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O CAMPO DAS PRODUCOES SIMBOLICAS EO CAMPO CIENTIFICO EM BOURDIEU Maria Manuela Alves Garcia Faculdade de Educagao de Pelotas Doutoranda em Educagao — UFRGS. RESUMO Esto trabalho faz um comentario dos concsitos socioligioos — campo, habitus © estratégias — que Pierre Bourdcu ulza na andlso da estrutura © funcionamento dos campos das produ (608 culturais e simbdlicas @ tem por objetivo oxplorar as im- Dlicagées dassas idéias para uma anélise do desenvolvimento {de determinados campos ou disciplinas académicas @ cientiicas. Discute sobretudo a ostrutura @ 0 funcionamento do campo cien: tco na ética bourdieuniana, no qual, por um aparente parado- x0, 0 avango da ciéncia @ do conhecimanto cietiice so 0 re. sultado de lutas entre posig6es © agentes que disputam uma espécie espectica do capital smbdlico: a autoridade e/ou a le sgitimidade cientiica. Como lustrago das hierarquias que cons- fituam 0 campo cientiica e do procedimento anaitico proposto or Piero Bourdiou, comontam-se aspectos do dois estudos que ‘exemplficam a aplicagéo dessas categorias a fendmencs © ‘eventos bem delimitados: uma andise do campo univorsitério francis, realizada pelo préprio Pierre Bourdieu na obra Homo ‘Academicus, ¢ uma andiise do campo das Ciencias Socas, no Brasil dos anos £0, levada a ofeito por Monique do Saint Martin. SOCIOLOGIA DA CIENCIA E DA CULTURA — CAMPO CIEN: Tirico| ABSTRACT THE FIELD OF SYMBOLIC PRODUCTIONS, IN PARTICULAR, THE SCIENTIFIC FIELD OF PIERRE BORDIEU. This article is about Pierre Bourcieu's sociological concepts of field, habitus and strategies, omployed by him to analyse the structure and functioning of the folds of cultural and symbolical productions, Tha arcla Intends to explora the Implications of thaso idaas in the analysis of certain fields or academiclscieniic subjects. It discusses the structure and functioning of the scientific felt in Bourdieu where, in an apparent paradox, the advances of science are the result ofa struggle between positions and agents, lover a specitic kind of symbolic capita: authority scientific and scientific legitimacy. To illustrate both the hierarchies that form the sclentc fold and Bourcieu's analytical procedures, aspects fare shown of two studies that demonsirato tho application of these categories fo welldlimited phenomena and events. These studies aro: an analysis of tho french university” fil, accomplishes by Bourdieu himself in his work Homo ‘Academicus, and an analysis of the field of social sciences in Brazil in the 80's, effected by Monique de Saint Martin Cad. Pesq., Séo Paulo, n.97, p.64-72, maio 1996 Neste texto tem-se como objetivo uma aproximagao do conceito de campo em Bourdieu e, em particular, do conceito de campo cientiico, sua estrutura e fun- cionamento, a partir de escritos do autor que se re- ferem ao que se poderia chamar de uma sociologia do campo intelectual ou de uma sociologia dos cam- pos da produgdo de bens simbélicos. Espera-se, des- {a forma, coniribuir para o esforgo de sistematizacao de alguns conceitos e principios fundamentais que Bourdieu desenvolve om suas andlises e que forne- com elementos significativos para uma anélise socio- légica do movimento de constituigao e desenvolvimen- to de determinados campos ou disciplinas do saber cientifico, bem como das obras ai produzidas. ‘A maiotia dos textos de Pierre Bourdieu trata de uma forma genérica da constituigdo e funcionamento dos campos da produgao de bens simbdlicos. Ou seja, as denominag6es campos da producdo de bens simbélicos ou campo da produgao cultural e, ainda, campo intelectual, so utiizadas pelo autor quando se refere a diferentes campos da produgao de bens cul- turais @ simbélicos: 0 campo cientifico, 0 campo uni- versitétio, 0 literdrio, 0 artistico © assim por diante. ‘Alguns desses campos tém sido tomados como objeto de estudo empirico por Bourdieu ao longo de ‘sua atividade de socidlogo. Objetos tao diversos como © campo escolar, 0 campo literatio e artistico na Fran- ga, 0 mundo académico e universitério nesse pals, 0 ‘campo da moda ou dos esportes, possibiltaram 0 de- senvolvimento daquilo que 0 autor denomina de uma “teoria geral” dos campos, que pretende dar conta de uma Iégica de funcionamento comum a. diferentes campos particularizados em fungao de variéveis se- cundarias. Como o préprio Bourdieu (1990b) chama a aten- ‘¢40 existe homologias' estruturais e funcionais entre ‘08 campos sociais e politico como um todo, @ 0s cam- pos da produgao cultural e simbélica, mesmo consi- derando que os fenémenos, em cada um desses cam- pos particulares, revistam-se de formas especificas & irredutiveis umas as outras. E respaldado nesse pres- suposto que, neste trabalho, se pretende chegar & ‘compreensao do campo cientitico a partir de idéias de Bordieu acerca da_estrutura @ funcionamento dos campos das produgdes culturais e simbdlicas. Como se vera, essas idéias so inerentes ao proprio con- ceito bourdieuniano de campo. Para cumprir 0 objetivo do texto apontado, inicia- se discutindo os conceitos de habitus, de campo e de estratégias na obra bourdieuniana, sua génese © sig- nificado para uma andlise sociolégica dos campos da produgao de bens culturais simbélicos. Apresentam-se também algumas caracteristicas do funcionamento desses campos, principios de sua constituicgo e al- duns indicadores que Bourdieu aponta para uma and- lise sociolégica da produgo cultural e simbélica, quando toma como objeto de estudo 0 campo artistico e literério francés. Por tltimo, discute-se propriamente suas idéias acerca do funcionamento do campo cientitico, fazendo algumas referéncias, a titulo de ilustragao, a’ dois tra- O campo das produgées. balhos que exemplificam a aplicagao das categt bourdieunianas a recortes do campo cientifico: 0 livro que leva 0 titulo de Homo Academicus, do proprio Bourdieu (1984), © 0 artigo intitulado “A propos d'une rencontre entre chercheurs; sciences sociales et poli- tique au Brésil’, de Saint Martin (1988). A.NOCAO DE CAMPO EM BOURDIEU: GENESE, SIGNIFICADO E FUNCIONAMENTO Uma particularidade da obra sociolégica de Pierre Bourdieu, tantas vezes por ele reafirmada, & sua cren- a na possibilidade de uma complementaridade entre as visdes do mundo social que comumente chama- mos de construtivista ou fenomenolégica, @ de estru- turalista. Na intengao de superar a dicotomia ator ver- sus estrutura na analise sociolégica, Bourdieu formula conceitos que so centtais para a compreensao de seu pensamento © que se inscrovem nessa tentativa, entre eles os de habitus, de campo e de estratégias. Relativamente a0 conceito de habitus, conforme Bourdieu (1987a, 1989a), pode-se caracteriza-lo como sendo um sistema de disposigdes duraveis e social- mente constituidas que, incorporadas por um agente ‘ou um conjunto de agentes, orientam © dao significa- do &s suas agdes © representacdes. O habitus sao estruturas “estruturadas estruturantes” que ultrapas- sam 0 nivel da consciéncia e fazem a mediagao entre, de um lado, as estruturas sociais e, de outro, as pré- ticas individuais. E importante salientar que o habitus ssendo constituido ao longo da vida do individuo e sen- do produto de um trabalho de inculcagao, é uma es- trutura sempre atualizada perante as novas situagées, @ as agdes praticas dos individuos. © habitus € constituido, entéo, por um conjunto de esquemas geradores de agéo adaptados a um de- terminado campo ou situagao. E é nesse sentido que © conceito se relaciona com 0 que neste trabalho se enfoca mais detidamente, ou seja, 0 conceito de cam- po. E 0 préprio Bourdieu (1983b) que, na seguinte passagem, ao definir um campo indica que os agen- tes que 0 constituem sao portadores de um deter nado habitus adaptado as exigéncias e necessidades do campo em questao: Um campo, @ também 0 campo cientifico, se de- fine entre outras coisas através da definicao dos objetos de disputas @ dos interesses especificos quo sao irredutiveis aos objetos de disputas © aos interesses préprios de outros campos (ndo se po- +1 Remate-s0 a0 sentido etimolbgico do termo homologias por ser ele esclarecedor da acopcio em que 6 ullizado por Pior- re Bourciou: homologia, do grago “homés" = igual, semelhan- te; "l6gos" = estudo, trtado. E ainda, na Biologia, esse termo significa a semelhanca de estrutura'e origem, em partes de forgarismos taxionomicamente diferentes. Bourdieu utliza fesse term para indicar, exatamente, a presenca de tracos ‘esvuturalmente equivalentes em campos especticos. deria motivar um filésofo com questées préprias dos geégrafos) e que ndo sao percebides por quem nao foi formado para entrar neste campo (cada categoria de interesses implica a inciferen- ¢a em relagdo a outros interesses, a outros in- vestimentos, destinados assim a serem percebi- dos como absurdos, insensatos, ou nobres, desi teressados). Para que um campo funcione, 6 pre- ciso que haja objetos de disputas © pessoas pron- tas a disputar 0 jogo dotadas de habitus que im- ppliquem 0 conhecimento @ 0 reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de dsputas, etc. (p.89) ‘Como se pode depreender das palavras anterio- res, © conceito de campo se refere aos diferentes es- pagos da vida social ou da pratica social, que pos- suem uma estrutura propria @ relativamente auténoma com relagdo a outros espagos ou campos sociais. Es- ses campos se organizam em torno de objetivos préticas especificas e apresentam — apesar das ho- mologias que os unem — uma logica prépria de fun- cionamento que estrutura as relagdes entre os agen- tes no interior de cada um deles. Assim, a relativa au- tonomia 6 uma caracteristica inerente @ nogao bour- dieuniana de campo. Antes jé foi dito que os diferentes campos da pro- dugao de bens culturais e simbélicos apresentam ho- mologias com o campo social, politico e econémico. Por exemplo, de forma geral todos os campos se es- truturam a partir das relagées de alianga e/ou confito entre os seus diferentes agentes que lutam pela pos- se de determinadas formas especificas de capital sim- bélico; e, também, as hierarquias, no interior de cada um desses campos, se estabelecem pela maior ou menor detengao, pelos agentes, dessas formas espe- cificas de capital. Mas, em cada campo, essas lutas @ estratégias assumem caracteristicas especificas re- lativas a forma do capital em jogo e & posigao. que os agentes ocupam no campo. Assim, cada campo social implica uma forma do- minante de capital. No campo econdmico a forma do- minante 6 a posse do capital econémico e de bens materiais, no campo cultural, a posse do capital cul- tural, no campo clentifico, a posse de capital reves- te-se em autoridade cientifica, e assim por diante. Dessa forma, as hierarquias que se estabelecem no interior desses diferentes campos nao sao redutiveis uma as outras, mas constituidas pela légica que de- fine 0 campo especifico. Nos campos de produgao de bens simbélicos e culturais a forma especifica do ca- pital que move as lutas no interior do campo 6 0 capital simbélico expresso em formas de reconhet mento, legitimidade ¢ consagracdo, institucionalizadas ou ndo, que os diferentes agentes ou institui seguiram acumular no decorrer das lutas no interior do campo (Bourdieu, 1990b). Nessas lutas, conforme Bourdieu (1983b, 1987b), os agentes ou grupos de agentes concorrentes desen- volvem estratégias de “conservagao” e “exclusao” ou entéo, estratégias de “subversio", de acordo com suas posigGes felativas no interior do campo. Essas 66 estratégias, as primeiras, lovadas a efeito polas orto- doxias (aqueles que ocupam as posi¢des dominantes no interior do campo) e, as segundas, implementadas pelas heterodoxias (aqueles que ocupam as posigdes dominadas no campo ou que S40 dele excluidos), vir sam, em ultima andlise, defender ou conquistar uma determinada posigao dominante nas hierarquias cons titutivas do campo; essa posi¢éo dominante se ex pressa no poder de definir os critérios @ © monopélio do exercicio legitimo de uma determinada atividade cultural ou cientiica Usliza-se aqui 0 conceito de estratégia com 0 sentido que ihe é atribuido por Bourdieu (1974, 1990a) estreitamente ligado aos conceitos de cam po @ habitus anteriormente apresentados. As estraté- {glas podem ser entendidas como “sequéncias de pra ticas estruturadas" ou “série de agdes ordenadas © orientadas” que os agentes desenvolvem em fungao de um habitus adquirido ¢ das possiblidades que um determinado campo oferece para a obtengéo e maxi- mizagao dos lucros especificos em jogo no campo em questao. Nas palavras do préprio Bourdieu (1974, p.3) as estratégias so ages que tém a partcularidade de serem (..) razodveis sem serem 0 produto de um racio- ccinio proposital ou, com mais razéo, de um cal culo racional; motivadas por um tipo de finalidade objetiva sem serem conscientemente organizadas em relagao a um fim explicitamente constituido; inteligiveis © coerentes sem serem o produto de uma intengdo inteligente ou de uma decisao de- liberada; ajustadas ao futuro sem serem o produto de um projeto ou de um plano.* Sto portanto agdes que visam a determinadas fi- nalidades sem serem necessariamente concebidas para tal, Sao antes o resultado do “senso pratico", do conhecimento das regras ¢ do “sentido do jogo” social que se adquire pela experiéncia e pela paticipagao nas atividades sociais. Sao, enfim, 0 resultado de um habitus na relagao com um campo. Bourdieu (1990b) trata ainda das relagdes que os produtores culturais e simbélicos mantém com 0 cam- po do poder e da posigao que ocupam na estrutura das classes socials. De forma geral, considera que 0s agentes produtores de bens culturais e simbdlicos (0 arista, o intelectual, 0 cientsta) constituem fragdes da classe dominante porque ou sao oriundos dessas classes e/ou possuem um capital cultural especifico que thes confere determinadas formas de poder e pri= vilégios. Se genericamente estdo situados no interior das classes dominantes, muitas vezes, no entanto, esses agentes ocupam posi¢des de dominados nas suas re- lagdes com os detentores do poder politico @ econd- mico. E s6 lembrarmos, para exemplificar, 0 quanto 68 produtos @ 0 proceso de produgao e de circulagao 2. Tradugao da autora do texto original em francés. Cad, Pesq,, 7.97, maio 1996 dos produtos da atividade cultural e cientiica — nao poucas vezes — se submetem aos mecanismos que regem o mercado e aos critérios definidos pelas agén- cias e instituigdes financiadoras, governamentais ou privadas. © que determina a posigéo de um agente ou gru- po de agentes em um ou outro pélo da relagao "do- minantes—dominados” & tanto sua posigao relativa no interior do campo, dada pela posse de um determi- nado capital especifico, pela posigao conquistada como fruto das lutas anteriores no campo, quanto pela prépria posigéo do campo considerado em relagdo ‘aos demais campos de produgao e circulagao de bens culturais e simbdlicos e, ainda, pela posigao do campo fem relagao ao campo do poder (social, politico @ eco- némico) Assim que, transitando entre os pélos da relagao “dominantes—dominados”, os produtores de bens cul turais @ simbélicos, de maneira geral, encontram-se numa posigao de classe bastante contraditéria, 0 que explica, por vezes, a ambigiidade de suas tomadas de posigdes em relagao 20 campo do poder. Bourdieu (1990b) fala dessa ambigiidade na seguinte passa- gem de uma entrevista dada a Karl Otto Maue, em que discute a possibilidade © 0 limite de uma agao engajada dos produtores culturais: Eles podem colocar esse poder {0 poder cultural @ simbélico] a servico dos dominantes. Eles tam- ‘bém podem, de acordo com a légica de sua luta 1no interior do campo de poder, colocé-lo a servico dos dominados no campo social como um todo: (.). Porém, @ isso vale também para os que se pretendem “intelectuais organicos” dos movimen- tos revolucionérios, as aliangas baseadas na ho- mologia de posigao (dominante—dominado=domi- ‘nado) so sempre mais instaveis, mais trégeis, do que as solidariedades baseadas na identidade de posigdo e, conseqdentemente, de condic4o @ de habitus (grfo do autor). (p.176) Ou seja, Bourdieu alerta pata 0 fato de que, do- minados entre os dominantes, os intelectuais, em de- torminadas circunstancias, s40 levados a assumir po- sigSes mais & esquerda estabelecendo aliangas com 0s setores dominados no campo poltico e econdmico; aliangas essas que so, segundo sua prépria expres- ‘820, Um “apoio em falso" porque, em periodos de cr- 8, quando véem ameacados 0 seu capital espectfico © 05 seus privlégios, esses mesmos produtores mui- tas vezes abandonam as suas posicdes progressistas. Um outro aspecto importante diz respeito ao pro- cesso de constituigdo @ “autonomizacao" dos diferen- tes campos de producdo de bens culturais © simbé- licos. Segundo Bourdieu (1987b), esse proceso é correlato & formagtio de categorias profissionais so- cialmente cistintas dos produtores desses bens, a constituigao de um pablico de consumidores desses mesmos bens e, ainda, & constituicdo de instancias de consagragao e de insttuigdes encarregadas de sua produgdo e difusdo. Esses fatos, decorrentes do avan- ¢0 da divisao social do trabalho em nossas socieda- O campo das produpées... des © da crescente especializagéo das esferas da vida humana e da pratica social, fomecem as condi- des favordveis & construgao de sistemas ideolégicos ou de teorias que reproduzem as divis6es prévias da estrutura social © mesmo autor indica que “a constituigo de um ‘campo enquanto tal é correlata ao processo de fecha- mento em si mesmo”. Ou seja, um campo da produ- ¢40 cultural e cientifica 6 tanto mais auténomo quanto maior 0 seu poder para definir as normas que orien- tam a sua produgao, as condutas de seus membros, 08 critérios de avaliacdo de seus produtos @ o poder de “retraduzir todas as determinagées externas de acordo com seus principios préprios de funcionamen- to” (Bourdieu,1987b. p.106) E preciso ainda destacar que a autonomia de um campo em relacdo @ outros campos nao 6 uma ques- 120 definitivamente resolvida. Essa autonomia varia conforme a sociedade considerada @ os momentos histéricos dessa mesma sociedade®. Antes de se passar a ver como as idéias gerais acima apresentadas se especificam no campo cienti- fico, é importante tratar rapidamente das implicagdes de tais idéias para uma ciéncia dos campos da pro- dugao cultural e simbélica e suas obras. E certo que Bourdieu, quando discute essas im- plicagdes metodolégicas, o faz no horizonte de uma sociologia do campo attistico literério; contudo, os principios que aponta — assim como as idéias anto- riormente apresentadas — tém sido por ele aplicados em estudos e pesquisas sobre 0 campo cientifico ou © campo universitério francés. Em diversos momentos, 0 autor discute longa- mente um método para uma anélise sociolégica do campo intelectual © artistic. Na defesa do método analitico que propée, Bour- dieu (1987a) analisa as formas correntes utiizadas nas andlises sociolégicas do campo intelectual © ar- {istico, criticando especialmente trés tipos de aborda- gens: as que privilegiam 0 estudo dos produtos da ati vidade cultural e artistica como puras criagdes de um génio inventivo (a “hagiografia"); as que véem nas obras e em seus produtores 0 mero reflexo das con- digdes sociais de produgao; e por Ultimo, as que se limitam a uma anélise interna das obras ‘em si, sem considerarem as condigdes socials que as geraram. Na verdade, de certa forma, busca conoiliar todos esses métodos de andlises enumerados anteriormen- te, Segundo diz: (..) 6 preciso situar 0 corpus (grifo do autor) as- sim constituido no interior do campo ideolégico de que faz parte, bem como estabelecer as relacdes entre a posigao deste corpus neste campo e a posigdo no campo intelectual do grupo de agentes que 0 produziu. Em outros termos, é necessério 3. Na cléncia, por exemple, a autonomia das diversas dlscip- 5 ent si, © om rolagdo as demandas do campo {do poder, S80 questbes que tém assumido formas diferen- ciadas a6 longo do tompo. 67 determinar previamente as fung6es de que se re- veste este corpus [a obra] no sistemas das rela- g0es de concorréncia @ de conflito entre grupos situados em posi¢des diferentes no interior de um campo intelectual que, por sua vez, também ocu- pa uma dada posigdo no campo de poder. (Bour- dieu, 1987a, p.185-6) Tentando um resumo do método por ele proposto para uma ciéncia do campo artistico e literério, pode- se dizer que esse método implica considerar: a rela- 40 entre a biografia individual e a obra (incluindo aqui a classe social de origem dos produtores, 0 es- ago © as insttuigdes de produgao, as revistas, as editoras etc.), a andlise interna da propria obra e a andlise intertextual que busca as relagdes entre um Conjunto de obras. Ou seja, é necessério buscar com- por 0 campo das obras, 0 campo dos produtores a relagdes entre esses dois campos, Passa-se, ento, a seguit, a campo cientitico propriamente dito. © CAMPO CIENTIFICO EM BOURDIEU © universo da ciéncia 6 um universo de formas e pro- dugdes simbdlicas e, como tal, esta submetido as mesmas leis gerais que vimos anteriormente acerca da “teoria dos campos", assumindo formas especificas no interior deste campo. E exatamente isso que Bourdieu (1983a) diz logo no inicio do texto "O campo cientifico”: “O universo ‘puro’ da mais ‘pura’ ciéncia é um campo social como outro qualquer, com suas relagdes de forga ¢ mono- pélios, suas lutas e estratégias, sous interesses e lu- ros, mas onde todas essas invariantes (grifo do au- tor) revestem formas especificas” (p.122) Sdo essas formas especificas do funcionamento do campo cientifico que a seguir se tenta examinar, tendo jé como pano de fundo algumas daquelas in- variantes a que Bourdieu se refere, ‘Segundo 0 autor, o campo cientifico 6 um sistema de relagées objetivas entre posigdes adquiridas que, conquistadas pelos agentes em lutas anteriores, con- cortem pelo monopélio de uma espécie particular de capital, a legitimidade cientifica ou a autoridade cien- tifca (0 capital especifico em jogo no mundo da cién- ia), ou, 0 que é dizer 0 mesmo, concorrem pelo po- der de impor os crtérios que definem 0 que é eo que nao é cientifico. Essa forma de capital que & a autoridade cienti- fica ou, ainda, a competéncia cientifica, pode ser e tendida, segundo Bourdieu (1983a), como a capaci dade técnica e 0 poder social de agir ¢ falar legit mamente em nome da ciéncia. Legitimidade essa so- ialmente outorgada, geralmente, pelos pares concor- rentes, a um agente ou grupo de agentes no interior do préprio campo. E necessério frisar que 0 autor nao reduz a au- toridade cientifica a um conjunto de capacidades téc- niicas ou teéricas determinadas. Pelo contrario, enfa- 68 tiza que 6 impossivel dizer até onde vai, na idgia de autoridade ou de competéncia cientifica, a capacidade técnica e onde comeca 0 poder simbdlico, Ou seja, 0 titulos escolares, as distingdes e os rituais de con- sagrago cientifica que atravessam 0 mundo acadé- ico € cientifico, “contaminam” a percepgao da capa- idade propriamente técnica dos pesquisadores. As- sim, toda a autoridade ou competéncia cientifica 6 constituida, na verdade, de uma "razéo social” que se legitima, apresentando-se como “razao puramente téo- nica’ (Bourdieu, 1983a). © autor cita como exemplo extremo dessa dupla face da legitimidade cientifica a tecnocracia. Efetiva- mente, € sabido quanto a tecnocracia, propalando principios @ raz6es puramente técnicas, vern exercen- do, nas sociedades modemas, formas de controle so- cial © politico as mais sofisticadas e funcionais para as classes que detm 0 poder econdmico e politico. Evidenciando a dupla natureza de que se reveste a autoridade cientifica, Bourdieu aponta para uma ca- racteristica da violéncia simbdlica tantas vezes desta- cada ao longo de seus trabalhos. Por detrés de uma aparente neutralidade que Ihes coniere legitimidade, 05 sistemas simbélicos cumprom da forma mais eficaz a reprodugao das estruturas sociais. Para se compreender o funcionamento e a estru- tura do campo cientifico, Bourdieu (1983a, 1987b) in- dica que se tem de considerar tanto a posigao de cada disciplina na hierarquia das disciplinas cientificas que constituem 0 campo cientifico quanto a posigao dos diferentes produtores e agentes na hierarquia pré- pria de cada uma das disciplinas cientificas. © campo cientifico © a comunidade cientifica ndo ‘sfio_um todo indiferenciado e homogéneo. Segundo diz Bourdieu (1975), ha, no campo cientifico, um sis tema de classificacéo em vigor — nem sempre expl ito — que trata determinados dominios, objetos, mé- todos e teorias como “dignos” ou “indignos” de rece- ber 0 interesse e os investimentos dos agentes do ‘campo. E os pesquisadores participam sempre da im- portancia © do valor simbélico que a representacdo dominante atribui aos seus objetos de trabalho e de pesquisa, aos seus problemas e métodos de investi- gagio. Uma boa ilustragdo das hierarquias que se esta- belecem no interior de um campo ou disciplina cien- tifica em um determinado momento de sua historia é ‘oferecida no artigo intitulado "A propos d'une rencon- tre entre chercheurs; sciences sociales et politique au Brésil, no qual Monique de Saint Martin (1988), tendo por pretexto a X Reuniéo Anual da ANPOCS (Asso- clagdo Nacional de Pés-Graduacéo e Pesquisa em Ciéncias Sociais), realizada em Campos do Jordao em 1986, analisa a dindmica do funcionamento do campo das Ciéncias Sociais no Brasil, nos anos que se seguem ao fim dos goveros militares implantados em 1964, Falando da posigéo dominada e da pequena au- tonomia que 0 campo das Ciéncias Sociais e seus agentes mantinham om relagéo as demandas do cam- po do poder e da politica nessa década de redemo- Cad. Pesq., 1.97, maio 1996 cratizagao da vida politica brasileira, Saint Martin (1988) ‘destaca como esse fato marcava o lugar que 0s diferentes grupos de trabalho e suas tematicas ecupavam no evento que é objeto de sua andlise: Qs grupos de trabalho que, na reunido da AN- POCS, tratam do Estado e da democracia, ou da politica @ dos partidos, ocupam posigdes de hon- ra; 08 grupos que tratam da cultura, da religiao, da educagao, da historia indigena e da populagao negra ocupam as posi¢des relativamente domina- das. Assim, as participantes dos trabalhos do gru- po “Educagdo e Sociedade” me parecem de uma ‘origem mais modesta que as participantes do gru- po “Elites politicas" que esto vestidas de modo mais ‘chic" e esmerado, so mais “femininas” e, sem duvida, também de origem social mais ele- vada. (p.129) Assim, disciplinas como as ciéncias politicas, a sociologia politica, e temas como o autoritarismo, a democratizacdo, a representagao politica, 0 sistema eleitoral e outros afins, ocupavam um lugar privlegia- do nas hierarquias de disciplinas e objetos de estudo do campo das Céncias Sociais por sua proximidade com as demandas do campo politico. Ao contrario, as disciplinas, temas e objetos de estudo que nao apre- sentavam uma relagao téo imediata com o campo do Poder, como por exemplo a Sociologia da Educacéo, ccupavam as posig6es inferiores do campo. As palavras anteriormente transcritas de Saint Martin (1988) destacam também o fato de que a dis- tribuigéio dos agentes, pela hierarquia de disciplinas de um campo cientifico, sofre a mediagao de fatores ‘como 0 sexo € 0 capital social e cultural de que os diversos agentes sao portadores. Assim, observa a autora que os participantes dos grupos ‘de trabalho mais. prestigiosos apresentavam indicios de serem Portadores de maior capital social e cultural, quando comparados aos seus colegas que se ocupavam de temas e questées que ndo apresentavam a mesma rentabilidade simbélica no interior do campo nesses anos. Os intelectuais que ocupavam as posigdes domi- antes no campo, os mais prestigiados e reconheci- dos por seus pares eram exatamente os que, além da autoridade cientifica, conquistada por suas trajet6- rlas no campo académico e cientifico, detinham visi- bilidade no campo politico. Eram numerosos os socié- logos ¢ cientistas politicos que, nesses anos, concor- riam a cargos eletivos da administracao publica, assim como um nimero significativo de economistas era convidado a assumir postos de conselho e gesiéo em 6rgaos governamentais, atividades essas que acarre- tavam, aos que a elas’ se dedicavam, formas de re- conhecimento e prestigio que nao se submetiam a cri- térios propriamente cientificos. Segundo Bourdieu, & essa distribuigao desigual de legitimidade no interior do campo cientifico que pode explicar a freqiiente tendéncia dos pesquisado- res a se concentrar em tomo dos problemas de pes- Quisa mais prestigiosos e, portanto, possivels de con- © campo das produgoes. forir maior visibilidade © autoridade cientiica aos que a eles se dedicam. Ou, ainda, pode mesmo explicar 0s fluxos de migracéo de pesquisadores em diregao a objetos que, mesmo sendo menos prestigiosos, tém a vantagem de atrafrem um menor némero de agen- tes, 0 que implica um nivel de competicéo relativa- mente mais fraco e, por isso, maiores possibiidades de obtengao de distingdes e reconhecimento. Do mesmo modo, pode-se explicar pela distribui- ¢20 desigual de legitimidade 0 fato de algumas éreas de conhecimento ou discipiinas serem mais consagra- das ou legitimas que outras (por exemplo, a domina- (¢ao das discipfinas teéricas sobre as aplicadas, de ca- rater mais pragmatic) ou, ainda, o fato de as inves: tigagdes de cunho teérico acarretarem maior lucro simbdlico aos pesquisadores do que as pesquisas empiricas. E, ainda, nessa mesma ditego, Bourdieu (1987b) aponta para uma questo que nos parece muito cara a nés, trabalhadores e pesquisadores do campo edu- cacional, dizendo que: ‘Diversamente de uma pratica legitima, uma pratica em vias de consagracio coloca incessantemente aos que a ela se entregam a ques- to de sua propria legitimidade” (p.155) Os educadores, de certa forma, no se confron- tam, no campo educacional, em especial, em algumas reas do conhecimento pedagégico, com 0 problema da legitimidade de seus objetos de estudo e de suas praticas®? Quanto a distribuigao dos produtores pelas dife- rentes hierarquias do campo cientifico © seus invest mentos no interior dessas_hierarquias, Bourdieu (1983a, 1987b) destaca que tanto a posigao dos pro- Gutores no interior do campo, como as suas possibi- lidades de investimento e de obtengao de sucesso a partir desses investimentos so questées mediadas pela origem social dos agentes, pelo capital simbélico € cultural (expresso por exemplo em titulos escolares) que cada um conseguiu acumular ao longo de sua vida e trajetéria escolar @, por fim, pela posicdo do préprio campo considerado na hierarquia das discipli- has cientificas © em relagao a outros campos sociais, como 0 campo politico e econémico, Ou seja, as aspiragdes cientiticas dos agentes no interior do campo cientifico S40 proporcionais a0 ca- pital de reconhecimento que cada um jé conseguiu acumular. Dessa forma, aqueles professores @ pesal sadores mais bem situados no interior do campo cien- tifico tendem a desenvolver uma produgdo intelectual mais abundante e “ambiciosa’ quanto mais elevada for a sua posigao nos degraus da “hierarquia de le- itimidade" do campo (Bourdieu, 1987b). 4 Tradugdo da autora do texto original em francés. 5. Vela'se, por exemplo, a investigacao sacioistoica desonvol vida por esta autora (Garcia, 1994) sobre a discipina de Di datica nas antigas Facuidades de Filosofia, sua posicao no interior dessas insttuigdes © entro as disciplinas que const- tuiram os curriculos de formagio de protessores om nivel uni- versitrio no Brasil até aproximadamente o final da década do 60. 69 Pode-se, endo, depreender que as hierarquias no interior do campo cientifico se constituem pela posse de uma parcela maior ou menor de legitimidade cien- tifica. Como anteriormente se apontou, a atribuicgo dessa forma de legitimidade que implica a autoridade cientifica 6 tarefa dos préprios pares concorrentes no interior do campo. E tanto mais um processo interno a0 préprio campo quanto maior for 0 grau de auto- nomia do campo ou da disciplina cientifica considera- da. E interessante destacar que, segundo Bourdieu (1983a), as ciéncias da natureza gozam de maior au- fonomia que as ciéncias sociais porque: (.) 0 que esté em jogo na uta intema pela au- Toridade cientifica no campo das ciéncias socias, isto 6, 0 poder de produzir, impor @ inculcar a re~ presentagao legitima do mundo social, 6 0 que sid em jogo entre as classes no campo da po- Itica, Segue-se dai que as posigdes na luta inter- na no podem jamais atingir 0 grau de inde. pendéncia com relagao as posigdes nas lutas ex- temas que se observa no campo das ciéncas da natureza. (p.148) Assim o autor explica, para usar suas expressivas palavras, “o desenvolvimento tardio e sempre amea- gado" das ciéncias sociais om diregdo a uma autono- mia real que supée “a instauragao de mecanismos constitutvos de um campo cientitice auto-egulado € autarquico (..)"(p.147) Como se buscou mostrar, as posigdes dominan- tes no interior do campo cientifco pertencem aqueles que dispdem de maior capital cientitico, maior celeb dade ou prestigio. Conforme Ortiz (1983), sao aquelas posigdes que detém o poder de impor aos outros ele- entos do campo a definigdo de ciéncia que melhor thes convém @ que thes permite ocupar a posigdo de dominantes. Também aqui, no interior do campo cientifico, po- dem ser encontradas aquelas estratégias de conser- vagéo e subversao de que jé se falou anteriormente, E no confronto entre as ortodoxias e as heterodoxias que vao se definindo os limites de um determinado campo ou disciplina cientifica, como 6, ainda, por es- sas lutas que se explicam as transformarées que se do no nivel das teorias, dos objetos de estudo e dos métodos de pesquisa em uma dada disciplina cient fica ‘A propria acumulago do capital cientifico, segun- do Bourdieu (1983a), é o resultado das lutas que atra- vessam 0 campo cientifico. Pois, na tentativa de se distinguir daqueles que 0 precedem, o “aspirante” & consagragao cientiica tem de necessariamente incor porar as idéias, os conceitos, os métodos € as teorias J produzidas © sistematizadas numa, construcao nova, que tenta superar as anteriores. E assim que fins particulares de reconhecimento e legitimidade dos produtores individuais acabam se transformando, por uma Iégica prépria do funcionamento do campo, em algo proveitoso para o progresso da ciéncia, ou seja 22 ampliago do conjunto de conhecimentos cientiticos. A idéla de objetividade também 6 construida, no in- 70 terior do campo cientifico, segundo os mesmos prin- cipios. A objetividade das praticas cientificas e seus produtos € 0s critérios que a definem sao fruto de um ‘consenso que se constréi no campo segundo critérios discutidos no interior do préprio campo. De tudo 0 que se disse anteriormente & neces- sério destacar que, acima de tudo, Bourdieu (1983a, 1987) ensina que, no campo cientifico, as tomadas de posigao dos produtores @ as obras por eles pro- duzidas ‘so passiveis de uma dupla leitura, uma no campo cultural ¢ outra no campo politico, as duas in- timamente vinculadas. Mesmo aquelas tomadas de posigtio que significam contribuigdes e avangos ao progresso cientifico ou que se manifestam na forma de divergéncias tedricas ou epistemolégicas so, an- tes de tudo, posigdes politicas e interesses em luta no interior do. campo. E por isso que ele enfatiza que uma sociologia cientifica da ciéncia S6 pode constituir-se com a condi¢éo de perceber Glaramente que as diferentes posides no campo cientlico associam-se represeniagoes da ciéncia, estratégias ideolégicas disfarradas em tomadas de posigao epistemoldgicas (gritos do autor) atra- vés das quais os acupantes de uma posigao de- {erminada visam justiicar sua propria posigéo e as estratégias que eles colocam em agao para manté-la ou melhoré-la © para desacreditar, 20 ‘mesmo tempo, os detentores da posigao oposta @ suas estratégias. (1983a. p.154) Bourdieu alerta, a seguir, que a sociologia da ciéncia e do conhecimento implica que 0 sociélogo seja capaz de mapear a totalidade das posigdes em jogo no interior do campo e suas estratégias, © ndo somente as posigbes adversdrias sua Pode-se encontrar em sua obra Homo Academi- cus, publicada em 1984, na Franca, um exemplo da aplicago desses principios ao estudo de um campo cientifico em particular, qual seja, 0 campo universi- tario francés. © que Bourdieu fomece nesse livro & o resultado de uma minuciosa andlise da estrutura do campo uni- versitario na Franga, dos principios que organizam © que conformam aquilo a que dé 0 nome de “contlto entre faculdades”. © autor mostra a posigéo das di- ferentes faculdades (basicamente Medicina, Direito, Gisncias e Letras) em relagao ao campo do poder, a autonomia maior ou menor de cada faculdade diante desse campo @ as implicagdes em termos da estru- tura e organizagéo de cada uma delas. Trata, ainda, das formas de recrutamento e distibuigao dos profes: sores © pesquisadores por essas diferentes faculda~ des e suas hierarquias, considerando indicadores do tipo: o capital cultural e social que cada agente do campo herdou, os determinantes escolares, 0 capital de poder e prestigio universitério, o capital cientifico ¢ intelectual, as disposigées politicas etc. No campo universitario francés, as diferentes fa- culdades se cistibuem segundo uma estrutura hom loga @ estrutura do campo de poder. Ou seja, num Cad, Pesq., n.97, maio 1996 pélo, as faculdades cientiicamente dominantes mas Socialmente dominadas ©, em outro, as faculdades cientificamente dominadas mas social e politicamente dominantes (ou dominantes na ordem temporal, como ele mesmo diz). Essa oposigaio, segundo suas pal vras, concemne sobretudo ao lugar © & significagdo que as diferentes categorias de professores dao a ati vidade cientifica © & propria idéia de ciéncia (Bour- diou, 1984. p.76-7) Para explicar tal fato Bourdieu vai buscar em Kant a oposigaio entre essa duas categorias de faculdades que, no campo universitério, disputam 0 monopdlio pelo pensamento e pelo discurso legitimo sobre o mundo social No primeiro pélo, as “faculdades superiores’, com- preendendo as faculdades de Teologia, Direito e Me- dicina, apresentando-se como faculdades menos au- tonomas em relagao ao campo do poder politico e econémico e especialmente encarregadas de formar @ controlar os usos préticos do saber. SAo dominantes na ordem politica porque so mais dependentes das demandas desse campo, e foram os agentes que vo executar, sem questionamentos, as leis de uma determinada ‘ordem social ¢ cientifica. No segundo Ola, as "Yaculdades inferiores’, das quais fazem parte as Ciéncias e as Letras, dominantes na ordem cultural Porque so mais dependentes das normas e crtérios préprios dessa ordem e sao mais voltadas para as ne- cessidades de construgao dos fundamentos racionais, da ciéncia e para 0 questionamento da ordem esta- belecida (conforme Bourdieu, 1984). Dessa forma, 0 campo universitério francés, na tica do autor, esté organizado segundo dois princf- pios de hierarquizagéo opostos e concorrentes: de um lado, uma hierarquia social segundo o capital herdado € 0 capital econémico e politico atualmente detidos o, de outro, uma hierarquia fundada propriamente sobre © capital de autoridade e prestigio intelectual e cien- tifico. © autor relaciona, ainda, a posigo ocupada nas diferentes faculdades ¢ disciplinas pelos professores e pesquisadores universitarics & posse de determina- dos indices de capital econdmico cultural De um modo geral, Bourdieu considera que os professores universitarios se situam no pélo dominan- te do campo cultural opondo-se, pela posse de uma determinada forma institucionalizada de capital cultural que thes propicia uma carreira burocratica © vanta- gens regulares, tanto aos patties da industria e do Comércio como aos setores mais “heréticos" do campo cultural, como por exemplo, os escritores e artistas sem um vinculo mais institucionalizado. Entretanto, pelas divises que atravessam o campo universitario ‘como um todo, os professores se distinguem entre si segundo a posigao que ocupam nos diversos degraus da hierarquia das faculdades e das disciplinas. Bourdiou (1984) mostra que as faculdades domi- nantes, segundo uma hierarquia temporal e politica (no caso francés, a Medicina @ o Direito), reorutam Seus corpos profissionais no interior das fragdes de classe da burguesia, detentoras de maiores indices de © campo das produgées. capital econémico, politico @ cultural herdados ou atualmente conquistados. Esses profissionais tende- iam a acumular mais seguidamente as fungdes de autoridade no interior da universidade © as fungdes de poder no universo politico e econémico, Em relagdo a esses profissionais destaca, ainda, que 0 juigamento da sua “competéncia estatutéria” & perpassado por uma mistura de justficativas técnicas € socials. AS prOprias formas de recrutameno desses profissionais revelam estratégias de reprodugdo des- tinadas a conservar, além de uma posigao “rara’, um determinado ethos que caracteriza o “espirito do corpo profissional" (Bourdieu, 1984. p.83). Ja & medida que ocorra o afastamento para os degraus inferiores da hierarquia das faculdades (as iéncias @ as Letras), considerando o principio tem- poral @ politico, vamos encontrar os. profissionais oriundos das classes populares ou médias que devem a seu sucesso escolar sua ascengao as classes su- periores. Esses profissionais, segundo 0 autor, esta- iam mais dispostos a se sujeitarem a uma hierarqui- zagéo fundada na autonomia da ordem cientifica; e, fem fungao do habitus, tenderiam a reinvestir os seus esforgos na préptia instituigao, sendo pouco inclinados fa buscar outras formas de poder fora do mundo uni- versitario. Enfim, com esse estudo, Bourdieu desvela o fato de que a propria idéia de autoridade cientifica e a concepgao de ciéncia variam conforme a posigéo do agente no campo e/ou a posigéo da disciplina consi- derada em relacdo as demais disciplinas que consti- tuom 0 campo cientifico. Tanto assim que esses con- ceitos assumem significados profundamente diferentes no seio das faculdades “superiores” e no seio das fa- culdades “inferiores”. Nas primeiras, 0 prestigio cien- tifico 6 profundamente contaminado por uma razio propriamente social ligada & posse de uma cliontela proveniente das elites e ligada ao longo aprendizado de um arbitrério cultural distintivo, que caracteriza 0 corpo profissional. Enquanto que, nas segundas, a au- toridade cientifica se submete mais facilmente aos cri- térios préprios da ordem cientifica. Tentou-se evidenciar, com os destaques feltos a partir da obra Homo Academicus, a complexidade dos fatores envolvidos na andlise de um campo cienti especilica. Fatores esses que passam pela conside- ragao da posigao de um campo ou de uma disciplina particular no interior do campo cientifico e em relagao ‘a0 campo do poder, pela consideracao de suas hie- rarquias e das posigdes dos diferentes agentes no in- terior do campo. Aprendeu-se com Bourdieu que no campo cienti- fico se detrontam diferentes posigées politicas em luta por uma forma especifica de capital que é a autori- dade cientifica, e que os debates e enfrentamentos epistemolégicos que atravessam o mundo académico encobrem estratégias de manutencéo, de exclusao ou de conquista do poder de impor uma determinada de- finigao do que ¢ c “cientifico”. 7 Viu-se, também, que a autoridade cientifica é uma forma particular de capital que pode ser entendida como um misto de capacidades técnicas © poder sim- bolico atribuido a um agente ou grupo de agentes em fungao de sua posigdo atual no interior de um campo, de sua origem social e capital cultural e simbdlico her- dado e acumulado ao longo das trajet6rias de cada um dos agentes. Aptendeu-se ainda que para se compreender 0 proceso de constituigao, desenvolvimento e as trans- formagées de um determinado campo ou disciplina cientifica, bem como 0 cardter do seu contetido ou de suas obras, tem-se de considerar o “jogo” entre as diferentes posigdes no campo, suas interagdes re- ciprocas no interior do. préprio campo e em relagéo 0 campo social, politico e econdmico E certo que Bourdieu ensina que os campos da produgdo de bens simbslicos apresentam homologias ‘com os campos econémico, politico e social e que conceitos como “capital”, “confitos’ @ outros de mes- ma natureza tém relevancia para a anélise sociol6gica de um campo. Mas, ensina também que os campos simbélicos tém uma autonomia e dindmica préprias, que Ihes conferem caracteristicas particulares de es- truturago e de funcionamento que precisam ser apreendidas pelo esforgo analitico do socidlogo, Desvanece:se, assim, aos nossos olhos 0 mundo puro da ciéncia ea infalibiidade dos seus produtos, para ressurgir uma esfera da prética social atraves- sada por interesses nem sempre explicitos, por posi- Ses em luta que, em ultima andlise, vao dando os ontornos € 0s limites do universo cientifco. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BOURDIEU, P. Avonir de lasso ot causal du probable. Revue Frangaise de Socoiogie, Pais, v1, 0.1, p24, jan/Iar 1974 © Campo centfeo. In: ORTIZ, R. (01g). Pierre Bour ot: seciclogia. S40 Paulo: Ata, 1963a. p.122.5. (Grandes Gientsas Sociais, 39) Goisas ditas. S80 Paulo: Brasitense, 19902. p.77-95: Da regra as estaiégias. Cosas stas, S40 Paulo: Brasitonse, 10000, p.160-0: © campo intelectual ‘A Economia das trocas simbdlicas. 2° ed. 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