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E ARQ José Manuel Rodrigues coordenacio E U L XX seleccdo de Ana Tostoes, Jorge Figueira, José Antonio Bandeirinha, Maria Calado, Marieta Dé Mesquita, Michel Toussaint, Nuno Grande, Ricardo Carvalho eater ldosd spio CARLO SGARPA: UM ARQUITEGTO MODERNO EM VENEZA’ [Nuno Portas |] ..«Escolhendo CARLO SCARPA, o jiri do pré- mio OUVETT praticou um acto de néoconformismo destinado a provocar objeccées e criticos (...). Profissionalmente, SCARPA é “professor de dese- nho” néo sendo sequer diplomado em arquitectu- ra, apesar de ser desde hi muitos anos um dos melhores do INSTITUTO UNIVERSITA. RIO DE ARQUITECTURA DE VENEZA. Viveu sem pre afostado e pobre numa cidade como Veneza, {2 cvja tradi¢do monumental esté ligada hé tanto fempo a indiferenca pela arte moderna. ‘Mas SCARPA é um poeta auténtico, no sé na sua inquietagGo criadora como no estilo de vida que ela implica: (...) quando recebe a encomen- da do projecto de um edificio desenha com solu- g6es diferentes; gasta dias inteiros a estudar o pormenor de uma articulagéo ou de um revesti- mento; irrita os seus clientes e, algumas vezes, perde-os. E um arquitecto que néo aceitou a mecénica da profissao: criando no recolhimento e na ale- ria renunciou, por longos anos, ao sucesso pes- soal para conservar 0 direito ao lento crescimen- to interior de uma imagem figurativa. E assim um poeta de altissima qualidade, de um timbre psi colégico e espirifual até agora inédito entre os arquitectos modernos». BRUNO ZEVI, in Expresso Q primeiro facto que recomenda a apresento- go da obra de CARLO SCARPA numa revista como ARQUITECTURA 6 o de Ihe ter sido atribu- ido, muito recentemente, o primeiro PREMIO NACIONAL OLIVET], distingdo méxima para a arquitectura em Iidlia. Com efeito, interessando- -nos como nos interessam os problemas que agi- tam © panorama arquitecténico transalpino, a escolha de SCARPA por um jtiri que reunia os nomes mais prestigiosos da cultura arquitects co, suscita uma reflexdo que parece poder formarse de grande utilidade. Talvez 0 proprio facto de se tratar de um artis- ta que nao péde ou ndo teve de aceitar a mecé- 304 1957 nica da profissdo esteja relacionado com o pri- meiro problema que a sua obra nos pée: quem ‘observa no pormenor, ndo deixar de notar a invengdo que caracteriza cada forma, cada ar- ticulagGo, cada elemento construtivo; eo resulta- do nao muito frequente na arquitectura de hoje 6 0 de uma elaboragio formal e tecnolégica sem solugao de continuidade. Qual 0 significa- do deste método? - E que a arquitectura de SCARPA. surge simultaneamente concebida como decoracao. E se nos lembrarmos que a concepsdo arquitecténica moderna corrente entre nés foi polemicamente levada a rejeitar a decoragdo (adentro de um espirito purista e ide- lista) ou a criar com ela uma oposicéo (caso da nog&o corrente de integracdo das artes plésti- cas}, notarse-4 como a posicGo do arquitecto veneziano se reveste, pelo contrério, de um espt- rito de liberdade que o leva a pensar cada forma simulténea e identicamente como constru- go e decoragio, recusando um simplismo cons- trutivo ou espacial em todos os elementos da sua ‘arquitectura. (Note-se assim, nas fotografias que se apresentam, o acabamento da estrutura em porticos no Pavilhéo da Venezuela, a articula- gG0 das palmas de proteccdo solar na sala de Cé Foscari, a estrutura, a estrutura em madeira desta mesma sala, etc.) Coerentemente, SCARPA estende ao trato- mento do espaco 0 mesmo espirito: nas suas obras nao se encontra uma volumétrica simplis- ta; para ele, o espaco arquitecténico é sempre complexo, dindmico e psicologicamente inten- cional ou dramético: atente-se na constante dife- renciacdo de pés direitos e nas frequentes inter- ligagdes dos espagos; atente-se na tensdo dini mica entre os espacos cobertos e descobertos, ‘ou no valor que nas suas concepcées torna 0 vidro [que néo funciona como vazio, como ele- mento aberto, mas como parede especial, con- torno real do espaco e superficie fornecedora de uma iluminac&o que 6 sempre carregada de uma tonalidade psicolégico). NUNO PORTAS | GARLO SCARPA: UM ARQUITEGTO MODERNO EM VENEZA SCARPA sai assim de uma habitual ¢ limitada redugao da obra arquitecténica & sua planta, tornando-a complexamente volumétrica através de um estudo em altimetria em que conjuga o tratamento dos tectos, a iluminagdo, o jogo dos cheios e dos vazios, a variagdo certa no empre- go dos diferentes materiais. (E 0 mesmo se pode- 16 notar, por exemplo, nos pormenores de Iharia, onde é sempre conseguida a terceira mensdo em elementos dotados de profundidade e figurativamente expressivos, em vez da habitu- cal composigiio em alado} Finalmente, importa notar um terceiro aspec- to, talvez aquele em que o exemplo do venezia- no poderd ser mais estimulante na actual conjun- tura do movimento moderno: é que SCARPA pre- cisa do ambiente preexistente: precisa de um vinculo externo e anterior e aceita-o como condi- cionalismo fértil em sugestées para a sua inven- $80 arquitecténica. (Demos assim especial rele- vo na paginagéo 4s fotografias que melhor re- fratam esta inestimavel caracteristica: quer tratando-se de uma arquitectura anterior como nos seus museus ov na aula de Cé Foscari, quer se trate de um ambiente natural como 6 0 caso das obras na Bienal de Venezo). Assim se enriquecem as relagSes entre espaco interno e exterior através de um tratamento das paredes, diferente caso a caso, em gradagées que vao desde cantos fechados por paredes cegas, & subtil luminosidade dos paingis de rétu- las venezianas ou & dramética oposi¢éo de po- rede e vidro no «denteado» monumental do Pa- vilhGo da Venezuela com a sua surpreendente fransparéncia para a folhagem dos plétanos existentes (e o mesmo espirito se encontraré ainda nos muros exteriores que ligam os volu- mes da construgéo ao terreno circundante, abrindose e recortando-se para a sua vegelo- Go morrendo nela pelo habil chanfro com que terminam). Por todos estes aspectos, o exemplo de SCAR- PA nos parece oportuno — néo para servir de uma superficial imitagao formal (sendo ja tempo de procurar numa revista de arquitectura ligdes mais profundas); néo para procurar ou denun- ciar nelas influéncias de um Wright, de um Mies ou de outro (quem poderd exigir o um artista, nos nossos dias, uma originalidade formal com- pleta?). Mas para procurar antes a licéo do seu método de criagéo, aqueles aspectos mais pro- fundos em que a obra de um artista se pode tor- igo dinémica num momento em que @ arquitectura contemporénea revé o longo caminho andado, procura uma corajosa autocritica que Ihe permita manter a sua perma- nente evolugdo, enriquecendo-se de novas preo- cupagdes que porventura tenham subestimado na sua luta pelos valores mais urgentes, ou tenha deixado esquecidos na obra de algum ar- quitecto ou corrente isolada. ° Arquitetura, lisboa, n° 59, Julho, 1957. 398

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