistematizou, nos Estados Unidos, o estudo dos povos através da analise da historia de sua produgao e especificidade cultural. Este conceito era entao a pega chave através da qual se pretendia combater os determinismos evolucionistas e sobre- tudo as idéias de que miscigenacdo racial geraria uma socie- dade disgénica, porque hibrida. Em vez de miscigenagao vamos pensar em aculturagdo, como a idéia capaz de expli- car a trajetoria historica dos colonizadores e colonizados (escravos ou nao) no Brasil. Ao letmos Casa grande & senzala, no podemos deixar de lembrar com quem o autor esta dialogando e que método de analise (culturalista) privilegia neste diélogo inovador. Até ento duas correntes mais importantes se ocupavam em explicar a sociedade brasileira e através desta explicagéo «prever» o futuro desta mesma sociedade, sempre a partir de seu componente racial. Futuro este, cuja viséo concretizada nos marinheiros brasileiros aportados em Nova lorque, moti- vara Gilberto Freyre a refletir sobre quem seriam estes «mulatos e cafuzos», «caricaturas de homens» que Ihe evo- cavam no exilio um Brasil distante (Freyre, 1980: Ivii).3 A primeira destas correntes, que previa a disgenia e cujo pensador mais importante era o conde Gobineau, via a mistura de racas (e culturas) como fator de decadéncia e degeneres- céncia da sociedade brasileira (e das novas sociedades ameri- canas, de modo geral, excetuando-se a norte-americana). ‘A outra que seria conhecida como a teoria do branquea- mento e que, acreditando também na primazia da raga branca sobre as demais, encontrava porém nesta mesma pri- mazia uma saida para os povos miscigenados. A raga branca acabaria por predominar sobre as demais, provocando nas populagdes miscigenadas das novas sociedades um pro- cesso de branqueamento através dos anos. Seyferth (1990) alerta para a ambigilidade presente na teoria do branqueamento visto ser a mesticagem, para seus tedricos, uma espécie de «mal necessario», pois, se acredita- vam, assim como Gobineau, na «desigualdade natural das Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, & o fundador da Antropologia Cuitural Americana, precursora na contestagéo aos pressuposios raciais para explicar a diversidade das sociedades humanas. 3 Temos aqui uma visdo disgénica de seres degradados pela miscigena- 0, que paradoxal e afortunademente, possibilta o autor a propor em sua obra Luma relativizagéo positiva do destino das populagSes mestigas. Gilberto Freyre eo mito de origem do povo brasileiro 95 96 Vera Lucia Mata Artur Nunes Gomes fagas humanas», viam no cruzamento das «ragas inferiores» com a «raga branca» uma evolu¢&o racial, tornando o Brasil cada vez mais «branco» e «civilizado». Tal purificagao étnica dar-se-ia com a entrada de imigrantes, razdo pela qual, os tedricos do branqueamento apregoavam a limitagdo da entrada no pais de imigrantes de «raga preta» e de orientais e estimulava-se a imigragao européia. Acreditava-se, desta maneira, que 0 gradual desapareci- mento do «sangue negro e indigena», conduziria o Brasil de uma situagao de «atraso» a uma condigao de pais «civili- zado».4 Exemplo cléssico de teérico do branqueamento foi Oliveira Vianna. Para ele, o Brasil constitui um vasto campo de fusao de racas, no qual vdrias combinages proporcionaram um «caldeamento éinico» peculiar. Numa postura evolucionista, estabelece uma hierarquizagao entre as trés ragas: a branca, ‘superior, e as outras duas (negra e vermelha — como desig- Nava os indios), «barbaras». Este autor, ao analisar as «ragas formadoras» do Brasil, trabalha com categorias da Antropolo- gia Fisica — desenvolvida na época, entre outros, por Broca e Quatrefage — tais como «caracteres somaticos e psicolégicos dos tipos nacionais», atribuindo a cada «raga» um tipo psico- légico distinto. Neste sentido, acredita na diversidade étnica dentro de cada «raga origindria»>, uma vez que «os seus representantes nao possuem todos a mesma unidade morto- légica, nem a mesma mentalidade » (Vianna, 1938: 140). Cabe notar que, na trilha da teoria do branqueamento e anteriormente a Oliveira Vianna, Silvio Romero, ainda no Segundo Reinado (1888), dedica um capitulo da sua Hist6ria da literatura brasileira & questao da formagéio do grupo étnico 4 Entretanto, cabe sallentar que nao havia, entre estes ta6rioos, uma tinica concepeao de imigrante ideal. Alguns, como Tavares Bastos ¢ Augusto de Car- valho (apud Seyferth, 1995), viam 0 imigrante aleméo como o preferido e justifi- cavam essa preferéncia nao por critSrios raciais, mas de classe. Estimulavam a imigracao de camponeses @ artesaos, que seriam aproveitados em projetos de esenvolvimento agricola. Acentuavam sua condicao religiosa de protestante come forma de combater o poder temporal da Igreja Catdiica, vista por eles ‘como obsticulo ao desenvolvimento econémico. Desta forma, como sinaliza ‘Seyferth (1995), esses teéricos preconizavam uma hierarquizagao dos imigran- les europeus, baseada na sua condigéo camponesa. Outros, como Oliveira Vianna, a quem voltaremos a nos referir, crticavam a imigragao anglo-saxénica © germénica por seu enquistamento dificuldade de se «misturarem-. Privilo- giavam, 2o inves, 0 imigrante mediterraneo, especialmente o ibérico, na esco- tha do modelo de imigragao a ser proposto. Seus argumentos se dirigem no sentido de uma maior suscetibilidade destes miscigenacao, além de profes- ‘sarem a raligido catélica, o que contribuiria para uma melhor integragdo com os brasileiros. brasileiro. Para ele, o Brasil apresentava-se como uma nagao em formagao, nao se constituindo em um grupo étnico defini- tivo, Seguidor, no Brasil, dos tedricos do racismo cientifico, em voga desde a segunda metade do século XIX, explica a diversidade cultural a partir de critérios biolégicos, traba- lhando com a idéia de que a pertenca a uma raca nao somente determina caracteristicas inatas a individuos e gru- pos como reserva a estes um lugar especifico na hierarquia social. Trabalhando com o conceito de raga, vé o Brasil como «um resultado pouco determinado de trés racas diversas... brancos arianos, indios tupi-guaranis, negros quase todos bantu e mestigos destas tres ragas» (Romero, 1888: 84-85). Para ele, em dois ou trés séculos a fuso étnica possibili- taria 0 aparecimento de um reforcando a nogao de inclusdo que perpassa todas as representagdes que esto em jogo na sedimentacao de nosso mito de ori- gem. A Casa Grande completada pela Senzala representa todo um sistema econémico, social, politico: de produgao (a monocultura latinfundiéria); de trabalho (a escravidéo); de transporte (0 carro de boi, o bangiié, a rede e 0 cavalo) de religido (o catolicismo de familia, com 0 capeléo subordinado ao pater familias, culto aos mortos etc.); de vida sexual e de familia (0 patriarcalismo polf- gamo). (Freyre, 1980: LXill) E 0 estudo da vida doméstica dos engenhos que permitira a Gilberto Freyre a «busca de um tempo perdido» que simbo- liza 0 tempo da formagao das bases da sociedade brasileira. Esse tempo, denominado por ele «tempo tribio», engloba o passado, o presente e 0 futuro. O uso desse conceito possibi- lita que, mesmo com o fim da casa grande e da senzala, a familia patriarcal continue a servir de modelo de explicacao das relagées domésticas no Brasil, mesmo levando-se em conta as transformagdes conjunturais decorridas ao longo dos anos.'§ Esse «tempo tribio» exprime uma temporalidade quase ritual e mitica, A semelhanga das notagdes de tempo verifica- das em outras sociedades.'7 Trata-se de um «tempo univer- sal» que expressa temporalidades regionalmente diferentes mas que fazem parte de um mesmo processo civilizat6rio. E um tempo «atemporal» na concepgao ocidental, que pode ser percebido no estilo narrativo, quase estrutural, caracteristico de Gilberto Freyre. E um fazer historia social com descrigao sincrénica concomitantemente, construindo um tempo social (tempo tribio).. Numa entrevista de 1980, concedida a Léda Rivas, Gil- berto Freyre se identifica como um «harmonizador de con- 45 «A mulher gentia temos que consideré-la [...] a base fisica da familia brasileira» (Froyro, 1980: 94). 10 A abrangéncia deste modelo é critcada por Mariza Corréa em seu artigo «Repensando a familia patriarcal brasileira. Neste a autora também faz restrigdes ao modelo usado por Antonio Candido no que se refere & familia patriarcal paulista. 17 Exemplos de notacao de tempo caracterizada pela nao linearidade dos eventos da vida social sao registrados em momentos ritualizados de quebra da ‘ordem cotidiana em comunidades indigenas e comunidades airo-bresileiras. trastes».1® Talvez esta auto-identificagéo contenha a chave de que necessitamos para compreender uma das caracteris ticas da analise gilbertiana - sua tendéncia a uma aborda- gem inclusiva / compreensiva na qual 0 conflito nao aparece como objeto de interesse maior, mas antes como algo que se supera ao longo do processo de mudanga social e de acultu- rag&o. Esta postura o leva a desmistificar duas crengas tradi- cionais (@ construir uma terceira): 1—aquela que apregoava a idéia de ser 0 tropico espago inadequado a formas mais avangadas de civilizacao. 2-aquela que julgava que o mestigo do europeu com o n&o europeu seria incapaz de preservar e transmitir os valores daquelas culturas. A partir dos conceitos de aclimatabilidade (Freyre, 1980: 11) e miscibilidade (ibid.: 9) 0s aparentes «pares de oposigao» branco/negro, casa grande/senzala, senhor/escravo, parecem acabar por se harmonizar, dando origem a uma situacao nova. Esta abordagem, que nos reporta ao Malinowski de Uma teoria cientifica da cultura, 6 extremamente importante pois deixa evidente a sua crenga em que destes contactos aparentemente de oposigdes aparece sempre uma situagao nova, resultante do binémio mudanga social / aculturagao: A casa grande de engenho que 0 colonizador comegou, ainda no século XVI, a levantar no Brasil [...] ndo foi nenhuma reprodugao das casas porluguesas, mas uma expresso nova, correspon- dendo ao nosso ambiente fisico e a uma nova e surpreendente fase do imperialismo portugués. (Freyre, 1980: LXIII) Tempo e espago atuam neste exemplo como desenca- deadores de mudanga e de aculturacdo. Para Gilberto Freyre, 6 ancorada na senzala que a casa grande ganha forga social. Assim sendo, o ponto de partida para a compreensao do processo de formagao de uma identi- dade nacional reside, por exemplo, na percepcao da reali- dade do continuum casa grande-senzala e nao de sua oposi- go. Embora os elementos deste complexo sugiram antago- nismo, este na realidade nao ocorre porque os elementos se interpenetram gragas a um processo de troca, que se da na ~ 18 <0 Anarquista de Apipucos». Entrevista concedida a Léda Rivas do Dié- rio, em 15 de margo de 1980. Gilberto Freyre e 0 mito de origem do povo brasileiro 109 110 Vera Lucia Mata Artur Nunes Gomes aculturagao. Este constante processo de troca seria a marca da especificidade da sociedade brasileira e de seu ethos har- monizador. Em vez do conflito verifica-se uma relagéo de equilibrio que se completa com a convivéncia, o dia-a-dia no seio da familia patriarcal que funciona como protétipo deste modelo. A partir da percepgao do todo, ou seja, do nacional como uma soma de ragas, regides @ culturas, Gilberto Freyro afasta a possibilidade de uma relago contraditéria ou confli- tuosa dominador/dominado. Hibrida desde 0 inicio, a sociedade brasileira é de todas da Amé- rica a que se constitui mais harmoniosamente quanto as relagdes de raga: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no maximo de aproveitamento dos valores © expe- riéncias dos povos atrasados pelo adiantado, no maximo de con- temporizago da cultura adventicia com a nativa, da do conquis- tador com a do conquistado. (Freyre, 1980: 91) Abem da verdade, as idéias de miscibilidade e de aclima- tabilidade bem como de mobilidade (de que nao tratamos, no momento) jé so usadas pelo autor para forjar ainda em Por- tugal uma espécie de tipo ideal de colonizador dos tropicos — © portugués. Este nos é apresentado, nao como um «branco puro», mas como um hibrido, resultado de uma miscigenacao anterior aquela que dar-se-ia na América: Quanto ao fundo considerado autéctone de populagao tao move- diga, uma persistente massa de délicos morenos, cuja cor a Africa arabe © mesmo a negra, alagando de gente sua largos tre- chos da Peninsula, mais de uma vez veio avivar de pardo ou de preto. Era como se os sentisse intimamente seus por afinidades remotas apenas empalidecidas; e nao os quisesse desvanecidos sob as camadas sobrepostas de nérdicos nem transmudados pela sucessao de culturas europeizantes. Toda a invasdo de cel- tas, germanos, romanos, normandos ~ 0 anglo-escandinavo, o H. Europaeus L., 0 feudalismo, o Cristianismo, 0 Direito Romano, a Monogamia. Que tudo isso sofreu restricao ou refracdo num Por- tugal influenciado pela Africa, condicionado pelo clima africano, solapado pela mistica sensual do islamismo. (Freyre, 1980: 5-6) Isto resultava, em primeiro lugar, da estratégica posigéo geografica de Portugal, «indefinido» entre a Europa e a Africa e, portanto, local propicio ao encontro de etnias ¢ culturas diversas: A singular predisposi¢ao do portugués para a colonizagao hibrida © escravocrata dos trépicos, explica-a em grande parte o seu passado éinico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a Africa. (Freyre, 1980: 5)'® Tal predisposigao teria contribuido para a formagao da «maior civilizagéo modema nos tropicos», fendmeno a que Freyre denominou lusotropicalismo. Releva notar que seu pen- samento, em especial 0 lusotropicalismo, é ainda hoje reinven- tado pelas autoridades governamentais portuguesas e brasilei- ras, servindo como «ponte» entre Brasil e Portugal no discurso das olites portuguesa o brasileira, preocupadas em ratificar a «irmandade» entre os dois povos e amenizar conflitos que constantemente pululam nas relagdes entre Brasil e Portugal. Nesta linha, outra idéia do autor, por sinal bastante con- testada, é a da capacidade portuguesa de escolher 0 escravo ideal, no caso os africanos, que seriam «mais desenvolvidos» que os Indios. Esta nogdio de mestigagem seletiva acaba por reforgar 0 mito da civilizagao portuguesa baseada no convivio harmonioso com os outros povos, levando o autor a ser acu- sado de fazer uma apologia da sociedade escravocrata. Também em relacdo ao dominio colonial portugués, acu- sam-Ihe de classificar como branda a colonizagao portuguesa na Africa. Para Gilberto Freyre, as antigas «provincias ultra- marinas» portuguesas eram exemplos da capacidade do povo portugués de se adaptar a ambientes adversos @ formar uma nova civilizagaéo, cimentada pela lingua, religiao e insti- tuigdes da metropole. & interessante notar que o discurso salazarista se apropria, a seu modo, destas idéias, embora 0 autor néo conteste esta apropriagéo e os desdobramentos politicos dai decorrentes A sua localizagéo geografica também se deve o clima de Portugal, evocado como auxiliar importante no «preparo fisico» do colonizador dos tropics: Nas condigées tisicas do solo e de temperatura Portugal ¢ antes Africa do que Europa. O chamado «clima portugués» [...] é um clima aproximado do africano. Estava assim o portugués predis- posto pela mesma mesologia a0 contacto vitorioso com os trépi- cos: seu deslocamento para as regides quentes da América nao traria as graves perturbagdes da adaptagao nem profundas difi- culdades de aciimatagao experimentadas pelos colonizadores vindos de paises de clima frio. (Freyre, 1980: 10) '® E curioso notar que José Saramago, em A jangada de peara, utliza-se metaforicamente desta idéia. A jangada é a Peninsula Ibérica que se des- prondo dos Pirinous © vaga pelo Oceano Atléntico, ancorando-se em um ponto entre a Africa e a Europa. Gilberto Freyre e 0 mito de origen do povo brasileiro 111 Vera Lucia Mata Artur Nunes Gomes Em resumo: Considerada de modo geral, a formagao brasileira tem sido, na verdade, um processo de equilibrio de antagonismos. (Freyre, 1980: 53; grifo nosso) Quem sabe, estd nesta harmonizagao constantemente atualizada pelo senso comum, a explicagao (ou parte dela) para a ampla aceitacao de nossa histéria social mitificada na 112 «saga das trés ragas»? Casa grande & senzala exprime uma nova experiéneia de um grupo humano misto, sem discriminages e preconceitos, plas- tico, compreensivo, que reconhece em sua prdpria casa a diver- sidade e a igualdade das culturas e das etnias. Esta significacao profunda que se explica, antes de tudo, em acolhimento por toda parte. (Rodrigues, 1962: 441) Coube, assim, a Gilberto Freyre, o singular papel de desencadear uma revolugao — a revolugao da harmonizagao dos contrarios — que iria colocar numa perspectiva inteira- mente original a questéo da mestigagem. Em Gilberto Freyre a miscigenagao deixa de ser considerada um fenémeno meramente biolégico ou ainda um processo gerador de apti- does e costumes, «degenerescéncias» dela derivadas agra- vadas pela ago deprimente do clima. Ao contrario a mistura de diferentes grupos étnicos 6 vista como algo positivo e até mesmo capaz de promover uma democratizagao a partir da posi¢ao ambivalente (harmonizante?) do mestigo Restava, porém, explicar o nascimento deste novo tipo humano, © Brasileiro e um pudor anti-cientifico afastava de seu bergo his- toriadores, socidlogos, demégrafos. Quem foram seus primeiros pais? Que maca haviam comido? De que paraiso teriam sido expulsos e que vales de lagrimas foram obrigados a percorrer? (Delane, 1953) Coube a Gilberto Freyre escrever 0 nosso livro do Géne- sis, resgatar 0 nosso mito de origem e projeta-lo positiva- mente no nosso futuro. Sob a égide das comemoragées do Quinto Centenario do Descobrimento do Brasil, uma série de eventos alusivos & data foi planejada. O que nos chama atengao na programa- a0 desses eventos, é a utilizacao da «tabula das trés ragas» (Matta, 1981) como modelo explicativo ndo sé da formagao da nacao brasileira, como também de seu projeto futuro. Se, como ja nos referimos anteriormente, néo € Gilberto Freyre quem cria 0 «mito da trés ragas», parece-nos que sua abordagem, que privilegia o consenso ao conflito, funciona como uma espécie de guarda-chuva que abarca os diferentes corpos e almas do Brasil, etnicamente distintos e cultural- mente diversificados.2° Podemos perceber a influéncia do reterido autor ja na criagdo do protocolo para o desenvolvimento de um pro- grama de comemoragao do 5° Centenario da chegada de Cabral ao Brasil, assinado em 1991, em Brasilia, pelos gover- nos portugués e brasileiro: A partir da chegada de Pedro Alvares Cabral, se desenvolveu importante processo de encontro de poves e culturas com papel Preponderante na formacéo da civilizacao atiéntica, matriz da modernidade [...] que se formou [...] @ partir do Atlantico, uma cultura e uma civilizagéo de que os povos do Brasil e Portugal s&0 agentes diretos [...] que tal civilizagao se desenvolve a partir das navegagées com espago de convivéncia econémica, social @ cultural [...] que as comemoracGes da chegada de Pedro Alvares Cabral ao Brasil marcam um momento importante da histéria dos outros paises [...]. (Protocolo de 07/04/1991) Sendo assim, 0 artigo primeiro do protocolo anteriormente mencionado diz ter por objetivo, Desenvolver, ao longo da presente década (1991/2000), um pro- grama comemorativo dos 500 anos da viagem de Pedro Alvares Cabral que, conferindo uma forte dimensao cultural no relaciona- mento entre Brasil e Portugal, contribua de forma decisiva para a projego da comunidade luso-brasileira no aproximar do terceiro milénio. Constitui-se, a partir dai, uma comissao Bilateral Executiva para apresentar um conjunto de programas anuais de projetos € agées especificas, a fim de dar exequibilidade ao referido artigo |. O periodo de atividade desta comissao foi previsto, segundo o protocolo, até 31 de dezembro do ano 2000. Em 1994, instaurou-se, no Brasil, a Comissao Nacional para as Comemoragdes do V Centenario do Descobrimento do Brasil, cujo documento oficial registra no capitulo referente & formacaéo da nacionalidade e a cultura nacional: 20 E importante salientar que, através de decreto presidencial de julho de 1999, 0 ano 2000, que marca o centendrio do autor de Casa grande & senzala, {oi inttuladdo «Ano Nacional Gilberto Frayre» Gilberto Freyre e 0 mito de origem do povo brasileiro 5. A atuali- dade do pen- samento gil- bertiano 113 114 Vera Lucia Mata Artur Nunes Gomes ‘As comemoragées focalizarao a inestimavel heranca cultural transmitida & sociedade nascente pela participagéo portuguesa, a par das contribuigdes das varias nagdes indigenas e das diver- sas etnias africanas, trasiadadas para o Brasil a partir do século XVI, no processo de formagao da nacionalidade brasileira, pro- porcionando valiosos aportes a0 seu enriquecimento cultural. (10; grifos nossos) Nesse mesmo capitulo, destaca-se a contribuigao das dife- rentes etnias que passaram a fazer parte do povo brasileiro, seja através de contactos resultantes de guerras e invasdes (espanhéis, holandeses e franceses), seja através dos diver- sos fluxos imigratérios ocorridos ao longo desses 500 anos, notadamente a partir da segunda metade do século XIX. E interessante ressaltar que a imigrag&o n&o é objeto pri- vilegiado na andlise gilbertiana, ao contrario dos tedricos do branqueamento analisados na primeira parte deste trabalho. Para Freyre, o fendmeno da imigragéo pode ser visto como algo meramente acidental, que nao compromete a base da formagao da sociedade brasileira, a saber, o tripé monocul- tura, familia patriarcal e escravidao. Maior relevancia dard ele a influéncia da cultura ibérica, em especial ao que ela apresenta de arabe. Quer na teligiosi- dade, quer na sexualidade ou mesmo em outros aspectos da vida social, a influéncia moura 6, para Gilberto Freyre, essen- cial para a compreensao de quem eram os colonizadores do Brasil e, por conseguinte, da cultura que eles forjaram no contacto com outra etnias. Mas 0 que exprime, com maior nitidez, no documento em questo a marca do pensamento freyriano na construgao da auto-imagem do Brasil, é 0 paragrafo 4 do supracitado capi- tulo: Deverd ser considerado que a cultura brasileira demonstra, tanto em sua matriz erudita como na popular, essa pluralidade que se manitesta antes pela agregagdo que pela segregacao e conti. Como resultado desse caldeamento de etnias e culturas, 0 Brasil se apresenta hoje com uma inédita experiéncia de clvilizagao tro- pical, com tragos préprios @ singulares. (grifos nosso) Embora sejam mencionados no paragrafo seguinte os con- trastes internos decorrentes das desigualdades econémicas e sociais, tais contrastes nao comprometeriam «a surpreendente unidade lingUistica e politica do vasto territério — fruto, em grande medida, da colonizacéo portuguesa» (11). Como sabomos, a unidade lingiistica e territorial , para Gilberto Freyre, um dos méritos da civilizagao portuguesa no Brasil. Outra reinterpretagao das idéias de Gilberto Freyre nos aparece na fala do presidente da Comissao formada para montar uma exposi¢ao representativa dos 500 anos do Brasil em doze paises, iniciada no corrente ano: ‘A exposigao mostra que 0 Brasil se formou e se forma com a integragao, a aceitagdo pelo outro, é marcado pela tolerancia pola abertura, 6 feito na base da miscigenacdo. Mostramos os paises que participaram da nossa aventura antropofagica. Também ndo ficou alheio as comemoragées do 5° Cente- nario do Descobrimento 0 governo portugués. Na mesma seara da celebragao da efeméride, foi criada na ex-metrépole brasileira, no ambito da Comissdo Nacional para as Come- moragdes dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), 0 Pro- Jeto 2000 — Portugal e Brasil, que incentivaré a realizagao de seminarios, exposigdes de artes plasticas, além de visitas ofi- ciais de representantes dos dois paises. Interessante é perceber como também se enraizou no imaginario portugués a idéia de que o Brasil é «a grande obra de Portugal». Nao foram outras as palavras pelo presidente da CNCDP, em entrevista ao Jornal do Brasil (09/09/99), no langamento do projeto acima mencionado. A «saga das trés racas» permanece inspiradora dos eventos programados. Temos como exemplo uma ceriménia realizada no Réveillon do Ano 2000, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Tratou-se de um encontro de chamas trazidas em tochas que tem por objetivo simbolizar «a formagao do povo brasileiro». As referidas tochas simbolizavam os povos indi- gena, negro e portugués. As duas primeiras foram acesas no Brasil, em cariménias comandadas pelo Presidente da Rept blica e por sua mulher, respectivamente, enquanto a terceira foi acesa em Portugal e trazida para o Brasil as vésperas do evento. A forca do «mito das trés ragas» é téo grande no imagi- nario brasileiro que pode ser percebida até mesmo em even- tos que pretendem questionar «o enaltecimento dos 500 Anos». Um desses exemplos é a campanha institucional pro- movida pelo governo do Rio Grande do Sul, de oposigéo ao governo federal, intitulada Aqui so outros 500, que tem por objetivo enaltecer «o trabalho dos negros, das mulheres, dos indigenas, e dos imigrantes, especialmente alemaes ¢ italia- nos». Gilberto Freyre eo mito de origem do povo brasileiro 115 116 Vera Liicia Mata Artur Nunes Gomes Embora a escolha da data para o langamento da campa- nha, 20 de novembro, Dia Nacional da Consciéncia Negra, possa sugerir um questionamento do mito das trés ragas, a escolha de 19 de Abril (Dia do Indio) e 22 de abril para o encerramento da campanha mostra 0 quao arraigado no pen- samento nacional esta a idéia da uniao das trés ragas forma- doras. Pode-se denunciar as condigdes de desigualdade do encontro, mas nao se consegue nega-lo. O uso politico da concepgao gilbertiana do nosso mito de origem pode ser identificado também no momento em que a sociedade humana vive a problematica da globalizagao. A «ponte Brasil-Portugal», langada pelo esquema tedrico de Gilberto Freyre, vem sendo apropriada nas relag6es diplo- maticas entre os dois paises na busca de uma identidade comum e economicamente interessante. No momento em que Portugal, enquanto membro da Uniao Européia, também se volta para suas ex-colénias africanas em busca de novos mercados e o Brasil converge seus interesses comerciais para o Mercosul, a criagao da Comunidade dos Paises de Lingua Portuguesa (CPLP) vislumbra a possibilidade de um outro tipo de alinhamento, baseado na cooperagao entre Por- tugal e Brasil e, de ambos, com a Africa lusofona. Esta proposta encontra eco no didlogo entre Fernando Henrique Cardoso e Mario Soares, apresentado em Um mundo em portugués (1998). Para 0 ex-presidente portugués, 6 quest&o fundamental, na atual tendéncia globalizadora da politica contemporanea, «a defesa da lingua portuguesa e a afirmagao da vocagao atlantica e africana de Portugal. [...] Ora, justamente, ninguém pode ser melhor aliado nesses dominios de Portugal do que o Brasil». (Cardoso e Soares, 1998: 302) N&o por acaso, neste mesmo dialogo, Fernando Henrique Cardoso resgata a contribuicéio de Gilberto Froyre para a compreensao da especificidade cultural brasileira, ao afirmar: No tenho diivida quanto ao fato de que a matriz cultural, bem como a propria estrutura basica da organizacao da sociedade & do Estado brasileiros so portugueses. (ibid.: 309) Esta especificidade brasileira, para Fernando Henrique Cardoso, é também portuguesa e baseia-se na «plasticidade capacidade de absorgao de fatores culturais exdgenos», visto que «ha na cultura lusa uma percepcao do “outro” e a capacidade de aceitar 0 “outro”». Nada mais harmonizador, ou seja, freyriano! Obra que extrapola os limites da Academia, Casa grande & senzala pode ser vista como sintese do pensamento brasi- leiro no que ele tem de mais inclusivo e aberto. Como vimos ao longo do trabalho, esta obra, cujas intime- ras reedigdes atestam sua penetragéo nas mais diferentes esferas da vida intelectual e politica brasileira,’ possibilita 0 auto-reconhecimento dos brasileiros, como observado no caso narrado na apresentacao deste trabalho, em que um jovem aparentemente caucaséide avoca para si a condi¢éo de herdeiro das trés racas.22 Seu esquema tedrico e sua abordagem sao tao «harmoni- zadores» que até outros intelectuais, de diferente compro- misso politico e trajetoria académica, langam mao de pressu- postos gilbertianos. E 0 caso de Darcy Ribeiro que, ao des- crever 0 «processo civilizatério», esquema tedrico que utiliza para dar conta da formagao étnica dos diferentes povos, refere-se aos da América como «povos novos», resultantes da reuniao, «no mesmo espago fisico (de) matrizes étnicas profundamente diversificadas — indigenas, negros e europeus — 0 que ensejou sua fusao mediante a miscigenagao racial e a aculturagao, dando lugar a figuras étnicas inteiramente Novas» (Ribeiro, 1968: 168). Coerente com os pressupostos boasianos, de estudar pri- meiramente o particular para depois chegar ao geral, Gilberto Freyre explica 0 Brasil através do complexo Casa Grande- -Senzala, do qual Pernambuco é 0 microcosmo. Fazendo uma abordagem totalizante, constrdi uma temporalidade especial, porque baseada em uma descrigao sincrénica. Essa «temporalidade atemporal» possibilita que sua obra funcione como uma espécie de «colcha de retalhos», & qual podem ser acrescentadas outras porgdes (por exemplo, as diferentes etnias imigrantes). Sob este alinhavado de partes, subjaz uma textura uniforme egressa da familia patriarcal que Ihe serve de modelo. 2) Terlamos, numa metafora, 0 retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde) a0 ccontrario, Aqui, 0 autor envelhece, mas sua obra consegue rejuvenescer através das diferentes leituras que delas fazem as geragbes intelectuais posteriores. ® Alids, a recorréncia deste mito, em diferentes segmentos da sociedade brasileira, pode ser percebida através de fato noticiado pela imprensa, segundo ‘© qual, 0 entao candidato a Presidéncia da Republica, Fernando Henrique Car- oso, ao evocar sua identificagéo com 0 povo brasileiro, alegou «ter um pé na cozinha». JA como presidente, no anteriormente mencionado dialogo com Mério Soares, assim so expressa: “A nossa percopedo da Africa é uma por- cepeao quase imemorial dada a presenca negra no Brasil. Nao é exatamente a Arica politica, é a religido, ¢ a escravidao, é a cor de nossa pele» (Cardoso e Soares, 1998: 304; grifo nosso). Gilberto Freyre e 0 mito de origem do povo brasileiro Concluséo 417 118 Vera Lucia Mata Artur Nunes Gomes Ao fazer essa escolha, 0 autor se permite atuar como observador e «nativo», fazendo o exercicio antropolégico do estranhamento ao mesmo tempo em que mergulha protunda- mente na especificidade do «mundo» que se propée analisar. Vimos, também, que sua obra é ainda utilizada politica- mente pela autoridades brasileiras na construgéo de uma imagem a ser mostrada ao mundo.”° A resposta a quest&o «o que somos e de onde viemos», presente no processo de ela- boragao de identidades étnicas, pode ser encontrada no modelo freyriano. Este, harmonizando os contrastes existen- tes na sociedade brasileira, torna possivel, através de sua naturalizagao, a permanéncia do «mito das trés ragas» como formador da idéia de «ser brasileiro». Desta maneira, o discurso académico 6 também um dis- curso politico, dentro da tradigao conciliatéria que caracteriza, para muitos autores, a historiografia brasileira. Pela primeira vez, através do espirito conciliatério do autor, constante- mente atualizado, pde-se em pé de igualdade com a «raca branca» (nem tao «branca» assim em se tratando do portu- gués, de acordo com o autor), ragas até entéo consideradas inferiores.24 —m suma, a obra de Gilberto Freyre 6 reveladora da capacidade adaptativa do brasileiro em suas diferentes repre- sentagdes (mulato, malandro, «gente bronzeada»). Como mostra Roberto da Matta (1987), Freyre incorpora 0 novo ao tradicional, permitindo uma «auto-interpretagao compreen- siva» do Brasil. Retomando mais uma vez 0 exemplo de individuos que se pensam descendentes das «trés ragas formadoras» inde- pendentemente de sua «biografia racial»: este pode prenun- ciar uma igualdade construida em bases pseudo-democrati- cas. Esta «igualdade na morenidade», com efeito, apenas nos distancia do exercicio de percepgao da diversidade real entre os individuos. Cria-se uma «raga morena» também idealizada. Confunde-se miscigenagdo com democracia. Relagoes sexuais inter-raciais ganham uma dimensao ideolé- gica que mascara as diferengas sociais. 23 Em artigo publicado publicado no Jonal O Globo de 04/12/2000, o Miristro da Cuttura brasileiro declara que os brasileiros esto «construindo nos topicos uma civilizacao original, uma civiizagao latina, enriquecida com a mis- ‘ura étnica e cultural que nos caracteriza 24 Anélises posteriores questionam essa pretensa harmoria, que camufla- ria grandes desigualdades sociais remanescentes da saciedade colonial hiorar- quizada. € 0 caso dos trabalhos de Dante Moreira Leite e de Carlos Guilherme Mota. Para Roberto da Matta esta idealizagao continua a ser buscada na Antropologia: L..] 2 0 antropélogo [é visto] como 0 grande eugenista que ira pela «mistura» apropriada do branco, do negro, do indio e de todos os tipos intermedidrios, criar finalmente um tipo brasi- leiro». Tipo que sera exoticamente moreno. (Matta, 1981: 84) E acrescent: [...] colocando tudo em termos de «raga» e nunca discutindo suas relagées, reificamos um esquema onde 0 biolégico se con- funde com o social e o cultural, permitindo assim realizar uma permanente miopia em relagao a nossa possibilidade de autoco- nhecimento. (ibid: 85) Ao estudar o «jeitinho», Roberto da Matta nos explica que, na légica brasileira, entre 0 pode e 0 nao pode ha 0 «eito» que tenta conciliar opostos, em sua origem, excludentes. Ao longo deste trabalho temos tratado de acomodag&o, concilia- go, inclusdo, harmonizagao, posturas que se revelam ambi- guas. Assim, entre 0 negro e o branco, 0 «jeito» seria o mulato... Entre o escravo e 0 liberto, ha o 119 120 Vera Lucia Mata Artur Nunes Gomes: Representantes de diversas nacdes indigenas remanes- centes, alguns segmentos do Movimento Negro e, sobretudo, © Movimento dos Sem Terra roubaram para si a atengao da populagao brasileira que, nao tendo sido sensibilizada pela programagdo oficial permanecia, até aquele momento, alheia ao processo, como se parafraseasse a conhecida cangao: «N&o nos convidaram para essa festa pobre...» No proprio dia 22, cerca de 3.000 manifestantes?°, em sua maioria indios e sem terra, participam de um protesto préximo ao local em que se encontram as altas autoridades brasileiras e portuguesas, convidados, a populagao local e turistas que acorreram a Porto Seguro para assistirem as comemoragées. A reagao da Policia Militar do Estado da Bahia, responsdé- vel pela manutengo da ordem, nada teve de harmonizacao. ‘Ao invés de protagonizar um ato harmonizador, de mera con- tengéo dos manifestantes, as forcas policiais partem para o ataque, do qual sai ferido um representante indio. Tal fato, acompanhado pela TV em todo o Brasil e veiculado pela imprensa internacional, mereceu 0 irénico registro da ja men- cionada matéria da Revista Veja: «Os indios, que apanham dos brancos desde os tempos de Cabral, apanharam nova- mente, desta vez em companhia dos sem-terra». Outro evento realizado dias apés, a reinvengao2” da Pri- meira Missa no Brasil, mais uma vez evidenciou a postura contestatoria adotada pelos referidos representantes da sociedade civil, Tal postura ecoa na populagao brasileira, que Passa a acompanhar e a se posicionar a respeito dos fatos hist6ricos remotos e recentes. Na celebragao eucaristica, que incluiu elementos das reli- gides afro-brasileiras,?* 0 secretario de Estado do Vaticano e legado papal, acompanhado de algumas centenas de bispos brasileiros, pediu, em nome da Igreja, perdao aos indios e Negros pelas injusti¢as contra eles cometidas. Logo apés o referido pedido de perdao, o altar-mor foi invadido por um representante dos indios pataxd, que se 26 Revista Veja, 3 de maio de 2000, p. 44. 21 0 termo reinvencao ¢ empregado aqui no sentido que the atribui Eric Hobsbawm em A invencéo da tradigao. Para ele, tradigoes reinventadas sao sum conjunto de praticas de natureza ritual ou simbolica, que visam inculcar certos valores ¢ formas de comportamento através da repeti¢ao que implica, automaticamente, uma continuidade em relago ao passado» 20 Talver aqui se revele, mais uma vez, 0 aspecio inclusive da sociedade brasileira, que permite que religides hierarquicamente diferenciadas incorporem reciprocamente algumas de suas tradigdes, apresentou com o nome de Matalaué e fez um violento pro- testo contra «o exterminio dos povos indigenas». Ressalte-se que a participagao dos patax6 na celebracao estava resumida uma familia, mas um grupo liderado por Matalaué conseguiu forgar a entrada na missa «usando bordunas e gritando “saiam da minha terra, eu nao perddo esse massacre” ».29 Em seu protesto, aplaudido pelos representantes da Igreja presentes, Matalaué enfatizou «a destruigao da cultura indigena» e reivindicou para os grupos indigenas o direito ancestral ao territério brasileiro. E interessante notar que a postura dos representantes do Movimento Negro foi diferente da dos indios.3° Nao contesta- ram 0 pedido de perdao da Igreja, argumentando que 0 pro- cesso de colonizagéio deveria ser compreendido historica- mente e que 0 momento era de comunhao, nado havendo espago para «revanchismos», devendo-se «passar uma bor- racha apagando os édios ainda existentes». Significativa tam- bém foi a presenga de varios religiosos negros na ceriménia, € também do timorense D. Carlos Ximenes Belo, Prémio Nobel da Paz de 1996, que considerou 0 pedido de perdao da Igreja como «uma peniténcia que todos deveriam receber de coragao aberto». A reago & intervengao do indio pataxé nao tardou a apa- recer. O episédio foi objeto de reflexao por parte de alguns intelectuais @ politicos que publicaram artigos em periddicos em que se alegava um suposto «exagero» nas denuncias apresentadas e questionava-se a indianidade de Matalaué, em razéo do mesmo se chamar Jerry Adrianni (nome tirado de conhecido cantor brasileiro). Acusavam-no de apresentar- -se com um nome tido como de origem indigena apenas para avocar uma suposia origem pataxd. Tal argumento deixa de levar em conta que os processos de construcao identitaria, nomeadamente a étnica, baseiam-se no principio da auto- classificagao do individuo e do reconhecimento por parte do grupo de sua pertenga a ele. Além disso, foi pratica dos agentes do extinto Servigo de Protegéo ao Indio (SPI) re- -nominar os indios integrados do Nordeste, que usavam nomes portugueses ou de outras origens colonizadoras, com 3 Jomnal do Brasil, 27 de abril de 2000, p. 6. ® Ressalte-se que alguns grupos de defesa dos direitos dos negros, como (© Movimento Negro Unificado (MINU) nao se fizeram presentes a0 ato. No entanto, em que pese a presenga de algumas «pessoas de cor» entre os parti- Gipantes dos protestos de 22 de abril, pode-se afirmar que a participagao des- tas teve visibilidade muito menor que a dos indios @ dos sem-terra. Gilberto Freyre e 0 mito de origem do povo brasileiro 121 122 Vera Lucia Mata Artur Nunes Gomes. nomes considerados indigenas ou supostamente de origem «tupi>. Ainda como desdobramento dos protestos, 0 MST realiza a ocupagao de terras em litigio e prédios puiblicos, o que pro- voca um confronto legal em diversas instancias do poder publico. Pronunciamentos oficiais enfatizam uma suposta «quebra do jogo democrdtico». Nesse interim 6 divulgada pelos meios de comunicagao uma pesquisa de opiniao, segundo a qual a grande maioria da populacao brasileira, mesmo reconhecendo a legitimidade do MST, condena seus «atos radicais», ao mesmo tempo em que julga insuficientes as agdes do governo no que se refere a Reforma Agraria. Uma pergunta deve ser feita: sera todo movimento legitimo, desde que ndo parta para a radicalizagéo? Esta postura revela bom senso, espirito democratico ou «harmonizacao», isto é, ambigtiidade? Reafirmando 0 jd exposto na conclusao deste artigo, ape- sar da veeméncia das recentes contestagdes, parece-nos que, ideologicamente, o carater harmonizador (ambiguo?) da sociedade brasileira permanece cultivado pelas elites forma- doras e, sobretudo, reprodutoras do ethos nacional. O «povo brasileiro» por enquanto «nao foi convidado para a festa>. i Referéncias Bibliogréficas ‘Abreu Filho, Ovidio de Amado, Jorge Araujo, Ricardo Benzaquém de Asfora, Perminio Bastos, Eliade Rugai Cardoso, Femando Henrique; Soares, Mario Corréa, Mariza Corréa, Mariza Delane, Charles Freyre, Gilberto Harris, Marvin Leite, Dante Moreira Matta, Roberto da Matta, Roberto da Matta, Roberto da 1982 1962 1994 1962 1986 1998 1982a 1982b 1953 1980 1968 1992 1981 1986 1987 Malinowski, Bronisiaw 1975 Mota, Carlos Guilherme Ontiz, Renato Pereira, Astrojildo Prado, Paulo Ramos, Arthur Ribeiro, Darcy 1974 1985 1962 1928 1962 1968 Gilberto Freyre e 0 mito de origem do povo brasileiro «Parentesco e identidade social», Anudrio Antropoldgico, 80. «Gilberto Freyre @ sua influéncia nas novas geragdesm, in Gilberto Freyre: sua ciéncia, sua filosofia, sua arte. Ensaios sobre o autor de Casa Grande & Senzala e sua influéncia na modema cultura do Brasil, comemorativos do 25° aniversé- rio da publicagao desse livro. Rio de Janeiro: José Olympio. Guerra e paz: Casa grande & senzala @ a obra de Gilberto Freyre nos anos 30, Rio de Janeiro: Ed. 34. «Gilberto Freyre e sua influéncia nas novas geragdes» in Gilberto Freyre: sua ciéncia, sua filosofia... «Gilberto Freyre e a questdo nacional», in R. Moraes et al., Inteligéncia brasileira. S40 Paulo: Ed. Brasiliense. O mundo em portugués: um didlogo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, «Repensando a familia patriarcal brasileira», in M. S. K. Almeida et al., Colcha de retalhos: estudos sobre a familia no Brasil, Sao Paulo: Ed. Brasiliense. As ilusdes da liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antro- pologia no Brasil. Sao Paulo, USP (Tese de Doutorado).

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