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Aspectos
gerais e considerações sobre um tema específico, relativo
à Antiguidade Clássica: a circulação de mercadorias
Ciro Flamarion Cardoso (CEIA-UFF)
Feuerbach, Marx escreve que a “essência humana” não é algo abstrato “inerente a cada
indivíduo”: encarada “em sua realidade”, ela é idêntica ao “conjunto das relações sociais”
(MARX; ENGELS, 1971, II: 402. As Teses sobre Feuerbach, de Marx, são de 1845, mas o
texto respectivo só foi publicado, postumamente, em 1888).
Isto se expressa de modo mais detalhado nos manuscritos de 1844. Talvez seja este, de
fato, o texto mais claro − sem dúvida, é o mais detalhado − no sentido de mostrar que, no
raciocínio marxiano, a natureza humana tem um caráter natural (no sentido biológico) −
assentado em ser o homem eminentemente social −, sem deixar, porém, ao mesmo tempo, de
configurar-se como radicalmente histórica. Há, no texto mencionado, a insistência em serem
os humanos parte da natureza, seres naturais. A emancipação pretendida pelo marxismo tem
de ser, então, a do “homem real, dotado de um corpo, com seus pés firmemente assentados no
chão, do homem que exala e inspira todas as forças da natureza”. Tal emancipação será
também a de todos os sentidos e qualidades humanos. Para Marx, só assim a natureza dos
homens poderá tornar-se uma natureza verdadeiramente humana. A sociedade resultante da
emancipação revolucionária será aquela em que se dará a autêntica unidade do homem com a
natureza. Ao longo de toda a exposição, o caráter histórico da visão marxiana é consistente: “é
na história humana, na gênese da sociedade humana”, que se desenvolve a “natureza humana
real”. E “a própria história é uma parte real da história natural”. A necessidade que cada ser
humano sente de outro “como uma pessoa” tem uma base natural, em última análise,
biológica: o homem é um ser social num sentido muito profundo; e a auto-realização
individual só pode ser a que é própria de um ser eminentemente social. Entretanto, para
realizar-se adequadamente, ela depende do longuíssimo processo histórico que conduz à
emancipação (MARX; ENGELS, 1966: 80-91. Os Manuscritos econômico-filosóficos de
1844, de Marx, foram publicados, postumamente, em 1932).
De seu lado, Engels também é enfático: “por nossa carne, nosso sangue e nosso
cérebro, pertencemos à natureza, achamo-nos em seu seio”. Nosso domínio sobre ela consiste
em que, à diferença dos demais seres vivos terrestres, “somos capazes de conhecer suas leis e
de aplicá-las adequadamente”. Entretanto, a ação social, até agora, foi exercida sem
planejamento global, por conseguinte, sem atenção que fosse além de conseqüências e
interesses puramente imediatos. Na ação humana sobre a natureza exterior, tratando de
dominá-la e de fazer com que funcione de acordo com os interesses dos homens ativos, a
dominação exercida sobre tal natureza tem efeitos negativos − que hoje chamaríamos
ecológicos − a longo prazo em que não se havia pensado ao desencadear, mediante a ação,
processos imprevistos e indesejáveis:
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Escolhi, de propósito, uma passagem de Engels, pelo fato de, com maior freqüência do
que Marx, ser apresentado como responsável pelas visões evolucionistas unilineares e
simplificadas presentes no marxismo posterior: mas, como se pode ver no trecho reproduzido,
para ele, se bem que a evolução implique com maior freqüência um progresso
(desenvolvimento), este pode ser interrompido, no tempo ou no espaço, por retrocessos.
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Sob influência bastante direta dos estudos incentivados pela incorporação dos
Grundrisse ao corpus de escritos do primeiro marxismo, no final da década de 1960 formara-
se amplo consenso entre os marxistas em torno dos pontos seguintes: (1) a evolução social
deve ser estudada sem que se busque, necessariamente, uma continuidade espacial de suas
fases: percebem-se fases, mas não há razão alguma para esperar que, num espaço geográfico
dado, elas devam haver existido todas, uma depois da outra, ou que uma área crucial em
determinada etapa continue a ser crucial para transformações posteriores − que, entretanto,
sem dúvida pressupõem as etapas mais antigas, ao se tratar de sociedades em contato umas
com as outras; (2) são inviáveis os esquemas evolucionistas unilineares, ou os que enxergam
um progresso contínuo nas trajetórias humanas (PELLETIER; GOBLOT, 1969: 120-138).
Ilustrarei isto com o texto redigido em 1968 por Madeleine Rebérioux como comunicação
apresentada a um simpósio que tinha como tema o conceito de estrutura. A autora diz que
estudos recentes “chamaram a atenção para as diversidades, as heterogeneidades específicas, a
impossibilidade de praticar uma história cumulativa em que todas as sociedades fossem
consideradas complementares e vinculadas por filiação genética”; em contraste, com a
perspectiva evolucionista adequada, “passa-se da continuidade geográfica para um certo tipo
de continuidade temporal” e se aprende a “ver o contínuo no descontínuo” (REBÉRIOUX,
1969: 139, 143).
No conjunto das sociedades pré-capitalistas, a dominação dos proprietários sobre os
desprovidos de propriedade repousava sobre relações pessoais, sobre uma espécie de
comunidade, enquanto, sob o capitalismo, tal dominação adquiriu uma forma material ao
encarnar-se num terceiro termo, o dinheiro. Por tal motivo, as relações de produção não
assumiam a forma de relações entre coisas, como no caso do capitalismo; pela mesma razão, a
alienação, sob o pré-capitalismo, apresentava uma forma distinta, religiosa. Também as lutas
de classes eram muito diferentes. Sob o capitalismo, enfrentam-se uma classe dominante e
outra, explorada, ambas dotadas de consciência de classe (classes para si); na era pré-
capitalista, dado o caráter pouco desenvolvido das forças produtivas e da divisão do trabalho,
dadas em especial a economia maciçamente agrária, as condições em que se apresentavam a
difusão das idéias e as limitações dos transportes e comunicações, somente as classes
dominantes chegavam a atingir a coesão, a solidariedade de interesses e o grau de consciência
que faziam, delas, classes plenamente constituídas, classes para si; as classes dominadas não
passavam de classes em si, não podendo, por isso, formular uma alternativa à ordem vigente.
Daí que as revoluções sociais pré-capitalistas se dessem mediante a substituição de uma
minoria dominante por outra: a maioria (as classes exploradas) podia participar de tais
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revoluções, mas em última análise o fazia em proveito da minoria que passaria a dominar, a
qual se apresentava, pelo menos durante determinado período, como representante de toda a
sociedade.
Note-se que o que acabamos de expor representa, em nossa opinião, o ponto de vista
do marxismo maduro. Um bom exemplo é a passagem seguinte do Prólogo de Marx à edição
de 1869 de seu texto O dezoito brumário de Luís Bonaparte:
conclusão tenha tido êxito. Os grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos
grupos dominantes, inclusive quando se rebelam e se levantam. Na realidade, até
quando parecem vitoriosos, acham-se numa situação de alarme defensivo (...).
Por isto, todo indício de iniciativa autônoma dos grupos subalternos é de valor
inestimável para o historiador integral. Do já dito deriva que uma história assim
só possa ser tratada monograficamente − e que cada monografia exija um enorme
acúmulo de materiais, amiúde difíceis de achar (GRAMSCI, 1970: 491-493).
O processo de trabalho compreende três fatores simples: (1) o próprio trabalho, que é
“a atividade adequada a um fim”; (2) o objeto de trabalho, aquilo sobre o qual se exerce o
trabalho humano; (3) o meio de trabalho, isto é, “aquele objeto ou conjunto de objetos que o
trabalhador interpõe entre ele mesmo e o objeto de trabalho, servindo-lhe para orientar sua
atividade em direção a tal objeto”. A natureza é ao mesmo tempo o objeto geral de trabalho e
o meio geral de trabalho para os homens. Terras, águas, madeiras, animais, etc. podem
constituir objetos de trabalho: mas estes últimos também podem ser algo já transformado por
um trabalho anterior, as chamadas matérias-primas (o fio que resultou da fiação da fibra
natural tirada do animal ou da planta e será utilizado na tecelagem, o combustível que
decorreu da destilação do petróleo bruto e será consumido por uma máquina, etc.). A natureza
é o meio geral de trabalho e pode prover diretamente os instrumentos que o homem, ao
trabalhar, interpõe entre si mesmo e o objeto de trabalho: um galho caído, por exemplo, pode
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servir de alavanca. Mas, desde tempos muito antigos da pré-história, apareceram igualmente
instrumentos de trabalho fabricados pelos seres humanos (ferramentas, máquinas). O
resultado do processo de trabalho é o produto, quer dizer, um valor de uso, “uma matéria
disposta pela natureza e adaptada às necessidades humanas mediante uma mudança de
forma”. Meios e objetos de trabalho constituem, no conjunto, os meios de produção. A
configuração da apropriação real sobre estes últimos, a qual desemboca em direitos
consuetudinários ou jurídicos formais (formas de propriedade coletiva ou privada), é o
elemento estruturante das relações de produção; na dependência, como veremos, da
configuração histórica das forças produtivas (MARX, 1965-1967, I: 180-187).
Modo de produção, um dos conceitos centrais do marxismo, é uma articulação
historicamente dada entre um nível e um tipo de organização definidos das forças produtivas,
e as relações de produção que lhes correspondem. Trata-se de conceito situado num patamar
bastante alto de abstração, resumindo os elementos comuns a numerosas sociedades
concretas, históricas, consideradas de um mesmo tipo, pertencentes a um mesmo estádio geral
de organização. Na prática, cada sociedade concreta costuma apresentar mais de um modo de
produção: para o estudo da articulação específica deles ao redor de um que é dominante,
convém utilizar o conceito de formação econômico-social (SERENI et alii, 1973). Temos
uma definição de relações de produção elaborada pelo próprio Marx: “...determinadas
relações necessárias, independentes de sua vontade”, nas quais os homens entram entre si “na
produção social de sua vida”; as quais “correspondem a uma determinada fase de
desenvolvimento de suas forças produtivas” (MARX, 1957: 4. Trata-se do Prefácio de Marx a
seu livro Contribuição à crítica da Economia Política, redigido em 1858-1859 e publicado
em 1859). No caso das forças produtivas, no entanto, carecemos de definição formal feita por
Marx ou por Engels. Eis aqui a definição das forças produtivas proposta pelo antropólogo
Maurice Godelier: “o conjunto dos fatores de produção, recursos, ferramentas, homens, que
caracterizam uma sociedade determinada e que é preciso combinar de maneira específica para
produzir os bens de que tal sociedade tem necessidade” (GODELIER, 1973: 188). Para Marx
e Engels, as forças produtivas – resultado das relações entre os seres humanos socialmente
organizados e a natureza (uma relação mútua, dialética: ao modificar a natureza, o homem
transforma a si mesmo) – determinam em última instância toda a história humana, da qual
constituem a base (Carta de Marx a Pavel Vassilievitch Annenkov, de 1846: MARX;
ENGELS, 1973-1974, I: 532; carta de Engels a H. Starkenburg, de 1894: MARX; ENGELS,
1971, II: 507). Quanto às relações de produção, em cada sociedade elas constituem, em seu
conjunto, a estrutura econômica.
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Em cartas escritas no final de sua vida, como a que contém a passagem citada acima,
Engels reconheceu que, devido ao contexto de sua elaboração – a luta ideológica sua e de
Marx contra as concepções idealistas –, muitos textos anteriores de ambos os fundadores do
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Pierre Vilar, como se pode ver mediante estas duas passagens, está interessado em
preservar o que talvez seja a maior originalidade do marxismo como teoria da História:
pretender abarcar num mesmo sistema explicativo tanto os fatores estruturais maciços que, na
maioria dos casos e situações, apresentam uma inelasticidade suficiente para que coloquem
limites aos desenvolvimentos possíveis, como os fatores vinculados à ação voluntária
humana. Analogamente, as observações de Peter Burke que reproduzimos a seguir apontam
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para a importância dos fatores estruturais de tipo material quando a história é observada na
longa duração:
Antes de iniciarmos a exposição deste tópico, convém deixar claro que, nele,
estaremos no plano, não de análises detalhadas de processos históricos específicos,
contemporâneos aos próprios fundadores do marxismo, como os que acabamos de mencionar,
mas sim, naquele – bem mais abstrato e generalizante – da Economia Política. Interessava a
Marx e Engels sobretudo o contraste elucidativo entre as características e estruturas do
capitalismo contemporâneo, dominado pelo valor de troca, e aquelas das economias antigas,
nas quais, apesar de múltiplas transformações, o valor de uso permaneceu fundamental,
segundo acreditavam.
No centro da análise de Marx acerca do capitalismo está a noção de que, em tal modo
de produção, capital e trabalho (neste caso específico, o trabalho livre) se vinculam
mediatamente – e, não, em forma imediata, como pelo contrário ocorria nos modos de
produção pré-capitalistas –, estando tal mediação constituída pelo dinheiro, pela
universalização da mercadoria, já que esta última categoria inclui, sob o capitalismo, a força
de trabalho que o operário vende ao capitalista.
Como já se observou, o mundo pré-capitalista se caracterizava por desenvolvimentos
limitados e locais – isto é, múltiplos, paralelos e extremamente diversos, num planeta que
carecia de unidade e estava dividido em blocos –, no seio do que o historiador francês Pierre
Chaunu chamou de “universos enclavados” (CHAUNU, 1974: 185-219). Outrossim, a
Antiguidade clássica se achava numa fase ainda muito incipiente no tocante à separação entre
os seres humanos e as condições inorgânicas de sua existência, assunto de que já tratamos.
Portanto, achava Marx não ser possível, no mundo antigo, uma economia unificada em torno
do capital e da mercadoria como nexos e mediações entre todos os elementos dela
constitutivos. No mundo antigo clássico, verifica-se pelo contrário existir uma divisão, uma
justaposição, uma ausência de unificação (e de abstração) dos vários elementos do processo e
do desenvolvimento econômicos: aspectos que correspondiam, seja a relações naturais, seja
ao resultado histórico do caráter limitado daquele desenvolvimento. Marx não elaborou uma
verdadeira teoria das economias pré-capitalistas, já que seu interesse precípuo se limitava ao
estudo do capitalismo contemporâneo, suas origens, suas características, sua superação
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histórica. Nas anotações dispersas que deixou sobre a economia da Antiguidade greco-
romana, a sociedade antiga aparece caracterizada pela justaposição de momentos econômicos
diversos, hierarquizada em sua disposição dos valores a partir do forte predomínio da
atividade rural e do valor de uso.
Entre os antigos, escreveu Marx nos Grundrisse, o valor de troca não era o nexo entre
as coisas. No entanto, o capital realizou momentos de unificação nas economias dos povos
comerciais: estes apareciam, porém, como entidades separadas do resto das comunidades e
economias do mundo antigo. A atividade daqueles povos – fenícios e cartagineses, por
exemplo – era a de intermediários, uma atividade separada da produção (que entre eles tinha
importância secundária). Tais povos comerciais viviam, na expressão de Marx, nos “poros”,
“interstícios” ou “espaços intermediários” do mundo antigo (MARX, 1971, I: 447). Ou seja, a
economia agrária dos povos clássicos e a economia mercantil dos “povos comerciais”
apareciam justapostas, separadas, não como partes de uma mesma economia integrada. Com
efeito, lemos o seguinte, ainda nos Grundrisse:
para consumo imediato, de tipo fundamentalmente agrário –, mas tal valor de uso não aparece
como elemento unificador: a produção de valores de uso, segundo Marx, ocorre, na
Antiguidade, tendo como pressuposto uma comunidade (já vimos que até certo ponto, para
Marx, tal comunidade era “natural” ou “espontânea” – termo que também utiliza) que
determina o caráter social do trabalho. Quanto ao valor de troca, embora existente na
Antiguidade clássica, era limitado: limitado à troca de excedentes e, outrossim, por aparecer
“ao lado” da produção, em lugar de determiná-la.
É verdade que, mesmo limitados, o processo de circulação de bens e o surgimento do
valor de troca modificam historicamente a própria organização da produção, sobre a qual
exercem uma ação desagregadora: mas, na Antiguidade, isto ocorre sem que a invadam
inteira, em profundidade, sem que cheguem a provocar a derrubada das relações econômicas
“naturais” e, portanto, a unificação completa da economia pela mercadoria. É interessante
notar que o aspecto de separação entre as formas econômicas no pré-capitalismo, que Marx
expressa mencionando os povos comerciantes, em Engels aparece exemplificado de outro
modo, ou seja, pela menção à formação de grupos sociais internos (possibilidade que Marx
não descartava mas desenvolveu menos freqüentemente que Engels) que se ocupam só do
momento da circulação na economia: “A civilização (...) gera uma classe que já não se ocupa
da produção mas, sim, unicamente da troca dos produtos, a dos mercadores” (Engels, A
origem da família, da propriedade privada e do Estado, de 1884: MARX; ENGELS, 1971, II:
313). No modelo de Marx, a separação física (espacial) que existe na origem entre
comunidades agrárias (consideradas “naturais”, originárias) e povos comerciais marginais
(situados “nos poros” ou “nos interstícios” das primeiras) não pode durar para sempre, se bem
que as transformações permaneçam incompletas. Isto é assim porque, com as trocas, a
diferenciação social acaba por atingir o interior das próprias comunidades “naturais”.
No Capital, esta idéia é retomada:
entre valor de uso e valor de troca. Achava Marx que, de qualquer modo, mesmo ao ocorrer a
troca entre valores de uso, o valor de uso aparecia no início e no fim do processo (produto-
dinheiro-produto): o dinheiro servia só como mediador da troca de produtos. Na Antiguidade,
como em todo o período pré-capitalista, o capital comercial funciona como movimento
intermediário entre extremos que ele não domina e entre pressupostos que não cria. Sob o
modo de produção capitalista, o capital comercial perde sua existência autônoma, vendo-se
reduzido a um momento particular no investimento de capital em geral. Para Marx, por
conseguinte, o desenvolvimento autônomo e preponderante do capital como capital comercial,
sob o pré-capitalismo, aparece em relação inversa ao desenvolvimento econômico geral da
sociedade. O capital industrial unifica, sob o capitalismo, a realidade econômica completa:
nos modos de produção pré-capitalistas, o capital comercial pode ser predominante, mas não
tem efeito unificador semelhante.
Ainda assim, a comunidade antiga grega e romana significou, segundo Marx e Engels,
um progresso na divisão do trabalho e na complexidade social em relação à comunidade tribal
anterior. Na comunidade antiga,
O comércio comporta (...) por toda parte uma ação mais ou menos
dissolvente sobre as organizações existentes da produção que, em toda a
diversidade de suas formas, sejam principalmente orientadas para o valor de uso.
Mas a medida em que ele destrói o antigo sistema de produção depende antes de
tudo da solidez e da estrutura interna de tal sistema. Não é do comércio, mas do
caráter do antigo modo de produção que depende o resultado do processo de
dissolução, isto é, o modo de produção novo que substituirá o antigo. No mundo
antigo, a ação do comércio e o desenvolvimento do capital comercial conduzem
sempre a uma economia escravista (...) (MARX, 1965-1967, VI: 340).
As observações de Marx acerca da escravidão antiga também estão marcadas por sua
concepção de uma economia próxima do “natural”. O escravo aparece como simples
instrumento do patrão, na execução dos serviços que este último lhe impõe, numa economia
cuja base fundamental nunca deixou de ser, ao longo de toda a Antiguidade, natural e agrária.
A escravidão aparece como trabalho compulsório imediato, à diferença do trabalho
assalariado capitalista, que é trabalho compulsório mediatizado pela troca (já que a força de
trabalho torna-se uma mercadoria entre outras). Estendem-se ao escravo os pressupostos antes
aplicados, por exemplo, à terra: o escravo é encarado pelos livres como mera condição
“inorgânica e natural” da reprodução da comunidade dos homens livres; ele não estabelece
relação alguma com as condições objetivas de seu trabalho, mas o próprio trabalho (e não a
“força de trabalho”, um conceito que não emerge na Antiguidade) é colocado como condição
inorgânica da produção juntamente com os outros seres “naturais” (ao lado do gado ou como
acessório da terra). (MARX, 1971, I: 449-450). Uma questão que interessou ao marxismo
inicial foi a da relação mantida pelo escravo com o desenvolvimento das formas do capital
comercial ou do artesanato. Neste ponto, Marx aparece influído por Aristóteles e pela
historiografia do século XIX, incluindo os historiadores do direito (Niebuhr em especial). De
modo análogo, o marxismo posterior refletiu, ao trabalhar sobre a economia antiga, tanto
opiniões “maximalistas” quanto “minimalistas” acerca das economias clássicas antigas que se
desenvolviam, nas diversas épocas, entre os historiadores não-marxistas. Neste texto
estivemos mais interessados no pensamento dos fundadores, Marx e Engels, do que nas
interpretações que, sobre os textos destes últimos e sobre a economia antiga em si mesma,
foram desenvolvidas no século XX. Algumas dessas interpretações foram de altíssimo nível e
merecem um estudo atento (cf. por exemplo: CAPOGROSSI et alii, orgs., 1978; VEGETTI,
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